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Comentário a “Outros Inconscientes: Desconstruindo a Translucidez da Consciência Sartriana”

Perscrutar a translucidez da consciência sartriana significa estar às voltas com um “mistério em plena luz” - expressão que Sartre, em L’être et le néant (1943), toma de empréstimo do romance de Barrès -, isto é, com o modo pelo qual a consciência (de) si é menos uma identidade a si e mais uma presença a si. O recurso tipográfico (de) é de larga visada filosófica, uma vez que objetiva marcar uma diferença, fundamental, diga-se de passagem, entre conhecimento e existência. Se, por um lado, a consciência é incessante atividade que aclimata tudo à sua forma intencional “consciência de...”, por outro, tal atividade não poderia vir acompanhada da (auto)posição da consciência, pois isso seria introduzir a dualidade sujeito-objeto no Cogito e, desta feita, tropeçar na ideia ideae de Espinosa, no “saber, é saber que se sabe”, de Alain ou, se quisermos, em uma remissão ad infinitum entre aquele que conhece e aquele que conhece que conhece...

Muito grosseiramente, diremos que o para-si (sinônimo ontológico da antífona fenomenológica “toda consciência é consciência de...”) é um “mistério em plena luz” ou um “claro enigma” porque, fenomenologicamente, ele é movimento incessante de transcendência para fora de si mesmo, atividade voltada para o mundo e não para si própria. Além disso, mas agora ontologicamente, o para-si é si como presença não cognoscente de si, como não identidade a si, na medida em que ele está, enquanto atividade voltada para o mundo, separado de seu ser por um nada.

Doravante, o sujeito sartriano é uma ipseidade que falta de... para...2 2 “A característica da ipseidade, com efeito (Selbstheit), é que o homem está sempre do que é por toda espessura do ser que ele não é. Ele se anuncia a si mesmo do outro lado do mundo e volta a se interiorizar a partir do horizonte: o homem é ‘um ser das lonjuras’.” (SARTRE, 2010, p. 52). , um ser que não é o que é e é o que não é, “[...] um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser, enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo.” (SARTRE, 2010aSARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel)., p. 29). E uma das tantas faturas teóricas dessa conjugação entre intencionalidade fenomenológica e nada ontológico seria a superação da primazia do sujeito cognoscente, na filosofia cartesiana, pois ali o si não seria senão aquele de um agente que “[...] tende a ser concebido como um ‘sujeito desengajado’, isto é, como um espectador para o qual tudo, e nisso compreendido o seu próprio comportamento e a sua própria ação, tende a se tornar um objeto de inspeção.” (DESCOMBES, 2018DESCOMBES, Vincent. Le complément de sujet. Enquête sur le fait d’agir de soi-même. Paris: Éditions Gallimard, 2018. (Tel)., p. 182). E essa constatação vai pari passu ao que Alt (2021ALT, F. Outros inconscientes: desconstruindo a translucidez da consciência sartriana. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 193-212, 2021.), com finesse, propõe clarificar em seu comentário “Outros inconscientes: desconstruindo a translucidez da consciência sartriana”.

Ora, a referida finesse do artigo de Alt está no modo como ela distende o “mistério em plena luz” sartriano, a não identidade a si da consciência (de) si, até chegar a uma hantologie (e cuja fonte de inspiração a autora busca na “ciência da assombração”, tal como proposta por Derrida, em seu Espectres de Marx (1993)), que, além de desarmar as críticas de que o sujeito em Sartre, dada a translucidez da consciência, deteria um “domínio de si”, teria suficiente fôlego para “inaugurar” um outro tipo de “inconsciente” assentado na “espectralidade” da “díade fantasma” reflexo-refletidora:

Contrariamente à plenitude do idêntico, a presença a si fantasmática descrita por Sartre significa, na realidade, escape, disjunção na relação do sujeito consigo mesmo. Trata-se, portanto, de um modo de existência que possui as características de um espectro, que é o elemento que vem perturbar um suposto imanentismo consciente. [...] No que concerne o problema da transparência da consciência, na questão da adequação do sujeito a si, aquilo que Sartre chama de presença a si corresponde à estrutura espectral do jogo de reflexos que quebra a contemporaneidade a si própria a uma presença efetiva, visto que é uma presença que também é ausência a si. (ALT, 2021ALT, F. Outros inconscientes: desconstruindo a translucidez da consciência sartriana. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 193-212, 2021., p. 198).

Desse parágrafo, haveria seguramente uma infinidade de consequências teóricas a serem desveladas (algo que o leitor poderá encontrar otimamente, no artigo em comento), mas sublinhemos, dado o espaço de que aqui dispomos, a maneia como essa chave de leitura espectral ou hantologique entrega a particularidade de uma filosofia que, embora partindo do Cogito, em nada seria - dada a sua “espectralidade” - tributária do que a autora, novamente no encalço de Derrida, chama de “o círculo do heliotropo” ou a primazia - herdada da filosofia cartesiana - de um sujeito “luminoso”, de um sujeito que seria um si sob a forma da transparência cognoscente de si. Contudo, se, por um lado, estamos de acordo com o fato de que a translucidez da consciência de L’être et le néant é “assombrada” por um si idêntico que se dá ao para-si presente sob a forma de um para-si faltante, que seria si mesmo sob a forma da identidade plena (A=A) do ser-em-si, por outro, o “assombramento”, e todas as consequências que dele decorrem (não-identidade a si e desconhecimento de si), não nos parece adequado à conferência que Sarte realiza em meados dos anos 1960, a convite do Instituto Gramsci, Qu’est-ce que la subjectivité? (1961), e da qual Alt pinça algumas passagens, com o intuito de descortinar “outros inconscientes”. Senão vejamos, en passant.

Como Alt destaca com rigor, a supracitada conferência institui a subjetividade como uma presença a si que está ao mesmo tempo ausente de si, pois supõe, enquanto atividade voltada para o mundo, “[...] uma leve, a mais leve possível, distância sob a forma de um totalidade regida e autorregulada [...]” (SARTRE, 2013SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la subjectivité? Édition établie et préfacée par Michel Kail & Raoul Kirchmayr. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2013., p. 53). Todavia, se, através dessa definição, se pode afirmar que o filósofo não abandonou as “fantasmagóricas” descrições do modo de “ser” da consciência à la L’être et le néant, tal afirmação não é senão aparente, uma vez que Qu’est-ce que la subjectivité? está intimamente arrimado às reflexões e conceitos expostos por Sartre, no díptico Questions de méthode (1957) e Critique de la Raison dialectique (1960), reflexões e conceitos desenvolvidos, sobretudo, a partir do aprendizado sartriano de uma dialética que não parece estar presente na magnum opus dos anos 19433 3 Sartre, em entrevista a S. de Beauvoir, concorda com a afirmação desta de que não há dialética em EN. Segundo ele, somente haverá uma ideia dialética, a partir de seus “cadernos perdidos” postumamente editados sob o título Cahiers pour une morale. Sartre: “[...] se olhássemos meus cadernos - e infelizmente nós não os temos mais -, veríamos o quanto a dialética deslizava (glissait) no que eu escrevia.”; Beauvoir: “Todavia, em L’être et le néant não há nada de dialética”; Sartre: “Justamente. Eu passei de L’être et le néant a uma ideia dialética.” (SARTRE apudBEAUVOIR, 2015, p. 248-249). . Nessa lida, se Alt (2021ALT, F. Outros inconscientes: desconstruindo a translucidez da consciência sartriana. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 193-212, 2021.), sempre acertadamente, evoca a (re)definição da consciência como vivido (vécu) para, então, indicar que há na consciência sartriana um “inconsciente”, ou seja, um desconhecimento de si da ordem da pré-reflexividade, seria necessário, igualmente, marcar que “[...] esta concepção de vivido é o que marca a minha evolução desde L’être et le néant.” (SARTRE, 1987SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987., p. 112).

Essa evolução, reforcemos a tinta, é fomentada por uma dialetização da vida psíquica4 4 “O que chamo de vivido é precisamente o conjunto do processo dialético da vida psíquica, um processo que permanece necessariamente opaco para si mesmo por se tratar de uma constante totalização, e uma totalização que não pode estar consciente do que ela é. Podemos estar conscientes, com efeito, de uma totalização exterior, mas não de uma totalização que totaliza igualmente a consciência.” (SARTRE, 1987, p. 111, grifo nosso). e tributária de um processo de interiorização e (re)exteriorização da práxis-projeto, tal como esta é descrita nos textos de 1957 e 1960. De fato, o “[...] o vivido é, simultaneamente, sempre presente a si e ausente de si” (SARTRE, 1987SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987., p, 112), porém, essa simultaneidade não soa ser mais “espectral”, mas, sim, uma verdadeira antinomia dialética que instituirá a subjetividade como presença/translucidez posta e, ao mesmo tempo, como ausência/obscuridade pressuposta. E, nesse terreno arado pela dialética, aquilo que é posto (a presença a si do vivido) exige o pressuposto negado (a ausência a si do vivido), de modo que, uma vez posta a presença translucida de si, esta somente poderá ser dada pressupondo-se uma opacidade (ausência de si) que interdita a plena visão da profundidade do vivido. Se quisermos, uma vez posta a presença translúcida do vivido, sua demonstração deve ser negada, pois pressupõe sua indemonstrabilidade (ausência, opacidade e obscuridade a si) à maneira da Razão analítica, isto é, por uma razão cuja démarche estabelece relações em exterioridade, permanecendo assim exterior ao objeto considerado.

E será bem em uma perspectiva antinômica dialética e não mais metafísico-espectral que a crítica sartriana da psicanálise freudiana será compreendida enquanto uma teoria do fato psíquico teleológico e mecânico, um pensamento sincrético e não dialético, portanto, um pensamento desprovido de antinomia/contradição, de supressão (Aufhebung) e de interversão. Para aclarar uma tal crítica, Sartre se reporta à ideia psicanalítica de condensação e de complexo: a primeira seria um conceito ambivalente, designando tanto “[...] um fenômeno de associação, como aqueles que descreviam os filósofos e psicólogos ingleses dos séculos XVIII e XIX.” (SARTRE, 1987SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987., p. 105). Já a ideia de complexo, lastreada ao causalismo e ao finalismo mecanicista, é compreendida pelo filósofo como uma interpenetração sem contradição: o complexo de Édipo, por exemplo, é utilizado pelos psicanalistas de forma “maleável”, pois os fatos psíquicos são ali organizados “[...] para encontrar não importa o que, tanto a fixação à mãe, o amor pela mãe, quanto o ódio pela mãe [...]. Dito de outra maneira, podemos tirar tudo do complexo de Édipo, pois ele não é estruturado.” (SARTRE, 1987SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987., p. 106).

Nesse sentido, o psicanalista pode formular uma miríade de hipóteses que se contradizem entre si, pois o movimento dos vividos é de interpenetração: “[...] um fenômeno pode ter tal significação, mas seu contrário pode também significar a mesma coisa” (SARTRE, 1987SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987., p. 107), ou seja, o complexo de Édipo pode significar, ao mesmo tempo (mas um “ao mesmo tempo” não dialético, quer dizer, sem uma antinomia dialética), tanto o amor quanto o ódio ou a fixação pela mãe. Em uma lógica dialética, ao contrário do sincretismo psicanalítico,

[...] os fenômenos decorrem uns dos outros dialeticamente: há diferentes configurações da realidade dialética, e cada uma dessas configurações está rigorosamente condicionada pela precedente que ela integra e ultrapassa ao mesmo tempo. É precisamente essa ultrapassagem que é irredutível: jamais podemos reduzir uma configuração àquela que a precede. (SARTRE, 1987SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987., p. 107-108).

Assim, nessa lógica dialética que estrutura a vida psíquica, cada fenômeno deverá ser concebido na perspectiva de uma cadeia dialética de supressão (ultrapassagem/negação & conservação) enquanto totalização (destotalizada) em curso, o que indica, portanto, que as partes - cada fenômeno ou configuração - integram irredutivelmente um todo estruturado. Logo, não se trata de refutar os complexos, mas, sim, de estruturá-los dialeticamente como fenômenos que se conservam (em sua irredutibilidade) e são ultrapassados ao mesmo tempo, contudo, um ao mesmo tempo da ordem dialética da interversão, do posto/pressuposto e da supressão.5 5 Como o desenvolvimento deste ponto exigiria de nós muito mais do que apenas um singelo comentário, sugerimos as passagens de Qu’est-ce que la subjectivité? nas quais Sartre mobiliza o exemplo de seu amigo Paul, para demonstrar a ultrapassagem-conservação do vivido, isto é, seu movimento dialético.

Last but no least: se a espectralidade de L’être et le néant marca, de direito, o não alinhamento de Sartre ao cartesianismo ou ao tal “círculo do heliotropo”, de fato, Sartre não teria escapado totalmente ao Cogito de Descartes, já que, como nos adverte Descombes, há uma “versão latina” e uma “versão francesa” das Meditações Metafísicas (1961):

[...] o texto em latim parece bem definir o ato cognitivo como o exercício de uma das faculdades do espírito: compreender, é pensar, imaginar, é pensar, sentir, é pensar, etc. Todos esses atos são cognitivos porque são todos cognitivos por eles mesmos. Em contrapartida, o texto francês define o ato cognitivo como um ato que não pode deixar de ser percebido pelo sujeito. De acordo com esta explicação, haveria, portanto, dois atos em causa: o ato cogitativo (“intelectual”) que é objeto de consciência e um segundo ato cogitativo que consiste na percepção ou a consciência do primeiro ato. Compreender, querer, imaginar, sentir, etc., são atos de pensamento porque eu não posso querer, imaginar, etc., sem tomar conhecimento ou consciência (“pensar”) que eu o realizo. (DESCOMBES, 2018DESCOMBES, Vincent. Le complément de sujet. Enquête sur le fait d’agir de soi-même. Paris: Éditions Gallimard, 2018. (Tel)., p. 189).

A “teoria francesa”, à medida que postula que um ato cogitativo deve ser definido como ato que não pode ser produzido, sem que haja consciência desse ato, cai forçosamente numa regressão ao infinito: se eu sei que compreendo cada vez que eu compreendo é porque eu compreendo que compreendo e assim sucessivamente... Já a “teoria latina”, por sua vez, evita uma tal regressão, ao definir o ato cogitativo como um ato de consciência:

A definição de um ato cogitativo se apresenta agora assim: “Se eu Ψ, então eu estou consciente (de algo), ou eu percebo (um objeto), ou eu penso (algo) sob o modo de Ψ”. Um ato cogitativo é um ato pelo qual eu estou imediatamente consciente de algo. Dito de outra maneira, há uma presença (mental ou intencional) do conteúdo de meu pensamento [...]. Por exemplo, se eu vejo uma luz, a teoria “latina” não dirá, como a teoria “francesa”, que minha visão é sempre consciente, sempre unida a uma experiência de ver, o que implicaria que há de um lado o ato de ver e de outro o ato de perceber que eu vejo. Ver, é agora pensar ou estar consciente de algo sob o modo visual. A teoria “latina” dirá que minha visão é uma consciência visual de luz, ou uma experiência visual de luz, que ela é uma maneira de estar consciente de algo [...]. Minha consciência é uma maneira de estar presente de modo “estático” ou por uma “transcendência” de si ao objeto (intencional). (DESCOMBES, 2018DESCOMBES, Vincent. Le complément de sujet. Enquête sur le fait d’agir de soi-même. Paris: Éditions Gallimard, 2018. (Tel)., p. 191-192).

Por acaso também em Sartre não encontraríamos algo muito próximo dessa “teoria latina”, quando, por exemplo, ele afirma, para consolidar a díade fantasma, que o sofrimento não é senão consciência (de) sofrer, afinal, “[...] o sofrimento que eu sinto [...] escapa como sofrimento rumo à consciência de sofrer. Eu nunca posso ser surpreendido por ele, porque o sofrimento só é na medida exata em que o experimento” (SARTRE, 2010SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel)., p. 128)? Pois bem, se o filósofo parece adotar, como afirma Descombes (2018DESCOMBES, Vincent. Le complément de sujet. Enquête sur le fait d’agir de soi-même. Paris: Éditions Gallimard, 2018. (Tel)., p. 526), a “teoria latina” da cogitatio, embora a dotando de uma “espectralidade” que supostamente interditaria qualquer identidade - “[...] a definição do “sujeito” como para-si é desenvolvida como uma crítica à identidade” (ALT, 2021ALT, F. Outros inconscientes: desconstruindo a translucidez da consciência sartriana. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 193-212, 2021., p. 198) -, deixemos a seguinte questão em aberto: como um para-si que jamais pode ser algo senão sob a forma de não sê-lo ou “sê-lo” apenas “em representação” (quanto a esse ponto, lembremos do já clássico garçom de café de L’être et le néant) pode, ao mesmo tempo, “ser” sempre (ainda que fuja disso recorrendo à má-fé) totalmente responsável por cada um de seus atos/atitudes?

Ora, se o para-si é “[...] ‘consciência (de) ser o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto” (SARTRE, 2010SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel)., p. 598), de modo que “[...] o que acontece comigo, acontece por mim, e eu não poderia me deixar afetar por isso, nem me revoltar, nem me resignar” (SARTRE, 2010SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel)., p. 598), a não-identidade própria a esse nada de ser que falta de... para... não seria dirimida, e isso apesar do esforço do filósofo em “enraizar” a consciência em um mundo fáctico e contingente, por uma liberdade incondicional de escolhas (igualmente incondicionais)? Reforcemos o quiproquó: ao mesmo tempo que

[...] a espectralidade vem finalmente colocar em questão o significado da translucidez como sendo equivalente à identidade do sujeito, à possibilidade de um “domínio de si” e a afirmação de uma subjetividade pura”. (ALT, 2021ALT, F. Outros inconscientes: desconstruindo a translucidez da consciência sartriana. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 193-212, 2021., p. 9),

lemos, nessa mesma obra que postula uma tal “espectralidade”, que, se o “garçom de café” (aqui entre aspas, porque ele “é” garçom-de-café-sob-o-modo-de-não-sê-lo) se levanta todos os dias às cinco horas da manhã para ir trabalhar, ao invés de permanecer deitado, tal atitude não é ontologicamente tributária de nenhuma exterioridade, entretanto, de uma livre escolha incondicional, afinal, a liberdade se caracteriza “[...] pela existência desse nada (rien) que se insinua entre os motivos e o ato. Não é porque sou livre que meu ato escapa à determinação dos motivos”, mas, continua o filósofo, “[...] ao contrário, a estrutura ineficiente dos motivos é condição de minha liberdade.” (SARTRE, 2010aSARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel)., p. 69). O motivo, algo que equivaleria a uma subordinação exterior, apenas poderá aparecer como consciência de motivo,

[...] e pelo fato de só poder surgir como aparição, o motivo se constitui a si mesmo como ineficaz, [...] pertence sempre à subjetividade e é apreendido como meu, mas, por natureza, ele é transcendência na imanência, e a consciência lhe escapa pelo fato mesmo de designá-lo, pois cabe à consciência, neste momento, conferir-lhe sua significação e importância. (SARTRE, 2010aSARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel)., p. 69).

Esse excerto, somado ao que expusemos (ainda que de sobrevoo), não vem corroborar um “domínio de si” sob a forma de um si idêntico a si? Afinal, para que o garçom “se faça” ir trabalhar ou “se constranja” a si mesmo a ir trabalhar (sendo esta a tese que recobre a liberdade incondicional de L’être et le néant), é necessário que haja, por parte do sujeito, uma relação de subordinação de si a si...

Talvez tenhamos ido longe demais com este comentário, mas nosso entusiasmo é tributário da originalidade com a qual Alt instiga o leitor a (re)pensar o corpus filosófico de Sartre, para além do óbvio e do já dito. E, apesar de termos proposto aqui um contraponto à interpretação original da autora, uma coisa permanece indubitável e clara: com o presente artigo de Fernanda, os estudiosos têm em mãos um dos melhores comentários já escritos em língua portuguesa acerca da filosofia sartriana.

Referências

  • ALT, F. Outros inconscientes: desconstruindo a translucidez da consciência sartriana. Trans/form/ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 4, p. 193-212, 2021.
  • BEAUVOIR, Simone de. La Cérémonie des adieux, suivi d’Entretiens avec Jean Paul-Sartre. Paris: Gallimard, 2015. (Folio).
  • DESCOMBES, Vincent. Le complément de sujet. Enquête sur le fait d’agir de soi-même. Paris: Éditions Gallimard, 2018. (Tel).
  • SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987.
  • SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel).
  • SARTRE, Jean-Paul. Qu’est-ce que la subjectivité? Édition établie et préfacée par Michel Kail & Raoul Kirchmayr. Paris: Les Prairies Ordinaires, 2013.
  • 5
    Como o desenvolvimento deste ponto exigiria de nós muito mais do que apenas um singelo comentário, sugerimos as passagens de Qu’est-ce que la subjectivité? nas quais Sartre mobiliza o exemplo de seu amigo Paul, para demonstrar a ultrapassagem-conservação do vivido, isto é, seu movimento dialético.
  • 2
    “A característica da ipseidade, com efeito (Selbstheit), é que o homem está sempre do que é por toda espessura do ser que ele não é. Ele se anuncia a si mesmo do outro lado do mundo e volta a se interiorizar a partir do horizonte: o homem é ‘um ser das lonjuras’.” (SARTRE, 2010SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant - Essai d’ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard , 2010. (Tel)., p. 52).
  • 3
    Sartre, em entrevista a S. de Beauvoir, concorda com a afirmação desta de que não há dialética em EN. Segundo ele, somente haverá uma ideia dialética, a partir de seus “cadernos perdidos” postumamente editados sob o título Cahiers pour une morale. Sartre: “[...] se olhássemos meus cadernos - e infelizmente nós não os temos mais -, veríamos o quanto a dialética deslizava (glissait) no que eu escrevia.”; Beauvoir: “Todavia, em L’être et le néant não há nada de dialética”; Sartre: “Justamente. Eu passei de L’être et le néant a uma ideia dialética.” (SARTRE apudBEAUVOIR, 2015BEAUVOIR, Simone de. La Cérémonie des adieux, suivi d’Entretiens avec Jean Paul-Sartre. Paris: Gallimard, 2015. (Folio)., p. 248-249).
  • 4
    “O que chamo de vivido é precisamente o conjunto do processo dialético da vida psíquica, um processo que permanece necessariamente opaco para si mesmo por se tratar de uma constante totalização, e uma totalização que não pode estar consciente do que ela é. Podemos estar conscientes, com efeito, de uma totalização exterior, mas não de uma totalização que totaliza igualmente a consciência.” (SARTRE, 1987SARTRE, Jean-Paul. Situations, IX. Mélanges. Paris: Gallimard , 1987., p. 111, grifo nosso).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2021
  • Aceito
    27 Mar 2021
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