A generoso convite do editor da Trans/Form/Ação, teço meus comentários ao estimulante artigo de Briceño. Não se trata aqui de discutir monismo versus pluralismo, idealismo versus realismo ou Bradley versus Russell e suas tradições. Isso foi feito por mãos mais competentes, em diversos locais; o mais recente que me ocorre é The Russell/Bradley dispute, de Steward Candlish (2016).
O que farei aqui será recuperar algumas questões envolvidas no tema monismo-pluralismo, principalmente no que diz respeito ao rompimento de Russell com o primeiro e a adoção do último, na virada do século XIX para o XX. Conforme argumento em meu livro sobre essa fase de Russell (AMATUCCI, no prelo), a questão das relações esteve no centro desse rompimento, e a decisão que Russell tomou foi para ele difícil, na ocasião. Em seu artigo “A classificação das relações” (RUSSELL, 1899), lido para a Sociedade Aristotélica, em 1899, Russell finalmente acede ao pluralismo, definindo a relação como um tipo de predicação, ao mesmo tempo que reconhece que o problema do retorno infinito apontado por Bradley fica aberto. Portanto, decide trocar um problema por outro. Qual problema Russell preferiu trocar pelo regresso infinito?
Russell (1899) começou o que seria um projeto de longo prazo, uma “enciclopédia dialética das ciências” (conhecido como projeto Tiergarten, pois teve essa ideia passeando naquele parque). Era um projeto hegeliano, fortemente influenciado por Bradley e por McTaggart, cuja ideia consistia em percorrer as ciências uma a uma, eliminando as contradições possíveis de serem eliminadas, e tratando as contradições inevitáveis com uma “transição dialética” de uma ciência para a seguinte. As contradições evitáveis seriam aquelas decorrentes de erros de análise, resolvíveis por uma filosofia crítica da ciência; e as inevitáveis seriam aquelas naturais da limitação de visão de cada ciência - porque as ciências individuais não poderiam abarcar o Absoluto, sendo bradleyrianamente abstrações autocontraditórias. A divergência entre McTaggart e Bradley é que, para este, o Absoluto é inatingível pela mente humana, enquanto para McTaggart - e para Russell -, haveria jeito de abarcá-lo, através de um trabalho como essa enciclopédia.
Russell começaria com a Lógica, a Matemática, a Geometria, depois a Física e a Psicologia, e deveria acabar por concluir (suas palavras) que o mundo é ideal. Ele chegou até partes da Física - a Mecânica; mas as contradições e paradoxos se amontoavam sem solução. O fato é que é impossível uma Matemática sem uma teoria das relações externas, e foi esta a decisão que Russell teve que tomar. O estudo desse período de Russell testemunha que ele tentou manter a teoria das relações de Bradley o tanto quanto pôde, inclusive atrasando seu desenvolvimento da fundamentação da matemática pela lógica.
Que a teoria das relações internas implica necessariamente um monismo, e que a sua contrapartida de relações externas, um pluralismo, é bastante claro para Russell, e de resto parece pacífico na Filosofia. Russell, principalmente em seus escritos de memórias, oscila em dizer que o pluralismo era para ele uma necessidade primitiva ou que as relações externas o eram. Problemas de quem viveu e escreveu, durante quase cem anos.
O cerne da argumentação de Russell contra a teoria das relações internas é que eu creio ser de interesse aqui, pois ela e a correspondente argumentação de Bradley estão relacionadas a uma discussão sobre afirmação do não ser, a qual data dos pré-socráticos, e é uma questão filosoficamente relevante.
Russell argumenta que juízos que predicam sobre o sujeito o que o sujeito já é - o que está na metafísica de Bradley, assim como na Monadologia de Leibniz - não conseguem explicar relações de diferença: A é diferente de B, ou A é maior que B etc. Se B é diferente de A, não pode ser parte dele. Em A Classificação..., Russell sai da discussão do formalismo da relação para suas implicações filosóficas: argumenta que predicação é uma relação, e que não é de identidade; e que há juízos sintéticos2, nos quais se predica algo sobre o sujeito que não é idêntico a ele. Outras relações, como à direita de, entre, atrás de etc. também são difíceis de atribuir intrinsecamente à identidade de um sujeito.
Todavia - e esta é minha modesta contribuição nesta discussão -, acredito que o problema ainda seja da ambiguidade do verbo “ser”.
Parmênides afirmou, em seu poema, que a Deusa o orientara a seguir a trilha de afirmar que o ser é; que o caminho de afirmar que o ser não é não deve ser trilhado. Com isso, afirmava que, quando fazemos uma proposição como a de que o Monstro do Lago Ness não é, não estamos dizendo nada, pois postulamos um sujeito para dizer que ele não é. Com essa argumentação, negou a possibilidade da mudança, pois a criança é um adulto que não é e, depois, o que não é torna-se o que é. “Este problema de afirmar o não ser caminha por Aristóteles e chega a Brentano, aristotelista e fundador da psicologia descritiva, em seu estudo sobre a intencionalidade.” (AMATUCCI, 2016).
Não obstante, um dos discípulos de Parmênides, Empédocles, aponta a ambiguidade do verbo “ser”, em juízos como “A rosa não é amarela”, em contraposição em “A rosa não é”. No segundo caso, o verbo “ser” expressa existência, e aí sim temos uma “trilha a não ser percorrida”; porém, no primeiro, o verbo “ser” exprime uma qualidade, a qual a rosa, que existe, pode ter ou não ter.
Essa ambiguidade não esgota o problema da discussão sobre as relações internas, mas existe ainda outra. A outra ambiguidade do verbo “ser” é (convenientemente aqui) expressa por Russell (2008, n. II, p. 05), em uma fase mais madura, a respeito de Hegel:
O argumento de Hegel nesta porção de sua Lógica depende de fora a fora da confusão entre o ´é’ da predicação, como em ‘Sócrates é mortal’, com o ‘é’ da identidade, como em ‘Sócrates é o filósofo que bebeu cicuta’. Devido a esta confusão, ele pensa que ‘Sócrates’ e ‘mortal’ devem ser idênticos. Vendo que eles são diferentes, ele não infere, como outros o fariam, que há um engano em algum lugar, mas que eles exibem ‘identidade na diferença’. Novamente, Sócrates é particular, ‘mortal’ é universal. Portanto, diz ele, uma vez que Sócrates é mortal, segue-se que o particular é universal [...] [e] procede sintetizando particular e universal no individual, ou universal concreto.
Acredito, mas deixo aberta a demonstração, que Bradley herda a ambiguidade do verbo “ser”. Na citação feita por Briceño (2021, p. 394) e em todo o raciocínio breadleyriano, vemos um embate explícito entre a predicação de qualidades e a de identidade: “Si predicas lo que es diferente, adscribes al sujeto lo que no es; y si predicas lo que no es diferente, no dices nada en absoluto.”
A discussão subsequente, em Briceño (2021), parece mostrar que Bradley ainda tem problemas com as predicações de Empédocles - como em “A rosa não é amarela”.
Lamento, neste comentário, haver apenas flanqueado algumas questões, sem entrar no cerne da discussão metafísica, que não é meu forte. Não obstante, a questão do status ontológico das relações - e não seu aspecto formal caro à Matemática - é uma das questões que sempre me intrigaram e que Briceño (2021) aborda de maneira vivaz, em seu artigo.
Referências
- AMATUCCI, M. O ser inexistente em Brentano e Twardowski. Problemata: Revista Internacional de Filosofía, v. 7, n. 1, p. 18-30, 2016. ISSN 2236-8612.
- AMATUCCI, M. A improvável jornada do jovem Russell ou de onde diabos saíram os Princípios da Matemática? Curitiba: Appris (no prelo).
- BRICEÑO, S. O. Monismo, relaciones, y los límites de la explicación metafísica. Trans/ Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, v. 44, n. 1, p. 385-410, 2021.
- CANDLISH, S. The Russell/Bradley Dispute and its Significance for Twentieth Century Philosophy. New York: Springer, 2016. ISBN 0230800610.
- RUSSELL, B. (Relations) The Classification of Relations. In: GRIFFIN, N.; LEWIS, A. C. (ed.). (Papers 2) The Collected Papers of Bertrand Russell v. 2. London: Routledge, v. 2, 1899. p.138-146.
- RUSSELL, B. Our knowledge of the external world as a field for scientific method in philosophy. New York: Barnes & Noble 2008 (1914).
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2
Se Russell se tivesse apoiado somente na propriedade sintética de juízos, seu argumento teria sido derrubado pela contestação da diferença analítico-sintética por Quine, a qual abre por sobre o empirismo a brecha através da qual renasce a metafísica de nossos dias. Mas Russell já esboça, de maneira ainda confusa, a discussão que faz na citação de Our Knowledge..., citada.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Jun 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2021
Histórico
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Recebido
22 Out 2020 -
Aceito
25 Out 2020