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Open-access Comentário a “Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do Sul global”: a crítica da tecnologia como crítica à distinção moderna entre natureza e cultura

Cruz (2022) busca demonstrar como as teses do construtivismo crítico da tecnologia, do prof. Andrew Feenberg, um dos mais proeminentes filósofos da tecnologia, poderiam ser complementadas com uma análise que o autor do artigo considera como “interna das disciplinas técnicas”, para o que ele reúne argumentos de Boaventura de Souza Santos e Yuk Hui. Nesse sentido, o texto não é apenas uma crítica ao modelo de pensamento de Feenberg, mas uma teorização que pretende, de alguma forma, “aterrar” esse pensamento no “Sul global”, cujas circunstâncias são suplementares aos argumentos feenbergianos.

O horizonte do texto, nesse caso, é a perspectiva decolonial que pretende analisar os impactos dessas teorias nos processos emancipatórios dos povos que, historicamente, foram considerados submissos, subdesenvolvidos e sem verdadeira tecnologia. O texto, por isso, ao lançar mão dos argumentos de Santos e Hui, explicita o necessário reconhecimento desse equívoco e, mais ainda, da existência de “ordens sociotécnicas” outras que não aquelas eurocentradas, as quais costumam definir as pautas das disciplinas técnicas e das epistemologias. O texto ainda tem o mérito de trazer à análise, a título de exemplo, três experiências decoloniais que, sistematizadas, oferecem oportunidade para o reconhecimento prático da eficácia desses argumentos.

Sabe-se que o argumento da democratização da tecnologia - um dos mais centrais da obra de Feenberg - se estrutura a partir de uma concepção segundo a qual a tecnologia precisa ser influída pelos interesses daqueles que geralmente são alijados dos processos tecnológicos. Isso significaria dar lugar aos interesses das populações mais vulneráveis e da própria natureza (por meio, principalmente, dos movimentos sociais e ambientais), que confrontariam, por exemplo, a lógica do lucro que orienta a tecnologia unicamente para os interesses do mercado. A inclusão dessas pautas no âmbito tecnológico representaria, portanto, o estabelecimento de novas estruturas de poder e novos “códigos técnicos” e mesmo de novas tecnologias. O resultado é que as próprias disciplinas tecnológicas passariam a incluir esses novos interesses (o autor arrola como exemplo as especialidades ambientais, no âmbito de projetos de automóveis) e estes, por sua vez, passariam a incluir, nos âmbitos teóricos, as demandas do mundo da vida, das experiências concretas das pessoas em busca de vida melhor. Teoria e prática, afinal, estariam em diálogo. Daí nasceria uma nova racionalidade, não apenas tecnológica, mas sociotécnica (na medida em que a primeira se deixa influenciar pelas demandas da “sociedade”).

Nesse ponto, seria preciso, conforme defende o autor do artigo, reconhecer a necessidade de reconhecimento das diferentes demandas que são, na verdade, expressões de diferentes cosmovisões (as quais incluem, por exemplo, práticas, necessidades, conhecimentos e modos de vida). É esse, precisamente, o complemento teórico necessário à tese de Feenberg: a inclusão das pautas dos chamados “atores do Sul global”, com o objetivo de evitar - no campo tecnológico - a reiterada lógica epistemicida que impede o reconhecimento das diferentes práticas, discursos e demandas impostas pela colonialidade tradicional e que vem relegando tais formas de vida à invisibilidade. Trata-se de alcançar, segundo a tese de Boaventura de Souza Santos, aquela “justiça cognitiva” capaz de promover as interações culturais e o fortalecimento das alianças capazes de superar as injustiças históricas dessa relação entre “mundos”.

Nesse ponto, Yuk Hui traduz o esforço de reconhecimento de diferentes cosmologias particulares que formariam o que o autor chama de cosmotécnica. Falar em tecnologia (no singular) tem sido, portanto, até agora, dar voz a uma única cosmotécnica, precisamente aquela do capitalismo, a qual se universaliza com a lógica do lucro e da exploração, em detrimento das várias outras cosmotécnicas. O primeiro passo, portanto, seria “superar o universalismo”, com a afirmação de diferentes tecnologias (no plural), na medida em que elas traduzem diferentes formas de vida com as quais a tecnologia se relaciona. Isso passa, portanto, pela superação da abstração teórica da tecnologia, por meio do reconhecimento das condicionalidades e circunstancialidades que moldam os processos técnicos. Haveria, assim, uma tecnodiversidade: diferentes formas de articular a tecnologia com os horizontes antropológicos dos diferentes povos e culturas - que não aqueles centrados na visão unilateral da sociedade capitalista. Hui, nesse caso, concretiza a tese da necessidade de reconhecimento dessas novas epistemologias, a partir de identidades outras que não aquelas eurocentradas e colonizadoras.

Nasceriam daí as experiências várias das populações “sulistas” que comprovam e desenvolvem outras cosmotécnicas mobilizadas, inclusive, pelas utopias de um outro mundo possível - que são utopias de resistência. Essa resistência, no caso do artigo, se dá por meio de [1] um ateliê de arquitetura orientado pela ideia de projeto participativo que inclui corpos e inconsciente; [2] um projeto participativo de engenharia elétrica/eletrônica/computacional que atua com mulheres bordadeiras colombianas; e [3] um projeto de engenharia popular baseado em economia solidária, tecnologia social e extensão universitária.

Essas três experiências comprovariam, segundo o autor do artigo, a tendência de resgate de cosmotécnicas específicas, tradutoras de diferentes formas de vida e geradoras de outras tecnologias. Em relação a Feenberg, nesse caso, Hui tem a vantagem de ver que a atuação dos movimentos sociais e ambientais, por exemplo, se estruturam na perspectiva do reconhecimento de diferentes cosmotécnicas - e não apenas diferentes interesses ou protagonismos. O que nasce, afinal, não é apenas um novo design, mas a expressão de novos modos de vida.

Tudo isso nos leva a entender esse projeto como uma crítica a uma das bases teóricas mais importantes e características da modernidade. Essa perspectiva foi desenvolvida por Yuk Hui, no seu livro Tecnodiversidade, no qual o autor tenta “[...] levar diferentes ontologias em diferentes culturas a sério" (HUI, 2020, p. 33), contrapondo-se à modernidade, a qual, segundo ele, poderia ser compreendida como um “naturalismo”, ou seja, uma contraposição entre cultura e natureza - a tecnodiversidade propõe precisamente o contrário.

Uma das suas bases teóricas para realizar tal tarefa seriam “[...] muitos antropólogos associados com a virada ontológica [que] voltaram suas atenções para a questão da natureza e da política do não-humano (em linhas gerais, animais, plantas, minerais, os espíritos e os mortos)”, entre os quais está, por exemplo, Viveiros de Castro (HUI, 2020, p. 34). Em poucas palavras, trata-se de pensar a unificação do cosmos e da moral, por meio das atividades técnicas, sejam elas da criação de produtos ou de obras de arte; é por isso que Hui afirma, com veemência: “[...] creio que seja difícil, senão impossível, que a modernidade seja superada sem que se enfrente de maneira direta a questão da tecnologia” (HUI, 2020, p. 38), e isso pode ser feito com uma reavaliação do conceito de cosmopolítica em relação a cosmotécnica.

O que Hui propõe, nesse caso, é acordar as possibilidades adormecidas através de uma investigação sobre a tecnodiversidade capaz de rearticular a questão da tecnologia e os dados antropológicos. Para isso, “[...] precisaremos redescobrir uma multiplicidade de cosmotécnicas e reconstruir suas histórias para projetarmos no Antropoceno as possibilidades que nelas estão adormecidas.” (HUI, 2020, p. 15). A isso precisamente poderíamos chamar de um projeto de decolonização da tecnologia:

Como o pensamento não-europeu e o não-moderno poderiam responder a esta época tecnológica senão com uma pelo retorno à natureza? Com o meu conhecimento limitado sobre América Latina, minha esperança que este trabalho desperte uma curiosidade que leve a perguntas como: o que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, Maia? E, para além de formas de arte e de artesanato indígenas a serem preservadas, como essas cosmotécnicas poderiam nos inspirar a recontextualizar a tecnologia moderna? (HUI, 2020, p. 18).

Tudo isso passaria por uma tentativa intencional de fragmentar o mundo - uma estratégia contrária, portanto, ao que propôs a modernidade:

Talvez devêssemos atribuir ao pensamento a tarefa oposta àquela que lhe é oferecido pela filosofia iluminista: fragmentar o mundo de acordo com o diferente, em vez de universalizá-lo através do mesmo; induzir o mesmo através do diferente, em vez de deduzir o diferente a partir do mesmo. (HUI, 2020, p. 72).

Ora, isso passaria, necessariamente, pelo reconhecimento das várias tecnologias, formadoras de diferentes cosmotécnicas. Em algum sentido, isso significa fazer uma crítica à tecnologia branca e à atitude embranquecedora da tecnologia, o que exige identificar “[...] os erros decisivos das populações brancas” (HUI, 2020, p. 77) que fizeram das tecnologias militares e náuticas uma forma de colonização do mundo, pela via do Iluminismo. Em outras palavras, seria preciso superar esse tipo de tecnologia que “[...] adquire e até mesmo executa o pensamento iluminista.” (HUI, 2020, p. 81).

Por isso, para Hui, “[...] se quisermos reagir às perspectivas de auto-extensão global, precisaremos retornar a um discurso cuidadosamente elaborado sobre localidades e a posição que humano ocupa no cosmos.” (HUI, 2020, p. 89). E isso não significa retornar ao nacionalismo, ao essencialismo cultural e ao etnofuturismo, mas aos outros saberes, aos diferentes modos de conhecimento e às várias formas de estabelecer relação com o mundo e com a terra, os quais, muitas vezes, escapam das lentas das ciências e mesmo da tecnologia moderna, permanecendo como terrenos desconhecidos, como perspectivas adormecidas que precisariam ser acordadas.

Referências

  • CRUZ, Cristiano Cordeiro. Criticando e avançando o construtivismo crítico a partir do sul global. Trans/Form/Ação: Revista de Filosofia da Unesp, v. 46, n. 2, p. 61-84, 2023.
  • HUI, Yuk. Tecnodiversidade. Tradução de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2023
  • Aceito
    09 Fev 2023
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