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Apresentação: deslocando referências, propondo novas questões

Em 2001, sob coordenação de David Garland vinha a público um livro que haveria de pautar discussões e debates nos anos que se seguiram e que, nos dias que correm, estão longe de perderem pertinência, muito pelo contrário. O tema, e problema: o encarceramento em massa. Era o fulcro da discussão travada pelos autores – aliás, referências, todos eles, incontornáveis nesses debates – de seus diversos capítulos. O título, fórmula sintética da questão em tela – Mass imprisionment: social causes and consequences. Na introdução, Garland esclarece: o termo encarceramento em massa foi cunhado para descrever a instituição que emergiu nos Estados Unidos nas duas décadas anteriores – um aumento “sem precedentes na história dos Estados Unidos e, mais geralmente, na história da democracia liberal”. Em comparação com décadas anteriores, um aumento das taxas de encarceramento “sem paralelos no mundo ocidental” (Garland, 2001GARLAND, David (org.). (2001), Mass imprisionenment. social causes and consequences. Londres, Sage., p. 2).

Desde então, o termo – encarceramento em massa – passou a circular amplamente nas pesquisas e debates acadêmicos (também políticos) nos dois lados do Atlântico, ao Norte e ao Sul. Em foco, as razões, circunstâncias e efeitos do endurecimento penal que já vinha se configurando desde os anos 1990 (ou antes, conforme países) e que se aprofundou drasticamente nas décadas seguintes. O aumento exponencial da população carcerária era evidência incontornável e traço comum, transversal aos vários países, sob contextos políticos e societários diversos. Reatualizando, redefinindo ou desdobrando em novos termos questões lançadas por Foucault em seu Vigiar e punir (1975), a “questão carcerária” operava como pedra de toque e prisma privilegiado para decifrar as configurações políticas e societárias que vinham se desenhando sob o impacto das chamadas reformas neoliberais e seus nexos com a lógica securitária e punitiva que passou a reger políticas de segurança e dispositivos de gestão da ordem social. A literatura é vastíssima. Para lembrar aqui apenas e tão somente algumas das coordenadas que pautaram esses debates, pesquisas e teorias explicativas transitavam e se desdobraram em um campo de polêmicas (também controvérsias) entre a noção de Estado Penal formulada por Wacquant (2004)WACQUANT, Loic. (2004), Punir les pauvres: le nouveau gouvernement de l’insecurité sociale. Paris, Agone., a racionalidade neoliberal inscrita na “Cultura do Controle” discutida por Garland (1999GARLAND, David. (1999), “As contradições da ‘sociedade punitiva’: o caso britânico”. Revista de Sociologia e Política, 13: 59-80. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44781999000200006&lng=en&nrm=iso>.
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, 2001GARLAND, David (org.). (2001), Mass imprisionenment. social causes and consequences. Londres, Sage.) e a colonização da política pela “guerra ao crime” e a “cultura do medo”, Governing trough crime, como sugere o título do livro de Jonathan Simon (2007)SIMON, Jonatham. (2007), Governing trough crime: how the war on crime transformed American democracy and created a culture of fear. Oxford/Nova York, Oxford University Press.. Por certo, essas rapidíssimas referências estão longe de dar conta de um campo de debate, sempre reaberto e que se desdobra nos dias que correm para lidar com outros tantos desafios postos no mundo atual. Seja como for e para retomar o ponto do início, passados quase vinte anos do lançamento daquele livro, o encarceramento em massa já está cristalizado como evidência e como dado quase que banalizado nas realidades de diversos países. Também no Brasil.

Porém, e esse é o ponto que interessa aqui enfatizar: o encarceramento em massa diz respeito a dimensões societárias que não se deixam ver sob o manejo de indicadores e estatísticas que medem o aumento drástico das populações carcerárias. Daí o interesse em recuperar esse livro no já distante ano de 2001. Pois se é verdade que o termo foi cunhado para dar conta de uma mudança de patamar nas taxas de encarceramento, é também pelos seus efeitos que ele se caracteriza. Como diz Garland (2001)GARLAND, David (org.). (2001), Mass imprisionenment. social causes and consequences. Londres, Sage., longe de ser apenas um fato pertinente à gestão penal do crime, o encarceramento em massa passou a ser uma das instituições sociais que estruturam a experiência de amplos grupos sociais. O encarceramento, diz o autor, torna-se encarceramento em massa quando deixa de ser algo que atinge infratores individuais para tornar-se aprisionamento sistemático de grupos inteiros de população – no caso americano, jovens negros em centros urbanos. Para essas populações, o aprisionamento tornou-se algo normalizado – um aspecto previsível da experiência. E isso significa que o encarceramento “tornou-se uma instituição que estrutura a experiência desses grupos”, também um modo de socialização na própria medida em que passou a fazer parte da vida rotineira dessas populações (Garland, 2001GARLAND, David (org.). (2001), Mass imprisionenment. social causes and consequences. Londres, Sage., p. 2). Naquele início de década, Garland alertava: dispomos de uma verdadeira biblioteca no campo da criminologia e dos estudos sobre prisão, mas nada se sabe sobre o impacto social do encarceramento em massa nas comunidades e nos bairros afetados, nada se sabe sobre o “que pode significar para a sociedade na qual ele se desenvolve e para os grupos afetados” (p. 2).

Pois bem, esse é o outro vetor pelo qual a “questão carcerária” passou a ser discutida e reatualizada em um campo de pesquisa e reflexão que se constituiu e se desenvolveu no correr desses anos. As breves linhas em que Garland define o encarceramento em massa são mais do que confirmadas, evidências incontornáveis, registradas por qualquer pesquisador que se volte ao estudo das regiões periféricas e empobrecidas das grandes cidades. Poderíamos repetir palavra a palavra o que então dizia Garland – “cada família, cada indivíduo nesses bairros tem um conhecimento direto da prisão através da esposa, do filho, parentes, amigos, vizinhos” (p. 2). Também as evidências da prisão como uma experiência “normalizada”, aspecto previsível, não esporádico na vida dessas populações. A passagem pela prisão passou a compor o que Ruggiero e South (1997)RUGGIERO, Vincenzo & SOUTH, Nigel. (1997), “The late-modern city as a bazaar: drug markets, illegal enterprise and the ‘barricades’”. The British Jounal of Sociology, 48 (1): 54-70. definiram como “mobilidades laterais” de indivíduos que transitam, no curso de suas vidas, entre o desemprego, o trabalho precário, atividades pontuais de sobrevivência nas fronteiras incertas entre o legal e ilegal, também o pequeno delito de rua nos interstícios dos mercados de droga que passaram a compor a economia urbana das grandes cidades. Entre a seletividade penal que atinge essas populações, a precarização do trabalho e a expansão dos mercados informais e ilegais, temos aí as linhas de força que conformam uma experiência social – e urbana – que passou a interpelar e desafiar os pesquisadores.

É nesse campo de pesquisa e nesse terreno de indagações que se situam as questões tratadas pelos autores que compõem este Dossiê, “Punição, crime e cidade: contextos transversais”. O leitor haverá de notar, em cada um dos artigos e no seu conjunto, seja pela densidade das pesquisas e questões aqui trabalhadas, seja pelo leque ampliado de interlocutores e referências que os autores mobilizam na construção de seus argumentos, que estamos diante de um vasto e já consolidado campo de pesquisa, fecundo pela diversidade de temas e questões abordadas. Mas o leitor também haverá de notar – e isso é o mais importante – que não se trata propriamente de deslindar os efeitos deletérios da prisão na vida dos indivíduos, suas famílias e redes de relações. A rigor, trata-se aqui de um fundo deslocamento do modo como a prisão se define como objeto de pesquisa e questão teórica, também política. À distância (e ao revés) da definição da prisão como entidade supostamente encerrada em seus muros e no seu perímetro institucional, a prisão e a experiência carcerária são trabalhadas sob o prisma das tramas relacionais que atravessam seus muros, nos dois sentidos. Colocando na mira as dobras entre o dentro e fora dos muros, suas interfaces, os pesquisadores fazem ver os fluxos e circuitos por onde se tecem redes de relações e por onde transitam códigos morais, repertórios e categorias de mútuo reconhecimento, demarcando no mesmo passo territorialidades urbanas e experiências compartilhadas, também inscritas nos corpos, nos afetos e nas destinações incertas de todos (muitos), homens e mulheres, que caíram nas malhas dos dispositivos penais.

Trata-se de um deslocamento em relação aos modos canônicos de se lidar com a prisão, um cárcere-centrismo não poucas vezes pautado pelos sempre repostos (e nunca resolvidos) problemas de segurança pública. Trata-se também de um deslocamento que permite algo como um transbordamento das fronteiras disciplinares nas quais a questão prisional tende a ser tratada (criminologia, sociologia da punição). Por isso mesmo, é possível dizer que essas pesquisas circunscrevem um campo epistêmico que redefine o modo como são construídos objetos de pesquisa e são formuladas questões que nos interpelam pela sua potência descritiva e analítica dos dramas que se constelam no mundo social. É justamente pelas tramas ampliadas pelas quais a questão carcerária passa a ser trabalhada, descrita e analisada, que é possível aquilatar o quanto a experiência carcerária está entranhada na vida social das periferias urbanas, inscrita nas redes relacionais que atravessam os muros das prisões e se desdobram no seu entrelaçamento nas circunstâncias cotidianas da vida urbana.

O livro de Manuela Ivone Cunha, Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos (2002), tornou-se referência obrigatória nessas discussões, pelo ineditismo no momento em que foi publicado e pela fecundidade de um enfoque etnográfico e analítico que haveria de inspirar muitas pesquisas que se desenvolveram nos anos seguintes. Também entre nós, quero dizer: um coletivo de pesquisa que tinha (e ainda tem) em uma de suas frentes de investigação justamente a questão carcerária vista sob o ângulo de suas interfaces e transversalidades com territorialidades urbanas. Portanto, para nós, é motivo de grande satisfação ter Manuela Ivone Cunha como parceira na coordenação e montagem deste Dossiê. Interlocutora privilegiada em nossas pesquisas e reflexões teóricas, foi com ela que contamos para abrir, com sua instigante conferência, seminário no qual, em 2016, sob o título Gestão da (des)ordem, prisão e dinâmicas da punitividade, apresentamos os primeiros resultados de um amplo projeto de pesquisa iniciado dois anos antes1 1 . Projeto temático “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea” (Fapesp, 2014-2018). . Pois então, isso também significa dizer que este Dossiê pode e deve ser visto como desdobramento e ponto de consolidação de uma interlocução que, entre nós do PPGS-USP e o Centro de Pesquisa por ela coordenado na Universidade do Minho (Portugal), também frutifica nas pesquisas e redes ampliadas de interlocução construídas aqui e lá. A proposta deste Dossiê começou a ser desenhada por ocasião de um estágio de pesquisa de Fábio Mallart, pesquisador de nossa equipe, junto ao Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA – UMinho) coordenado por Manuela. Sem o apoio da Fapesp esse programa de pesquisa não teria sido possível. A ela nosso duplo agradecimento, também pelo apoio a nosso Projeto Temático que foi o ponto de partida dessa interlocução da qual este Dossiê é em boa medida tributário.

Trazendo a público pesquisas inovadoras nesse terreno que articula “prisão, punição e cidade”, para evocar aqui o título deste Dossiê, a nossa aposta é que, nos “contextos transversais” passíveis de serem apreendidos no contraponto entre os vários artigos, as questões tratadas pelos autores interpelem o leitor e possam contribuir para um debate, entre pesquisa e reflexão teórica, que acolha o desafio de deslindar as configurações societárias que se desenham sob os efeitos de um acirramento da gestão punitiva-carcerária da ordem social, aqui e alhures – cifra dos tempos atuais.

Referências Bibliográficas

  • CUNHA, Manuela I. (2002), Entre o bairro e a prisão: tráfico e trajectos [The prison and the neighborhood. trafficking and trajectories]. Lisboa, Fim de Século; 2 ed. (2018), Lisboa, Etnográfica Press.
  • FOUCAULT, Michel. (1975), Surveiller et punir. Paris, Gallimard.
  • GARLAND, David (org.). (2001), Mass imprisionenment. social causes and consequences. Londres, Sage.
  • GARLAND, David. (1999), “As contradições da ‘sociedade punitiva’: o caso britânico”. Revista de Sociologia e Política, 13: 59-80. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44781999000200006&lng=en&nrm=iso>
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44781999000200006&lng=en&nrm=iso>
  • GARLAND, David. (2001), The culture of control: crime and social order in contemporary society. Chicago, The University of Chicago Press.
  • RUGGIERO, Vincenzo & SOUTH, Nigel. (1997), “The late-modern city as a bazaar: drug markets, illegal enterprise and the ‘barricades’”. The British Jounal of Sociology, 48 (1): 54-70.
  • SIMON, Jonatham. (2007), Governing trough crime: how the war on crime transformed American democracy and created a culture of fear. Oxford/Nova York, Oxford University Press.
  • WACQUANT, Loic. (2004), Punir les pauvres: le nouveau gouvernement de l’insecurité sociale. Paris, Agone.
  • 1
    . Projeto temático “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea” (Fapesp, 2014-2018).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2019
  • Aceito
    7 Out 2019
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