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Tempo de Clima

RESENHAS

Ruy Coelho, Tempo de Clima. São Paulo, Perspectiva, 2002, 142 pp.

Fernando Antonio Pinheiro Filho

Doutor em sociologia pela USP, professor da USP e da FESPSP

Primeira navegação

A reunião dos escritos publicados por Ruy Coelho na revista Clima entre 1941 e 1944, ora editados em livro, dá ensejo não só à apreciação direta de seus achados e eventuais deslizes na atividade crítica, como permite também, de um viés mais sociológico, acompanhar o valor expressivo dos textos como marcos dos posicionamentos do autor no interior do grupo de redatores da revista, desse grupo no campo da crítica de arte que pretendia reconfigurar e da influência de tal episódio no direcionamento das carreiras intelectuais dos envolvidos. Nos limites desta resenha, pretende-se alinhavar os últimos aspectos mencionados, buscando atribuir à obra de estréia seu peso específico no desenrolar da trajetória do autor.

Na divisão do trabalho intelectual entre o grupo de jovens alunos da Faculdade de Filosofia da USP que funda a revista em 1941, Ruy Coelho é aquele que não tem uma função específica: para ficar no núcleo central, lembremos que Antonio Candido trata de literatura, Paulo Emílio Salles Gomes de cinema, Décio de Almeida Prado de teatro; a Ruy, o mais jovem, coube o papel do curinga (conforme a expressão assumida pelo próprio) que, além desses temas, cuida ainda de erigir uma teoria da crítica, ligada em sua visão à filosofia e à estética, e via de regra articulada com a análise substantiva das obras. É talvez essa ausência de uma determinação mais específica, correlata à busca de um caminho pessoal, que dá a ver como se faz o entranhamento da sociabilidade vivida no texto.

Sob esse aspecto, o longo ensaio sobre a obra de Proust que abre o volume (publicado no primeiro número de Clima, em maio de 1941) interessa sobretudo pelas escolhas de filiação que ora revela, ora deixa entrever. Precisamente, refiro-me aqui à recusa do pensamento de Bergson como baliza de compreensão do romance proustiano, contra a vertente que vê na recriação do real pelo pensamento como condição de sua realidade, sugerida no Em busca do tempo perdido, a realização literária da identificação entre realidade da consciência e experiência da duração preconizada pelo filósofo. Na análise de Coelho, tal visão é preterida em favor do racionalismo dos discípulos de Kant,cuja concepção de conhecimento estaria mais próxima de Proust. Vale assinalar que tal corrente, conhecida como neo-criticismo francês, serve de base filosófica à sociologia de Durkheim, que não por acaso argumenta sobre a natureza social do tempo e vê na crítica à orientação espacializante da inteligência que impediria a apreensão do real como duração uma clara deriva de Bergson em direção ao irracionalismo. Ou seja, nesse movimento, o jovem aluno de ciências sociais acena silenciosamente para a escola francesa de sociologia e reivindica sua adesão a um racionalismo que pontua todos os textos do livro, e que para além da escolha teórica sanciona a adoção de um tom elevado no estilo como marca de competência, mas retendo a ambigüidade de filiação disciplinar na ausência de menção e de uso do aparato sociológico de crítica.

Procedimento semelhante é usado no artigo de junho de 1942 (número10 de Clima), "Introdução ao método crítico", plataforma de trabalho ancorada na dupla recusa dos estilos científico e impressionista de crítica. Ao último, assimilado imediatamente à produção da geração modernista (cujo nome emblemático é o de Mário de Andrade, citado como exemplo), Coelho reprova a excessiva projeção da interioridade do crítico, nublando a objetividade do juízo. Quanto ao primeiro, a sugestão é não mais de acúmulo, mas de ausência de subjetividade que dissolveria a obra ao reduzi-la à configuração social de origem. A solução, segundo o autor inspirada em Hegel (que, de resto, é a referência teórica mais presente no livro) e em Sartre, consiste em encontrar o ponto de vista do autor para, pondo-se assim na obra, apreender seu movimento imanente e revelar sua essência — como a revelação da essência é tradicionalmente tarefa da filosofia, o novo método, que há de superar todos os outros, é batizado de crítica filosófica. Claramente, tal construção teórica corresponde à necessidade de fundação de um novo lugar no campo intelectual, eqüidistante da cultura artístico-literária dos criadores e da cultura científica da objetivação plena da obra; entre a herança crítica modernista e os limites do rigor acadêmico. Nesse sentido, o artigo de Ruy Coelho procura contribuir para realizar o que enuncia, consolidando o projeto coletivo de que se fez porta-voz.

A polivalência de Coelho (ao longo dos artigos o leitor encontra ainda textos sobre música, cinema, política) funciona então no registro da não-especialização adequada às formulações mais abrangentes, que no nível expressivo resolve-se no manejo de um efeito de erudição obtido por meio de recursos como o controle de uma linguagem estética inespecífica mas dúctil. Por exemplo, neste trecho que se refere a um romance:"A palheta do autor acha-se singularmente enriquecida nesta obra. Abandonou o claro-escuro em que era mestre. Seu estilo se coloriu de várias cambiantes novas pela necessidade de descrição do mundo exterior em seus aspectos pitorescos" (p. 56). Ou ainda no comentário sobre a relação entre música e pintura no filme Fantasia de Disney.

A consideração da música brasileira revela outro mecanismo tendendo ao mesmo efeito, que consiste em desqualificar esteticamente a tradição popular, no texto intitulado "Uma voz na platéia", em cujo final o autor se escusa do petulante de sua atitude pela intenção de interpretar os desejos da platéia — é sua a voz que fala em nome dos que se calam. Noutro lance, sua voz volta-se à fustigação de outro ícone da geração anterior, Oswald de Andrade, cujo romance Os condenados é impiedosamente desqualificado, não sem algum espírito de cálculo, conforme deixa entrever no último parágrafo do texto: "Não se doa Oswald com as críticas, talvez severas em excesso. Achei meu dever de moço exprimir a opinião sincera acerca desse livro de mocidade" (p. 81).

Ou seja, o arsenal crítico do jovem que julga é comparativamente superior ao arsenal literário do jovem criador objeto de sua crítica, o que antecipa a consagração daquele mediando-a com a posterior consagração deste. Note-se que, nesse e nos outros escritos reunidos, Coelho faz uso de demonstrações explícitas de erudição como constantes remissões a uma ampla gama de autores consagrados e citações no original em diversas línguas, o que reforça a legitimação do que diz.

Sem dúvida é a competência intelectual do autor que garante o êxito da empreitada. De fato, a revista serviu de veículo institucional de expressão para os novos críticos, que por meio dela ingressam na crítica cultural em órgãos da grande imprensa, suscitam a admiração de nomes como Sérgio Milliet e Vinicius de Morais, e logram viabilizar suas carreiras. Mas a ambivalência da posição construída fará com que sua estabilização dependa em maior ou menor grau do ingresso como professor na mesma universidade em que todos se conheceram como alunos, deslocando para o interior do campo acadêmico o embate vivido anteriormente, mas agora sem a mesma unidade. O fato de Ruy Coelho integrar-se tardiamente à Faculdade de Filosofia, em 1953, após formação como antropólogo nos Estados Unidos, num período de oito anos que começa imediatamente após o final da revista em 1945, ganha nova luz diante da experiência do jovem curinga que o livro permite acompanhar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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