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Experiências turísticas na Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): entre práticas e representações

TOURIST EXPERIENCES IN LAGOA MIRIM (BRAZIL/URUGUAY): BETWEEN PRACTICES AND REPRESENTATIONS

EXPERIENCIAS TURÍSTICAS EN LA LAGUNA MERÍN (BRASIL/URUGUAY): ENTRE PRACTICES Y REPRESENTACIONES

Resumo:

A Lagoa Mirim é o maior corpo hídrico do seu gênero no Brasil e no Uruguai, cujo talvegue vem lhe servindo de limite internacional. O objetivo geral foi identificar e analisar práticas turísticas que ocorrem nos sítios estudados, durante o veraneio 2019-2020. O estudo de caso múltiplo compreende documentação, observação direta e entrevistas semipadronizadas, até atingir saturação teórica, seguida de análise qualitativa de conteúdo e triangulação. Os sítios do recorte de estudo são a Praia da Vila da Capilha (Brasil) - localidade histórica no entorno da Estação Ecológica do Taim - o Balneário de Lago Merín (Uruguai) - construído com essa finalidade - e o Porto Pindorama (Brasil) - desativado como terminal. Cada um desses arranjos forja à sua maneira trajetórias de (des)encontro com paisagens e práticas do turismo e/ou lazer. O turismo e o lazer têm-se constituído provisoriamente como um dos usos territoriais nessa área, calcado em paisagens lacustres e práticas sazonais, que envolvem olhar e performar. As práticas observadas e mapeadas são mais vastas que as documentadas e enunciadas. Tais práticas vão além da representação, embora elas não sejam dissociadas no todo da experiência turística lacustre, de que a apreciação das paisagens é parte.

Palavras-chave:
turismo e lazer; práticas turísticas; paisagens; experiência geográfica; Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai)

Abstract:

The Mirim Lagoon is the largest water body of its kind in Brazil and Uruguay, whose thalweg has served as an international boundary. The core goal was to identify and analyze tourist practices that occur in the studied sites, during the 2019-2020 summer vacation. The multiple case study comprises documentation, direct observation and semi-standardized interviews, until theoretical saturation was reached, followed by qualitative content analysis and triangulation. The studied areas are Vila da Capilha beach (Brazil) - historic location around the Taim Ecological Station - the Lago Merín resort (Uruguay) - built for this purpose - and Porto Pindorama (Brazil) - disabled as a terminal. Each of these arrangements forges, in its own way, trajectories of (dis)encounter with landscapes and tourism and/or leisure practices. Tourism and leisure have been provisionally constituted as one of the territorial uses in this area, based on lake landscapes and seasonal practices, which involve gazing and performing. The observed and mapped practices are broader than those documented and articulated. Such practices go beyond representation, although they are not entirely dissociated from the lakeside tourism experience, of which the appreciation of landscapes is a part of.

Keywords:
tourism and leisure; tourist practices; landscapes; geographical experience; Mirim Lagoon (Brazil/Uruguay)

Resumen:

La Laguna Merín es el cuerpo de agua más grande de su tipo en Brasil y Uruguay, cuyo thalweg ha servido como límite internacional. El objetivo general fue identificar y analizar las prácticas turísticas que ocurren en los sitios estudiados, durante las vacaciones de verano 2019-2020. El estudio de caso múltiple comprende documentación, observación directa y entrevistas semi-estandarizadas, hasta alcanzar la saturación teórica, seguido de análisis de contenido cualitativo y triangulación. Las áreas de estudio son: Praia da Vila da Capilha (Brasil) - lugar histórico alrededor de la Estación Ecológica Taim - el Balneario Lago Merín (Uruguay) - construido para este propósito - y Porto Pindorama (Brasil) - inhabilitado como terminal. Cada uno de estos arreglos forja, a su manera, trayectorias de (des) encuentro con paisajes y prácticas turísticas y o de ocio. El turismo y el ocio se han constituido provisionalmente como usos territoriales de esta zona, a partir de paisajes lacustres y prácticas estacionales, que implican mirar y actuar. Las prácticas observadas y mapeadas son más amplias que las documentadas y articuladas. Estas prácticas van más allá de la representación, aunque no esteen completamente disociadas de la experiencia del turismo lagunar, de la que forma parte la apreciación de los paisajes.

Palabras Clave:
turismo y ocio; prácticas turísticas; paisajes; experiencia geográfica; Laguna Merín (Brasil/Uruguay)

INTRODUÇÃO

O turismo e o lazer são práticas que produzem conhecimento geográfico leigo no-do mundo (Crouch, 1999Crouch, D. (1999). Introduction. In Crouch, D. (Ed.). Leisure/tourism geographies: Practices and geographical knowledge . Londres: Routledge , 1999, pp. 1-16. ). Da consciência geográfica emerge a experiência turística (Li, 2000Li, Y. (2000). Geographical consciousness and tourism experience. Annals of Tourism Research , 27(4), 863-883.). Aqui, a experiência turística não está atrelada ao que se preconiza por meio da Economia da Experiência, mas sim à sua acepção fenomenológica dominante. Paralelamente, valores visuais/estéticos da paisagem determinam certas práticas de turismo e/ou lazer em ambientes lacustres (ver Crang, 1999Crang, M. (1999). Knowing, tourism and practices of vision. In Crouch, D. (Eds.). Leisure/tourism geographies: Practices and geographical knowledge. Londres: Routledge , pp. 238-256. ; Potocka, 2013Potocka, I. (2013). The lakescape in the eyes of a tourist. Quaestiones Geographicae, 32(3), 85-97.) Historicamente, a emergência de determinadas práticas turísticas (como o alpinismo) está alicerçada em mudanças na sensibilidade estética da paisagem (como a das montanhas), em que o sublime e o pitoresco, como categorias do Romântico, ainda exercem notória influência, apesar de as performances turísticas terem-se diversificado desde então (Gastal, 2013Gastal, S. de A. (2013). Imagem, Paisagem e Turismo: A construção do olhar romântico. Pasos, 11(3), 123-133.; ver Santos, 2017Santos, J. M. F. (2017). A marcação turística do Romantismo. Rosa dos Ventos , 9(2), 290-307.). Ideologias dominantes acerca de paisagem e natureza são (re)construídas pelas práticas de turismo e lazer (Crouch, 2006).

As práticas de turismo e/ou lazer tendem a apresentar protocolos pelos quais os sujeitos atuam e buscam significados e valores. A ideia de performatividade, que articula as práticas, com potência para abertura, pode elucidar como tais protocolos funcionam, em processos de tornar-se, pautando-se em uma semiótica corporificada do espaço (Crouch, 2006).

Essas práticas, que se desenrolam em encontros turísticos (ver Crouch, 1999Crouch, D. (1999). Introduction. In Crouch, D. (Ed.). Leisure/tourism geographies: Practices and geographical knowledge . Londres: Routledge , 1999, pp. 1-16. ), implicam considerar o que é feito, não só o que é representado, permitindo assim que se redimensione o papel e o valor dos outros sentidos, como superação da hegemonia da visão, a qual cabe se repensar, sobretudo, no que tange a paisagem, como segue sendo concebida (Minca, 2007Minca, C. (2007). The tourist landscape paradox. Social & Cultural Geography , 8(3), 433-453.). As paisagens também são performadas! A própria fotografia turística pode ser considerada uma performance que possui geograficidade (Crang, 1997Crang, M. (1997). Picturing practices: Research through the tourist gaze. Progress in Human Geography, 21(3), 359-373.; Larsen, 2006Larsen, J. (2006). Geographies of tourist photography: Choreographies and performances. In Falkheimer, J. & Jannson, A. (Eds.). Geographies of Communication: The spatial turn in media studies. Gotemburgo: Nordicom, pp. 243-261. ). A visibilidade é também composta por uma ou mais práticas.

São as práticas e performances que ativam os lugares turísticos como tais. Se as práticas de mobilidade cessam, o lugar deixa provisoriamente de ser turístico (Sheller & Urry, 2004Sheller, M. & Urry, J. (2004). Places to play, places in play. In Sheller, M. & Urry, J. (Eds.). Tourism mobilities: Places to play, places in play. Londres: Routledge , pp. 1-10. ; ver Allis, Moraes & Sheller, 2020Allis, T., Moraes, C. M. dos S., & Sheller, M. (2020). Revisitando as mobilidades turísticas. Turismo em Análise, 31(2), 271-295.). As mobilidades conformam os sítios turísticos - termo mais genérico que a designação geográfica, crítica ou fenomenológica, de lugar. Ou seja, os sítios de encontro turístico deixa de ser demarcado apenas por infraestuturas fixas (Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Além disso, a própria presença de turistas ajuda a caracterizar uma paisagem como turística (Pimentel & Castrogiovanni, 2015Pimentel, M. R. & Castrogiovanni, A. C. (2015). Geografia e Turismo: Em busca de uma interação complexa. Rosa dos Ventos , 7(3), 440-458.). Cabe, entretanto, buscar a compreensão desses aspectos por meio de evidências do empírico, em que se optou pelas paisagens e o turismo lacustres.

Reconhece-se que lagos e lagunas permitem serviços ambientais diversos, tais como o abastecimento, a pesca, a irrigação, podendo também englobar o turismo e a recreação. Conjugada a ventos favoráveis, as águas de lagos e lagunas podem permitir a prática de atividades como kitesurf, por exemplo. Diante disso, “a água é fator motivador para os deslocamentos humanos com finalidades de turismo, lazer, saúde, esportes e cultura.” (Rudzewicz, Castrogiovanni & Peyraque-Gadeu, 2020Rudzewicz, L., Castrogiovanni, A. C.; Peyraque-Gadeau, V. (2020). A valorização da paisagem lacustre pelo turismo: um estudo comparativo entre a Laguna dos Patos, no Brasil, e o lago de Aiguebelette, na França. Papers do NAEA, 29(3), 10-26.: 12).

Nos ecossistemas costeiros parece sobressair-se a visibilidade turística dos oceanos e baías, em em menor frequência, os corpos d’água lagunares. Os lagos, apesar de feições marcantes no desenvolvimento dos olhares turísticos ocidentais - vide exemplo do Lake District, no Reino Unido (Crawshaw & Urry, 1997Crawshaw, C. & Urry, J. (1997). Tourism and the photographic eye. In Rojek, C. & Urry, J. (Eds.). Touring cultures: transformations of travel and theory. Londres: Routledge , pp. 176-196.) -, ou de serem objetos que podem suscitar e delimitar uma sensibilidade estética romântica no contemporâneo (Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.) - esta, essencial à compreensão do fenômeno turístico originário (Gastal, 2013Gastal, S. de A. (2013). Imagem, Paisagem e Turismo: A construção do olhar romântico. Pasos, 11(3), 123-133.) -, seguem sendo pouco estudados nesses termos. A Geografia tem listado algumas belezas cênicas da paisagem do pampa gaúcho, no entorno da Lagoa Mirim (margem brasileira), como pontuais e em conjunto, a Vila da Capilha/Taim e o Porto Pindorama (Vieira, 2014Vieira, L. F. dos S. (2014). A valoração da beleza cênica da paisagem do bioma pampa do Rio Grande do Sul: proposta conceitual e metodológica. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. ). Entretanto, não é demonstrada uma vinculação entre avaliações positivas da paisagem e o interesse do olhar do turista, manifestado nos fluxos de visitação.

E, embora a paisagem - que no turismo é avaliada mais pelo seu caráter estético, do que cognitivo-funcional (Pimentel, 2010Pimentel, M. R. (2010). Cataratas do Iguaçu: registros e experiências de uma paisagem turística. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.) - seja essencial à atratividade de muitos destinos, ela pode não ser suficiente ao se compreender a experiência geográfica do turista, sujeito que se coloca, diante do mundo e dos lugares, a partir da imposição de olhares, mas também de práticas corporificadas. No caso de algumas áreas adjacentes às lagoas do sul gaúcho, tal concepção parece ser especialmente relevante. O desenvolvimento turístico de localidades lindeiras à Laguna dos Patos, por exemplo, pode ocorrem em articulação com a ativação turístico-recreativa de sítios à beira da Lagoa Mirim, além das áreas fronteiriças (Rudzewicz, 2018Rudzewicz, L. (2018). Paisagens lacustres e práticas turísticas: “com os pés na água” ou de “costas para a água”? - O caso da Laguna dos Patos, Rio Grande do Sul, Brasil. Tese de Doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Cabe, pois, maior análise para compreensão desses fenômenos, levando em conta os aspectos teóricos e empíricos.

A Mirim está localizada em uma enorme planície costeira na área mais meridional do Brasil, a nordeste do Uruguai - ver mapa da Figura 1.

Figura 1
Mapa de localização dos sítios estudados

O lago é separado do Oceano Atlântico por uma extensa e estreita faixa de terrenos baixos, unindo-se à Laguna dos Patos pelo exutório do Canal de São Gonçalo, na altura de Pelotas e Rio Grande, e neste município, ao Oceano Atlântico (Aschkar, Dominguez & Pesce, 2012; Basso, 2012Basso, L. A. (2012). Bacias Hidrográficas do Rio Grande do Sul: Implicações ambientais. In Verdum, R., Basso, L. A. & Suertegaray, D. M. A. (Eds). Rio Grande do Sul: Paisagens e Territórios em transformação. 2nd. Ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS.; Kunz & Castrogiovanni, 2020aKunz, J. G. & Castrogiovanni, A. C. (2020a). Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Três versões turísticas de uma paisagem. Relacult, 6(3), 1-24.; Schäfer, Lanzer & Pereira, 2009Schäfer, A. E., Lanzer, R. & Pereira, R. (2009). Atlas Socioambiental Lagoas Costeiras I. Caxias do Sul: Educs. ).

O talvegue da Mirim serve como limite entre o Brasil e o Uruguai do sul até a foz do Rio Jaguarão. A superfície da bacia hidrográfica Mirim-São Gonçalo está em torno de 50% em cada “lado”. Embora a superfície da Lagoa corresponda 2/3 ao Brasil e 1/3 ao Uruguai, predomina o regime de águas compartilhadas, de acordo com tratados consagrados nos anos 1970. Embora o nome “mirim” remeta a uma pequena dimensão, o lago é o segundo maior do Brasil, atrás da Laguna dos Patos - que recebe designação diferente, pois possui ligação e influência do oceano - e o maior de seu gênero no Uruguai: quando comparada à Laguna é que recebe esse nome (Alba, 2010Alba, J. M. F. (2010). Sustentabilidade socioambiental da bacia da Lagoa Mirim. Pelotas: Embrapa Clima Temperado. pp. 17-28. Recuperado de https://www.infoteca.cnptia. embrapa.br/bitstream/doc/912638/1/Livrolagoamirimcomcapa.pdf, em 12 mar. 2013.; Alm, 2019Agência de Desenvolvimento da Lagoa Mirim - ALM (2019). Bacia Hidrográfica da Lagoa Mirim. Pelotas: ALM. Recuperado de https://wp.ufpel.edu.br/alm/?page_id=2103, em 31 dez. 2019.; Basso, 2012Basso, L. A. (2012). Bacias Hidrográficas do Rio Grande do Sul: Implicações ambientais. In Verdum, R., Basso, L. A. & Suertegaray, D. M. A. (Eds). Rio Grande do Sul: Paisagens e Territórios em transformação. 2nd. Ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS.).

A Figura 2 exibe os três sítios de encontro em que são ancorados o estudo de caso multissituado.

Figura 2
Sítios de encontro estudados: Praia da Vila da Capilha, acima; Balneário de Lago Merín, ao centro; Porto Pindorama, abaixo.

A Vila da Capilha, na portuária Rio Grande, está às margens da BR-471, estando a 1h do centro regional Pelotas. É povoada, especialmente por famílias de pescadores artesanais. Recebe esse nome a partir da denominação capilla (capela, em espanhol), construída há quase duzentos anos, e está na iminência de receber restauro. A vila é descrita pelo naturalista francês Saint-Hilaire, que visitou a região na mesma época. Está na zona de amortecimento de impactos da Estação Ecológica do Taim, relevante e restritiva unidade de conservação federal. Possui falésias e extensa faixa de areia. Os usos da área do entorno regional voltam-se à agropecuária: bovinos, ovinos, orizicultura. O povoado coincidiu com o limite-norte dos chamados Campos Neutrais, zona-tampão fronteiriça durante períodos de disputa territorial entre Portugal e Espanha, em séculos passados. Atualmente, recebe visitantes e excursões de um dia durante a temporada de verão (Figura 1), ocasionalmente, estadas de maior tempo, em outras épocas do ano. A localidade possui camping, estacionamento para trailer e motor home, restaurantes, posto de combustível e pousada (Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Há trilhas com condutores, estas partem do local em direção a faróis oceânicos.

Lago Merín, no departamento de Cerro Largo, Uruguai, possui 1.000 habitantes. É um balneário lacustre planejado para lazer, o único ao longo da Lagoa Mirim - ver Figura 2. O Balneário de Lago Merín (homônimo da Lagoa) data de década de 1930, fundado para ser colônia para tratamento de tuberculose, dados os ventos favoráveis. Fica a 30km de Jaguarão, município brasileiro que serve como portão de entrada terrestre ao Brasil, e conta com conjunto de patrimônio edificado tombado. O núcleo urbano conformado pelas cidades-gêmeas de Jaguarão e Rio Branco são também destinos de compras, para brasileiros e uruguaios. Conta com cassino (“lado” uruguaio). Muitos jaguarenses possuem segunda residência em Lago Merín (Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). O distrito possui camping, hostel, hotel com piscina climatizada, posto médico, restaurantes, entre outros.

O Porto Pindorama, nome consagrado pelo uso, fica em Santa Vitória do Palmar-RS. É o terminal portuário mais meridional do Brasil, embora desativado. Foi utilizado desde a sua inauguração, nos anos 1940, até os anos 1970, quando foi a rodovia de acesso à cidade foi asfaltada. O terminal assume o formato de navio - ver Figura 2. No local, é possível observar, a sudoeste, o “lado” uruguaio - parte da fronteira observável é o Cerro São Miguel, onde está o forte homônimo. Uma requalificação urbana foi entregue em 2008, embora hoje se considere que não trouxe os efeitos positivos esperados para o turismo local (Kunz & Castrogiovanni, 2020aKunz, J. G. & Castrogiovanni, A. C. (2020a). Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Três versões turísticas de uma paisagem. Relacult, 6(3), 1-24.). O local apresenta um museu paleontológico, um trapiche que ora serve como passeio, sanitários e duas concessões de alimentação.

Quanto às estéticas que predominam nos sítios do “lado” brasileiro, percebe-se que estão vinculadas ao olhar romântico, em que desponta a estética do pitoresco e a emoção melancólica, enquanto no “lado” uruguaio prevalecem objetos e práticas que dão conta de um olhar coletivo (Kunz & Castrogiovanni, 2020bKunz, J. G. & Castrogiovanni, A. C. (2020b). Turismo e paisagens lacustres: Uma análise estética de fotografias da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai). Turismo: Visão e Ação, 22(3), 508-532.).

Diante do exposto, o objetivo deste trabalho é identificar e analisar práticas turístico-recreativas que ocorrem nos sítios de encontro estudados, durante o veraneio de 2019-2020. Para tal, o objetivo específico foi descrever esses recortes espaciais como sítios de encontro, baseados em múltiplas versões turísticas em que se apresentam a paisagem lacustre estudada, que também é una.

Este trabalho utiliza, revisita, sistematiza, redimensiona e publiciza resultados apresentados pela pesquisa de doutorado de Kunz (2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), embora guarde especificidade nas fontes, na estrutura e em alguns encaminhamentos. Uma versão reduzida foi apresentada e debatida no XVIII Seminário da Associação em Pesquisa e Pós-graduação em Turismo (Anptur).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-CONCEITUAL

O que a paisagem turística se torna quando ela é desempenhada, colocada em prática? E, ainda, como os turistas realizam a performance do/no palco (ou cenário?) da paisagem? Como eles negociam a relação entre as narrativas turísticas oficiais e as suas próprias experiências materiais dessa paisagem? (Minca, 2007Minca, C. (2007). The tourist landscape paradox. Social & Cultural Geography , 8(3), 433-453.). Como as práticas turísticas ocorrem em paralelo àquelas práticas e mobilidades não propriamente turísticas, mas que ocorrem num contexto de lazer? As paisagens turísticas lacustres se oferecem ao engajamento corpóreo e multissensorial?

Numa tensão entre racionalidade e desejo, inerente às práticas turísticas, surgem os comportamentos orientados pela paisagem. Assim, a abordagem do turismo como código visual é hoje complementada pela condição de campo de aprendizagem de si mesmo e do mundo, além das corporeidades e da mais-que-representação na/da espacialidade turística, que, hoje, figuram como uma das tendências nos estudos da paisagem pelo Turismo (Knudsen, Metro-Roland & Rickly-Boyd, 2012; Minca, 2007Minca, C. (2007). The tourist landscape paradox. Social & Cultural Geography , 8(3), 433-453.; Pimentel & Castrogiovanni, 2015Pimentel, M. R. & Castrogiovanni, A. C. (2015). Geografia e Turismo: Em busca de uma interação complexa. Rosa dos Ventos , 7(3), 440-458.). É essa possibilidade analítica e conceitual que orienta a presente seção, especialmente a partir de contribuições da geografia mais-que-representacional e da Fenomenologia, além das geografias culturais do turismo.

Corpos e mentes encontram-se entrelaçados. As mobilidades podem ser consideradas práticas visuais, em que os sujeitos são “pilotos”, ao usarem seus olhos para orientar-lhes o movimento. As práticas móveis do turista são atividade predominantemente visual. A performance da apreciação visual, poucas vezes questionada, não é universal. O corpo que olha em movimento funde-se com a paisagem da qual e com a qual ele vê (Adey, 2010Adey, P. (2010). Mobility. Londres: Routledge. ; Wylie, 2007Wylie, J. (2007). Landscape. Londres: Routledge . ). A paisagem também é caminhável (Serrão, 2017Serrão, A. V. (2017). Pensar a paisagem: Interpelações à estética de Kant. Estudos Kantianos, 5(1), p. 43-57.), ou ainda pode ser compreendida como estando à disposição do corpo (Collot, 2012Collot, M. (2012). Pontos de vista sobre a percepção de paisagens. In Negreiros, C. et al. (Eds.). Literatura e paisagem em diálogo. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2012, pp. 11-28.).

As imagens podem desdobrar algumas características dos encontros, mas não os prefiguram. As práticas visuais não servem somente para reforçar as percepções do turista, mas também para expandir os seus horizontes imaginários, conforme a mídia (social) revela novos lugares. Tratam-se de encontros contingentes com os objetos, em que a produção e visualização de imagens são práticas corpóreas, ou ainda, visualidades corporificadas (Crouch & Lübbren, 2003Crouch, D. & Lübbren, N. (2003). Introduction. In Crouch, D. & Lübbren, N. (Eds.). Visual culture and tourism. Londres, Nova York: Berg, pp. 1-23. ; Scarles, 2009Scarles, C. (2009). Becoming tourist: renegotiating the visual in the tourist experience. Environment and Planning D: Society and Space , 27(3), 465-488.). A própria visibilidade conforma práticas, o que ocorre por meio de determinados lugares, como os turísticos. “O espaço pode ser um instrumento que faz ver e que torna visível.” (Gomes, 2013Gomes, P. da C. (2013). O lugar do olhar: Elementos para uma geografia da visibilidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. : 26).

Sob uma geografia das porções mais-que-representacionais das experiências de mobilidade, as práticas são consideradas atos corporificados de paisagem turística, mudando, nesse caso, a ênfase da representação e significado, para as formas de conhecimento fenomenológicas, centradas no corpo. Segundo teorias da prática, as normas e os valores podem ser internalizados e replicadas por meio de movimentos, práticas e rotinas; hábitos organizam a vida dos sujeitos, ligando-os aos grupos, e formando comunidades culturais, em meio a práticas legítimas do cotidiano (Adey, 2010Adey, P. (2010). Mobility. Londres: Routledge. ; Edensor, 2007Edensor, T. (2007). Mundane mobilities, performances and spaces of tourism. Social & Cultural Geography, 8(2), 199-215.; Lorimer, 2005Lorimer, H. (2005). Cultural geography: the bussyness of being more-than-representational. Progress in Human Geography , 29(1), 83-94.; Goffman, 2014Goffman, E. (2014). A representação do eu na vida cotidiana. 20th ed. Petrópolis: Vozes. ). Por vezes, “a natureza rotineira da representação é escondida [...] e os aspectos espontâneos da situação são reforçados.” (Goffman, 2014: 62). Evite-se usar o termo “representação” empregado no livro traduzido (Goffman, 2014), pois é distinta da ideia de representações sociais, ou de re-apresentação de um objeto ausente. Performance, no português, pode ser traduzido como apresentação, representação ou desempenho. Trata-se, aqui, de privilegiar a dimensão de desempenho de papéis, por meio da replicação de certas práticas em determinados contextos espaço-temporais.

Nesse cenário, o paradigma do olhar turístico (gazing), consagrado pela Sociologia do Turismo, é doravante abordado como relacional, como uma performance comunal envolvendo negociações corporais e verbais, bem como interações entre membros de um grupo sobre o que ver, como vê-lo e por quanto tempo. Miradas individuais são mediadas e afetadas, permitidas ou restringidas, pela presença do olhar dos outros turistas, que contribuem para influenciar o olhar turístico. Percebem-se hoje similitudes entre os paradigmas do gazing e o da performance, ou seja, entre o olhar e o praticar/desempenhar (Larsen & Urry, 2011Larsen, J. & Urry, J. 2011Gazing and performing. Environment and Planning D: Society and Space, 29(6), 1110-1125.), com desdobramentos no modo como as paisagens são miradas pelos turistas (Kunz, Castrogiovanni & Pimentel, 2022Kunz, J. G., Castrogiovanni, A. C., & Pimentel, M. R. (2022). Turismo e paisagens: entre os paradigmas do olhar e da performance. Geografia (Londrina), 31(1), 9-29.).

Sob tal contexto, as contribuições merleau-pontiana, ao se distanciarem do cartesianismo, em uma filosofia do corpo, entrelaçam o corpo e o sujeito. Nessa abordagem, o corpo é a base para o conhecimento. A prática corpórea é o modo mais básico de intencionalidade - categoria fundamental na Fenomenologia (Adey, 2010Adey, P. (2010). Mobility. Londres: Routledge. ; Cresswell, 2002Cresswell, T. (2002). Landscape and the obliteration of practice. In Anderson, K. et al. (Eds). Handbook of Cultural Geography. Londres: Sage Publications, pp. 269-281. ; Wylie, 2007Wylie, J. (2007). Landscape. Londres: Routledge . ).

O corpo é ativo na prática de lazer (Crouch, 2006). Para Crouch (1999), turismo e lazer encontrar-se-iam de-diferenciados, dada a relevância das práticas, que por vezes estão imbricadas. Essa é uma concepção das geografias culturais do turismo. Contudo, reconhece-se que, apesar das interfaces possíveis, turismo e lazer seguem distinguíveis como práticas socioculturais e como campos de saber científico (Santos & Gomes, 2016Santos, T. N. de A. dos & Gomes, C. L. (2016). Interfaces Lazer-Turismo: um estado do conhecimento. Rosa dos Ventos , 8(4), 419-434.).

A noção de corpo-sujeito, ou intencionalidade corporal, incorpora-se às concepções fenomenológicas em Geografia e parecem úteis. Tais ideais consideram que a natureza habitual do movimento surge do corpo, que abriga sua sensibilidade própria proposital.

O corpo-sujeito é a capacidade inerente do corpo de dirigir comportamentos da pessoa inteligentemente, e assim funciona como um tipo especial de sujeito que se expressa em um modo pré-cônscio geralmente descrito por palavras como 'automático', 'habitual' e 'mecânico' (Seamon, 1980Seamon, D. (1980). Body-subject, time-space routines, and place-ballets. In Buttimer, A. & Seamon, D. (Eds.). The human experience of space and place. Nova York: St. Martin’s Press, pp. 148-165.: 155, grifos do autor, tradução nossa).

Assim, o corpo-sujeito experencia o mundo em modo fenomenal, o que ocorre antes de qualquer pensamento reflexivo ou cônscio, rejeitando a ideia de que a consciência e a representação determinam a intencionalidade: o corpo móvel não se encontra contido no espaço-tempo, mas, como se vê, o corpo é intermediário ativo entre sujeito e mundo (Adey, 2010Adey, P. (2010). Mobility. Londres: Routledge. ).

As mobilidades turísticas podem exceder nossa capacidade de pensar sobre elas ou representá-las. Qualquer tentativa de retratar esses movimentos por meio de palavras podem apenas tocar uma franja da experiência: nossa capacidade de descrição verbal é limitada. Enquanto isso, o corpo é um estrategista espontâneo, na medida em que conhece, compreende, julga e reage simultaneamente. Os movimentos propiciam experiências que podem não ter significado fora do mundo das sensações. A representação de uma experiência, por meio de uma fotografia, por exemplo, grava apenas uma parte das complexas dimensões desta (Adey, 2010Adey, P. (2010). Mobility. Londres: Routledge. ).

A difusão do conceito de práticas ocorreu sob influência dos Estudos da Performance, das teorias feministas e da teoria social pós-marxista. No Turismo, são abordadas por Bispo (2016Bispo, M. de S. (2016). Tourism as practice. Annals of Tourism Research, 61, 170-179.), voltadas ao contexto sócio-organizacional, no domínio ontológico. “Práticas” é um conceito que, recentemente, começou a ter um impacto significativo sobre a Geografia Cultural, embora siga pouco presente nos estudos da paisagem, o que permitiria superar o dualismo olhos-corpos; as paisagens da prática representam uma injeção de temporalidade e movimento na paisagem estática. O intento é afastar-se da ideia de as práticas serem meros efeitos secundários do domínio cultural discursivo e de significado cultural já estruturado. Contudo, até que ponto tal concepção não se caracteriza como antipaisagem (Cresswell, 2002Cresswell, T. (2002). Landscape and the obliteration of practice. In Anderson, K. et al. (Eds). Handbook of Cultural Geography. Londres: Sage Publications, pp. 269-281. ; Wylie, 2007Wylie, J. (2007). Landscape. Londres: Routledge . ), dado o modo como distintas tradições de paisagem a tratam conceitualmente na Geografia?

O exemplo da execução da música parece instrutivo. “Para o músico orquestral, tocar um instrumento, observar o maestro e ouvir seus companheiros tocadores são aspectos inseparáveis do mesmo processo de ação: por essa razão, os gestos dos performers pode se dizer que ressoam um ao outro.” (Ingold, 2000Ingold, T. (2000). The perception of the environment: Essays on livelihood, dwelling and skill. Londres: Routledge . : 196, tradução nossa). Essa sincronicidade encontra-se no cerne da sociabilidade, na qual incorrem temporalidades ritmadas e cíclicas, e outras, não; ou seja, a música só existe quando está sendo executada, ela não preexiste. A paisagem das práticas (ou tarefas) existe somente quando os sujeitos estão realmente envolvidos nas atividades de morada no/do/com o mundo. Essa concepção desliza da visão (Ingold, 2000).

A prática é apenas uma parte do papel assumido e, assim, “a fachada atrás da qual a prática é apresentada servirá para outras práticas um pouco diferentes [...]” (Goffman, 2014Goffman, E. (2014). A representação do eu na vida cotidiana. 20th ed. Petrópolis: Vozes. : 78). A socialização da performance a fixa. Muitas vezes, utilizam-se padrões de modo irrefletido e, imbuídos de papéis, os sujeitos conhecem os outros e a si mesmos (Goffman, 2014).

Em outras palavras, muda-se do visual ao tátil, do horizonte à terra; ou seja, da paisagem contemplada a distância migra-se para um lugar material de proximidade/engajamento/prática, quase que se sobrepondo ao conceito de lugar, em cuja relação socioespacial são solicitados determinados comportamentos e competências corpóreas (Wylie, 2007Wylie, J. (2007). Landscape. Londres: Routledge . ). Quais os principais comportamentos e competências corpóreas solicitadas aos/pelos sujeitos-turistas nas paisagens lacustres, expressas em práticas e performances?

METODOLOGIAS

O trabalho lança mão de três estudos de caso múltiplos (Yin, 2015Yin, R. K. (2015). Estudo de caso: Planejamento e métodos. 5th. ed. Porto Alegre: Bookman. ), multissituados, que correspondem a cada um dos sítios de encontro que são recortes espaciais para a pesquisa, que, juntos, compõe o todo que é a Lagoa Mirim. Buscaram-se dados multifocais, sob uma pesquisa multimétodos (Beeton, 2005Beeton, S. (2005). The case study in tourism research: A multi-method case study approach. In Ritchie, B. W. et al. (Eds). Tourism research methods: Integrating theory with practice. Oxfordshire: Cabi Publishing, pp. 37-48. ).

Na etapa do protocolo do estudo de caso múltiplo (pré-coleta), realizou-se observação preliminar nos sítios de estudo, a fim de acercar-se ao objeto empírico: Porto (junho de 2019), Capilha (novembro de 2019) e Lago Merín (novembro de 2019 e janeiro de 2020). No mês de julho de 2019, havia sido realizado o pré-teste do roteiro de entrevista, que serviu para validar o instrumento, coletar a percepção da entrevistada, e realizar as adaptações necessárias: as respostas não foram consideradas na análise. O instrumento era composto de três partes: entrevista episódica, foto-elicitação e técnica projetiva, de caráter confrontativo (Flick, 2009Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. 3rd. ed. Porto Alegre: Bookman/Artmed. ). Também nessa etapa, realizou-se leitura flutuante de imagens fotográficas de paisagem e práticas, disponibilizadas publicamente no Instagram, clicadas nos meses de janeiro e fevereiro de 2020, nos três sítios elegidos, num total de 134 fotografias, que correspondem ao universo de pesquisa dentro do período delimitado para coleta de dados, observando-se os critérios de fotografias tiradas no local de interesse, retratando paisagens e práticas turísticas. A busca se deu por hashtags referentes aos locais de interesse. Paralelamente, houve a leitura de todos os comentários que haviam sido publicados, até fevereiro de 2020, no Trip Advisor, num total de 28 inserções e seus respectivos títulos. Assim, a amostragem é intencional, desconsiderando-se a representatividade das amostras estatísticas, uma vez que o estudo se enquadra na pesquisa qualitativa, de caráter compreensivo, e não explicativo. Para que cessasse a busca de novas fotografias, ou novos entrevistados, bem exaurisse codificação do material, utilizou-se o critério de saturação teórica, segundo o qual o acréscimo de material não acena com possibilidade de novas descobertas (Flick, 2009).

Já na etapa de coleta de dados propriamente dita, efetuou-se observação direta (assistemática) no campo de estudo, totalizando 16 turnos de trabalho, ao longo de janeiro de 2020, buscando fazê-lo especialmente aos finais de semana e feriado, períodos de maior afluência de usuários dos sítios de encontro. Embora participasse do campo de estudo como turista e/ou lazeirista (termo este empregado por Valls, 2006Valls, J.-F. (2006). Gestão integral de destinos turísticos sustentáveis. Rio de Janeiro: FGV Editora.), o pesquisador assumiu o caráter de observador não participante. Como resultado, foram gravados áudios a partir das impressões do campo, com a descrição e análise do observado. As gravações foram transcritas na íntegra. Além disso, realizou-se entrevista semipadronizada com nove atores-chave do turismo regional, e que fossem usuários da Lagoa para turismo e/ou lazer, buscando abarcar os três locais de estudo de modo homogêneo - ver Quadro 1.

Quadro 1
Entrevistados e seu perfil

Não foram identificados os nomes dos inquiridos, tendo as entrevistas sido concedidas mediante assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido, por ambas as partes. As entrevistas, que duraram, em média, 30 minutos, foram gravadas por áudio e também transcritas na íntegra, totalizando mais de 100 páginas. O corpus constituído para análise continha, pois: transcrição de entrevista, transcrição de notas de campo, quadro com avaliações do Trip Advisor, e banco de imagens fotográficas do Instagram.

Na etapa de análise de dados, efetuou-se análise qualitativa de conteúdo, embora houvesse sido gerados dados de frequência, a fim de demonstrar complementaridades. Partindo de codificação aberta (Flick, 2009Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. 3rd. ed. Porto Alegre: Bookman/Artmed. ), efetuaram-se decomposição e recomposição do material (Yin, 2016Yin, R. K. (2016). Pesquisa qualitativa do início do início ao fim. Porto Alegre: Penso.). Todos os dados, escritos ou visuais, foram inseridos no software livre QDR Miner Lite, de análise qualitativa, em que oito rótulos se mostraram exaustivos e não excludentes, e perpassavam os diversos objetivos do trabalho como um todo. Gerou-se uma lista de atividades, e como decorrência houve a produção cartográfica, por parte de um geógrafo, do que foi chamado de mapa de práticas das localidades, tendo como base fotografias aéreas dos sítios. Observou-se a triangulação teórico-metodológica, a fim de evitar vieses que uma fonte, um informante ou uma técnica poderiam oferecer (Flick, 2009). Do mesmo modo, perseguiu-se triangulação empírica entre os três sítios. A finalidade foi atingir descrição interpretativa, que pudesse conferir generalização de fins analíticos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Caminhar é pensado e impensado: representações rastreiam, traçam e controlam mobilidades (Adey, 2010Adey, P. (2010). Mobility. Londres: Routledge. ; Löfgren, 1999Löfgren, O. (1999). On Holiday: The history of vacationing. Berkeley: University of California Press. ). Quanto ao ritmo e demanda física das vivências, os respondentes à entrevista dividem-se quanto à afirmativa de que visitar a Lagoa Mirim exige-lhes disposição. Porém, não julgariam necessário utilizar carro com tração nas quatro rodas para ir ou transitar pelas margens da Mirim, ou seja, não a consideram uma rota off-road (fora da estrada).

Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura - Abeta:

No turismo fora-de-estrada, o nome já diz tudo: é preciso abandonar o conforto das rodovias asfaltadas para descobrir o que muita gente nem sabe que existe. A viagem, e não apenas o destino, também importa: as condições adversas do percurso, como solavancos e atoleiros, garantem uma dose extra de emoção. Isto torna o off-road uma experiência particularmente divertida para ser vivida em grupo de amigos ou em família - sem restrições de idade. (Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura, 2020Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura - Abeta (2020). Atividades. São Paulo: Abeta, 2020. Recuperado de http://abeta.tur.br/pt/atividades-lista/, em 31 dez. 2020., s. p.).

Praticamente nenhum entrevistado concorda que o oceano é melhor para banhos e recreação. Enquanto na praia oceânica é possível surfar, a lagoa é mais favorável para atividades como canoagem e stand up paddle, por exemplo; esta é uma atividade que combina canoagem e surfe, em que o lazeirista rema em pé em cima de uma prancha (Abeta, 2020Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura - Abeta (2020). Atividades. São Paulo: Abeta, 2020. Recuperado de http://abeta.tur.br/pt/atividades-lista/, em 31 dez. 2020., s. p.).

Os ventos são favoráveis à realização de windsurf e kitesurf. Os ventos constantes na área costeira, atestados pelo Atlas Eólico do RS, não são vistos como problemáticos por nenhum dos entrevistados. Pedro complementa dizendo que, pelo contrário, “se aprovecha” (aproveita-se).

Em comentários do Trip Advisor, um visitante constata que na Capilha há demasiado vento no fim da tarde, enquanto outros o consideram positivo. Sobre Lago Merín, um turista fala de “água superquente [sic], minimizada pelo grande volume de vento, o ano inteiro e o tempo todo.” A fala sobre o local corrobora a proposição de que Lago Merín surgiu, entre outras coisas, como estância de curismo devido aos ventos saudáveis da Lagoa, também em termos de conforto térmico no verão, segundo Pedro, dispensando o uso de ar-condicionado.

Amélia vê na intempérie do tempo, no inverno, um impeditivo para realização de algumas práticas. “Mas, em compensação, no inverno é muito frio, né? Tem um vento muito forte. Então, acampar ali deve ser complicado (riso). Aqueles ventos ali, aquela areia.” Ludovica pondera que, embora a paisagem lacustre do inverno agrade-lhe mais no inverno, a permanência na orla lacustre nessa época é dificultada: “embora eu goste mais, digamos, das cores da Lagoa em si, no inverno, né? Mas eu acredito que tu não consegue ficar muito tempo ao ar livre, pelo frio, pelo vento, né?”. Já o canoísta Alberto, ao comparar a Mirim com a Laguna dos Patos, observa, naquela, uma maior incidência de ventos: “Quando dá um temporal que provavelmente vento sul, então ele tem bastante impacto nesses corpos aí. E na Laguna dos Patos não tanto porque o vento não afeta tanto.”. Ou seja, a Laguna dos Patos e a Lagoa Mirim, embora sejam parte de um mesmo sistema, possuem particularidades que inicidem em suas práticas (ver Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.).

Assim como servem à produção de energia eólica em Rio Grande e Santa Vitória do Palmar, são também indicados para velejar, embora não se tenham observado veleiros. Enquanto um visitante aponta que Lago Merín possui águas navegáveis, só foi observada a modalidade do kitesurf, que depende do vento, nessa localidade.

Junção de duas palavras inglesas:kite, que significa pipa esurf, que significa navegar. Na prática, o kitesurfista utiliza uma prancha fixada aos pés e uma pipa inflável (semelhante a um parapente) possibilitando deslizar sobre a superfície da água e, ao mesmo tempo, alçar voos que se traduzem em movimentos singulares. Ou seja, o vento é o motor, e o grande fator de emoção do kitesurfe. (Abeta, 2020Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura - Abeta (2020). Atividades. São Paulo: Abeta, 2020. Recuperado de http://abeta.tur.br/pt/atividades-lista/, em 31 dez. 2020., s. p.).

O canoísta Alberto assinala algo nessa direção: “Como tem o regime de ventos forte, eu sei que o pessoal do kitesurf é forte lá, já ouvi falar de pessoas que, ah, vão lá fazer kite em Lago Merín, por exemplo.” Essa declaração concorda com a de Pedro, que informa que argentinos vêm ao Balneário para praticar tal atividade.

Em observações, durante o verão, presenciaram-se ventos leves e moderados, mas constantes. Não raro, ao início das gravações em campo, o vento soprava, principalmente, em Lago Merín e no Porto de Santa Vitória, e, em vez de ouvir-se o som de motores (de automóveis ou motos aquáticas), ouvia-se o barulho do vento e das ondas por este formadas. Porém, nem todo dia, o evento era o mesmo em direção e intensidade, variando conforme as horas do dia também. A temperatura, a insolação e a velocidade do vento - como fatores climáticos - e o período de férias escolares e laborais - como fatores sociais - redundam na sazonalidade das práticas e na oferta de infraestrutura, representando um desafio para esses corpos d’água irem além do contemplativo, e constituirem-se em lagos multissazonais, indo ao encontro da literatura pesquisada (ver Rudzewicz, Castrogiovanni & Peiraque-Gadeau, 2020Rudzewicz, L., Castrogiovanni, A. C.; Peyraque-Gadeau, V. (2020). A valorização da paisagem lacustre pelo turismo: um estudo comparativo entre a Laguna dos Patos, no Brasil, e o lago de Aiguebelette, na França. Papers do NAEA, 29(3), 10-26.). Ao mesmo tempo, denota que a infraestrutura explica, em parte, a ativação turística dessas localidades, ou sua conversão em destino turístico, embora não tendo visibilidade como tal (ver Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.).

Há pouca concordância, entre os entrevistados, de que a infraestrutura básica e turística atenda à atual demanda turística, ainda que concentrada no espaço-tempo. Em comentários sobre a Capilha, no Trip Advisor, o local é avaliado quanto à sua infraestrutura: “Lugar bonito, mas com pouca infraestrutura”; “alguma urbanização basica [sic] como alguns abrigos para o sol”; “fraca estrutura para comércio”; “[...] como única estrutura próxima da praia observa-se a existência de alguns banheiros químicos.” (Trip Advisor, 2020Trip Advisor (2020). O que fazer. Recuperado de https://www.tripadvisor.com.br, em 1 maio 2020.
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).

Entretanto, alguns visitantes da Capilha chegam à conclusão que: “Nem [d]á pra cobrar uma rede de serviços mais forte no local, já que o charme do lugar é, de certa forma, a sensação de isolamento” (já antes da pandemia de Covid-19). Os comentários prosseguem: “Embora careça de infraestrutura de serviços, compensa com sobra pelo visual e tranquilidade do local.”. Alguns enaltecem a rarefação dos turistas e os respectivos efeitos: “ótimo lugar para quem quer fugir das praias lotadas [e] dos perigos do mar”; “areia fininha, poucos turistas, barulho de som - zero (obrigado amigos)”. Ressalta-se que possivelmente estão se referindo à praia oceânica do Cassino, a mais próxima dali. Parece haver o distanciamento da vivência do olhar coletivo, na busca por um pretenso olhar romântico, ainda que combinado a práticas ativas e corporificadas (ver Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). A maior parte dos comentários vão ao encontro da literatura sobre experiências instagramáveis da natureza, em que temas estéticos e sensórios ocorrem, em meio a evocações de paz, tempo bom e estar-juntos (ver Conti & Lexhagen, 2020Conti, E., & Lexhagen, M. (2020). Instagramming nature-based tourism experiences: A netnographic study of online photography and value creation. Tourism Management Perspectives, 34, 1-11.).

Foi possível observar, na Capilha, e registrar em notas de campo: “É, todo mundo, um guarda-sol ou mais. Improvisando alguma coisa que tape o sol. Muitos deles com gazebos, churrasqueiras; é, outros trouxeram uma pequena lancha, jet ski, stand up... de uma forma independente, nos grupos.” Ou seja, não se observam serviços de aluguel de equipamentos necessários a essas práticas.

A Figura 3 corresponde a um mapa de práticas turístico-recreativas ao ar livre na Capilha, que se dão em fluxos e que parecem conduzir a uma leitura menos dependente de fixos.

Figura 3
Mapa de práticas turístico-recreativas na Capilha

Apesar das limitações na infraestrutura da/na Capilha, a afluência de turistas e/ou lazeiristas é considerada alta: “a fluência de público é bem grande e famílias montam suas barracas e puxadinhos na faixa de areia próxima da praia, trazendo suas caixas com alimentos e bebidas para usufruir das belezas e tranquilidade do lugar.”. Com um “restaurante bem limitado” e, assim, “não tem praticamente opção de comida para comprar”, sendo a recomendação: “leve tudo o que precisar.” (Trip Advisor, 2020). Tais observações parecem conduzir à leitura a partir de concepções de práticas, em que as táticas do cotidiano, nesse caso, turístico, são fundamentais (ver Cresswell, 2002Cresswell, T. (2002). Landscape and the obliteration of practice. In Anderson, K. et al. (Eds). Handbook of Cultural Geography. Londres: Sage Publications, pp. 269-281. ). Retome-se que “práticas diferentes podem empregar a mesma fachada [...] [esta] tende se tornar institucionalizada em termos de expectativas estereotipadas abstratas [...]” (Goffman, 2014Goffman, E. (2014). A representação do eu na vida cotidiana. 20th ed. Petrópolis: Vozes. , p. 14) que, sob estabilidade, tornam-se performances coletivas. A prática observada às margens da Lagoa, na Capilha, é pejorativamente conhecida por alguns como “farofadas”, e seus praticantes, os “farofeiros” (ver Arruda & Furtado, 2012Arruda, A. P. de & Furtado, E. M. Os “farofeiros” em excursão nas lagoas de Arituba, Boágua e Carcará (Nísia Floresta, RN): Uma outra face do turismo potiguar. Revista de Geografia UFPE, 29(2), 218-236 2012. ), o que faz sugerir uma performance de classe, não escapando a prováveis estigmas: na fala de Carla, é um grupo de visitante/turista ao qual estão associadas práticas não sustentáveis, sem que haja pesquisas para atribuir-lhe tal característica.

Sobre Lago Merín, um turista o considera “balneário bem estruturado”. A avaliação oposta também ocorre: “Quanto a [sic] estrutura não tem nada, não tem restaurantes, nem bares.”. Outros ponderam: “Mais facilidade em encontrar lanches do que refeição”; “local tem boas opções para lanche mas para trip menos exigentes”; “senti falta de bons locais para Almoçar. Algumas famílias usam suas casas, pequenas, como um restaurante selserviçe [sic]”. O oposto também é dito: “A comida local também é muito boa. Um lugar ideal para relaxar e apreciar a natureza e a gastronomia uruguaia.” (Trip Advisor, 2020Trip Advisor (2020). O que fazer. Recuperado de https://www.tripadvisor.com.br, em 1 maio 2020.
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).

A Figura 4 exibe mapa de práticas turístico-recreativas observadas em Lago Merín.

Figura 4
Mapa de práticas turístico-recreativas em Lago Merín

Embora com tendência de os entrevistados considerarem que há o que praticar na Lagoa Mirim, inclusive nas estações mais frias, as narrativas no Trip Advisor sobre o assunto, positivas e negativas, voltam-se a Lago Merín: “Local bem movimentado com cabanas para alugar o ano todo.”; “um local muito interessante para refrescar-se durante o calor do verão. No inverno, o Hotel possui piscina térmica.”. “Balnário [sic] bem estruturado, com alguns comércios abertos inclusive na baixa temporada”. Outros comentários vão à direção oposta: “Estivemos na baixa temporada. Nada estava aberto"; "diz[em] que na alta temporada é muito procurado.” (Trip Advisor, 2020Trip Advisor (2020). O que fazer. Recuperado de https://www.tripadvisor.com.br, em 1 maio 2020.
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).

Também foi elaborado mapa das práticas turísticas no Porto Pindorama, exibido na Figura 5.

Figura 5
Mapa de práticas turístico-recreativas no Porto Pindorama

Antes de ir a campo, levantaram-se as práticas orientadas e/ou prescritas para serem realizadas pelos sujeitos-turistas em cada um dos sítios estudados, predominando, nesse ponto, a fala institucional da gestão pública local do turismo. Posteriormente, estas foram contrastadas com as observadas.

O Quadro 2 exibe comparativo entre as práticas indicadas, previstas e/ou prescritas, e as observadas durante a pesquisa de campo.

Quadro 2
Comparativo das práticas turístico-recreativas previstas e as indicadas para cada sítio

As práticas observadas são por vezes mais vastas que as enunciadas ou fotografadas, bem como possuem mais nuances. Nesse cenário, há que se destacar que as automobilidades são consideradas uma das categorias-chave das mobilidades turísticas, referindo-se a uma realização simultânea da autonomia e da mobilidade, permitidas pelo veículo automotor. O carro é tido como um “avatar” da mobilidade e, também, como símbolo do movimento, no Ocidente, pelo menos. O automóvel proporciona confiabilidade e flexibilidade, e permite que se chegue a locais onde o transporte público não chega, garantindo, escapismo, anonimato e solidão. Contudo, os sentimentos de liberdade associados ao automóvel são, por vezes, substituídos pelos ligados à apatia e irritação (Hannam, Butler & Paris, 2014Hannam, K., Butler, G., & Paris, C. M. (2014). Developments and key issues in tourism mobilities. Annals of Tourism Research , 44(1), 171-185.; ver Kunz, 2015Kunz, J. G. (2015). As mobilidades turísticas como objetos de pesquisa: Um panorama dos periódicos estrangeiros (2000-2014). Rosa dos Ventos, 7(3), 377-391.). Experiências cênicas do dirigir são consideradas variável da imagem de destinos (Picazo & Moreno-Gil, 2019Picazo, P. & Moreno-Gil, S. 2019Analysis of the projected image of tourism destinations on photograph: a literature review to prepare for the future. Journal of Vacation Marketing, 25(1), 3-24. ).

Essa prática de automobilidade é presente, especialmente, na Praia da Capilha. Conforme o quadro, ela é tanto recomendada pelas autoridades locais, quanto observada pelo pesquisador, ou seja, transitar de carro é prática consagrada, para usuários e gestores. Em observações, notou-se que muitos sequer passam pela praça central da vila, onde se encontra seu ícone (a igreja), ou a passarela de acesso, pois o principal acesso se dá a norte, onde automóveis adentram a praia e por ela se distribuem. Dali, não é possível avistar a via principal da localidade, pois está relativamente separado de onde circulam pedestres e de onde as pessoas do lugar residem, permanentemente ou provisoriamente.

O automóvel é principal meio acesso às três localidades estudadas, já que os serviços de transporte público regular são escassos, e envolvem uma transfronteirização para os que vem do “lado” brasileiro das cidades gêmeas e vão a Lago Merín. Neste, há linhas de ônibus especiais na temporada, e na Capilha, excursões vindas de Pelotas, especialmente. Contudo, como prática e experiência, a automobilidade sobressai-se, como se disse, na Capilha. Há serviços de patrolamento da praia na temporada, por meio do poder público municipal, a fim de assegurar o melhor tráfego, e evitar atolamentos na areia. Surpreende um carro vendendo picolés e sorvetes - observou-se apenas uma venda desse produto na vila - em detrimento de ambulantes, onipresentes em praias brasileiras, e que apresentam mobilidade diversa, com restrições próprias. O fato é que os automóveis, e por consequência os sujeitos, ficavam, antes mesmo da pandemia, relativamente dispersos na Praia da Vila. Em Lago Merín, não se percorre a praia de carro, por sua própria configuração como arranjo do ambiente construído. E a isso, possivelmente, está agregado um modo peculiar de experimentar a paisagem lacustre, que não se resume a um visual de cores, texturas e massas, mas agrega o sentir a intensidade do vento, a temperatura, a luz do sol, os sons, odores, e por que não pensar, na experiência tátil da água e da areia.

Evidencia-se que, de um ponto de vista complexo, como paisagens lacustres e práticas recreativas ao ar livre são tecidas juntas no-pelo turismo e o lazer (Kunz, 2021Kunz, J. G. (2021). Paisagens e turismo na-da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai): Complexus de práticas e significados. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Práticas e significados equiparam-se e retroalimentam-se. As práticas representacionais, como o fotografar, parecem ser um elo concreto entre essas duas esferas. A automobilidade é prática difundida, ao mesmo tempo que permite outras experiências turísticas da paisagem lacustre, tendencialmente mais mediadas ou encapsuladas.

Os visitantes ora acorrem à Capilha, ora ao Porto, e ora se dirigem a Lago Merín. Os propósitos e a duração do encontro também são variáveis: leva alguns minutos ou horas no Porto; passa-se o dia na Capilha (às vezes, se acampa); e dura uma temporada veraneio em Lago Merín, havendo, possivelmente, tempos de permanência e níveis de enraizamento distintos, o que se relaciona ao caráter das práticas e sua duração. O encontro turístico ora se insinua espontâneo, ora se mostra agendado exogenamente. A ativação turística dos sítios dos sítios se dá de modo contingente, intermitente e cíclico. Na fuga do cotidiano pode haver, especialmente em Lago Merín, um cotidiano turístico de temporada. A natureza das práticas, e em menor medida, das performances, também informa sobre o conteúdo estético do encontro com os sítios.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um desafio a geógrafos e turismólogos é cartografar as práticas, especializando os fenômenos, sem, contudo, retirar-lhe o caráter de fluxos, ao que parece, permanece em aberto e faz questionar como a perspectiva das mobilidades traz constantes desafios metodológicos à execução de estudos sob esse enfoque, com possíveis contribuições de metodologias móveis já disponibilizadas em outros campos, como o das novas mobilidades.

Além dos eventos atlético-desportivos e de beleza feminina que ocorrem em Lago Merín, sugerem-se eventos náuticos na Capilha e em Santa Vitória do Palmar, a exemplo do que já ocorreu no passado na cidade vitoriense, reunindo veleiros, aproveitando o vento abundante para projetar o ideário turístico e instigar a intencionalidade turística do corpo-sujeito, em que a paisagem-morada se faz presente. Competições ou festivais de pipas poderiam ser promovidos simultaneamente nos três sítios, a fim de conferir-lhes visibilidade e densidade simbólica, como partes do todo lacustre.

Como limitações deste trabalho, nota-se que foi abarcada apenas uma rede social (o Instagram), enquanto trabalhos precedentes abordaram o Flickr (ver Kunz & Castrogiovanni, 2020bKunz, J. G. & Castrogiovanni, A. C. (2020b). Turismo e paisagens lacustres: Uma análise estética de fotografias da Lagoa Mirim (Brasil/Uruguai). Turismo: Visão e Ação, 22(3), 508-532.). Embora seja calcada em postagem de fotografias, o Instagram não esgota a possibilidade de interações e engajamentos possíveis entre o turista e as paisagens e práticas lacustres na-da Mirim. O Facebook, o Pinterest, e mais recentemente os vídeos do Tiktok, são relevantes veículos de compartilhamento e engajamento de imagens fotográficas e de vídeos, especialmente os de curta duração, por ora não utilizados. Também não foi avaliado o papel do sujeito-influenciador digital, que, a partir de suas próprias percepções, representações e práticas, pode orientar e ditar o que será visto, praticado e experenciado nos sítios de encontro. Pesquisas de cunho estatístico poderiam ter conduzido a um nível explicativo, embora se trate, sobretudo, de pesquisa de corte fenomenológico e compreensivo.

Como sugestões para trabalhos futuros, poder-se-á avançar em direção ao elenco, à análise e à compreensão de performatividades do turista/lazeiristas, de caráter menos pontual, e dependentes da mediação de códigos sociais e réplicas particulares, desse modo, são de caráter mais complexo, e envolvem o processo constante e ao mesmo tempo provisório de torna-se turista, e que conta com encontros turísticos em cenários e palcos oferecidos por determinadas paisagens, o que possui tempos-espaços pré-determinados. Além disso, cabe prescrutar os sujeitos a fim de compreender os sentimentos, as motivações e a natureza da experiência de automobilidades turísticas em praias do extremo sul, tanto as oceânicas do Cassino e Hermenegildo, por exemplo, como as lacustres já estudadas. Por fim, é necessário contrastar as percepções e representações das paisagens lacustres dos turistas com as dos moradores das localidades, bem como conhecer as práticas de lazer por eles realizadas, a fim de compreender como interatuam, ou não, esses dois públicos, contudo não entendidos de modo necessariamente binário, mas matizado, dadas as mobilidades e tempo-espaços que possivelmente compartilham.

Como implicações gerenciais e de política turística, considera-se que análises como essas podem acrescentar novos insights sobre como os sítios de encontro são usados e pelo turista, ou como são funcionalizados por outros agentes, bem como entender as representações mais frequentes em torno das paisagens e dos territórios. Os aspectos que envolvem práticas turísticas e representações paisagísticas - desempenhadas, replicadas e questionadas pelos sujeitos-turistas ou sujeitos-lazeiristas -, podem quiçá ser compreendidos como eixos estruturantes da experiência turística dos sítios. Cabe, pois, a agentes do turismo, (políticos, acadêmicos e/ou mercadológicos), o design diferenciado desses encontros, a partir do que suscitam os achados em pesquisa como esta, evidenciando que o praticar também atua no processo de significação das localidades investidas pelo turismo e/ou pelo turista. Experiência é prática com significado. Conhecer tais mecanismos sociais e cognitivos pode permitir uma intervenção mais efetiva junto a mercados e territórios, inclusive em termos de proposições que atenuem os efeitos negativos da sazonalidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2021
  • Aceito
    11 Fev 2022
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