LIVROS & REDES
Múltiplos olhares sobre doença e história no Brasil
Different looks at disease and history in Brazil
Sidney Chalhoub
Professor da Universidade Estadual de Campinas Unicamp, Departamento de História, Av. San Conrado, 2067 Distrito de Souzas, 13130-590 Campinas SP, chalhoub@unicamp.br
Abrangência temática, diversidade de abordagens e variedade de fontes utilizadas são características conspícuas dessa nova coletânea de estudos sobre a história das doenças no Brasil. Não menos do que vinte capítulos, escritos por especialistas diversos, de historiadores a médicos, percorrendo temas que vão desde as epidemias de cólera de meados do século XIX até os estigmas contemporâneos associados à Aids. Leitura difícil, às vezes, não pelas características da prosa ou qualidade analítica de cada texto específico, mas por ser impossível escapar a certa fragmentação nessa aventura de juntar, no mesmo volume, tanta cousa de vária espécie.
No primeiro capítulo, Anny Jackeline Torres Silveira e Dilene Raimundo do Nascimento, esta última uma das organizadoras do volume, percorrem boa parte da historiografia recente sobre o assunto, nacional e estrangeira, para encontrar certo fio condutor na idéia de que é sempre preciso perscrutar aspectos da construção social e simbólica das doenças nos mais diversos tempos e sociedades. Conceitos como os de "representação social da doença", "dramaturgia das epidemias" e outros são definidos em linhas gerais, de modo a oferecer aos leitores algumas chaves analíticas comuns, às quais vários autores da coletânea recorrem, de fato, na elaboração de seus textos.
Todavia, o que ressalta de imediato na leitura dos capítulos é a riqueza e variedade da pesquisa empírica realizada pelos vários autores. Sobre o cólera, por exemplo, Tânia Pimenta mobiliza uma ampla gama de tipos documentais manuscritos da administração municipal e dos ministérios, legislação, imprensa, documentação da Santa Casa para abordar a presença da homeopatia no panorama das práticas curativas pertinentes ao cólera na terrível epidemia de meados da década de 1850. Jorge Prata de Sousa investiga as condições sanitárias e higiênicas durante a Guerra do Paraguai com amplo recurso aos livros de entradas e saídas de pacientes nos hospitais e enfermarias do exército brasileiro durante a guerra, além de diversas outras séries documentais sobre o conflito. Outra epidemia bastante presente é a gripe espanhola, estudada e descrita num nível impressionante de detalhe nos capítulos de Ricardo Augusto dos Santos, Anny Jackeline Torres Silveira e Liane Bertucci-Martins.
Nalguns desses capítulos, e noutros, há às vezes referência explícita, ou alusão aparente, à idéia de "dramaturgia das epidemias", já referida e exposta logo no primeiro capítulo do livro. A origem do conceito está em Charles Rosenberg,1 1 Charles Rosenberg, "What is an epidemic? Aids in historical perspective", em Explaining epidemics and other studies in the history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, especialmente p. 278-87. em sua assertiva de que seria possível construir uma imagem típica ideal de uma epidemia a partir da repetição de certos padrões e experiências. Poder-se-ia compor, assim, uma estrutura narrativa comum a diversos eventos epidêmicos, ou um enredo e seqüência de eventos mais ou menos previsível em situações que tais: recusa inicial a reconhecer o evento epidêmico, explicações religiosas ou morais para as causas do flagelo, articulação de medidas para enfrentar a crise, avaliação retrospectiva do episódio. Qualquer pouca familiaridade com a bibliografia disponível sobre as grandes epidemias do século XIX febre amarela, varíola, cólera sugere a pertinência desse modelo descritivo. Parece-me, porém, e paradoxalmente, que modo seguro de infirmar ou ao menos mostrar as limitações de determinado modelo analítico é exatamente postular a sua suposta generalidade ou pertinência a situações, sociedades ou períodos muito diversos. É verdade que camponeses russos, escravos brasileiros e operários ingleses desconfiaram todos, em meados do século XIX, que seus senhores ou patrões utilizavam o cólera para atingi-los. Tal constatação indica quiçá a tendência à repetição de determinadas visões ou reações de trabalhadores, ou subordinados, ou oprimidos, ou seja lá o que parecer melhor, diante de doenças que causam sofrimento e morte maciça em seu meio. Por conseguinte, o que temos aqui é a sugestão de nexos ou caminhos por onde a pesquisa histórica deve começar: afinal, ao desconfiar de que o cólera era feitiço de branco para atingi-los, escravos do século XIX brasileiro, africanos em sua grande maioria na década de 1850, exprimiam-se segundo experiências históricas e padrões culturais próprios, que nada tinham a ver com os modos de ver as cousas entre servos russos ou operários ingleses. A especificidade importa mais do que a repetição, nesse esforço para produzir uma história social das doenças que leve na devida conta as experiências e visões de mundo dos pacientes ou melhor, dos pacientes trabalhadores, escravos ou não.
Há no volume outro conjunto importante de textos sobre doenças que têm em comum o fato de que originam intensa e duradoura produção e circulação social de preconceitos, estigmas, exclusão: tuberculose, hanseníase, sífilis, alcoolismo, Aids. Os textos de Ângela Porto, sobre tuberculose, e de Fernando Dumas dos Santos, sobre alcoolismo, oferecem um panorama riquíssimo das conexões entre representações sociais sobre tais doenças, mudanças nos paradigmas médicos de compreensão delas, e redirecionamento de instituições e políticas públicas articuladas para lidar com esses problemas. O processo de transformação da tísica em tuberculose enfeixa de modo emblemático as relações entre conhecimento médico, instituições e modos de lidar com os pacientes. Até a descoberta do bacilo de Koch, desconfiava-se da possibilidade de a tísica ser transmitida por contágio, o que resultava na atribuição de suas causas à hereditariedade, ao regime alimentar, às condições climáticas, ou ao estado emocional dos pacientes. Esses, por sua vez, viviam a experiência da doença, em geral, na esfera doméstica, privada. Num certo sentido, a descoberta do bacilo causador da doença arrebata os doentes do âmbito privado para confiná-los em nome do interesse público, conduzindo ao refazer institucional e político que redundaria nos sanatórios e em novos estigmas associados à doença. Na verdade, no que tange à tuberculose, ao alcoolismo e à sífilis, há pouco na coletânea quanto às transformações nas experiências e visões dos pacientes, algo como o que está presente no excelente livro de Sheila Rothman, sobre a história social da tuberculose nos Estados Unidos.2 2 Sheila M. Rothman, Living in the shadow of death: Tuberculosis and the social experience of illness in American history. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994.
Mas o fato é que Sheila Rothman teve a seu dispor quantidade apreciável de cartas e outros documentos pessoais de pacientes de tuberculose de diferentes condições ou classes sociais. Esse tipo de registro pessoal de doentes parece mais difícil de encontrar em nossos arquivos, ao menos para períodos mais remotos no tempo, fora do alcance das fascinantes possibilidades abertas pela história oral. Nesse sentido, o conjunto da coletânea atinge notável equilíbrio com os capítulos de Laurinda Rosa Maciel, sobre hanseníase, e de Dilene Raimundo do Nascimento, sobre Aids. O depoimento de Fuad Abílio Abdala sobre a sua experiência como paciente de hanseníase é arrebatador, tipo de narrativa que comove ao mesmo tempo em que escancara a rede complexa de significados sociais associados à doença no século XX. Mostra o potencial de uma história social das doenças realmente capaz de buscar antinomias ou alteridade por meio da disponibilidade, política e epistemológica, de entender a visão do 'outro' por excelência dos saberes médicos isto é, o paciente. Fuad comove ao contar a mudança abrupta em sua vida, de criança feliz a 'leproso' social; mostra ironia amarga e penetrante ao arrolar motivos para pensar que foi vítima de erro médico, de preconceito fantasiado de ciência; desnuda impiedosamente os estigmas sociais que arruinaram a economia familiar e destruíram os seus sonhos juvenis. Por fim, tem visão articulada, sofrida, mas racional, das instituições nas quais viveu o seu tempo de exclusão social.
Quanto ao depoimento de Alice, dona de casa, mãe que perdeu um filho doente de Aids, prefiro não dizer nada. Dilene Raimundo do Nascimento, ao nos introduzir tal personagem, fornece um arremate primoroso ao volume. No cômputo geral, temos aqui a reunião de textos importantes, que testemunham a riqueza empírica e a sofisticação teórica e metodológica de muito do que se faz atualmente no Brasil na área de história das doenças. Quiçá este leitor e resenhista preferisse alguns poucos capítulos a menos, um agrupamento temático mais claro dos capítulos do volume, um ou outro texto de prosa mais suave. Nada, porém, que empane o conjunto geral do volume, e a oportunidade de aprender com personagens como Fuad Abdala e Alice, que, aliás, mereciam ter as suas histórias publicadas na íntegra.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
10 Out 2006 -
Data do Fascículo
Jun 2006