Introdução
As urgências oftalmológicas podem ter grande impacto na saúde dos indivíduos, devido ao risco potencial de perda visual irreversível.(1)Além disso, constituem importante causa de absenteísmo, uma vez que a população economicamente ativa é a mais presente em atendimentos de urgências oculares.(2,3)
O conhecimento acerca das principais urgências oftalmológicas, bem como as características epidemiológicas da população que procura esse atendimento é fundamental para o planejamento de políticas de saúde e melhoria dos serviços.
O serviço de Urgência Oftalmológica do Complexo Hospitalar Ouro Verde em Campinas, Brasil, realiza atendimento clínico e cirúrgico de pacientes com queixas oculares em livre demanda e pacientes referenciados de serviços primários e secundários de Campinas e cidades próximas. Portanto, reflete a epidemiologia de uma ampla região, servindo de base para medidas de prevenção à cegueira. Entretanto, ainda há poucos dados disponíveis.(4)
O objetivo deste estudo é avaliar os diagnósticos mais comuns e características epidemiológicas dos pacientes atendidos no serviço público de urgência oftalmológica. Pretende-se ainda atualizar os dados sobre urgências oftalmológicas em nosso meio, contribuindo para melhorias na rede de atendimento.
Métodos
Trata-se de um estudo descritivo, transversal e retrospectivo com amostra não probabilística através da revisão de prontuários dos pacientes atendidos no serviço de Urgência Oftalmológica do Complexo Hospitalar Ouro Verde no período de julho a setembro de 2017.
A variável de desfecho foi o diagnóstico oftalmológico, agrupado nas seguintes categorias: alergia ocular, blefarite/meibomite, catarata, celulite orbitária/periorbitária, conjuntivite infecciosa, doenças da retina/vítreo, doenças da superfície ocular (ceratite, desepitelização, infiltração corneana, irritação inespecífica e olho seco), doenças do sistema lacrimal, hemorragia subconjuntival, hordéolo, infecção por herpes simplex, trauma ocular (incluindo trauma fechado - contusões, lacerações e corpo estranho superficial - trauma aberto - penetrante e corpo estranho intraocular - queimaduras oculares e outros),(2,5) pterígio/pingueculite, úlcera de córnea, uveítes e diagnóstico a esclarecer. Os diagnósticos com menor prevalência foram agrupados em "outros". As variáveis de exposição foram gênero e idade, dividida em quatro faixas etárias: 0 a 14, 15 a 29, 30 a 59 e > 60 anos, para comparação com outros estudos nacionais.(2-4,6)
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade São Leopoldo Mandic (número de protocolo 3.194.642), havendo dispensa de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por garantia de total sigilo das informações. Todos os pacientes foram avaliados por oftalmologistas e a análise dos prontuários foi feita por pesquisadores treinados. Os cálculos de frequência foram feitos no programa Epi Info, versão 7.
Resultados
Foram avaliados os prontuários de 2834 pacientes, com prevalência do gênero masculino (52,6%) e da faixa etária de 30 a 59 anos (43,5%). A média de idade foi 39,6 anos (± 21,3 anos) e variou de 0 a 102 anos (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição dos pacientes atendidos em um serviço público de urgência oftalmológica segundo gênero e idade
Idade (anos) | Gênero | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | |||||
n | % | n | % | n | % | |
0 a 14 | 193 | 54,1 | 164 | 45,9 | 357 | 12,6 |
15 a 29 | 319 | 49,4 | 327 | 50,6 | 646 | 22,8 |
30 a 60 | 692 | 56,1 | 542 | 43,9 | 1234 | 43,5 |
≥ 60 | 286 | 47,9 | 311 | 52,1 | 597 | 21,1 |
Total | 1490 | 52,6 | 1344 | 47,4 | 2834 | 100,0 |
O diagnóstico mais frequente foi conjuntivite infecciosa (23,9%), seguido por trauma ocular (15,7%), doenças da superfície ocular (14,6%), blefarite/meibomite (8,5%) e hordéolo (4,7%). Entre os pacientes com trauma ocular, a presença de corpo estranho (superficial ou intraocular) foi a causa mais comum (62,2%), seguida de trauma não penetrante provocado por contusão (29,4%), sendo o restante distribuído entre perfuração ocular, laceração, queimadura e outros (Figura 1).

Figura 1 Frequência absoluta dos diagnósticos em um serviço público de urgência oftalmológica* Trauma ocular: trauma ocular fechado (contusões, lacerações e corpo estranho superficial); trauma ocular aberto (penetrante e corpo estranho intraocular); queimaduras oculares e outros tipos de trauma ocular.** Outros: Blefaroespasmo, ceratocone, dermatite atópica, enxaqueca, ectrópio, endoftalmite, herpes zoster ocular, infecção por CMV, moscas volantes, transtornos de refração, etc.N = 2834.
A tabela 2 mostra a distribuição dos cinco principais diagnósticos por gênero e a tabela 3, por faixa etária.
Tabela 2 Distribuição dos principais diagnósticos em um serviço público de urgência oftalmológica segundo gênero
Diagnóstico | Gênero | |||
---|---|---|---|---|
Masculino | Feminino | |||
n | % | n | % | |
Conjuntivite infecciosa | 271 | 40,1 | 405 | 59,9 |
Trauma ocular | 372 | 83,6 | 73 | 16,4 |
Doenças da sup. ocular | 203 | 48,9 | 212 | 51,1 |
Blefarite/meibomite | 97 | 40,1 | 145 | 59,9 |
Hordéolo | 58 | 43,6 | 75 | 56,3 |
Tabela 3 Distribuição dos principais diagnósticos em um serviço público de urgência oftalmológica segundo faixa etária
Diagnóstico | Idade (anos) | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
0-14 | 15-29 | 30-59 | ≥ 60 | |||||
n | % | n | % | n | % | n | % | |
Conjuntivite infecciosa | 114 | 16,9 | 247 | 36,5 | 264 | 39,1 | 51 | 7,5 |
Trauma ocular | 51 | 11,5 | 115 | 25,8 | 238 | 53,5 | 41 | 9,2 |
Doenças da sup.ocular | 56 | 13,5 | 96 | 23,1 | 179 | 43,1 | 84 | 20,2 |
Blefarite/meibomite | 8 | 3,3 | 35 | 14,5 | 101 | 41,7 | 98 | 40,5 |
Hordéolo | 24 | 18,0 | 50 | 37,6 | 49 | 36,8 | 10 | 7,5 |
Discussão
Entre os pacientes que procuraram o serviço de urgência oftalmológica observou-se predomínio do sexo masculino e da faixa etária economicamente ativa, semelhante a outras casuísticas.(3,7,8)
Os traumas oculares de qualquer natureza (considerando desde corpos estranhos e leves abrasões a contusões e perfurações) são a principal causa de procura ao serviço de urgência oftalmológica na maioria dos estudos nacionais.(1,2,4,9-11) Neste estudo, conjuntivite infecciosa foi o diagnóstico mais prevalente, podendo ser um indicativo de inadequações na rede de urgência oftalmológica da região, uma vez que a maioria dos casos de conjuntivite pode ser manejada na atenção primária ou por médicos não especialistas.
Os traumas oculares tiveram predomínio importante em adultos do sexo masculino, sugerindo que esta população está mais vulnerável a fatores de risco, como laborais, trânsito e esporte, devendo esta população ser o foco principal de medidas preventivas.(3) Entre as mulheres e crianças, predominaram os quadros infecciosos e/ou inflamatórios.
Chama atenção que 40% dos casos de blefarite/meibomite ocorreram em pacientes idosos, sendo o segundo diagnóstico mais prevalente nesta população. Estudo envolvendo apenas idosos em São Paulo apontou prevalência de ectrópio (fator de risco para infecção/inflamação palpebral) de 2,9%, (contra 0,18% na população geral).(12) Catarata foi o sétimo motivo de procura do serviço de urgência oftalmológica em > 60 anos (correspondendo a cerca de 5,0% dos diagnósticos), indicando falhas na porta de entrada preferencial desses pacientes no sistema público de saúde.
Apesar da dificuldade em se definir com precisão a porcentagem de casos que não demandavam atendimento em serviço de urgência oftalmológica, pode-se estimar que um número importante poderia ser manejado na rede de atenção primária, por médicos generalistas e/ou ambulatorialmente. A maioria dos casos de conjuntivite infecciosa, por exemplo, é benigna e autolimitada, podendo ser abordada por médicos da atenção primária.(13) Na região nordeste do Brasil, estima-se que quase metade dos atendimentos em um serviço de urgência oftalmológica consiste em doenças comuns, de simples resolução e que poderiam ser diagnosticadas e tratadas numa clínica oftalmológica ou por médicos gerais.(10,14)
O estudo limita-se à análise dos atendimentos de urgência oftalmológica em um período de 3 meses, o que deve ser levado em conta, uma vez que pode haver variações sazonais nos motivos para busca de atendimento. Além disso, estudos retrospectivos podem conter falhas e vícios de registro de informação, o que se tentou minimizar pela revisão dos prontuários por pesquisadores treinados e pelo fato de os diagnósticos serem realizados por oftalmologistas de um centro de referência.
Conclusão
Conjuntivite infecciosa foi o principal diagnóstico em um serviço público de urgência oftalmológica, sendo a maioria dos casos passível de manejo na atenção primária. Traumas oculares foram muito prevalentes entre homens em idade economicamente ativa, reforçando a necessidade de medidas educativas e de fiscalização visando redução de morbidade e absenteísmo. Este estudo aponta o frequente uso inapropriado da rede de urgência oftalmológica e fornece dados epidemiológicos para orientação de políticas de saúde.