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O miocárdio na tetralogia de Fallot: estudo histológico e morfométrico

Resumos

FUNDAMENTO: Pacientes com tetralogia de Fallot freqüentemente cursam com disfunção ventricular no período pós-operatório. A base histológica dessa alteração funcional tem sido pouco estudada. OBJETIVO: Avaliar, em espécimes anatômicos, o remodelamento miocárdico comparando as regiões subepicárdica e subendocárdica, especialmente por esta última ser facilmente abordável por meio de biópsias endomiocárdicas. MÉTODOS:Análises em cortes transmurais de miocárdio da via de entrada, parede anterior e infundíbulo do ventrículo direito (VD) e da parede livre do esquerdo (VE), foram avaliados quanto ao grau de hipertrofia de cardiomiócitos, de vascularização e fibrose intersticial. RESULTADOS:O diâmetro médio dos cardiomiócitos do subendocárdio é semelhante ao do subepicárdio em todas as regiões, com exceção do infundíbulo do VD, em que os subendocárdicos se mostraram significativamente maiores em relação aos do subepicárdio (p=0,007). A quantidade de colágeno intersticial encontra-se nos limites superiores do normal e foi similar nas camadas subendocárdicas, comparada à subpericárdica de cada região, sendo, todavia, maior na via de entrada e na parede anterior do VD, do que na parede lateral do VE. A densidade numérica de capilares do subendocárdio foi semelhante à do subepicárdio e esteve menor que a média menos dois desvios-padrão do normal em todas as regiões e camadas, com exceção do infundíbulo, em que o subepicárdio mostrava valores normais e o subendocárdio valores menores que a média menos dois desvios-padrão. CONCLUSÃO: As alterações do miocárdio pós-natal na tetralogia de Fallot estão distribuídas homogeneamente nas metades subepicárdica e subendocárdica das paredes ventriculares, com exceção do infundíbulo, que apresenta características peculiares de remodelamento e que, portanto, não é representativo das demais regiões e camadas ventriculares para estudos morfométricos.

Tetralogia de Fallot; morfometria; remodelamento ventricular; cardiopatias congênitas; miocárdio; cardiomegalia


FUNDAMENTO: Frecuentemente, pacientes con tetralogía de Fallot cursan con disfunción ventricular en el período postoperatorio. La base histológica de esa alteración funcional ha sido poco estudiada. OBJETIVO: Evaluar, en especímenes anatómicos, la remodelación miocárdica comparándose las regiones subepicárdica y subendocárdica, sobre todo por esta última ser fácilmente abordable por medio de biopsias endomiocárdicas. MÉTODOS: Se evaluaron análisis en cortes transmurales de miocardio de la vía de entrada, pared anterior e infundíbulo del ventrículo derecho (VD) y de la pared libre del izquierdo (VI), en cuanto al grado de hipertrofia de cardiomiocitos, de vascularización y fibrosis intersticial. RESULTADOS: El diámetro promedio de los cardiomiocitos del subendocardio se asemeja al del subepicardio en todas las regiones, con excepción del infundíbulo del VD, en que los subendocárdicos se mostraron significativamente mayores con relación a los del subepicardio (p=0,007). La cantidad de colágeno intersticial se encuentra en los límites superiores al normal y fue similar en las camadas subendocárdicas, comparada a la subpericárdica de cada región; pero se mostró mayor en la vía de entrada y en la pared anterior del VD, que en la pared lateral del VI. La densidad numérica de capilares del subendocardio se asemejó a la del subepicardio y se mostró menor que el promedio menos dos desviaciones estándar del normal, en todas las regiones y capas, con excepción del infundíbulo, en lo que el subepicardio revelaba valores normales y el subendocardio valores menores que el promedio menos dos desviaciones estándar. CONCLUSIÓN: Las alteraciones del miocardio postnatal en la tetralogía de Fallot están distribuidas de modo homogéneo en las mitades subepicárdica y subendocárdica de las paredes ventriculares, a excepción del infundíbulo, que presenta características peculiares de remodelación y que, por lo tanto, no es representativo de las otras regiones y capas ventriculares para estudios morfométricos.

Tetralogía de Fallot; morfometría; remodelación ventricular; cardiopatías congénitas; miocardio; cardiomegalia


BACKGROUND: Patients with Tetralogy of Fallot frequently develop ventricular dysfunction in the postoperative period. The histological basis of this functional alteration has been scarcely studied. OBJECTIVE: To evaluate myocardial remodeling in anatomical specimens, comparing the subepicardial and subendocardial regions, especially because the subendocardial region is easily approached by means of endomyocardial biopsy. METHODS: Transmural sections of myocardium from the right ventricular (RV) inflow tract, anterior wall and infundibulum, and from the left ventricular (LV) free wall were evaluated regarding the degree of cardiomyocyte hypertrophy, vascularization and interstitial fibrosis were analyzed. RESULTS: The mean diameter of subendocardial cardiomyocytes is similar to that of subepicardial cardiomyocytes in all regions, except for the RV infundibulum, in which subendocardial cardiomyocytes are significantly larger in relation to those of the subepicardium (p=0.007). The amount of interstitial collagen is in the upper limits of normal and was similar in the subendocardial layers in comparison with the subpericardial layer of each region; however, it was greater in the inflow tract and RV anterior wall than in the LV lateral wall. The numerical density of subendocardial capillaries was similar to that of the subepicardium and was lower than the mean minus two standard deviations of normal in all regions and layers, except for the infundibulum, in which the subepicardium showed normal values and the subendocardium showed values lower than the mean minus two standard deviations. CONCLUSION: The postnatal myocardial changes in Tetralogy of Fallot are homogeneously distributed in the subepicardial and subendocardial halves of the ventricular walls, except for the infundibulum, which has peculiar remodeling characteristics and, therefore, is not representative of the other ventricular regions and layers for morphometric studies.

Tetralogy of Fallot; heart defects, congenital; myocardium; cardiomegaly


ARTIGO ORIGINAL

CARDIOLOGIA PEDIÁTRICA

O miocárdio na tetralogia de Fallot: estudo histológico e morfométrico

Maria Cecília Knoll FarahII; Cláudia Regina Pinheiro de CastroI; Valéria Mello MoreiraI; Arlindo de Almeida RisoI; Antonio Augusto Barbosa LopesI; Vera Demarchi AielloI

IInstituto do Coração (InCor) Hospital das Clínicas-FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

IIFaculdade de Medicina - Centro de Ciências Biológicas da Saúde - Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT - Brasil

Correspondência Correspondência: Vera Demarchi Aiello Av. Dr. Enéas Carvalho Aguiar, 44 - 05406-000 Cerqueira César - São Paulo, SP - Brasil E-mail: vera.aiello@incor.usp.br, demarchi@cardiol.br

RESUMO

FUNDAMENTO: Pacientes com tetralogia de Fallot freqüentemente cursam com disfunção ventricular no período pós-operatório. A base histológica dessa alteração funcional tem sido pouco estudada.

OBJETIVO: Avaliar, em espécimes anatômicos, o remodelamento miocárdico comparando as regiões subepicárdica e subendocárdica, especialmente por esta última ser facilmente abordável por meio de biópsias endomiocárdicas.

MÉTODOS:Análises em cortes transmurais de miocárdio da via de entrada, parede anterior e infundíbulo do ventrículo direito (VD) e da parede livre do esquerdo (VE), foram avaliados quanto ao grau de hipertrofia de cardiomiócitos, de vascularização e fibrose intersticial.

RESULTADOS:O diâmetro médio dos cardiomiócitos do subendocárdio é semelhante ao do subepicárdio em todas as regiões, com exceção do infundíbulo do VD, em que os subendocárdicos se mostraram significativamente maiores em relação aos do subepicárdio (p=0,007). A quantidade de colágeno intersticial encontra-se nos limites superiores do normal e foi similar nas camadas subendocárdicas, comparada à subpericárdica de cada região, sendo, todavia, maior na via de entrada e na parede anterior do VD, do que na parede lateral do VE. A densidade numérica de capilares do subendocárdio foi semelhante à do subepicárdio e esteve menor que a média menos dois desvios-padrão do normal em todas as regiões e camadas, com exceção do infundíbulo, em que o subepicárdio mostrava valores normais e o subendocárdio valores menores que a média menos dois desvios-padrão.

CONCLUSÃO: As alterações do miocárdio pós-natal na tetralogia de Fallot estão distribuídas homogeneamente nas metades subepicárdica e subendocárdica das paredes ventriculares, com exceção do infundíbulo, que apresenta características peculiares de remodelamento e que, portanto, não é representativo das demais regiões e camadas ventriculares para estudos morfométricos.

Palavras-chave: Tetralogia de Fallot, morfometria, remodelamento ventricular, cardiopatias congênitas, miocárdio/anatomia e histologia, cardiomegalia.

Introdução

Estudos histológicos do miocárdio na tetralogia de Fallot demonstraram a existência de hipertrofia e desarranjo dos cardiomiócitos além de vários graus e tipos de fibrose e edema no interstício1. Macroscopicamente a hipertrofia ventricular é particularmente evidente na região infundibular, exatamente onde o defeito embriológico básico dessa anomalia se exterioriza causando o desvio anterior do septo infundibular. Em adultos com doenças cardíacas adquiridas foi demonstrado que os diversos padrões de fibrose e remodelamento nas diferentes regiões e camadas musculares ventriculares (subendocárdica e subepicárdica) têm conseqüências funcionais diversas2,3.

Conhecer a distribuição e intensidade das alterações histológicas nas diferentes regiões ventriculares na tetralogia de Fallot, incluindo a hipertrofia dos cardiomiócitos, a porcentagem de fibrose e a rede capilar é aspecto relevante, já que freqüentemente essa anomalia cursa com disfunção ventricular no período de pós-operatório e sua base histológica tem sido pouco estudada.

Considerando que durante a correção cirúrgica costuma-se fazer ressecção de músculo do infundíbulo ventricular direito, é também relevante conhecer a representatividade da morfometria desse material em relação aos ventrículos como um todo, visando avaliar a possibilidade de correlacionar esses aspectos ao tipo e grau de disfunção ventricular pós-operatória, o que tornaria a biópsia miocárdica uma ferramenta com grande potencial em estabelecer o prognóstico após a correção cirúrgica.

Objetivo

Estudar morfometricamente as características histológicas (grau de hipertrofia miocárdica, fibrose intersticial e densidade de capilares) de amostras de três diferentes regiões do ventrículo direito (VD) - via de entrada, parede anterior e via de saída - e compará-las entre si e com amostras do ventrículo esquerdo (VE), além de verificar a distribuição transmural dessas amostras.

Métodos

Foram avaliados 192 cortes histológicos preparados a partir de oito peças anatômicas de corações com os defeitos congênitos que caracterizam a tetralogia de Fallot pertencentes à coleção do Laboratório de Anatomia Patológica Instituto do Coração - Faculdade de Medicina - USP, provenientes de autópsias realizadas no período de 1999 a 2005. Os casos foram selecionados quanto à integridade dos espécimes arquivados, considerando a possibilidade de amostrar todas as paredes, e quanto à qualidade dos cortes histológicos, sendo excluídos aqueles com sinais de má-fixação. A tabela 1 ilustra os casos selecionados.

Foram retiradas fatias transmurais de miocárdio de quatro diferentes regiões ventriculares - via de entrada, parede anterior e infundíbulo do VD e parede livre do VE. As amostras foram submetidas a processamento histológico convencional e então foram obtidos cortes histológicos de 5 micrômetros (µm) de espessura. Esses foram submetidos a coloração pela hematoxilina-eosina; pelo Picrosirius (Sirius Red) para análise quantitativa do colágeno no interstício do miocárdio, e à reação de imuno-histoquímica para o Fator de Von Willebrand, para marcação dos capilares miocárdicos. Para análise todos os cortes foram divididos em duas metades: amostra subendocárdica e amostra subepicárdica.

As medidas morfométricas foram realizadas com auxílio de um sistema computadorizado interativo de análise de imagens (Leica Qwin versão 2.2 - Leica Imaging Systems Ltda, 1997). Uma câmera de vídeo (JVC modelo TK- 1280U) conectada ao microscópio óptico (Leica DMLS) transmite ao sistema cada campo microscópico, que é então transformado em uma imagem digital binária. Uma seqüência de operações matemáticas e morfológicas permite identificar e quantificar todas as estruturas de interesse. A técnica de análise histológica proposta foi testada e mostrou baixa variação interobservador4. Para as medidas lineares (diâmetros) o aumento utilizado foi de 400x.

Após estudo da evolução da média e variância, foram medidas 60 células por região/caso, em pelo menos 10 campos diferentes. Foi medido o menor diâmetro dos cardiomiócitos em uma linha que intercepta o núcleo e o também medido o menor diâmetro dos núcleos (fig. 1). Os resultados foram comparados com os índices normais para a idade estabelecidos na literatura1,5,,6. Para quantificar o colágeno foi determinada a fração de área ocupada por colágeno intersticial (% da área miocárdica), utilizando-se um aumento de 200x e adotando a cor como parâmetro discriminatório do colágeno, em 40 campos de cada amostra (fig. 2).



Foram excluídas dessa análise áreas cicatriciais caracterizadas por fibrose estrelada com vasos neoformados e o colágeno ao redor de arteríolas com diâmetro superior a 30 µm utilizando-se recurso de edição do programa Quantimet. A avaliação dos capilares foi possível em cortes histológicos de cinco dos oito espécimes, cujo resultado da reação imuno-histoquímica permitiu a análise morfométrica. O resultado insatisfatório das lâminas dos três espécimes restantes provavelmente esteve relacionado ao período de armazenamento dos mesmos em formol e foram, portanto, excluídas dessa análise.

Para os cinco espécimes estudados, contando-se todos os capilares de cada campo, foi então calculado o número de capilares por fração de área de cardiomiócitos e por área de miocárdio analisado, permitindo calcular a densidade de capilares (Nº. capilares/mm2). Nessa etapa foram analisados cinco campos de cada amostra, correspondente a 72.384 µm2 de área, utilizando-se uma grade de 80 pontos, com aumento de 400x para contagem dos pontos incidentes sobre cardiomiócitos e sobre capilares.

Nos mesmos campos, foi avaliada a menor distância de cada ponto do sistema teste para o capilar mais próximo, utilizada como parâmetro da homogeneidade de distribuição de capilares nos campos (distância de difusão capilar - fig. 3). Para cada campo foi também contado o número total de capilares (vasos menores ou iguais a 7µm de diâmetro) inseridos dentro da grade.


Análise estatística

Os dados foram computados e analisados com o auxílio do programa SigmaStat versão 2.03. As variáveis contínuas foram apresentadas descritivamente como média, mediana e desvio padrão. Foram utilizados para a comparação entre os grupos os testes t Student ou Mann-Whitney e o teste de análise de variância para medidas repetidas com um ou dois fatores. Para avaliação da associação entre variáveis foi utilizado o teste do Qui-quadrado, e para testar a correlação entre elas, os testes de correlação de Pearson ou Spearman. Os resultados foram interpretados considerando-se o nível de significância de 5%.

Resultados

Diâmetro dos cardiomiócitos

Analisando de modo comparativo o diâmetro médio dos cardiomiócitos no subendocárdio versus o subepicárdio em cada uma das diversas regiões ventriculares, não houve diferença significativa entre o diâmetro daqueles da via de entrada (p=0,055) e da parede anterior do ventrículo direito (p=0,487) e da parede lateral do ventrículo esquerdo (p=0,959); no entanto, os cardiomiócitos da região subendocárdica da parede infundibular do ventrículo direito se mostraram significativamente maiores em relação aos do subepicárdio (p=0,007).

Analisando de modo comparativo o diâmetro médio dos cardiomiócitos das diversas paredes ventriculares - via de entrada, parede anterior, região infundibular do ventrículo direito e parede lateral do ventrículo esquerdo, não houve diferença significativa entre elas, tanto para amostras do subepicárdico (p=0,415) quanto para amostras do subendocárdio (p=0,522).

Houve correlação estatisticamente significante entre a idade e o diâmetro dos cardiomiócitos nas camadas subendocárdica e subepicárdica da via de entrada (r=0,94, p<0,001; r=0,89, p<0,001), parede anterior (r=0,76, p<0,05; r=0,84 p<0,001) e infundíbulo do ventrículo direito (r=0,96, p<0,001; r=0,94 p<0,001), e camada subepicárdica da parede lateral do ventrículo esquerdo (r=0,75, p<0,05), mas não na camada subendocárdica da mesma parede (r=0,41, p=0,311).

Plotando os valores médios dos diâmetros dos cardiomiócitos dos espécimes estudados no gráfico com os valores estabelecidos em corações normais para a mesma faixa etária5 observa-se que nos espécimes estudados os valores médios do diâmetro dos cardiomiócitos do ventrículo direito em geral são maiores que os valores normais para a mesma faixa etária, na maioria das vezes mais de um desvio padrão acima do normal. A mesma análise para os cardiomiócitos do ventrículo esquerdo mostrou que essa diferença não é evidente em todos os casos (gráfico 1).


Fibrose intersticial

A fração de área ocupada pelo colágeno no subendocárdio foi semelhante à do subepicárdio da mesma região, nas diversas paredes ventriculares estudadas. Comparando apenas o subendocárdio das diferentes paredes ventriculares observamos que na via de entrada do ventrículo direito a fração de área ocupada por colágeno apresenta valores significativamente maiores em relação aos do ventrículo esquerdo (p=0,02). A mesma análise realizada para o subepicárdico mostrou que na via de entrada e parede anterior do ventrículo direito a fração de área de colágeno é também maior em comparação com o ventrículo esquerdo (p=0,02 e p=0,03, respectivamente) e que na via de entrada do ventrículo direito os valores são maiores em comparação com a região infundibular do mesmo ventrículo (p=0,04) (tab. 2).

Comparando os valores normais de fibrose miocárdica publicados na literatura para corações normais (até 3%)7, observamos que os valores médios obtidos nas amostras do ventrículo direito ficaram no limite superior ou pouco acima da média, com exceção da amostra do subepicárdio da região infundibular que apresentou nível médio de fibrose abaixo do valor máximo normal. Já os do ventrículo esquerdo estiveram abaixo do valor máximo normal. Na observação histológica desse material encontraram-se vários padrões de fibrose intersticial, incluindo amostras com fibrose perimisial e amostras com fibrose endomisial (fig. 4).


Capilares

A densidade de capilares (Nº. capilares /mm2 de cardiomiócitos) no subendocárdio foi semelhante à do subepicárdio em cada uma das diversas regiões estudadas, com exceção da região infundibular do ventrículo direito cujo valor foi significativamente maior na camada muscular subepicárdica do que na subendocárdica (p=0,001). As densidades de capilares do subepicárdio das diversas regiões ventriculares são semelhantes entre si (p>0,11). Todavia, o subendocárdio do infundíbulo subpulmonar apresenta menor densidade capilar em relação à parede anterior (p=0,031).

Comparando os dados obtidos com os valores normais de densidade capilar publicados na literatura para corações normais de crianças menores de nove anos de idade (3315±85 capilares/mm2)8, observamos que os valores médios obtidos considerando os quatro pacientes dessa faixa etária foram menores que a média menos dois desvios-padrão, com exceção da camada subepicárdica na região infundibular (tab. 3). A distância de difusão dos capilares (µm) no subendocárdio e no subepicárdio foi semelhante em cada uma das diversas regiões ventriculares estudadas para ventrículo esquerdo (p=0,693) e para o ventrículo direito na região infundibular (p=0,208), via de entrada (p=0,595) e parede anterior (p=0,687).

Discussão

A distorção da morfologia cardíaca nas cardiopatias congênitas leva a conseqüências hemodinâmicas variáveis que promovem a adaptação do miocárdio e podem eventualmente induzir a disfunção ventricular. Estudos anteriores mostraram que os portadores de tetralogia de Fallot apresentam consideráveis hipertrofia e desarranjo dos cardiomiócitos e vários graus e tipos de fibrose, edema, infiltração por células mononucleares e alterações degenerativas, como degeneração vacuolar dos miocardiócitos1. Foi observado que ao nascimento não existe diferença entre o diâmetro dos cardiomiócitos dos pacientes com tetralogia de Fallot e os normais9. Após o nascimento, esse diâmetro aumenta de modo progressivo e gradual e a proliferação do tecido conjuntivo ocorre de modo proporcional à hipertrofia e à idade9. Esses achados corroboram a hipótese de que na vida fetal a comunicação interventricular e a baixa pós-carga do ventrículo esquerdo aliviam a sobrecarga de pressão imposta pela obstrução da via de saída do ventrículo direito, diminuindo o estímulo para o remodelamento ventricular direito.

Após o nascimento o aumento fisiológico da pós-carga do ventrículo esquerdo, que se reflete no ventrículo direito através da comunicação interventricular, soma-se à imposta pela obstrução da via de saída do ventrículo direito gerando grande estímulo ao remodelamento ventricular direito. Sendo assim, podemos considerar que o remodelamento ventricular direito, possivelmente, ocorra principalmente no período pós-natal.

Embora estudo em espécimes anatômicos anterior tenha demonstrado que o infundíbulo pulmonar, na tetralogia de Fallot, é mais longo10, um estudo prospectivo ecocardiográfico mais recente demonstrou que na tetralogia de Fallot, em comparação com lactentes normais, o infundíbulo pulmonar é menor e mais curto e o septo infundibular é mais espesso e desviado no sentido ântero-superior11. Apesar de a obstrução infundibular ser progressiva com a idade, a dimensão absoluta do volume do infundíbulo pulmonar não mudou significativamente com o tempo, mas também não cresceu em proporção ao aumento da superfície corpórea.

Possivelmente a razão disso seria um crescimento anormal do infundíbulo, intrínseco à anomalia congênita, o que o torna relativamente menor em relação ao crescimento somático, colaborando para o agravamento da obstrução da via de saída do ventrículo direito. Assim, as imagens confirmam o conceito de que, no caso dos defeitos cardíacos congênitos, e desde que essas condições de sobrecarga de volume e/ou pressão estejam presentes desde o processo de morfogênese, o processo de remodelamento ocorre concomitantemente ao processo de morfogênese e crescimento do coração, antes e após o nascimento.

No caso da tetralogia de Fallot em particular devemos considerar que a hipertrofia do infundíbulo, presente desde o nascimento, seja o resultado da anormalidade intrínseca da morfogênese do mesmo, que poderá se acentuar pelo efeito do remodelamento pós-natal. Alguns autores já se manifestaram a respeito das características do remodelamento miocárdico nas cardiopatias congênitas12, nas diversas regiões das paredes ventriculares e nas camadas subendocárdica e subepicárdica.

Salih e cols.13 demonstraram que na síndrome de hipoplasia do coração esquerdo (SHCE) existe menor porcentagem de colágeno por campo no ventrículo esquerdo em comparação com os controles normais e em comparação ao ventrículo direito. Mostraram maior porcentagem de colágeno no subendocárdio que no subepicárdio, e desse em relação ao mesocárdio, concluindo que essas alterações representam uma anormalidade intrínseca e sugerindo que essa desproporcionalidade na quantidade de tecido fibroso possa ter importante implicação na função ventricular ao longo do tempo.

Estudando espécimes anatômicos com atresia tricúspide, Binotto e cols.4 revelaram maior proporção de fibrose no ventrículo esquerdo dos espécimes com atresia tricúspide em comparação com os normais. Observaram ainda que a proporção de fibrose não era homogênea em todo ventrículo esquerdo, apresentando valores maiores na via de entrada e ápice em comparação com via de saída, e também maior proporção na camada subendocárdica. O aumento da fibrose miocárdica intersticial foi documentado também na anomalia de Ebstein14 e atresia pulmonar com septo ventricular íntegro15. Acredita-se que o depósito de colágeno resulta em um aumento da rigidez que pode prejudicar o enchimento ventricular, proporcionando uma fisiologia restritiva.

Além de acompanhar de modo proporcional o crescimento fisiológico cardíaco, os capilares estão envolvidos em todos os mecanismos de adaptação sob condições adversas16. Em algumas circunstâncias que levam a hipertrofia miocárdica, acredita-se que o número inadequado de capilares aumente o potencial de dano isquêmico. Embora a hipóxia seja considerado um estímulo efetivo ao crescimento da célula endotelial, dados experimentais de adaptação de suprimento capilar em resposta a hipóxia são controversos. O número de capilares foi considerado inadequado em corações com hipoplasia de coração esquerdo13 e na atresia tricúspide4.

Os resultados encontrados no presente estudo mostraram que no caso da tetralogia de Fallot as alterações encontradas nas amostras subendocárdicas são representativas paras as diversas características estudadas (diâmetro dos cardiomiócitos, porcentagem de fibrose intersticial e densidade e difusão de capilares) na maioria das regiões ventriculares, com duas exceções que acontecem exatamente na região que mais se destaca na anatomia da tetralogia de Fallot: o infundíbulo pulmonar.

Nessa região encontramos que os cardiomiócitos têm maior diâmetro na camada subendocárdica quando comparados a subepicárdica, e que a densidade de capilares é maior na camada subepicárdica quando comparada à camada subendocárdica. Isso está de acordo com a afirmativa de que a hipertrofia em resposta à sobrecarga de pressão é maior no subendocárdio e não se acompanha de uma capilarização proporcional adequada16. Quanto à fibrose, o resultado indica que, embora essa esteja aumentada em todo o ventrículo direito, esse aumento é mais significativo na sua via de entrada e na parede anterior, justamente aquelas que têm maior importância na função ventricular direita.

A contração dessas paredes em direção ao septo tem papel importante tanto na função sistólica quanto no relaxamento diastólico. Rushmer17, citado por Nakasato e cols.18 refere que o sangue é ejetado do VD pelo encurtamento da parede livre com o deslocamento para baixo do anel da valva tricúspide e o movimento da parede livre em direção ao septo. Em seguida, a contração do ventrículo esquerdo exerce um efeito de "torção" do ventrículo direito finalizando a sístole19. Portanto, o aspecto do remodelamento descrito acima pode estar relacionado à existência de disfunção ventricular direita. Devemos considerar também que os vários padrões de remodelamento têm conseqüências funcionais diversas3.

Sabemos que maior porcentagem de fibrose miocárdica confere maior rigidez. O comprometimento da função diastólica está mais relacionado ao aumento da concentração de colágeno do que à hipertrofia dos cardiomiócitos2. Os resultados deste estudo nos induzem a acreditar que a hipertrofia como resposta de remodelamento miocárdico na tetralogia de Fallot ocorra em todas as regiões do ventrículo direito, mas se torne mais significativa no subendocárdico da região infundibular, onde não ocorre o aumento proporcional dos capilares. É possível que esse fenômeno se relacione ao grau de anormalidade do septo infundibular e à obstrução da via de saída do ventrículo direito.

Como constatamos neste estudo, as alterações presentes no miocárdio pós-natal na tetralogia de Fallot estão distribuídas homogeneamente nas metades subepicárdica e subendocárdica das paredes ventriculares, com exceção do infundíbulo, que apresenta características peculiares de remodelamento miocárdico. Concluímos, portanto, que as amostras miocárdicas subendocárdicas da região infundibular não são representativas das demais regiões ventriculares para estudos morfométricos.

Estudos posteriores serão essenciais para definir se algum padrão ou intensidade de lesão histológica se correlaciona com a disfunção ventricular clinicamente detectada no pós-operatório de alguns pacientes com essa anomalia congênita. Nesse contexto, e como perspectiva do presente trabalho, uma biópsia endocárdica realizada no intra-operatório seria útil para prever o comportamento da função ventricular após correção. Devemos também reconhecer que, neste estudo, o número de espécimes estudados foi pequeno, e que a interpretação da quantidade de capilares das diferentes faixas etárias merece estudos mais extensos, incluindo maior variação de idade.

Agradecimento

Esta pesquisa foi realizada com o apoio da Fapesp (projeto nº05/01476-2).

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo foi parcialmente financiado por FAPESP.

Vinculação Acadêmica

Este artigo é parte de tese de Doutorado de Maria Cecilia Knoll Farah pela Universidade Federal de São Paulo.

Artigo recebido em 30/11/07; revisado recebido em 21/01/08; aceito em 26/02/08.

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  • Correspondência:
    Vera Demarchi Aiello
    Av. Dr. Enéas Carvalho Aguiar, 44 - 05406-000
    Cerqueira César - São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009

    Histórico

    • Aceito
      26 Fev 2008
    • Recebido
      30 Nov 2007
    • Revisado
      21 Jan 2008
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