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Os Ãndios não estão preparados para votar, para trabalhar, para existir...

DOCUMENTO

"Os índios não estão preparados para votar, para trabalhar, para existir..."

Depoimento de Aílton Krenak

Meu trabalho junto à União das Nações Indígenas (UNI) é a minha vida. Porque minha vida só terá sentido na medida em que eu puder resgatar uma identidade. O que é isso? É afirmar a existência e o direito à existência dos índios no Brasil. É construir um Brasil onde todos possam ter seus direitos garantidos na prática e não só no papel.

Eu não consigo me imaginar vivendo passivo diante de crimes como esses que a gente está vendo acontecer a toda hora: assassinatos, invasões de aldeias, repressão armada. E, diante de uma brutalidade dessas, mesmo trabalhando para uma consciência, muitas vezes eu tenho a sensação de que, se eu fosse trezentos, ainda era pouco.

Essa busca de identidade, que não é só minha mas de todos os 150 povos indígenas diferentes que vivem no Brasil, passa, obrigatoriamente, pela relação entre o Estado e os índios. Em toda a história do Brasil, nunca houve um tratado entre o governo brasileiro e os povos indígenas. Efetivamente, o governo brasileiro nunca se dirigiu aos povos indígenas como nações, que eles são.

Essa relação sempre se baseou num ponto de vista hipócrita. E, por isso, nunca houve o menor esforço para defini-la melhor. Para o governo, para todos os governos que se sucederam através da história deste pais, o problema está resolvido: ignora-se o direito à existência dos índios. A própria imagem que nos é passada na escola conta a seguinte história: "quando Cabral chegou, o Brasil era habitado por índios". Aí, fecha rápido a cortina e pronto: "não há mais índios!" Acontece que há. O Estado prefere continuar ignorando o direito à existência de índios no Brasil, mas eles começam a se fazer representar junto às instituições.

Longe das decisões: os índios, o povo.

A presença expressiva de Mário Juruna no Congresso confirma isso. Mário Juruna é um cacique xavante, que fala muito pouco português, mas que, na língua dele, é um grande orador. Ele se identifica, grandemente, com todos os povos indígenas do continente e saiu da aldeia dele, lá no Mucurá, disposto a representar todos esses povos. Mas, por mais que trabalhe e se empenhe, enquanto o Estado não reconhecer a existência dos índios, essa tentativa de estabelecer uma representação dos povos indígenas vai ser um esforço de só um dos lados. A prova de que é uma tentativa de um lado só é que, a partir do momento que Mário Juruna passou a legislar, criando a Comissão do índio e um projeto de lei que propõe a reestruturação da FUNAI, ele passou a incomodar o Estado. E aí começou o movimento para impedir que ele continuasse seu trabalho dentro do Congresso.

A tentativa de cassação de seu mandato causou um tumulto extraordinário, com ameaça de fechamento do Congresso, Na verdade, não era Mário Juruna que estava sendo cassado mas o povo indígena, eram todas as nações indígenas. Por quê? Por que pela primeira vez essa relação, que sempre foi unilateral, adquirira um peso muito grande: o peso de mais de trinta mil eleitores não-índios que reconheciam o direito do índio estar representado dentro do Congresso.

De forma geral, todos os povos indígenas que vivem no Brasil vêem em Mário juruna um representante legítimo de seus interesses. É claro que o que isso significa para os Yanomami, que não têm nem dez anos de contato com a sociedade nacional, é diferente do que significa para os Guarani, para os Karajá, para outros povos que têm séculos de contato. O significado dessa representação indígena, que foi conferida ao Mário, varia na proporção em que cada comunidade entende essa relação com o Estado, com as autoridades, com as instituições.

O Mário conseguiu a síntese de representar os interesses dos povos indígenas e de representar também o povo brasileiro, que uma hora ou outra pode votar em alguém, mas que sente tão desprotegido e longe das decisões quanto os índios.

Na medida que a representação tradicional, que sempre foi exercida pelas elites regionais, for sendo substituída por pessoas que representem, não mais os interesses de um grupo, mas a expectativa de uma nação, começamos a caminhar para a fundação de uma identidade nacional. Identidade que só será legítima se partir do reconhecimento das identidades particulares dos grupos.

Nesse momento a questão indígena deixará de ser um problema de minoria. E, em certa medida, tratar a questão indígena como problema de minoria, é condicioná-la a ficar sempre num beco sem saída. Enquanto não se reconhecer que este país é uma nação de muitas raças e muitas culturas e que é preciso conviver com as diferenças e não tentar rnassificar a cultura de todos através da Rede Globo, os conflitos continuarão. E vai continuar havendo não só choques de índios e fazendeiros, mas choques de brasileiros com brasileiros.

É por isso que, quando começou a surgir a idéia de se criar uma União das Nações Indígenas, um dos primeiros passos foi começar a pensar quem somos nós. Quem são essas nações que essa entidade se propunha representar? Quando uma comunidade luta para garantir sua terra e seu direito de continuar reproduzindo sua cultura, não faz sentido ela se fechar em si mesma e ignorar que existem outros povos diferentes. Se ela não partir de uma identidade muito firmada, sua relação com outros grupos não vai ter nenhum sentido. Vão ficar um observando o outro sem que isso resulte em crescimento.

Duas gerações constroem a UNI

A existência de um movimento indígena organizado não é novidade na história do Brasil. Quando Cunhambebe formou a Confederação dos Tamoios, em 1535, e reuniu todos aqueles povos para enfrentar os portugueses no litoral, ele estava sentindo a necessidade de estabelecer algum tipo de relação com quem estava chegando, para que as coisas não ficassem tão no ar.

Ao longo dos séculos de colonização, em diferentes regiões do país os índios sempre fizeram movimentos de resistência e de organização. Mas uma representação a nível nacional só foi possível agora, no final dos anos 70, quando esses povos começaram a se encontrar, começaram a ver que tinham problemas comuns e que podiam encaminhar algumas soluções juntos.

A grande novidade da UNI é que ela não é um partido, não é um clube, nem representa um interesse restrito de grupo. A União das Nações Indígenas é uma forma institucional de representação, que a gente encontrou para reunir as diferentes nações indígenas e defender organizadamente seus interesses e necessidades.

Nesse primeiro momento de articulação, as pessoas que mais se esforçaram foram Marçal Guarani, que foi assassinado o ano passado, Ângelo Pankararé, Angelo Kretã, Domingos Terena, que lutou desde sempre, e outros dos povos Tikuna, Tukano, Miranha. Essas lideranças pertencem a uma geração anterior à minha; eles estão com cinqüenta ou sessenta anos de idade. A eles veio aliar-se uma geração bem mais jovem, na casa dos vinte ou trinta anos, que eram índios que tinham freqüentado escola, feito algum curso técnico ou superior, como eu mesmo, que tinha estudado jornalismo, e Paulo Bororo, Paulo Tikuna, Lino Miranha, Álvaro Tukano.

Foram essas lideranças que prepararam um primeiro encontro no Mato Grosso, em 1979, reunindo representantes dos Xavantes, Terena e Kadiwéu. Nesse encontro foi possível encaminhar a discussão de uma maneira mais ampla e preparar um grande encontro que aconteceu em 1981.

O segundo encontro reuniu o maior número possível de representantes por comunidade formando.. uma assembléia que elegeu uma espécie de diretoria: Marcos Terena como presidente, Álvaro Tukano como vice-presidente e Lino Miranha como secretário. Essa diretoria trabalhou todo o ano de 1981, buscando formas de implantar efetivamente a UNI.

Em 1982 houve uma reunião que quase não chegou a resultado nenhum, porque foi boicotada de todas as formas pela FUNAI. Só em ' 1983 foi possível fazer uma outra assembléia, em Goiás, de onde saiu uma nova proposta de organização da UNI. A partir dali não haveria mais o esquema de diretoria com duas ou três pessoas responsáveis por tudo; organizou-se uma Coordenadoria Nacional da UNI que seria formada por coordenadores regionais. Em cada aldeia haveria uma representação da UNI e esses representantes de aldeia levariam suas reivindicações e posições ao coordenador regional que, por sua vez, os levaria à Coordenadoria Nacional.

Dentro dessa estrutura, eu, hoje, sou coordenador de publicações. É uma função mais especializada, para a qual fui escolhido pela minha própria condição profissional. Eu produzo cartilhas, boletins, cartazes e o material de divulgação da UNI em geral. Além disso faço um pouco de relações públicas junto à imprensa, junto às autoridades para levar a eles, acompanhando grupos de índios, os problemas de cada região.

Agora estamos tentando articular o trabalho da UNI com a atuação de Mário Juruna no Congresso. Estamos tentando avaliar em que medida as coordenadorias da UNI podem ser um canal de divulgação do trabalho de Mário e, de que maneira a gente pode trabalhar isso para trazer de volta para ele as expectativas do pessoal das aldeias.

Eu tenho muita esperança de que a gente consiga, no Brasil, encontrar uma maneira de conversar, diferente da que tem existido até agora e que é baseada na violência. É possível conversar e isso não significa que o Estado vai ter que ceder tudo o que os índios querem, nem que os índios vão ter que abrir mão de tudo o que eles acham que tem direito.

Significa conjungar essas expectativas todas e esses interesses todos. Mas a UNI e o movimento indígena como um todo ainda têm muitas deficiências. Em primeiro lugar porque nós não temos verbas, em segundo lugar porque nós somos poucos e, por último, porque o governo cria todo tipo de impedimento.

Identificar os interesses em jogo

O novo Código Civil que vai ser votado agora, define o índio como absolutamente incapaz! Isso é regredir a 1500! Na prática isso significaria que Mário Juruna não poderia estar no Congresso, que a União das Nações Indígenas não tem valor de representação, que uma população indígena ameaçada nos seus direitos não pode constituir defesa e que o Estado brasileiro vai poder decidir tudo o que fazer com a gente como um tutor absoluto.

Eu tenho uma esperança muito grande que essa lei não seja aprovada no Congresso. E mais, eu tenho esperança que nosso trabalho organizado permita identificar quais são os interesses em jogo. Porque os interesses não são claros. Quando a gente diz "há os interesses das multinacionais, há os interesses do capital" é uma forma de inventar conversa fiada e não explicar as coisas direito.

Os interesses têm identidade, e só quando essa identidade estiver claramente estabelecida è que poderemos conversar e construir esta nação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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