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Educação e a formação do cidadão

DOSSIÊ (A) - A BIOÉTICA / DOSSIÊ (B) - LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

Educação e a formação do cidadão

Mônica Ribeiro da Silva

Professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar, Universidade Federal do Paraná

Discutir as relações entre educação e formação do cidadão pressupõe o evidenciamento do que se está entendendo por educação e por cidadania, e quais as relações que se estabeleceram entre elas em diferentes momentos históricos. Neste sentido, é preciso, antes de mais nada, traçarmos um percurso histórico para que possamos perceber os diferentes modos pelos quais se estabeleceram as relações entre educação e formação do cidadão.

Para que nossa análise proceda, tomaremos o Estado como elemento mediador desta relaçaõ, de forma a tornar-se possível sua explicitação em diferentes formações sociais.

Podemos tomar como ponto de partida o modo como forma postas as relaões entre educação e cidadania na Idade Antiga, particularmente na Grécia. Ora, não podemos nos esquecer que neste contexto histórico havia uma identidade entre Estado e cidadania, uma vez que por cidadãos eram designados os condutores políticos e estes eram os indivíduos do sexo masculino que pertenciam à classe economicamente dominante. Os demais eram habitantes da polis grega (mulheres, crianças, estrangeiros, mercadores e escravos) não eram cidadãos.

Quais eram as relações que se estabeleceram entre a formação do cidadão grego e a educação? Esta era diretamente responsável por formá-lo, e, mais do que isso, era direito exclusivo do cidadão.

O acesso à educação formal, feita de forma sistemática com o fim de prepará-lo para o exercício da cidadania entendido enquanto preparo para a vida política, para a condução da cidade, da polis, conduz ao estabelecimento dessa identidade entre Estado e cidadão.

Podemos perceber uma estreita relação entre Estado e cidadania também no período medieval, se tomarmos o nobre por cidadão. No contexto das relações de produções feudais, estavam reservados à nobreza os direitos que permitiam situar esta classe enquanto classe de cidadãos. A igreja responsabilizara-se por sua formação, instruindo-o muito mais na direção de uma erudição diletante do que mais propriamente no sentido da instrumentalização para a vida pública. Nota-se que as relações entre Estado, cidadania e educação estavam mediadas pela igreja.

É, no entanto, no contexto da Idade Média decadente, período que demarca o início do processo segundo qual irá consolidar-se um novo modo de produção, que inicia-se o delineamento de um novo sentido, substancialmente diferente dos demais, para o termo cidadão. É, portanto, no bojo da formação do Estado Moderno que se recolocam as relações entre cidadania e educação.

Para apreendermos os diferentes determinantes das relações entre a educação e a formação do cidadão na época moderna, interpostas pelas transformações ocorridas na base econômica, bem como pelas novas relações jurídico-políticas e culturais, é preciso caracterizar, ainda que brevemente, as transformações ocorridas.

Comecemos pelas transformações na base econômica. Em fins da Idade Média com a produção do excedente que conduz para novas relações de mercado, e com a formação das guildas e corporações de artesãos que conduzem para a generalização da produção artesanal, estão dadas as condições objetivas para a desestruturação do modo de produção feudal e conseqüentemente revolucionamento da base material de produção, identificável através dos seguintes elementos:

- produção para mercado: produção de mercadoria como elemento determinante das novas relações econômicas.

- produção artesanal que evolui para a fase da manufatura e depois da grande indústria.

- processo de acumulação/ampliação de capital que conduz para a concentração dos meios de produção nas mãos de uma classe.

- formação da força de trabalho assalariado.

Nesse contexto, revolucionam-se também as formas de pensar - o próprio pensamento humano materializa-se com o advento da ciência, do novo método que define a razão humana como sujeito do conhecimento. Só para exemplificar podemos nos lembrar de Descartes, do racionalismo cartesiano, cujo objetivo era encontrar um método único para conhecer todas as verdades úteis ao homem. Este método se explica a partir da identificação de incógnitas para descobrir certas relações, seguindo-se os passos criteriosamente estipulados: duvidar (não aceitar nada como verdade sem investigar); dividir em partes o que se quer conhecer; ordenar as partes; analisar cada parte; enumerar e revisar cada uma delas; deduzir e intuir conclusões. Ou, ainda, do modo como se apresenta a ciência para Bacon, para quem "saber é poder", o método que permite conhecer e controlar a natureza deve fundar-se na experimentação.

O revolucionamento na base material, com a evolução das relações capitalistas de produção, conduz não apenas à revolução científica, como também impulsiona para um processo cada vez mais acentuado de reordenamento político. É nesta direção que começa a tomar forma o Estado Moderno, o que, por sua vez, conduzirá para um novo conceito de cidadão.

Passa-se, assim, pelas diferentes formas que assumiu o pensamento acerca da formação do Estado Moderno - como por exemplo, em Hobbes, para quem o governo civil decorre da necessidade de por fim ao estado de natureza; ou, segundo Rosseau, para quem é necessário o contrato pelo qual os homens poderiam viver em sociedade pondo ordem ao processo de corrupção que a vida em grupo a ele impõe; ou ainda, pelas variações em torno das formas de governo que, por exemplo, para Maquiavel, reduziram-se as duas - Monarquia e República - ou para Montesquieu, segundo o qual seriam três as formas de governo - Monarquia Repúbliuca e Depotismo. Chega-se, enfim, à Revolução Francesa, momento em que se pode definir os termos sobre os quais se assenta o Estado Moderno, tendo o liberalismo político como ideário legitimador.

Enquanto arcabouço ideológico que visa a dar sustentação para as relações políticas travadas no contexto da consolidação do capitalismo concorrencial (liberalismo econômico), o liberalismo político busca na tríade "liberdade, igualdade, fraternidade" as fundamentações éticas e jurídicas para a consolidação de um novo Estado, bem como para a preservação do direito à propriedade privada.

É no contexto do estado liberal - burguês em formação que podemos situar o surgimento do conceito moderno de cidadania, cidadania esta que deverá se estender a todos os indivíduos, tendo o Estado como mediador.

De acordo com o ideário liberal, o direito à cidadania está circunscrito ao direito e ao dever de cada um à liberdade, à igualdade e à fraternidade, consubstanciados esses direitos e deveres em fundamentos e normas jurídicas. Trata-se, portanto, da liberdade, da igualdade e da fraternidade de "direito" e não "de fato". Em outras palavras, os homens "podem ser iguais", "podem ser livres", e "devem ser fraternos", respeitando-se o direito inalienável à propriedade privada.

Explica-se, deste modo, o processo de legitimação da posse privada dos meios de produção, e do processo de subjugação da formça de trabalho, elementos indissociáveis no modo capitalista de produção.

Como se situam as relações entre a educação e a formação do cidadão, nesse contexto? Para termos clareza quanto a esta indagação é preciso nos reportarmos às origens da escola pública, gratuita, leiga, universal e obrigatória da época moderna.

O processo de consolidação do capitalismo reivindicou essa escola. E para quê? Podemos apontar algumas das funções que a escola pública passou a desempenhar: propriciar um contexto social favorável à acumulação capitalista; integrar todos os indivíduos nas novas relações sociais e de produção; oportunizar aos pais a entrada no mercado de trabalho, e assim por diante.

Também o "saber novo" com relação ao mundo do trabalho conduziu para a necessidade de escolarização generalizada, ainda que nem sempre isto tenha significado preparar tecnicamente para o trabalho, mas disciplinar, tornar obediente a normas e hierarquias, adquirir hábitos e condutas próprias do mundo produtivo.

Deste modo, a proliferação da escola pública, gratuita, obrigatória, universal e leiga foi responsabilidade assumida pela burguesia, uma vez que esta escola constituía-se em um dos instrumentos de que necessitava para construir sua hegemonia.

Permeando todas as demais funções que a escola passou a desempenhar está a formação do cidadão, cidadão na acepção liberal - burguesa, determinada pelas necessidades pelo processo de consolidação da hegemonia da classe proprietária dos meios de produção.

Assim, o Estado Liberal impõe uma conotação jurídico-legal à condição de cidadania. Cidadão é o cumpridor de seus deveres, resguardando-se os seus direitos diante do Estado e da sociedade. A escola pública atuará, portanto, na construção desta cidadania, que denominamos "cidadania liberal - burguesa" em contraponto a uma concepção de cidadania de que passo agora a tratar. A esta denominaremos "cidadania de fato".

Para efetuarmos o contraponto entre a cidadania liberal - burguesa e a cidadania de fato, parece-me suficiente afirmar que esta última se constitui a partir da reflexão crítica sobre as limitações que a cidadania liberal -burguesa impõe ao indivíduo... Não é, portanto, apenas negando o conceito de cidadania na concepção liberal - burguesa que pode construir a cidadania de fato, mas, negando-se e ao mesmo tempo incorporando a ela os elementos que oportunizariam superar suas limitações, parcialidades e caráter discriminador - o que, em última análise, confere à cidadania liberal - burguesa sua caráter de classe pelo atrelamento à defesa dos interesses da classe hegemônica e de coadjuvante na manutenção das desigualdades sociais.

Quais os elementos seriam necessários? Em primeiro lugar podemos apontar para a necessidade de um reordenamento jurídico-legal e ético dos elementos que dão sustentação à concepção liberal burguesa de cidadania.

Por ora, gostaria de apontar uma outra direção, a de que a concepção de cidadania de fato pode alicerçar-se no conceito de "dirigente", conforme o entendimento de Gramsci.

O "dirigente", como indivíduo capaz de conduzir-se a si e à sociedade, de produzir-se a partir do domínio da técnica e da ciência-trabalho é aquele capaz de localizar-se histórica, social e politicamente; capaz, portanto, de direcionar os rumos, de ser sujeito da realidade, seja em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais.

O "dirigente" pode ser o cidadão "de fato". E para este fim, sem dúvida alguma, a educação escolar exerce papel fundamental. Ela pode ser a grande responsável pela formação deste cidadão - dirigente, mas para isso é necessário que tomemos uma concepção de escola que seja capaz de construir esse novo cidadão. - Essa concepção de escola vocês viram pela manhã com a Prof. Nosela. - Gostaria de enfatizar, no entanto, duas de suas principais características: esta escola deve nortear-se pelo princípio educativo do trabalho industrial moderno, de modo a constituir-se m Escola Unitária.

Para que esta construção - da cidadania de fato e também dessa nova escola - seja possível, temos como primeiro desafio compreender em profundidade o modo como está posta a relação entre educação e formação do cidadão no Brasil de hoje.

Temos acompanhado pelos jornais os projetos do governo FHC. Alguns mais divugados, outros menos, de acordo com a maior ou menor aceitação pública. Destes Projetos - a maioria deles implicam em revisão constitucional - gostia de destacar dois: O Substitutivo Darcy Ribeiro para a nova LDB e o Projeto das Organizações Sociais do MARE.

Não fosse suficiente o atropelamento do processo democrático de elaboração da nova LDB, cujo projeto encontrava-se no Senado Federal na forma do Substitutivo Cid Sabóia (aprovado na Câmara Federal dos deputados como PL 101/93), e que através de procedimentos não muito transparentes foi atropelado pelo Substitutivo de autoria do Senador Darcy Ribeiro. Este, quando procede à relatoria do projeto no atual mandato do Senado Federal impõe não apenas o espírito como também as diretrizes do ser anteprojeto inicial, elaborado anteriormente e arquivado, mas recuperado agora uma vez que casa-se com perfeição com as diretrizes neo-liberais do governo FHC.

O que podemos afirmar quanto ao Substitutivo Darcy Ribeiro no que se refere às relações entre educação e formação do cidadão é que ele reduz de forma drástica a importância e a responsabilidade da escola pública na formação do cidadão. Isto porque prescreve desmesuradamente a desobrigação crescente do Estado com relação à escola pública, gratuita, obrigatória, universal e leiga. Podemos perceber isto, quando, por exemplo, aponta para a eliminação do caráter universal da escolarização pública ou ainda quando omite o termo "dever do Estado", o que se configura desde o início do processo da Câmara dos Deputados e mantido no Substitutivo Cid Sabóia, inclusive para a educação infantil.

Gostaria de lembrar que o Substitutivo Darcy Ribeiro foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal e deve agora ser posto para apreciação na Comissão de Educação. Devemos estar atentos!

Quanto ao Projeto das Organizações Sociais do MARE gostaria de chamar a atenção para o fato de que aí indica-se claramente o processo de desobrigação do Estado com a educação e outras áreas, como Saúde, Previdência, etc..., bem como aponta-se para o processo de privatização, inclusive, das Universidades.

Esses Projetos, no entanto, só podem ser bem entendidos quando avaliados a partir do contexto mais amplo em que eles surgem. A análise desse contexto - das diretrizes econômicas do Governo FHC, por exemplo, mostram com clareza a direção da consubstanciação do Estado Mínimo, resultado de um rearranjo neoliberal para as funções do Estado de acordo com as exigências do capital nacional e internacional. A redução do Estado ultrapassa a diminuição de suas intervenções na área econômica e culmina na desobrigação do estado nas chamadas áreas sociais.

O que fica cada vez mais claro é que a tese do Estado Mínimo vai se tornando a tese do cidadão mínimo, ou da mínima cidadania.

A desobrigação do Estado com a educação choca-se violentamente com a construção daquele cidadão - dirigente, cidadão de fato de que falamos. A Escola, a cargo do Estado, é necessária para a formação daquele cidadão, até para garantir a unidade de Princípios mais uma vez, precisamos, nós educadores estarmos atentos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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