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Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo

Sanitary battles and scientific clashes: Emílio Ribas and yellow fever in São Paulo

Resumos

Este artigo analisa o combate à febre amarela, capitaneado por Emílio Ribas, dirigente do Serviço Sanitário de São Paulo no período de 1898 a 1917. Determinado a controlar a epidemia em todos os seus aspectos, Ribas aderiu convictamente, desde o início, à concepção microbiológica. A análise das experiências relacionadas à febre amarela, feitas no Hospital de Isolamento de São Paulo, em 1902-03, sob a direção de Emílio Ribas, revela a existência de um ambiente instável e tenso envolvendo os cientistas e profissionais vinculados ao Serviço Sanitário de São Paulo. O artigo destaca a importância das experiências para a afirmação das novas concepções e práticas médico-sanitárias. A análise dos trabalhos publicados sobre a febre amarela permite apreender aspectos da transformação dos significados do mal amarílico, bem como suas implicações para a história da saúde pública em São Paulo.

Emílio Ribas; febre amarela; história da saúde pública; experiências científicas; São Paulo


Emílio Ribas, an administrative physician and sanitarian from São Paulo, was an advocate of the microbiological conception during the long period when he directed the Serviço Sanitário de São Paulo (1898-1917). This article offers a brief analysis of his stance in the fight against yellow fever during the early 20th century, considered a highlight of his career. The scientists and professionals linked to this sanitary agency in São Paulo found themselves in a tense, unstable work environment, where experimental proof played an important role in corroborating new medical-sanitary conceptions and practices. The article takes a close look at the medical experiments on yellow fever directed by Emílio Ribas and conducted at São Paulo’s Hospital de Isolamento in 1902-03. It examines these same studies in an effort to better understand how the significance of yellor fever was transformed and to explore its implications regarding the history of public health in São Paulo.

Emílio Ribas; yellow fever; history of public health; scientific experiments; São Paulo


Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo

Sanitary battles and scientific clashes: Emílio Ribas and yellow fever in São Paulo

Comunicação ‘Gênero, ciência e tecnologia na história latino-americana’, revisada após apresentação no V Congresso Latino-Americano de História das Ciências e da Tecnologia, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em julho de 1998. Este artigo é uma versão de parte da dissertação de mestrado República dos invisíveis: Emílio Ribas, microbiologia e saúde pública em São Paulo (1898-1917), defendida em 1998 na Universidade de São Paulo (USP).

Marta de Almeida

Mestre em história social pela Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Professora do Departamento de História da

Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).

marta@unioeste.br

ALMEIDA, M. de: ‘ Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI(3): 577-607, nov. 1999-fev. 2000.

Este artigo analisa o combate à febre amarela, capitaneado por Emílio Ribas, dirigente do Serviço Sanitário de São Paulo no período de 1898 a 1917. Determinado a controlar a epidemia em todos os seus aspectos, Ribas aderiu convictamente, desde o início, à concepção microbiológica. A análise das experiências relacionadas à febre amarela, feitas no Hospital de Isolamento de São Paulo, em 1902-03, sob a direção de Emílio Ribas, revela a existência de um ambiente instável e tenso envolvendo os cientistas e profissionais vinculados ao Serviço Sanitário de São Paulo. O artigo destaca a importância das experiências para a afirmação das novas concepções e práticas médico-sanitárias. A análise dos trabalhos publicados sobre a febre amarela permite apreender aspectos da transformação dos significados do mal amarílico, bem como suas implicações para a história da saúde pública em São Paulo.

PALAVRAS-CHAVE: Emílio Ribas, febre amarela, história da saúde pública, experiências científicas, São Paulo.

ALMEIDA, M. de: ‘ Sanitary battles and scientific clashes: Emílio Ribas and yellow fever in São Paulo’. História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VI(3): 577-607, Nov. 1999-Feb. 2000.

Emílio Ribas, an administrative physician and sanitarian from São Paulo, was an advocate of the microbiological conception during the long period when he directed the Serviço Sanitário de São Paulo (1898-1917). This article offers a brief analysis of his stance in the fight against yellow fever during the early 20th century, considered a highlight of his career. The scientists and professionals linked to this sanitary agency in São Paulo found themselves in a tense, unstable work environment, where experimental proof played an important role in corroborating new medical-sanitary conceptions and practices. The article takes a close look at the medical experiments on yellow fever directed by Emílio Ribas and conducted at São Paulo’s Hospital de Isolamento in 1902-03. It examines these same studies in an effort to better understand how the significance of yellor fever was transformed and to explore its implications regarding the history of public health in São Paulo.

Keywords: Emílio Ribas, yellow fever, history of public health, scientific experiments, São Paulo.

A história da medicina do século XIX tem se reportado às profundas transformações ocorridas a partir da introdução, nesse campo de saber, da microbiologia, ciência que busca especificamente estudar microrganismos, por meio da inter-relação com outras áreas das ciências biológicas, tais como, imunologia, bioquímica, biofísica, parasitologia, micologia etc.

Embora a interpretação dessas inovações seja comumente associada à noção de progresso da medicina, trabalhos escritos nos últimos trinta anos indicam outra forma de analisar as ciências médicas, ao relacioná-las com as complexidades sociais, deslocando-as do lugar especial em que tradicionalmente eram colocadas.

A saúde pública favoreceu a consolidação da microbiologia nos meios institucionais da ciência médica, visando detectar a especificidade etiológica das doenças e eventual imunização ou vacinação. Ao estabelecer novas frentes de atuação sanitária a partir das inovações microbiológicas, as políticas de saúde pública se revestiram de um papel social fundamental e inovador.

Neste artigo não se tratou exclusivamente da construção dos estabelecimentos laboratoriais públicos, mas considerou-se também um complexo processo de inserção de atividades científicas. Tal processo envolveu, além das instituições em si mesmas, os próprios cientistas, a busca de diferentes apoios, sejam estes do Estado ou de particulares, e também os esforços de divulgação e legitimação profissional, verdadeiro jogo de interesses e de constante rearticulação, que fazem parte da construção do conhecimento científico. Esse momento foi fundamental para a afirmação profissional dos adeptos pasteurianos, uma vez que favoreceu espaços concretos para a atuação desses médicos, propiciando-lhes a reelaboração de sua prática na área da saúde pública.

No Brasil, alguns estudos mais antigos e pertinentes ao tema interpretaram, de forma quase mecanizada, a introdução da microbiologia na medicina como um momento de ruptura radical entre a velha e a nova medicina, em decorrência dos projetos modernizadores republicanos que se contrapunham à inércia dos tempos imperiais. Nessa perspectiva, a criação do Instituto de Manguinhos, atual Instituto Oswaldo Cruz (IOC), em 1900, foi considerado o marco fundador da ciência experimental no país (Stepan, 1976; Pires, 1989).

Essa periodização cristalizada baseia-se num critério evolucionista da história da medicina no Brasil, pois diferencia o período anterior a 1900, a fase pré-científica e metafísica, da fase posterior, fundamentada em fatos positivos e no método experimental, considerada, portanto, científica (Edler, 1996).

Nos últimos anos, a história e a sociologia das ciências, fundamentando-se em novos estudos, vem se afastando dessas posturas rígidas. Não obstante o fato de que "a tese da contemporaneidade das controvérsias científicas desenvolvidas no meio médico brasileiro, em relação ao europeu, não seja um ponto pacífico na historiografia relativa à medicina acadêmica" (Edler, 1996; 1992; Ferreira, 1996), pesquisas de fontes primárias revelaram uma enorme diversidade de práticas e concepções médicas existentes muito antes da criação de institutos de pesquisa, o que modifica completamente a imagem de uma medicina atrasada e anticientífica.

O período de implantação da microbiologia, apesar de ter sido profundamente marcado por polêmicas em conseqüência dos diagnósticos emitidos pelos institutos especializados, pode ser considerado o período de sua consolidação no meio médico-científico do Brasil. As novas concepções microbiológicas com relação às doenças infecciosas sofreram forte oposição de grande parte dos médicos, das autoridades e da população. Tais reações adversas às novas concepções, ocorridas no Brasil e nos países ditos periféricos, puderam ser verificadas também na Europa.

As ações voltadas para a implantação do paradigma bacteriológico fizeram parte de um longo processo de confrontações e negociações. Especialmente no Brasil, os médicos, que se orientavam pelo novo referencial das inovações laboratoriais de diagnóstico e que estavam atuando em algumas frentes da saúde pública necessitaram compartilhar suas experiências, anseios, dúvidas e convicções entre si. A atuação desses grupos, numa perspectiva de normatização das práticas microbiológicas, consolidou-se pouco a pouco, num tenso processo de disputas mediado por visões de doença, de corpo e de mundo altamente diversificadas. Algumas vezes mais intensamente e em outras mais timidamente, a cada diagnóstico pautado na microbiologia ocorriam reações dos médicos adeptos a distintas teorias, por serem contrários àquele universo de micróbios e por atuarem em diferentes setores sociais.

Ao mesmo tempo, no entanto, muitos médicos, ao lidarem com diagnósticos, etiologias e profilaxias das enfermidades, levantavam certas bandeiras que eram defendidas em debates e publicações, denunciando a existência de divergências entre os próprios bacteriologistas. Mas, à medida que conquistavam reconhecimento social, foram se afastando da esfera pública de disputas pelo reconhecimento científico e estabelecendo os laboratórios (Latour, 1983; Latour e Woolgar, 1997), que se iam constituindo como espaços acessíveis somente aos especialistas. Dessa forma, forjava-se um ambiente neutro e infenso às polêmicas não respaldadas pela linguagem científica dos laboratórios, pelas descobertas e pelas verdades ainda desconhecidas do mundo leigo, consideradas de ‘segundo escalão’.

Assim, é possível perceber que a microbiologia no Brasil, tanto quanto ocorrera em outros países, não se desenvolveu isoladamente e nem possuía total segurança em seus métodos e resultados. Embora o final do século XIX já estivesse marcado pela forte presença dos princípios microbiológicos na medicina, sua aceitação ou não passava pelo crivo das disputas médicas e políticas e pela difícil assimilação da sofisticação normativa da microbiologia em busca de sua própria legitimação:

Além da prevalência conjuntural dos bacilos, a microbiologia apresentava característica estrutural importante nos anos 1890: o amadurecimento teórico e técnico que se traduzia na multiplicação de manuais e que a sedimentavam como "ciência normal", na acepção de Thomas Kuhn. Seus praticantes, mais numerosos tanto nos países centrais como nos periféricos, tinham de assimilar e cumprir repertório maior de cânones e regras, o que não excluía, é claro, o magma das inovações (e incertezas) mantido em ebulição pelos cientistas que operavam nas fronteiras da disciplina (Benchimol, 1996).

O embate no campo das disputas pela legitimidade médica implicando uma rede de negociações entre os vários agentes envolvidos no comando do Estado e da saúde pública merece ser, de toda sorte, objeto de reflexão, mesmo que, já no final do século passado no Brasil, a microbiologia e todo o aparato que a acompanhava — laboratórios, microscópios, inovações no vocabulário e na práxis médica — tenham, com o próprio projeto republicano para o país, se firmado e se incorporado à idéia de modernização dos métodos e diagnósticos médicos.

Essa breve incursão pela história da introdução da microbiologia nos meios médicos do final do século XIX teve o objetivo de ensejar uma análise de alguns dos aspectos da atuação de Emílio Ribas como médico adepto da concepção microbiológica e como médico-administrador sanitário de São Paulo, durante um dos momentos considerados de maior impacto em sua trajetória médica, qual seja, o da epidemia da febre amarela.

Emílio Ribas: convicções e práticas científicas

Emílio Ribas (1862-1925), cujo referencial estrangeiro eram os centros europeus e os americanos do Sul e do Norte, foi um médico que se preocupou muito em estar concatenado com o que havia de mais inovador na medicina sanitária e na microbiologia e em emitir, sempre que oportuno, sua opinião a respeito das polêmicas médicas que se sobressaíram durante sua longa direção administrativa do Serviço Sanitário de São Paulo.1 1 O Serviço Sanitário do Estado de São Paulo foi legalmente criado em 28 de outubro de 1891, em substituição à Inspetoria de Higiene da Província. Era um órgão subordinado à Secretaria do Interior e devia atuar em três campos, segundo a legislação: orientação do governo acerca dos assuntos de higiene e salubridade pública sobre os quais fosse consultado, aplicação de planos de melhoramento do estado sanitário e execução do regulamento sanitário. A diretoria desse serviço coordenava várias seções: o Laboratório Farmacêutico, o Laboratório de Análises Químicas, o Laboratório Bacteriológico (1892), mais tarde renomeado Instituto Bacteriológico (1893), o Instituto Vacinogênico, o Desinfetório Central, a Seção Demógrafo-Sanitária, o Hospital de Isolamento e o Instituto Butantã, fundado em 1901, mas que funcionou como seção do Instituto Bacteriológico em 1900. Sobre a organização do Serviço Sanitário e as diversas reformas administrativas sofridas, ver Mascarenhas (1949); Lemos (1954); Antunes (1992); Merhy (1985); e Ribeiro (1993).

Ribas, que terminou o curso de medicina em 1887, defendendo tese intitulada Morte aparente dos recém-nascidos em fevereiro de 1888, viveu arduamente os anos finais do Império não só pelo nítido declínio da produção cafeeira em sua região de origem, o vale do Paraíba, onde se localiza a sua cidade natal, Pindamonhangaba, mas também por ter ido, em 1882, à Corte para ingressar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.

Em nome de suas convicções políticas e, em parte, influenciado pela efervescência política do momento e pelo crescimento das facções republicanas dos últimos anos no Rio de Janeiro, quando voltou para sua cidade no interior de São Paulo, participou da fundação do Clube Republicano e atuou como médico clínico. Posteriormente, mudou-se para uma cidade próxima a Ribeirão Preto, Santa Rita do Passa Quatro, onde obteve a concessão dos serviços médicos da futura estrada de ferro São Paulo — Rio Grande e permaneceu por alguns meses, indo, depois disso, residir e clinicar em Tatuí, em 1889.2 2 Segundo a legislação sanitária da época, os inspetores sanitários eram nomeados pelo governo e distribuídos pelos distritos de acordo com as necessidades e por determinação do diretor do Serviço Sanitário do qual recebiam instruções. Eram responsáveis pelo cumprimento das leis sanitárias e regulamentos, através de intimações, aplicações de multas e outras providências que deveriam ser comunicadas ao diretor do Serviço Sanitário. Em outras palavras, competia-lhes o policiamento e fiscalização sanitários (Reis, 1907, pp. 65-7, 138).

Em 1895, Emílio Ribas foi nomeado inspetor sanitário em comissão e, em 1896, foi convidado pelo dr. Antônio Bueno, secretário do Interior, a assumir a função de inspetor sanitário efetivo do estado no interior, atuando em Rio Claro, Araraquara, Piraçununga, São Caetano, Jaú e Campinas.

Em sua estada na cidade de Campinas, de 4 de agosto de 1896 até o final de 1897, como chefe da comissão sanitária permanente, ficou encarregado do controle de seguidos surtos epidêmicos de febre amarela que se alastravam na região desde 1889, o que marcou sua trajetória como médico sanitarista e propiciou sua nomeação como diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, função na qual permaneceu oficialmente de 1898 até 1917.3 3 Não havia registro nos relatórios dos hospitais de Campinas de casos de febre amarela até 1889, o que não inviabiliza a hipótese de que houvessem casos antes desta data. A convicção de que a febre amarela "não subia os morros", em contraposição à alta incidência nas cidades litorâneas como Rio de Janeiro e Santos parece ter influenciado o comportamento das autoridades locais e da própria população campinense, à medida que se viam em situação semelhante aos centros urbanos de maiores altitudes como Petrópolis e São Paulo, lugares que não registravam o flagelo amarílico. Quando ocorriam supostos casos de febre amarela, o debate médico efervescia, inclusive na imprensa local. Segundo Santos Filho (1996), a primeira grande epidemia de febre amarela em Campinas ocorreu em 1889, adentrando toda a década seguinte em outros quatro grandes surtos: 1890, 1892, 1896 e 1897. Outras referências sobre a cidade de Campinas, epidemias e saneamento são: Britto (1961-69); e Silva (1996).

Em virtude dos novos desafios impostos pelo cargo de diretor do Serviço Sanitário, do intercâmbio científico com novos colegas de profissão e do afinamento de algumas relações entre seus pares, as diretrizes científicas de Ribas também se modificaram. São exatamente essas transformações que nos interessam neste trabalho, com vistas ao entendimento não evolutivo da produção científica do autor, mas à percepção do engendramento na historicidade do momento vivido por aqueles médicos que lutaram pela legitimação de sua atuação, estreitando relações pessoais e de trabalho entre si e mantendo vivo o contato com os debates internacionais em torno da saúde pública. Só é possível conceber a produção científica de Emílio Ribas se a relacionarmos intimamente com sua função de administrador público, na direção do Serviço Sanitário.

Em meio às turbulências epidêmicas, ao crescente contingente populacional e às transformações urbanas que abruptamente modificavam São Paulo, instituições científicas eram criadas e incorporadas ao Serviço Sanitário, fazendo com que os médicos e pesquisadores envolvidos nesse processo logo se apercebessem da importância em demarcar uma imagem orgânica daqueles estranhos prédios que, aos poucos, iam tomando corpo na cidade de São Paulo. Exemplo disso pode ser percebido na publicação, pela Revista Médica de São Paulo em 1900,4 4 A Revista Médica de São Paulo, fundada em 1898, era um importante periódico médico paulista. Segundo o editorial do primeiro número, a revista foi definida como um jornal prático de medicina, cirurgia e higiene e acompanhava de perto políticas públicas de saúde no estado, inovações e pesquisas científicas produzidas no Brasil e no exterior. Muitos de seus colaboradores eram membros efetivos do Serviço Sanitário. Seus diretores fundadores foram Vitor Godinho e Artur Mendonça e sua periodicidade era quinzenal, mantendo regularidade até 1914, último ano de publicação. de um artigo assinado por Vitor Godinho ‘As nossas gravuras: Serviço Sanitário de São Paulo’, no qual o Hospital de Isolamento foi indicado como baluarte da administração pública. Com seus diversos pavilhões, foi uma das primeiras instituições a ser destacada como sinal dos novos tempos em termos de saúde pública, por ter sido remodelado segundo os preceitos higiênicos. Mais tarde, quando houve a inauguração do novo prédio do Instituto Bacteriológico, e depois do Butantã, não faltaram cerimoniais e notificações a respeito. A tentativa de manter uma imagem de controle e certeza rumo ao caminho civilizatório da higiene marcou a trajetória administrativa de Ribas, que contava com uma efetiva equipe de articuladores para tal missão (Revista Médica de São Paulo, ano III, no 8, 15.8.1900, pp. 174-83). Aliada a essa determinação, Ribas (31.8.1905, p. 358) nutria a convicção de que a microbiologia era o braço direito da higiene pública, o que tanto influenciou suas produções científicas como também direcionou sua política administrativa: "Entre as múltiplas ciências subsidiárias da higiene nenhuma ocupa, sem dúvida, papel mais importante do que a microbiologia. O desenvolvimento constante desta ciência, graças ao método experimental e aos progressos da técnica, tem fornecido utilíssimos elementos de combate à higiene pública."

Febre amarela: experiências e divulgação científica

De início, enquanto Ribas chefiou a Comissão Sanitária em Campinas, as medidas sanitárias voltadas para o combate da febre amarela, por ele adotadas, pautaram-se fortemente por rigorosas desinfecções, limpezas públicas, fiscalizações e isolamentos de doentes. Depois de ter sido nomeado diretor do Serviço Sanitário, Ribas, orientado pelas leituras dos trabalhos do médico cubano Finlay e pelas correspondências com os médicos norte-americanos, inseriu-se no que havia de mais atual em termos de explicações para a doença, tendendo a se convencer de que os inconvenientes mosquitos eram os transmissores da febre amarela.5 5 A respeito de como a história da medicina e da saúde pública, e num sentido geral, das ciências, tem apresentado esse quadro de teorias médicas sobre o mal amarílico, ver Benchimol (1996, especialmente o capítulo 10). Destaque para a inovação interpretativa do autor em relacionar os trabalhos de Finlay com outros que também levantaram hipóteses de que os mosquitos ou outros insetos poderiam relacionar-se com o processo de propagação de doenças. Dessa maneira, Benchimol chama atenção para a inserção do trabalho de Finlay como produção do seu tempo e não apenas inspiração única do pesquisador cubano.

Além de aqueles anos terem sido muito mais marcados pelo interesse em encontrar o agente etiológico específico — o invísivel causador do mal —, tal como vinha ocorrendo com outras enfermidades, e de serem muito poucos os médicos e pesquisadores que concordavam com essa original explicação para a febre amarela, o reconhecimento internacional aguçava os homens de laboratório a caçar o micróbio. O caminho mais nobre para desvendar o mistério da febre amarela parecia enveredar muito mais pelas lentes microscópicas do que pelas asas de um insignificante inseto. Daí talvez se entenda melhor o longo período (de quase vinte anos) entre o anúncio da teoria do médico cubano Finlay e a publicação dos trabalhos da comissão norte-americana em Havana. Em meio a tantas explicações e controvérsias sobre a febre amarela desde o século passado, por que Ribas teria ‘comprado’ essa briga com tanta ênfase?

Para tentar responder a essa questão, faz-se necessário recuperar as mudanças ocorridas e vividas por muitos pesquisadores como um processo gradativo de quebra da resistência e de aumento da receptividade à hipótese de transmissão da doença por um inseto.

No Brasil, tanto nos espaços médicos, como na imprensa de maior veiculação, as notícias a respeito dos trabalhos desenvolvidos no exterior sobre a transmissão da febre amarela corriam soltas. Freqüentes também foram as especulações feitas na América do Sul e no próprio país a respeito do papel dos insetos como agentes transmissores de doenças, em consonância com a mudança, ocorrida no final da década de 1880 e início da de 1890 do enfoque dado às doenças da chamada medicina tropical, fortemente marcada pelas investidas científicas de cunho imperialista das regiões centrais em relação aos trópicos.6 6 Nessa perspectiva enquadram-se os trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores ingleses Patrick Manson e Ronald Ross no Oriente, pela comissão norte-americana em Cuba, pela equipe de médicos ingleses da Liverpool School of Tropical Medicine que estiveram no Brasil e pela missão francesa que esteve no Rio de Janeiro objetivando investigar a febre amarela, entre outros.

Em 1900, tentou-se, inclusive, criar a cadeira de doenças tropicais nas faculdades de medicina dos estados da Bahia e do Rio de Janeiro. No IV Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, realizado no Rio de Janeiro naquele mesmo ano, Vitor Godinho e Carlos Seidl — representantes, respectivamente, dos periódicos médicos Revista Médica de São Paulo e O Brasil-Médico — propuseram que se reivindicasse ao Legislativo a criação de duas cátedras novas para as faculdades: uma de patologia e clínicas tropicais e outra de bacteriologia e microscopia clínicas, mas a proposta foi derrotada por 21 votos contra três (Benchimol, 1996, p. 532).

Simultaneamente a esse movimento em torno das especificidades tropicais, no Instituto Bacteriológico de São Paulo, Adolfo Lutz desenvolveu trabalhos sobre mosquitos nativos do Brasil, inicialmente voltados para as pesquisas a respeito da febre amarela e posteriormente ampliados com vistas ao mapeamento das espécies brasileiras desses insetos.7 7 Observando a listagem de todas as publicações científicas de Adolfo Lutz durante o longo período de 1878 a 1939, percebe-se que, a partir da incumbência do Instituto Bacteriológico de estudar os mosquitos relacionados à eclosão dos surtos diagnosticados como febre amarela no país, o estudo dessas espécies tornou-se uma constante em toda a sua produção científica (Neiva, 1941).

Os resultados dessas pesquisas serviram de respaldo científico para as publicações em que Ribas defendia a teoria dos mosquitos, embora admitisse em, algumas delas, que outros fatores pudessem contribuir para o declínio dos índices de casos da doença.

Ribas, apesar de continuar mantendo um certo direcionamento do Serviço Sanitário para que os trabalhos desenvolvidos respaldassem a teoria dos mosquitos e para continuar o enfrentamento de outras calamidades públicas de saúde, decepcionou-se com as constantes cobranças e oposições, que talvez tivessem sido agravadas por seu posicionamento inovador sobre a febre amarela. No início de 1900, pediu demissão do cargo de diretor do Serviço Sanitário. No dia seguinte ao do pedido de afastamento, no entanto, o presidente do estado de São Paulo, Fernando Prestes de Albuquerque, aflito, escreveu ao secretário do Interior, Pereira de Queiróz, solicitando-lhe que enviasse um ofício8 8 Ofício do gabinete do presidente do estado (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 10.1.1900). ao dirigente demissionário, para dizer-lhe que o governo depositava nele a mais absoluta confiança e que, por sua dedicação no cumprimento dos seus árduos deveres, seus serviços eram indispensáveis, não sendo possível, portanto, a aceitação da exoneração solicitada, sobretudo na situação delicada em que a saúde pública se encontrava no estado.

Esse tipo de duelo político-científico, que por várias vezes chamou atenção dos médicos, elucida bem o clima instável e tenso da atuação dos cientistas vinculados ao Serviço Sanitário de São Paulo. Daí a importância do "teatro de provas das experiências" que, entre outros eventos e atividades, marcou o período compreendido entre o final de 1901 e o ano de 1902 com intensos preparativos para as experiências sobre a febre amarela.

O fato é que Emílio Ribas, acreditando ou não no voto de confiança empenhado pelo presidente do estado de São Paulo, continuou na função de diretor do Serviço Sanitário de São Paulo e embrenhou-se pelas polêmicas geradas em torno da febre amarela, apoiando-se ainda mais nas asas dos mosquitos e produzindo mais material sobre o tema.

Outro fator que pode ter influenciado o envolvimento tão próximo de Ribas e Lutz no projeto das experimentações diz respeito ao dr. Artur Mendonça, bacteriologista reconhecido no meio médico e um dos oponentes mais enfáticos à teoria dos mosquitos, que não se intimidou com os resultados das experiências articuladas pelo Serviço Sanitário em São Paulo, mantendo sua convicção de que o bacilo icteróide era o responsável pela febre amarela.9 9 Artur Vieira de Mendonça trabalhava como pesquisador no Instituto Bacteriológico desde sua fundação em 1892, assumindo o cargo de subdiretor com a saída de Le Dantec da direção, sendo esta assumida por Lutz. Mendonça e Lutz trabalharam juntos em diversas pesquisas sobre doenças epidêmicas e sobre o mormo em São Paulo. Embora auxiliasse em pesquisas sobre bacilos presentes na água e no ar, do dr. Bonilha de Toledo, outro médico do instituto, a febre amarela foi o tema em que concentrou maior atenção, principalmente após ter participado, juntamente com Lutz em junho de 1897, da conferência de Sanarelli sobre o possível agente causador da doença em Montevidéu. Diante das divergências ocorridas por causa da adesão de Lutz à teoria dos mosquitos, Artur Mendonça pediu exoneração em fevereiro de 1900, atuando como clínico e pesquisador em seu laboratório particular de microbiologia. Foi sócio-fundador e redator da Revista Médica de São Paulo de 1898 até 1907, juntamente com Vitor Godinho. Foi também chefe de clínica médica do Hospital da Santa Casa da Misericórdia, presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo de 1903 a 1904 e presidente da Associação Médica Beneficente em 1903. Faleceu em 1915 (Antunes, 1992, p. 64; Lemos, 1954, pp. 12, 21, 31, 55; e Mendonça, 1903). Tal teoria se fundamentava nos trabalhos desenvolvidos pelo médico italiano Giuseppe Sanarelli que, em 1897, anunciara a descoberta do suposto bacilo causador da febre amarela num evento de repercussão mundial, a Conferência de Montevidéu.10 10 Nascido em Monte San Savino, na Toscana, cursou medicina na Universidade de Viena, doutorando-se na área de bacteriologia. Trabalhou nessa mesma universidade e, depois, em Munique, Pisa, Roma e Paris, nesta última cidade, realizou estudos sobre a febre tifóide e o cólera no Instituto Pasteur, que contribuíram para seu reconhecimento internacional. Foi contratado pelo governo uruguaio para fundar e dirigir o Instituto de Higiene Experimental em Montevidéu em 1896, em junho e julho do mesmo ano esteve no Brasil, objetivando recolher materiais do Hospital de São Sebastião, no Rio de Janeiro, para começar seus estudos sobre a febre amarela. Depois da Conferência de Montevidéu, onde anunciou a descoberta do bacilo icteróide, Sanarelli esteve novamente no Brasil, mais precisamente em São Paulo em 1898, à convite da Sociedade de Medicina e Cirurgia, para realizar testes com a aplicação do soro anunciado em São Carlos do Pinhal. Esses trabalhos foram acompanhados por uma comissão médica do Serviço Sanitário, da qual faziam parte Artur Mendonça e Adolfo Lutz. Embora houvesse confirmação do chamado bacilo icteróide no sangue dos doentes, a equipe foi taxativa em afirmar a invalidade da ação soroterápica testada (Benchimol 1996, pp. 482-99). Sanarelli afirmava que a febre amarela era uma doença do sangue e não do aparelho digestivo, pois, nas autópsias realizadas, encontrava o bacilo icteróide no sangue e nunca no estômago ou nos intestinos, asseverando ainda que a transmissão do bacilo ocorria de maneiras variadas. Essa teoria foi apoiada por vários médicos, entre eles, o próprio Adolfo Lutz, Vitor Godinho e Carlos Seidl, além de Artur Mendonça, conforme já mencionado (Telarolli Jr., 1996). Na verdade, aquele era um momento propício para a divulgação de novas descobertas, uma vez que se fortalecia o movimento internacional de cientistas em busca do bacilo causador da febre amarela e na da cura pela soroterapia (Benchimol, 1996, p. 454).

A fama de Mendonça no meio médico e na imprensa cresceu com as duras críticas que emitiu sobre a teoria dos mosquitos relacionada à febre amarela. Ao longo desses primeiros anos do século XX, Mendonça insistiu enfaticamente na teoria do bacilo icteróide de Sanarelli e publicou artigos sobre o mal amarílico em jornais e revistas médicas, criticando diretamente Adolfo Lutz, que havia aderido à teoria dos mosquitos. A pressão de suas críticas devia ser tão grande que o próprio Lutz, avesso ao envolvimento frontal em discussões, segundo algumas interpretações a seu respeito, escreveu várias cartas respondendo às colocações de Mendonça.11 11 Essas cartas foram publicadas na Revista Médica de São Paulo, em 1902. Segundo Antunes (1992, p. 64): "A tradição do Instituto Bacteriológico, no entanto, preservou a lembrança de um outro motivo para as desavenças entre Lutz e Vieira de Mendonça: este, sendo mais velho, não teria se conformado com a indicação de Vital Brazil para o novo laboratório, cargo que também ele teria pleiteado. Esse não é, contudo, um fato documentado." O novo laboratório a que o autor se referiu era o Instituto Butantã.

A publicação, em 14 de janeiro de 1901, de um franco manifesto de 23 páginas, em apoio à teoria dos mosquitos, de autoria de Ribas intitulado ‘O mosquito como agente da propagação da febre amarela’, deu início a um período de intensos preparativos para experimentos sobre a transmissão da febre amarela. Tal manifesto, publicado logo após a divulgação de uma nota preliminar sobre a etiologia da febre amarela a partir dos trabalhos realizados em Cuba em 1900, emitida pela comissão médica norte-americana, composta por Walter Read, James Carroll, Aristides Agramonte e Jesse W. Lazear, possibilitou que diversas experiências internacionais sobre a transmissão da febre amarela pelos mosquitos fossem repetidas no Brasil. Emílio Ribas mobilizou as equipes do Instituto Bacteriológico e do Hospital de Isolamento para realizar seu projeto, refazendo as experiências em São Paulo, cidade livre da epidemia, com o objetivo de combater os argumentos opositores à nova concepção, conseguindo que o então presidente do estado, Rodrigues Alves, autorizasse, na realização das experiências e das pesquisas, a utilização de pessoas que se submeteriam aos perigosos experimentos com os mosquitos infectados, os chamados ‘voluntários’.12 12 Segundo Telarolli Jr. (1996, p. 118): "Esses novos experimentos, por terem sido cercados de maiores cuidados metodológicos e realizados por brasileiros, contribuíram para reduzir as resistências à teoria no país. Outra contribuição dos experimentos ... foi que, enquanto a comissão do exército norte-americano em Cuba apenas comprovou a transmissão da doença através do mosquito, Lutz demonstrou a não contagiosidade da febre amarela através do vômito, fezes e roupas usadas pelos doentes."

Essas experiências, que foram realizadas no Hospital de Isolamento de São Paulo, ocorreram em duas etapas. A primeira série de experiências durou de 15 de dezembro de 1902 a 20 de janeiro de 1903, período durante o qual os seis voluntários — três brasileiros, um italiano e os próprios Ribas e Lutz — deixaram-se picar sucessivas vezes por mosquitos infectados;13 13 Além de Ribas e Lutz, os outros ‘voluntários’ eram Domingos Pereira Vaz, André Ramos, Oscar Moreira Marques e o italiano Januário Fiori (Almeida, 1998, p. 184). a segunda etapa englobou o período de 20 de abril a 11 de maio de 1903, num total de 11 sessões em que três voluntários, todos imigrantes italianos recém-chegados ao Brasil, dormiram com lençóis e roupas manchadas e infectadas pelo sangue e vômito de doentes, num quarto vedado para que não entrasse nenhum mosquito e com uma estufa para que o recinto permanecesse constantemente calorento, evitando assim a contra-argumentação infeccionista de que a queda brusca de temperatura fosse capaz de destruir os miasmas da febre amarela.14 14 Nesta segunda etapa, nem Emílio Ribas nem Adolfo Lutz participaram como voluntários. Somente os italianos Malagutti Giuseppe, Angelo Paroletti e Siniscalchi Giovanni (Almeida, 1998, p. 190). Para os infeccionistas, a febre amarela, assim como tantas outras doenças, era transmitida por emanações nocivas que corrompiam o ar, atacando o corpo humano, ou seja, ações que substâncias animais e vegetais em putrefação exerciam no ar ambiente. Muitas vezes, os paradigmas médicos da infecção e do contágio humano se combinavam, recriando novas teorias médicas a respeito da etiologia e forma de transmissão das doenças (Chalhoub, 1996, pp. 64-5).

A correspondência trocada entre Ribas e Lutz durante esse período relata que Lutz percorreu várias vezes o trecho São Paulo — Rio de Janeiro nos trilhos do trem e, que, quase sempre, voltou na companhia dos mosquitos rajados, talvez imperceptíveis para os demais passageiros, mas inconfundíveis para os adeptos da teoria de Finlay. Por ser difícil encontrar em São Paulo os mosquitos utilizados nas experiências, eles eram trazidos do Rio de Janeiro não só por Adolfo Lutz e Ivo Bandi, mas também pelo dr. Carlos Meyer, médico-auxiliar do Instituto Bacteriológico, que se havia instalado no Hospital de Isolamento de São Simão, interior do estado, de onde também remetia para a cidade de São Paulo diversos mosquitos previamente infectados.

O trabalho de coleta desses pequenos insetos voadores parecia ser fácil, mas não era. Os meses em que Lutz se encontrava no Rio de Janeiro não pareciam ser favoráveis ao aparecimento deles, pois, além de o clima chuvoso e fresco não ajudar, muitos insetos eram machos e não davam os resultados esperados. As poucas cartas de Adolfo Lutz, que foram localizadas, relativas ao começo do ano de 1902 até meados de setembro, relatam que o pesquisador viajava constantemente em busca dos tais mosquitos. Em uma dessas cartas, um tanto quanto desgostoso, Lutz dizia para Ribas:15 15 Carta de Adolfo Lutz para Emílio Ribas (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 30.8.1902).

O tempo ultimamente tem sido sempre fresco, os mosquitos são raríssimos e não encontrei uma só stegomya. Principiou um tempo de chuva que provavelmente deve durar alguns dias. Aqui não se pode fazer nada de útil e seria mais fácil voltar para aqui quando aparecerem os primeiros casos da nova estação que são esperados mais ou menos um mês desta data.

Aqueles homens envolvidos no combate à epidemia de febre amarela, em algumas circunstâncias como essa dos preparativos para as experiências, desejavam que mais casos ocorressem para que se pudesse dar encaminhamento às pesquisas com os mosquitos, para que os insetos pudessem ser previamente infectados com o sangue dos doentes, para depois inocularem a doença naqueles que iriam se submeter aos experimentos em São Paulo. Por paradoxal que pareça, os interesses aqui eram outros e eram justificados por uma causa maior em prol da humanidade. "Não tenho mais esperança de encontrar um caso em condições favoráveis porque nestes últimos dias não houve mais entradas e nas enfermarias só existem dois casos de caquexia consecutiva à febre amarela."

Datava também desse período a atuação da missão francesa no Brasil, que esteve no Rio de Janeiro de novembro de 1901 até 1905, instituída pela proposta do ministro das Colônias e dirigida pelo Instituto Pasteur. Segundo relatório da missão, esse interesse pela febre amarela adveio com as epidemias que se deram no Senegal, prejudicando intensamente os interesses comerciais naquela colônia.16 16 Ver A febre amarela, relatório da missão francesa ( Revista Médica de São Paulo, ano VII, n o 1, 15.1.1904, p. 12).

Lutz estava a par dos trabalhos desenvolvidos por essa missão composta pelos drs. Émile Marchoux, A. Taurelli Salimbeni e Paul-Louis Simond no Hospital São Sebastião. Em uma de suas corres-pondências, deixou claro que estabeleceu contatos com eles e, num tom bem-humorado ao se referir à presença estrangeira no Brasil, escreveu para Ribas dizendo que havia estado com o dr. Simond, que lhe parecia o mais instruído, e que eles se ocupavam muito com a questão dos mosquitos,17 17 Carta de Adolfo Lutz para Emílio Ribas (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 28.2.1902). sugerindo que o contato estabelecido parecia ter sido bastante profícuo para ambos os lados.18 18 Os primeiros contatos de Lutz com a missão francesa ocorreram no ano anterior. Lutz solicitou a Oswaldo Cruz, através de correspondência, informações sobre os membros da comissão francesa. Numa carta-resposta, Oswaldo Cruz informou que havia conversado com os drs. Simond e Marchoux a respeito dos pontos que interessavam a Lutz. Informou que os franceses ainda não haviam iniciado seus trabalhos por falta de material e que desejariam estudar, além da febre amarela, os hematozoários dos animais, fazendo referência ao relatório de Lutz sobre esse assunto. Demonstraram interesse em ir a São Paulo e conhecer pessoalmente Lutz, pela importância dos seus trabalhos já publicados. Carta de Adolfo Lutz para Oswaldo Cruz de 19.11.1901 e de Oswaldo Cruz para Adolfo Lutz de 20.11.1901 (Arquivo Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz). Diante da escassez dos insetos desejados, Lutz consultou Ribas sobre a possibilidade de emprestar mosquitos dos franceses ou de ficar mais tempo por lá. Na mesma correspondência havia também um lembrete informando o seguinte:19 19 Carta de Adolfo Lutz para Emílio Ribas (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 30.8.1902).

Reabri a carta já escrita para dizer que recebi hoje uma carta sua a respeito de mais uma pergunta. Não falei ainda com o dr. Simond sobre o assunto porque esperava as suas discussões; se até segunda-feira não aparecerem casos, tratarei com ele nas condições men-cionadas, o que provavelmente não causará dificuldade. Ele já me ofereceu mosquitos. De outro lado não há quase mais esperança de encontrar um caso bom. Pode contar que tratarei de me desempenhar o melhor possível de sua comissão levando em conta todas as considerações mencionadas.

Por outro lado, as pesquisas feitas por Adolfo Lutz sobre os mosquitos considerados transmissores da febre amarela, denominados, na época, Stegomyia fasciata, foram referenciais importantes para os trabalhos da missão realizados no Brasil. Em seu relatório constam algumas citações das pesquisas de Lutz utilizadas principalmente nas partes dedicadas à caracterização das espécies existentes no Rio de Janeiro.20 20 Como exemplo, cito aqui duas notas explicativas no relatório da missão francesa que se reportaram aos trabalhos de Lutz: "Este mosquito é bem o Culex fatigans, segundo o sr. dr. Lutz" e "Sabe-se, pelas pesquisas de Lutz, que em grande número dos vegetais, cujas folhas conservam água de chuva, pode favorecer a multiplicação dos mosquitos" ( Revista Médica de São Paulo, ano VII, n os 1, 2, 15.1.1904, pp. 38, 39, respectivamente).

A comissão médica, constituída pelos médicos clínicos Silva Rodrigues, Adriano de Barros e Luis Pereira Barreto,21 21 Luis Pereira Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1840, formou-se em ciências naturais e medicina pela Universidade de Bruxelas, revalidando seu diploma no Brasil em 1865. Foi deputado estadual e federal por São Paulo, além de presidente do Senado daquele estado. Foi o primeiro presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, de 1895 a 1896. Além de obras médicas, escreveu sobre filosofia, política e religião. É considerado um grande divulgador das idéias de Auguste Comte no Brasil, embora tenha aberto dissidência com os expoentes do Apostolado Positivista do Rio de Janeiro. Morreu em São Paulo em 1923 (Lemos, op. cit., p. 63; Ribeiro, op. cit, p. 150; e Sacramento Blake, 1983). este último também importante pensador político da época, fora escolhida por Emílio Ribas para acompanhar integralmente todos os dias das experiências realizadas em São Paulo e elaborar um relatório final sobre as observações efetuadas. Simpatizante de alguns aspectos das inovações bacteriológicas, Pereira Barreto discordava da teoria de que os mosquitos fossem os transmissores da doença, pois, para ele, as águas seriam a verdadeira fonte de infecção da febre amarela, contagiando, inclusive, os insetos que vinham sendo responsabilizados pelos surtos epidêmicos.

Aliás, no final do século passado em São Paulo, ocorriam discussões acaloradas em torno da teoria hídrica entre os esculápios. Além de outros fatores considerados responsáveis pela transmissão, o ponto gerador de maiores discordâncias referia-se ao caráter exclusivista das explicações. Barreto defendia, quase que isoladamente, a teoria de que a febre amarela era transmitida exclusi-vamente pela água, opondo-se à maioria dos médicos que acreditavam numa multiplicidade de fatores responsáveis pela veiculação da doença, tais como, elementos ligados à circulação do ar, ao solo, à alimentação, aos fenômenos da natureza, ao clima, ao movimento de pessoas entre as diversas localidades, à presença de estrangeiros etc. (Telarolli Jr., 1996, pp. 101-3). Interessante notar que, embora sofresse forte oposição, a teoria hídrica de Barreto, articulada a outras explicações, parece ter influenciado de maneira incisiva algumas políticas de saneamento urbano em algumas cidades do interior e na própria capital de São Paulo (ibidem, pp. 104-5). Ao mesmo tempo, nesse momento de maior divulgação da teoria de Finlay, dos trabalhos vindos de Cuba e das experimentações do Hospital de Isolamento dirigidas pelo Serviço Sanitário, é possível perceber-se uma crescente receptividade por parte de Pereira Barreto à teoria dos mosquitos, que culminou com sua aceitação da incumbência de ser o presidente da comissão designada por Ribas, para o acompanhamento das experiências sobre a febre amarela em São Paulo.

O parecer final dessa comissão, sobre as experiências realizadas, concluiu que a febre amarela não era contagiosa e que o único meio transmissor era a picada do mosquito Stegomyia fasciata. Esses resultados foram imediatamente divulgados em congressos, jornais e revistas médicas especializadas.22 22 Esses relatórios foram publicados integralmente na Revista Médica de São Paulo (ano VI, n o 4, fev.-jul. 1903), em O Brasil-Médico (ano XVII, set. 1903), e em O Estado de S. Paulo (fev.-jul. 1903).

No mês seguinte ao da publicação do relatório referente à segunda fase de experiências, ocorreu, no Rio de Janeiro, o V Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia (16 de junho a 2 de julho de 1903), que se ocupou fundamentalmente das controvérsias sobre a teoria havanesa, as quais não só diziam respeito à própria validade da teoria, como também às variadas nuanças que distinguiam o posicionamento daqueles que advogavam a existência de outros insetos vetores, do posicionamento dos que aceitavam, sem ser de forma exclusivista, a teoria da transmissão da febre amarela pelos mosquitos (Benchimol, op. cit., pp. 537-86)..

O V Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia teve repercussão tão significativa que ensejou a participação de Carlos Meyer, na apresentação do relatório sobre as experiências feitas no Hospital de Isolamento de São Paulo, e de Arthur Ripper, na leitura do relatório sobre a Memória de Ribas.23 23 ‘Relatório da comissão médica convidada pela diretoria do Serviço Sanitário para acompanhar as experiências’ (1903) e ‘Profilaxia da febre amarela — Memória’ (1903) são trabalhos de Emílio Ribas, publicados em importantes periódicos médicos do país, que se baseavam sobretudo nas informações advindas dos relatórios de inspetores sanitários e de médicos clínicos que atuavam nas cidades do interior de São Paulo.

Paralelamente à realização das experiências em São Paulo e à presença da missão francesa no Rio de Janeiro, outros acontecimentos marcavam a história da saúde pública. Em 1903, Oswaldo Cruz, por indicação de Salles Guerra, que havia sido sondado pelo ministro da Justiça e Negócios Interiores, dr. Seabra, foi designado para assumir o cargo de diretor geral de Saúde Pública. A construção da imagem de "saneador do país" se iniciou já nos primeiros anos do século XX, momentos iniciais da carreira de Oswaldo Cruz como administrador da Saúde Pública, em conseqüência dos contatos com o grupo médico paulista, responsável pelos serviços públicos de saúde em São Paulo, sobretudo com relação ao extermínio dos mosquitos transmissores da febre amarela, um dos carros-chefe de sua campanha sanitária, ao lado da vacinação obrigatória e da matança dos ratos.24 24 Para uma abordagem crítica em torno da criação do mito de Oswaldo Cruz, ver Britto (1995). Sobre os contatos mais efetivos de Oswaldo Cruz com os trabalhos paulistas nesses primeiros anos do século XX, ver Almeida (1998).

A leitura daqueles relatórios durante o congresso provocou inflamados debates que tomaram conta das sessões, criando impasse. Boa parte dos presentes, inclusive Oswaldo Cruz que era favorável à votação como forma de decisão sobre os resultados das conclusões apresentadas pelos trabalhos de Ribas,25 25 Com relação às conclusões de Ribas apresentadas no congresso: "Se, portanto, quisermos, em síntese final, exprimir em conclusões o resultado deste trabalho, somos forçados a deduzir das premissas por eles enunciadas que: I- O Stegomyia fasciata é incontestavelmente o transmissor mais importante — único demonstrado — da febre amarela. II- As condições sanitárias atuais de três das nossas mais importantes cidades — Santos, Campinas e Sorocaba — ligam-se intimamente às medidas que produziram a quase extinção do Culex taeniatus, em grande cópia aí existente antes dessas providências. III- Não se observa o desenvolvimento de uma epidemia de febre amarela em ponto onde esse veiculador não exista. IV- As epidemias de febre amarela são produtos não só da sua presença como também de sua relativa quantidade. V- Tudo leva a acreditar não só que os resultados colhidos nas poucas cidades ultimamente infeccionadas prendem-se intimamente aos esforços atinentes à extinção desse Culex, como também que em muitas outras não houve epidemias de febre amarela pelas medidas postas em prática e que impediram a reprodução de uma epidemia generalizada, ou tão extensa em seus limites, como a que se deu, entre nós, em 1889. VI- O prognóstico epidêmico será dos mais desfavoráveis, se, em uma localidade cujos prédios não ofereçam condições para a extinção dos mosquitos, concorrerem as circunstâncias de ausência de providências nos primeiros casos, em presença de grande quantidade de Stegomyias e verificação de uma temperatura ambiente compatível com a atividade desses insetos. VII- A vigilância sanitária nos quarteirões de casas em que for impossível a calafetação para o expurgo contra o mosquito e tiver havido doentes de febre amarela, sem a proteção contra a picada desses dípteros, será pelo menos de dois meses, em vista da possibilidade da transmissão da moléstia por um Stegomyia que tenha picado um amarelento 57 dias antes. VIII- As condições meteorológicas favorecem o desenvolvimento de uma epidemia de febre amarela pela ação direta não só sobre a proliferação dos mosquitos, como também sobre a reprodução do organismo patogênico no corpo do inseto infeccionado. IX- A estação fria, diminuindo a atividade do Stegomyia, mas não interrompendo completamente as suas funções de transmissor, não contra-indica a continuação das medidas contra o mosquito, tendentes a prevenir uma nova epidemia na estação calmosa. X- Finalmente, acreditamos que as bases de uma boa profilaxia da febre amarela são: a) destruição dos mosquitos e das condições que permitem o seu desenvolvimento; b) notificação e proteção de todo o caso, embora suspeito, com a maior brevidade possível; c) medidas tendentes à proteção contra o Stegomyia em relação a todas as pessoas que têm receptividade mórbida." exigiu uma tomada de posição daquele congresso, mesmo que outros médicos fizessem constar em ata sua discordância com aquele procedimento (Benchimol, 1996, pp. 581-2): "...Os ‘muito bem’ que acolheram a exortação e, os ‘muito apoiados’ que ressoaram em seguida à advertência de Felício dos Santos, de que votação em congresso não era ‘decisão de teólogos’ parecem indicar uma mudança na correlação de forças devida, provavelmente, à afluência dos partidários da teoria havanesa."

Na plenária do dia 28 de junho, presidida por Oswaldo Cruz, foi aprovada por votação a sessão especial proposta por Ismael da Rocha, aberta em 1o de julho, sob a presidência de Souza Lima e Miguel Couto, havendo nova leitura das conclusões de Ribas, as quais tiveram votação favorável com algumas alterações: o congresso aprovou que a teoria da transmissão da febre amarela pelo Stegomyia fasciata era fundada em observações e experiências de acordo com os métodos científicos e que nenhum outro modo de transmissão estava demonstrado rigorosamente. Essa segunda parte gerou protestos dos ‘exclusivistas’, aqueles que acreditavam somente no mosquito como meio de transmissão, havendo votos em contrário. Teófilo Torres, segundo Benchimol (idem, p. 585), declarou não haver prestado atenção ao "rigorosamente" da segunda conclusão e quis votar contra o advérbio. Outros se manifestaram, mas o presidente da sessão, Souza Lima, não quis voltar atrás, consentindo apenas em receber uma lista contendo declaração dos exclusivistas: "votamos a segunda parte sem o advérbio rigorosamente".

Comparando-se as conclusões aprovadas no congresso e as conclusões propostas no trabalho de Ribas, é possível perceber-se que ocorreram mudanças significativas, pois, originalmente em sua Memória, Ribas afirmara que o Stegomyia fasciata era incontestavelmente o transmissor mais importante — único demonstrado — da febre amarela. Já a proposta aprovada dizia ser a teoria do mosquito demonstrada rigorosamente, o que permitia a inferência de que outros meios de transmissão poderiam vir a ser demonstrados com rigor.

A ausência de Ribas no congresso, apesar das possíveis justificativas particulares, pode indicar uma forma de defesa dos agudos ataques, oriundos de todos os lados — São Paulo, capital federal e outros — à posição mais radical adotada nas conclusões dos seus trabalhos, que eram, então, por comedimento, apresentados por outros médicos. Embora ausente, Ribas manteve-se atualizado com todas as ocorrências referentes à repercussão de seu trabalho no congresso. Os guardiães da teoria dos mosquitos, incumbidos direta ou indiretamente de dar força aos trabalhos paulistas, mantiveram correspondência com Ribas, provavelmente mais numerosa que aquela trocada ao longo da pesquisa, mas que demonstrava o provável grau de ansiedade em que devia estar o ‘protagonista invisível’ daquele congresso.

Após ter assistido à "impressionante" conferência de Vital Brazil sobre ofidismo, "um verdadeiro sucesso", e sob a ação favorável da leitura feita dos trabalhos de Ribas sobre febre amarela, Antônio Ramos, médico clínico de São Paulo, escreveu-lhe, entusiasmado com a repercussão dos trabalhos lidos, hipotecando-lhe seu apoio e relatando que, a propósito da votação, tinha havido:26

...grande discussão e divergência de opiniões, dizendo alguns que questões de ciência se verificam, se aceitam, como devem ser aceitas as de São Paulo pelo seu cunho prático, mas não se votam...

O que é certo é que funda impressão deixaram nos congressistas ainda incrédulos quanto à transmissibilidade da febre amarela pelo stegomyia fasciata, os trabalhos tão criteriosamente iniciados e dirigidos pela Diretoria do Serviço Sanitário de São Paulo, constantes do bem elaborado Relatório ou Memória que apresentastes. Esses trabalhos salvaram a situação do V Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, pois que, até então, eram de somenos importância e de pouca novidade científica as Memórias apresentadas e comunicações feitas.

Fazendo parte do corpo clínico de São Paulo e tendo também, em sessão anterior, feito ao congresso uma comunicação, apoiando a nova teoria, que, sob tão bons auspícios se inicia, não posso deixar de sentir convosco as suaves emoções que soem despertar a conquista de uma verdade científica pela qual nobre e humanitariamente nos batemos.

E, num telegrama enviado a Ribas por Palmeira Ripper, representante seu que fez a leitura da Memória, informava que o congresso votou moção de louvor a todos os trabalhos do Serviço Sanitário de São Paulo e aceitou "Stegomyia não contágio".27 27 Telegrama de Palmeira Rippert enviado a Emílio Ribas um dia após a votação (Acervo do Museu de Saúde, Pública, 20.7.1903).

Segundo Benchimol (1996), os trabalhos apresentados pelos paulistas, aclamados por uma delegação de médicos participantes do V Congresso que os acompanharam até a estação ferroviária na hora da partida, tiveram tanta repercussão que resultou na deliberação, na sessão de encerramento, que o próximo evento seria em São Paulo e sob a presidência de Emílio Ribas. Homenagens e saudações oficiais dos paulistas também fizeram parte desse episódio. O secretário do interior, Bento Bueno, congratulou Ribas em nome do governo do estado de São Paulo, cumprimentando-o não só pela participação dos autores dos estudos desenvolvidos, como também pela qualidade dos próprios trabalhos apresentados no V Congresso.

Paralelamente às homenagens aos paulistas, no Rio de Janeiro prosseguiam os trabalhos experimentais da missão francesa no Hospital São Sebastião. Uma carta de Oswaldo Cruz revelou sua interação com o desenvolvimento desses trabalhos, demonstrando haver uma forte relação de confiança entre os dois diretores de Saúde Pública, pois Oswaldo Cruz havia escrito a Ribas sobre alguns "detalhes desagradáveis", envolvendo os doentes utilizados nas experiências similares às ocorridas em São Paulo:28 28 Carta enviada por Oswaldo Cruz para Emílio Ribas (20.7.1903), Acervo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas.

Quanto às experiências aqui feitas pelos franceses posso informar-lhes, com reserva, do seguinte:

...Quanto à experimentação no homem verificaram:

— Que o stegomyia transmitia a moléstia típica. Tendo havido infelizmente três casos de morte por febre amarela experimental clássica, com anúria, vômito preto, icterícia, albuminuria etc. sendo os casos verificados pela autópsia, tendo sido encontradas todas as lesões características.

— Verificaram mais que o mosquito infeccionado não pica senão dificilmente durante o dia, preferindo fazê-lo à noite.

Um dos doentes que sucumbiu à febre amarela foi picado por dois únicos mosquitos dos quais um quase que não sugou. Peço-lhe a mais absoluta reserva sobre esses casos terminados pela morte e que foram feitos sob minha exclusiva responsabilidade. Compreende, meu caro amigo, como a imprensa nossa adversária exploraria o fato se dele tivesse conhecimento. Essas experiências foram categóricas, assim como as outras que o cortejo sintomático foi o mais categórico possível.

— Quanto às experiências com as roupas julgaram os sábios franceses serem elas desnecessárias não só à vista de que já havia feito, mas sobretudo porque com os conhecimentos que se tem sobre a etiologia da febre amarela não são elas cabíveis sendo a priori desnecessárias, porquanto é impossível a transmissão pelas roupas à vista de que se conhece sobre o modus vivendi do gérmem amarílico.

São estas as informações que reservadamente pode ministrar-lhes o colega e amigo muito grato Gonçalves Cruz.

E, justamente em 1903, Artur Mendonça, com base em material produzido desde os tempos em que atuava no Bacteriológico até o momento das experiências norte-americanas e daquelas que foram feitas em São Paulo no Hospital de Isolamento, publicou o livro Febre amarela, reunindo as cartas-respostas, artigos e relatórios de sua autoria e de outros médicos pesquisadores envolvidos nessas divergências. Os esforços dos franceses e de Oswaldo Cruz para provar a inquestionabilidade dos resultados obtidos pelos experimentos científicos, conforme a teoria havanesa, a realização das experiências no Hospital de Isolamento de São Paulo, a apresentação dos resultados no congresso médico e as homenagens feitas aos participantes paulistas, de 1897 até 1903 (Mendonça, 1903), não foram convincentes e, tanto que propiciaram a realização do livro Febre Amarela.

A crença de Artur Mendonça na teoria de Sanarelli adentrava os primeiros anos do século XX, o que está espelhado nos subtítulos das três partes em que se divide a obra: ‘A doutrina bacteriana de Sanarelli’, ‘Os trabalhos da comissão norte-americana’ e ‘As experiências do Hospital de Isolamento de São Paulo’. O debate, portanto, deveria continuar.

Novos significados para a atuação de Ribas sobre a febre amarela

Dois momentos da trajetória de Emílio Ribas possibilitam identificar diferentes interpretações a respeito das campanhas contra o mosquito da febre amarela e os trabalhos realizados por ele em torno dessa enfermidade. Um deles refere-se ao período de junho de 1908 e início de 1909, época em que Emílio Ribas esteve na Europa e Estados Unidos comissionado pelo governo para conhecer alguns sanatórios destinados a tuberculosos daquelas regiões.

Emílio Ribas, quando esteve em Londres, a convite de Patrick Manson,29 29 Patrick Manson, médico pesquisador inglês que desenvolveu estudos sobre a propagação da malária pelo mosquito Anopheles. Nesse período ocupava o cargo de presidente da Society of Tropical Medicine and Hygiene. por intermédio de seu secretário W. Carnegie Brown, participou de uma reunião com os membros da Society of Tropical Medicine and Hygiene, para fazer uma comunicação sobre o combate da febre amarela. Nessa oportunidade, Ribas escreveu um pequeno texto e apresentou-o no dia 19 de fevereiro de 1909, retomando todo o histórico das primeiras campanhas e reforçando a idéia de que, desde o começo, o combate ao mosquito fora uma premissa das atuações sanitárias no Brasil. Essa comunicação, publicada em português e inglês na Revista Médica de São Paulo e acompanhada da reprodução de alguns diagramas utilizados por Ribas (1909, pp. 198-205) em sua explanação, caracterizaram, sem dúvida, um momento um pouco mais distante das efervescentes polêmicas em torno dos diagnósticos de febre amarela e das teorias a respeito de sua transmissão.

A fala de Ribas, num espaço de reconhecida importância internacional, buscou não só a aproximação entre os trabalhos desenvolvidos no Brasil e aqueles apresentados em fóruns sacralizados da ciência, como também a divulgação de outras experiências e práticas sanitárias que não as paulistas, visando à valorização dos procedimentos sanitários adotados no país, o que revela de forma mais nítida seu espírito nacionalista. Em um dos relatos ele descreve o que ocorreu no Rio de Janeiro, sede da capital republicana. Apoiando-se nas práticas sanitárias paulistas, foi encampada, em 1903, uma enorme campanha de caça aos mosquitos liderada por Oswaldo Cruz, então já diretor da Repartição Federal de Saúde Pública. Essa campanha, ao lado de outras, como a da vacinação obrigatória contra varíola e o combate aos ratos transmissores da peste bubônica, marcou a história oficial da saúde pública do país.

Nesse relato, Emílio Ribas elencou de forma bastante enfática e na primeira pessoa suas decisões pessoais a respeito da questão da febre amarela, dando destaque, diante das constatações a respeito dos estudos feitos pela comissão norte-americana em Cuba e das reações ocorridas, aos procedimentos adotados, sem, contudo, relacionar tais decisões com sua função de diretor do Serviço Sanitário. À guisa de exemplo, seguem alguns trechos de sua narrativa:

Depois que os drs. Reed, Caroll, Agramonte e Lazear, e mais tarde Guiteras, inspirados pelas longas observações de Finlay, fizeram em Cuba as primeiras experiências sobre a transmissibilidade da febre amarela pelo Stegomyia fasciata, fiquei convencido da precisão de suas experiências e da verdade de suas deduções.

...julguei conveniente repetir as experiências de Havana na cidade de São Paulo, que nessa ocasião e desde alguns anos se achava isenta de qualquer epidemia de febre amarela. Resolvi ao mesmo tempo fazer ativa campanha contra o S. fasciata, como única medida profilática eficaz contra a expansão da moléstia.

...Tomando todo cuidado para afastar qualquer dúvida, obtive mosquitos de larvas apanhadas na cidade de Itu, onde não grassava a moléstia, e os enviei imediatamente a São Simão, a 365 quilômetros de São Paulo, onde, por eles, fizeram-se picar indivíduos atacados de febre amarela (idem, ibidem, pp. 199-200).

É nítida a diferença do tom discursivo adotado nesses trechos em relação ao dos primeiros trabalhos publicados a respeito dessas experiências e das suas ações sanitárias, uma vez que as dúvidas, as constantes críticas recebidas, as oposições médicas e a diversidade de explicações, além do clima de medo e terror que dominavam as cidades atingidas não mais se apresentavam naquele momento. Desde o início de seus empreendimentos contra a febre amarela, muito propenso à teoria dos mosquitos, Ribas não descartou as outras medidas profiláticas, e a polêmica continuou. Estrategicamente, admitia que, acreditando ou não na teoria dos mosquitos, medidas gerais de desinfecção e limpeza eram indicadas e deviam ser seguidas como prevenção, inclusive para outras doenças que não a febre amarela. Com o passar dos anos e a gradual consolidação da teoria dos mosquitos no meio científico, Ribas sentiu-se mais seguro e reinterpretou os momentos de angústia e as controvérsias mais agudas num caminho plenamente conhecido e dominado por suas certezas científicas. Houve destaque para as cidades de Sorocaba e Ribeirão Preto, que, segundo Ribas, viram desaparecer casos de febre amarela unicamente pelo combate ao mosquito, uma vez que nessas locali-dades não havia ocorrido melhoramentos sanitários significativos.

A única medida executada foi a destruição dos mosquitos e eu, muito de intuito, abstive-me inteiramente de praticar desinfecções de casas, roupas e outros objetos que tivessem estado em contato com doentes de febre amarela. O caso de Ribeirão Preto muito contribuiu no Brasil para dissipar as dúvidas remanescentes quanto ao modo de propagação da moléstia (idem, ibidem, p. 204).

Emílio Ribas aproveitou a ocasião para valorizar os trabalhos de Patrick Manson, afirmando que sua convicção a respeito da teoria da transmissão da febre amarela por mosquitos também estava fundada nas experiências realizadas em Londres sobre a propagação da malária pelos mosquitos Anopheles.

Como recurso científico, utilizou-se de quatro diagramas que também compuseram alguns de seus relatórios oficiais. O primeiro deles fazia comparações, mostrando as semelhanças entre os quadros clínicos do imigrante italiano Januário Fiori, um dos voluntários das experiências efetuadas pelo Serviço Sanitário a respeito da teoria da transmissão da febre amarela pelos mosquitos, e o de um adoentado da cidade de São Simão, cujo corpo serviu de alimento para os sedentos mosquitos, objetivando infectá-los com o suposto agente causador da febre amarela, para que depois fossem utilizados nas experiências. O segundo diagrama referia-se à queda de mortalidade diagnosticada por febre amarela em Santos, no período de 1891 a 1908. O terceiro também apontava para a queda de mortalidade em Campinas durante os anos de 1895 a 1908; e o último trazia os índices decrescentes de mortalidade enquadrados na classificação de febre amarela em todo o estado de São Paulo de 1892 a 1908 (idem, ibidem, pp. 199-203, 204-5).

Sobre a cidade do Rio de Janeiro, pouco foi dito. Ribas reconheceu os estudos feitos pela comissão francesa do Instituto Pasteur de Paris, dizendo que também a comissão confirmou experimentalmente a teoria dos mosquitos, e elogiou enfaticamente Oswaldo Cruz, acompanhando a tendência daquele momento em consagrá-lo como grande sanitarista do país. Segundo Ribas, os trabalhos sanitários desenvolvidos no Rio ensejavam aplausos, uma vez que

este esplêndido resultado é devido inteiramente à grande energia e saber desenvolvidos pelo dr. Oswaldo Cruz, a quem eu considero, em matéria de higiene e saúde públicas, o primus inter pares no Brasil, e talvez em toda a América do Sul. O dr. Cruz, vencendo todas as dificuldades, jugulou a febre amarela na grande cidade do Rio, empregando para esse fim a exterminação dos mosquitos (sic). Sob a exclusiva direção do meu colega, foi organizado no Rio de Janeiro um serviço que pode ser considerado modelo.

Ao finalizar sua comunicação com dados numéricos expostos pelos diagramas, Ribas quis garantir cientificamente àquela sociedade que a febre amarela não deveria mais ser temida nos dois principais portos do Brasil — Rio de Janeiro e Santos —, sugerindo, portanto, que ainda perduravam desconfianças do exterior, relacionadas aos perigos de epidemias, o que era determinante na continuidade ou não das relações com o Brasil. De certa forma, sua comunicação ganhou ares de defesa econômico-política do país no exterior, uma vez que tentou aliviar a imagem de insalubridade dos principais portos e cidades do Brasil.

Outras informações a respeito daquele encontro de Ribas com a sociedade médica de Londres foram lembradas pela Revista Médica de São Paulo. Segundo consta, após a comunicação de Ribas, médicos participantes utilizaram-se da palavra, entre eles, um médico que clinicou durante alguns anos em São Paulo, o dr. Strain, e o próprio Patrick Manson, que admitiu, a partir daquele momento, Emílio Ribas como sócio e solicitou a este que transmitisse aos colegas brasileiros o convite para se filiarem e visitarem a sociedade.

Um segundo momento que enfocou de maneira diferenciada a atuação de Emílio Ribas e a do Serviço Sanitário em relação à febre amarela, reporta-se à década de 1920, quando o status do ex-diretor do Serviço Sanitário como o saneador de São Paulo, respaldado principalmente pelas campanhas contra o mosquito da febre amarela, parecia estar ameaçado. Pelos indícios deixados na documentação pesquisada, provavelmente os pesquisadores norte-americanos ligados à Fundação Rockefeller pretendiam criar uma nova tradição para as campanhas sanitárias nos países latino-americanos, e o Brasil não fugiu dessa tentativa, sobretudo com relação à febre amarela (Cueto, 1996, 1994).

No obstante sus resultados variados, las campañas ejecutadas en América Latina por la Fundação Rockefeller, entre 1918 e 1940, fueron un importante factor para la consolidación de la influencia de los EE.UU. en las emergentes instituciones latinoamericanas de saud pública, y para dar forma al contenido del concepto de la erradicación. La organización de servicios independientes por enfermedad, la ampliación de los servicios de salud pública a las zonas rurales en donde hicieron su aparición las unidades de salud distritales, y la centralización de la autoridad norteamericana el Estado, fueron todas ellas expresiones de la nueva influencia norteamericana en la región (idem, 1996, p. 200).

É importante ressaltar que se tratava de um outro período, no qual a busca pela erradicação completa de enfermidades se converteu em uma empresa atrativa para vários órgãos de saúde pública norte-americanos. Esses órgãos também atuaram no ensino médico na Faculdade de Medicina, desde 1918, utilizando-se de recursos e de profissionais médicos para difundir seu modelo de medicina. A fundação financiava estágios e estudos de médicos brasileiros na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, entre outras (Ribeiro, 1993, p.196).

É claro que essa presença norte-americana nos serviços públicos de saúde gerou reações, principalmente dos antigos sanitaristas que atuavam em São Paulo. Em 1922, Ribas, já aposentado do cargo de diretor do Serviço Sanitário, escolheu a febre amarela como tema de uma conferência proferida aos alunos daquela escola de medicina. Acobertou uma espécie de disputa secreta que travava pela primazia das campanhas contra a febre amarela, através das justificativas articuladas em torno da escolha do tema. Estas deveriam ser nobres e missionárias, conforme as palavras de Ribas (1922, pp. 1-26).

...Pensei em vos falar sobre este caso (febre amarela) para mostrar-vos um perigo iminente que ainda nos ameaça em grandes territórios da nossa pátria, sobretudo se considerarmos a ação nefasta da politicagem na solução dos problemas sanitários e a desorientação quase generalizada dos dirigentes em matéria de saúde pública.

... Devo vos afirmar, antes de prosseguir na leitura deste trabalho, que as citações feitas sobre a minha ação no extermínio da febre amarela têm exclusivamente o interesse da verdade histórica.

Nunca me agradaram as exibições e para isso seria uma tola vanglória pensar neste momento em tais futilidades.

O relato mais convencional, feito pelos biógrafos de Ribas e por outros estudos que se dedicaram à febre amarela e às medidas de combate utilizadas em São Paulo naquele período, tem as principais interpretações convencionais das histórias esboçadas naquela conferência. De início, o quadro amedrontador da doença nas cidades do interior, principalmente em Campinas, seguido da atuação de Ribas já como inspetor e chefe da comissão sanitária, que, a partir das medidas de higienização e desinfecção, garantiu melhores resultados com relação à diminuição da incidência dos casos, e, posteriormente, sua simpatia pelas experiências norte-americanas em Cuba, afirmando ter agido segundo os preceitos indicados — o combate aos mosquitos — por estar intimamente convencido do alcance prático das novas medidas (idem, ibidem, pp. 8, 12, 22-24).

O episódio das experiências também foi valorizado como prova científica final para a confirmação de suas convicções. Embora tenha tido sempre a preocupação, com relação a sua participação e a de Lutz nessas experiências, de não pretender se autoproclamar um herói do saneamento de São Paulo, acabou traindo suas abnegadas intenções:

...Entendi que eu próprio, que promovia as experiências, me achava na obrigação moral de ser o primeiro a prestar-me a elas; devendo correr os mesmos riscos de vida que os meus companheiros da humanitária cruzada. Deixei-me pois picar em primeiro lugar na presença da distinta comissão médica que acompanhou as experiências, por diversos mosquitos que tinham sugado, havia 12 dias, o sangue de um doente de febre amarela em São Simão, antes do quarto dia da moléstia.

Não podia e não devia ter outro procedimento, porque as inoculações experimentais punham em iminente perigo a vida dos nossos semelhantes.

No caso da desgraça pessoal, eu teria, para atenuar a ousada iniciativa, a lealdade do meu ato.

Lutz seguiu pelos mesmos motivos o meu exemplo.

Ribas elencou pareceres favoráveis aos resultados daquelas experiências, nos congressos, na imprensa e em centros médico-científicos nacionais e internacionais. Seria impossível naquele momento não se ter reportado à memória de Oswaldo Cruz e de sua imagem já como o saneador do país. Para isso, reproduziu integralmente a carta recebida, em que o ilustre sanitarista, Oswaldo Cruz, justamente faz referências altamente laudatórias a Ribas. Segue o texto, saudando os benéficos resultados obtidos tanto em São Paulo quanto no Rio de Janeiro, embora apontasse para a dificuldade que tiveram em mudar, ou pelo menos atenuar, a imagem negativa do país no estrangeiro, sobretudo pelos constantes surtos epidêmicos ocorridos nos séculos anteriores.

Para a atualidade daquele momento Ribas alertava ser missão do governo nacional:

Depois dos triunfos obtidos no estado de São Paulo, na cidade do Rio de Janeiro e em Belém do Pará a febre amarela constitui ainda um sério problema em grandes zonas do território brasileiro.

...Deixar que o mal se alastre é o descrédito, o descanso imperdoável; e será o mais revoltante erro político, em dias da administração republicana.

Felizmente para o Brasil esse crime de lesa-pátria não há de consumar-se admitindo-se mesmo a desorientação dos poderes estaduais e dos municípios.

Acima dos injustificáveis interesses de campanário está a enorme responsabilidade do governo da União.

Para isto basta considerar a adiantada organização do Departamento Nacional de Saúde Pública, e a competência dos seus experimentados auxiliares.

E, com relação à administração de São Paulo, no que se referia à saúde pública, deixou um voto de confiança em tom sutilmente desafiador:

Tenho a firme convicção de que São Paulo se manterá, como até aqui, digno e forte, diante de tudo que possa embaraçar o progresso de nossa pátria.

Seria absurdo pensar que a alta administração paulista e o seu departamento de higiene permitissem novos surtos do flagelo.

É perfeitamente tranqüilizadora a nossa situação.

O Serviço Sanitário de São Paulo está sendo dirigido pelo prof. Geraldo de Paula Souza que reúne competência profissional e os mais preciosos dotes morais.

E ele há de honrar, no desempenho de espinhoso cargo, as virtudes cívicas dos seus nobres antepassados que souberam sacrificar-se pela causa pública.

O nosso departamento sanitário, verdadeiro posto de sacrifícios, não pode ser dirigido senão por um homem que tenha esse feitio moral, que pratique o bem pelo próprio bem.

Sem esses requisitos não teremos os resultados benéficos da boa aplicação da higiene, mas sim as exibições sem alcance prático para a salubridade do estado.

Todavia, parecia ser fundamental naquele período, mais do que nunca, criar uma imagem de renovação das políticas públicas de saneamento (Ribeiro, 1993; Benchimol e Teixeira, 1994; Telarolli Jr., 1996). A crescente intervenção norte-americana nas questões referentes à febre amarela confrontou-se com a reação de alguns médicos colegas de Ribas que defenderam o nobre sanitarista para que não o injustiçassem, principalmente no que se referia à ameaça ao suposto caráter pioneiro de sua atuação no combate ao mosquito da febre amarela. Bento Bueno, ex-secretário do Interior, assim se manifestou ao solicitar a Ribas que lesse seu pequeno discurso publicado no jornal O Estado de S. Paulo sobre a febre amarela em São Paulo: "Não sei se a reportagem dará tudo direito, mas o que eu disse, aproveitando a oportuníssima ocasião, foi o necessário para reivindicar para o ilustre amigo a benemerência que lhe é devida."30 30 Correspondência de Bento Bueno para Emílio Ribas (25.7.1923).

A outra manifestação em prol do reconhecimento por Ribas ter sido o primeiro sanitarista brasileiro a defender o extermínio dos mosquitos como única forma de extinguir o mal amarílico vinha do então diretor do Serviço Sanitário, Geraldo Paula Souza. Ele alertava para o fato de que o trabalho escrito pelo norte-americano Joseph H. White, diretor da campanha contra a febre amarela no Conselho Sanitário Internacional da Fundação Rockefeller e assistente do diretor geral do Serviço Federal de Saúde Pública dos Estados Unidos, havia sido publicado como original na Folha Médica do Rio de Janeiro, o que negava a "prioridade da de São Paulo, cuja sistematização da profilaxia aqui antes iniciada havia libertado o estado do flagelo".31 31 Correspondência de Paula Souza para Emílio Ribas (9.10.1924).

De fato, o norte-americano não fazia qualquer referência nem aos trabalhos desenvolvidos em São Paulo sobre a febre amarela nem aos realizados sobre a prática de caça aos mosquitos ocorrida durante a administração sanitária de Ribas, como se fosse inédita a atuação da Fundação Rockefeller:

...É decisivamente evidente, no ponto de vista antropológico (sic) que, se impedirmos em absoluto o mosquito de picar o doente de febre amarela, deixará de haver transmissão. É igualmente certo que se, eliminarmos todos os mosquitos, nós extinguiremos qualquer possibilidade de transmissão. ...

Toda a discussão precedente tem tido por fim pôr em relevo este ponto: que a exterminação (sic) da febre amarela em qualquer lugar se resolve de um modo único, isto é, pela destruição de todos os focos criadores de mosquitos transmissores da febre amarela, especialmente dos localizados nas zonas de infecção da moléstia. ...

Hoje, depois de uma campanha mais ou menos contínua, empreendida pelo Conselho Sanitário Internacional da Fundação Rockefeller, desde 1918, quando foi iniciada a campanha de febre amarela em Guayaquil, nós ainda estamos aferrados à idéia de ser o melhor e único método cientificamente correto, em quaisquer centros endêmicos de febre amarela, abandonar o aspecto humano da moléstia, para se preocupar unicamente com a extinção do mosquito...32 32 White (1.9.1924, pp. 193-7). É interessante notar que até mesmo o método de utilização de peixes para destruir as larvas dos mosquitos foi considerado pelo autor como prática implementada originalmente pela ação da Fundação Rockefeller em Guayaquil. No entanto, numa pequena nota fez a seguinte retificação: "Depois de escrito este artigo, tive ciência de que nas campanhas de febre amarela do Rio e outros estados do Brasil, o ilustre brasileiro dr. Oswaldo Cruz empregou largamente os peixes como elemento de destruição das larvas dos mosquitos. Faço assim com prazer esta correção."

Forjava-se assim um novo capítulo na história da saúde pública de São Paulo e do próprio país, que pretensamente omitia outros já consagrados, como, por exemplo, aqueles em que Emílio Ribas figurava como enfático protagonista.

Conclusão

Tanto o processo de realização das experiências sobre a febre amarela, feitas em São Paulo, em 1902 e 1903, como o impacto de suas conclusões nos meios médicos são assuntos pouco estudados ou conhecidos. Muitas vezes, as referências a respeito desses aspectos são encontradas em relatos superficiais, que consideram tais trabalhos apenas ‘repetição’ das experiências feitas em Cuba sobre a mesma doença, reputando-os de importância menor para o desenvolvimento das pesquisas médicas daquele período. Outras vezes engrossam as laudatórias biografias de Emílio Ribas que, de tempos em tempos, aparecem em jornais, publicações médicas e órgãos oficiais da saúde.

O interesse maior deste artigo é veicular a posição de que os esforços dispendidos pela equipe sanitária paulista não devem ser entendidos como um episódio isolado, mas sim como acontecimentos relacionados, por um lado, à complexidade das políticas de saúde pública que se delineavam na época estudada, e, por outro, aos impasses gerados diante das prerrogativas e decisões tomadas pelos ‘donos’ do poder sanitário naquele período.

A opção em focalizar as atenções para as polêmicas médicas sobre a febre amarela e de fazer de Emílio Ribas, diretor, por longo tempo, do Serviço Sanitário de São Paulo, o personagem central deste estudo merece, pelo menos, duas justificativas.

Uma diz respeito às polêmicas sobre a febre amarela que se constituíram num dos principais eixos motivadores de disputas e buscas científicas pela descoberta seja do agente causador, seja dos meios de propagação, do soro e da vacina. Em meio à diversidade de teorias e explicações para o flagelo amarílico, que remonta aos séculos anteriores, sobretudo ao XIX, as epidemias se agravaram em várias partes do mundo. Esse movimento científico não se restringiu aos países atormentados pela febre amarela nem aos médicos e pesquisadores dessas regiões. Em toda parte, vários centros de pesquisa, institutos e iniciativas isoladas de pesquisadores se voltavam para as incógnitas: Qual é a causa da febre amarela? Como se propaga? Quais os meios de combatê-la? Qual é a cura? Criava-se assim um clima propício às disputas científicas respaldadas na crescente sofisticação de normas, teorias e técnicas microbiológicas que, aos poucos, se consolidavam.

A outra justificativa, por vários motivos, é concernente a Emílio Ribas. Em primeiro lugar, pelo fato evidente de que sua administração foi marcada enfaticamente por sua atuação médico-científica e sanitária no combate à febre amarela. Em segundo, por sua atuação nos momentos de maior acirramento das questões, tanto no período em que esteve à frente das campanhas sanitárias pelo interior do estado como grande articulador das experiências ocorridas no Hospital de Isolamento, quanto em anos posteriores de sua gestão sanitária, que nitidamente reforçavam suas iniciativas e posicionamentos polêmicos diante da comunidade médica do país e da própria sociedade. Em terceiro, por sua firme convicção na microbiologia e por sua constante atualização com a literatura médica, o que indubitavelmente contribuiu para a compreensão do que tenha sido a complexidade das disputas ocorridas.

Ribas, embora advogasse sempre pelos princípios microbiológicos em termos de explicações e diagnósticos médicos relativos às doenças, não aderiu à corrida incontrolável dos pesquisadores em busca do agente causador da febre amarela. O sanitarista, porém, seguindo uma nova seara que se abria no campo da medicina — a parasitologia —, apostou na transmissão da febre amarela relacionada à picada do mosquito, explicação menos aceita pelos profissionais da saúde, inclusive pelos membros do próprio Serviço Sanitário.

A ênfase em percorrer, dentro das limitações impostas pela própria pesquisa e pelo acesso ao material, uma documentação pouco conhecida se deu, sobretudo, para ilustrar o quão importante era para esses árduos defensores das inovações bacteriológicas estarem se comunicando e fortalecendo suas próprias crenças num momento em que suas convicções nem sempre eram bem-vindas no cenário médico estabelecido. Ao mesmo tempo, os artigos veiculados em jornais de grande circulação, as réplicas e as obras médicas publicadas como reação às condutas tomadas pelo Serviço Sanitário, conforme o livro de Artur Mendonça, revelam a vivacidade e o empenho desses homens na empreitada defensiva de uma ou de outra teoria, de um ou de outro grupo médico, numa disputa que ultrapassava os limites dos foros laboratoriais.

Este artigo objetiva ainda o acompanhamento, embora não ostensivo, das transformações pelas quais aquelas experiências e seus respectivos relatos passaram ao longo dos anos. Se o começo do século apontava para o quase descrédito de seus resultados, em anos posteriores serão utilizadas como símbolo de vanguarda paulista nas campanhas sanitárias ocorridas depois. Todavia, em anos posteriores, mais sistematicamente a partir de 1923, iniciaram-se campanhas e a criação de serviços voltados especificamente para o combate à febre amarela pela Fundação Rockefeller, prevendo prazos curtos e poucos investimentos em infra-estruturas sanitárias. A expectativa de obtenção de resultados rápidos e a política de intervenção técnica marcaram decisivamente os anos posteriores e contribuíram também para a pouca valorização e mesmo desconhecimento de pesquisas e trabalhos sobre o tema desenvolvidos anteriormente, como foi o caso das experiências realizadas em São Paulo e das campanhas do início do século de combate aos mosquitos como meio de evitar a febre amarela, chegando às vezes ao extremo de os norte-americanos reivindicarem para si mesmos o ineditismo de tais medidas, conforme caso já mencionado do trabalho de Joseph H. White.

A erradicação de doenças como algo a ser atingido pelo aperfeiçoamento técnico, eixo principal da atuação e propaganda da fundação, configurou-se como um conceito introjetado em várias organizações latino-americanas de saúde pública, deixando para segundo plano questões de ordem social, política e econômica relativas à saúde.

Finalmente, é pertinente salientar a preocupação em não estancar episódios como aqueles protagonizados pela equipe sanitária de São Paulo, momentos congelados de um saudoso passado sanitarista em que alguns homens da ciência colocavam em risco as próprias vidas por uma causa nobre, mas como possibilidades contínuas de reflexão e interpretação das ciências como práticas humanas, cercadas de anseios, dúvidas, acordos, desacordos e convenções. Assim, pareceu-nos um exercício estimulante recuperar algumas passagens referentes à história da saúde pública e tentar captar o sentido delas em outros tempos históricos.

A percepção de uma história evolutiva e linear a respeito da produção científica dá lugar às novas perspectivas de entendimento do processo histórico em que idas e vindas de idéias e práticas não são validadas pelas noções de veracidade e evolução, mas concebidas como parte integrante do processo dinâmico de constituição das ciências.

Notas

26

Carta enviada por Antônio Ramos para Emílio Ribas (Acervo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 28.6.1903).

Lemos, Fernando ‘Contribuição à história do Instituto Bacteriológico (1892-1940)’.

Ribas, Emílio nov. 1922 ‘Campanhas sanitárias’. Conferência pronunciada no Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, pp. 1-26.

Recebido para publicação em novembro de 1998.

Aprovado para publicação em maio de 1999.

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  • 1
    O Serviço Sanitário do Estado de São Paulo foi legalmente criado em 28 de outubro de 1891, em substituição à Inspetoria de Higiene da Província. Era um órgão subordinado à Secretaria do Interior e devia atuar em três campos, segundo a legislação: orientação do governo acerca dos assuntos de higiene e salubridade pública sobre os quais fosse consultado, aplicação de planos de melhoramento do estado sanitário e execução do regulamento sanitário. A diretoria desse serviço coordenava várias seções: o Laboratório Farmacêutico, o Laboratório de Análises Químicas, o Laboratório Bacteriológico (1892), mais tarde renomeado Instituto Bacteriológico (1893), o Instituto Vacinogênico, o Desinfetório Central, a Seção Demógrafo-Sanitária, o Hospital de Isolamento e o Instituto Butantã, fundado em 1901, mas que funcionou como seção do Instituto Bacteriológico em 1900. Sobre a organização do Serviço Sanitário e as diversas reformas administrativas sofridas, ver Mascarenhas (1949); Lemos (1954); Antunes (1992); Merhy (1985); e Ribeiro (1993).
  • 2
    Segundo a legislação sanitária da época, os inspetores sanitários eram nomeados pelo governo e distribuídos pelos distritos de acordo com as necessidades e por determinação do diretor do Serviço Sanitário do qual recebiam instruções. Eram responsáveis pelo cumprimento das leis sanitárias e regulamentos, através de intimações, aplicações de multas e outras providências que deveriam ser comunicadas ao diretor do Serviço Sanitário. Em outras palavras, competia-lhes o policiamento e fiscalização sanitários (Reis, 1907, pp. 65-7, 138).
  • 3
    Não havia registro nos relatórios dos hospitais de Campinas de casos de febre amarela até 1889, o que não inviabiliza a hipótese de que houvessem casos antes desta data. A convicção de que a febre amarela "não subia os morros", em contraposição à alta incidência nas cidades litorâneas como Rio de Janeiro e Santos parece ter influenciado o comportamento das autoridades locais e da própria população campinense, à medida que se viam em situação semelhante aos centros urbanos de maiores altitudes como Petrópolis e São Paulo, lugares que não registravam o flagelo amarílico. Quando ocorriam supostos casos de febre amarela, o debate médico efervescia, inclusive na imprensa local. Segundo Santos Filho (1996), a primeira grande epidemia de febre amarela em Campinas ocorreu em 1889, adentrando toda a década seguinte em outros quatro grandes surtos: 1890, 1892, 1896 e 1897. Outras referências sobre a cidade de Campinas, epidemias e saneamento são: Britto (1961-69); e Silva (1996).
  • 4
    A
    Revista Médica de São Paulo, fundada em 1898, era um importante periódico médico paulista. Segundo o editorial do primeiro número, a revista foi definida como um jornal prático de medicina, cirurgia e higiene e acompanhava de perto políticas públicas de saúde no estado, inovações e pesquisas científicas produzidas no Brasil e no exterior. Muitos de seus colaboradores eram membros efetivos do Serviço Sanitário. Seus diretores fundadores foram Vitor Godinho e Artur Mendonça e sua periodicidade era quinzenal, mantendo regularidade até 1914, último ano de publicação.
  • 5
    A respeito de como a história da medicina e da saúde pública, e num sentido geral, das ciências, tem apresentado esse quadro de teorias médicas sobre o mal amarílico, ver Benchimol (1996, especialmente o capítulo 10). Destaque para a inovação interpretativa do autor em relacionar os trabalhos de Finlay com outros que também levantaram hipóteses de que os mosquitos ou outros insetos poderiam relacionar-se com o processo de propagação de doenças. Dessa maneira, Benchimol chama atenção para a inserção do trabalho de Finlay como produção do seu tempo e não apenas inspiração única do pesquisador cubano.
  • 6
    Nessa perspectiva enquadram-se os trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores ingleses Patrick Manson e Ronald Ross no Oriente, pela comissão norte-americana em Cuba, pela equipe de médicos ingleses da Liverpool School of Tropical Medicine que estiveram no Brasil e pela missão francesa que esteve no Rio de Janeiro objetivando investigar a febre amarela, entre outros.
  • 7
    Observando a listagem de todas as publicações científicas de Adolfo Lutz durante o longo período de 1878 a 1939, percebe-se que, a partir da incumbência do Instituto Bacteriológico de estudar os mosquitos relacionados à eclosão dos surtos diagnosticados como febre amarela no país, o estudo dessas espécies tornou-se uma constante em toda a sua produção científica (Neiva, 1941).
  • 8
    Ofício do gabinete do presidente do estado (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 10.1.1900).
  • 9
    Artur Vieira de Mendonça trabalhava como pesquisador no Instituto Bacteriológico desde sua fundação em 1892, assumindo o cargo de subdiretor com a saída de Le Dantec da direção, sendo esta assumida por Lutz. Mendonça e Lutz trabalharam juntos em diversas pesquisas sobre doenças epidêmicas e sobre o mormo em São Paulo. Embora auxiliasse em pesquisas sobre bacilos presentes na água e no ar, do dr. Bonilha de Toledo, outro médico do instituto, a febre amarela foi o tema em que concentrou maior atenção, principalmente após ter participado, juntamente com Lutz em junho de 1897, da conferência de Sanarelli sobre o possível agente causador da doença em Montevidéu. Diante das divergências ocorridas por causa da adesão de Lutz à teoria dos mosquitos, Artur Mendonça pediu exoneração em fevereiro de 1900, atuando como clínico e pesquisador em seu laboratório particular de microbiologia. Foi sócio-fundador e redator da
    Revista Médica de São Paulo de 1898 até 1907, juntamente com Vitor Godinho. Foi também chefe de clínica médica do Hospital da Santa Casa da Misericórdia, presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo de 1903 a 1904 e presidente da Associação Médica Beneficente em 1903. Faleceu em 1915 (Antunes, 1992, p. 64; Lemos, 1954, pp. 12, 21, 31, 55; e Mendonça, 1903).
  • 10
    Nascido em Monte San Savino, na Toscana, cursou medicina na Universidade de Viena, doutorando-se na área de bacteriologia. Trabalhou nessa mesma universidade e, depois, em Munique, Pisa, Roma e Paris, nesta última cidade, realizou estudos sobre a febre tifóide e o cólera no Instituto Pasteur, que contribuíram para seu reconhecimento internacional. Foi contratado pelo governo uruguaio para fundar e dirigir o Instituto de Higiene Experimental em Montevidéu em 1896, em junho e julho do mesmo ano esteve no Brasil, objetivando recolher materiais do Hospital de São Sebastião, no Rio de Janeiro, para começar seus estudos sobre a febre amarela. Depois da Conferência de Montevidéu, onde anunciou a descoberta do bacilo icteróide, Sanarelli esteve novamente no Brasil, mais precisamente em São Paulo em 1898, à convite da Sociedade de Medicina e Cirurgia, para realizar testes com a aplicação do soro anunciado em São Carlos do Pinhal. Esses trabalhos foram acompanhados por uma comissão médica do Serviço Sanitário, da qual faziam parte Artur Mendonça e Adolfo Lutz. Embora houvesse confirmação do chamado bacilo icteróide no sangue dos doentes, a equipe foi taxativa em afirmar a invalidade da ação soroterápica testada (Benchimol 1996, pp. 482-99).
  • 11
    Essas cartas foram publicadas na
    Revista Médica de São Paulo, em 1902. Segundo Antunes (1992, p. 64): "A tradição do Instituto Bacteriológico, no entanto, preservou a lembrança de um outro motivo para as desavenças entre Lutz e Vieira de Mendonça: este, sendo mais velho, não teria se conformado com a indicação de Vital Brazil para o novo laboratório, cargo que também ele teria pleiteado. Esse não é, contudo, um fato documentado." O novo laboratório a que o autor se referiu era o Instituto Butantã.
  • 12
    12 Segundo Telarolli Jr. (1996, p. 118): "Esses novos experimentos, por terem sido cercados de maiores cuidados metodológicos e realizados por brasileiros, contribuíram para reduzir as resistências à teoria no país. Outra contribuição dos experimentos ... foi que, enquanto a comissão do exército norte-americano em Cuba apenas comprovou a transmissão da doença através do mosquito, Lutz demonstrou a não contagiosidade da febre amarela através do vômito, fezes e roupas usadas pelos doentes." Segundo Telarolli Jr. (1996, p. 118): "Esses novos experimentos, por terem sido cercados de maiores cuidados metodológicos e realizados por brasileiros, contribuíram para reduzir as resistências à teoria no país. Outra contribuição dos experimentos ... foi que, enquanto a comissão do exército norte-americano em Cuba apenas comprovou a transmissão da doença através do mosquito, Lutz demonstrou a não contagiosidade da febre amarela através do vômito, fezes e roupas usadas pelos doentes."
  • 13
    Além de Ribas e Lutz, os outros ‘voluntários’ eram Domingos Pereira Vaz, André Ramos, Oscar Moreira Marques e o italiano Januário Fiori (Almeida, 1998, p. 184).
  • 14
    Nesta segunda etapa, nem Emílio Ribas nem Adolfo Lutz participaram como voluntários. Somente os italianos Malagutti Giuseppe, Angelo Paroletti e Siniscalchi Giovanni (Almeida, 1998, p. 190). Para os infeccionistas, a febre amarela, assim como tantas outras doenças, era transmitida por emanações nocivas que corrompiam o ar, atacando o corpo humano, ou seja, ações que substâncias animais e vegetais em putrefação exerciam no ar ambiente. Muitas vezes, os paradigmas médicos da infecção e do contágio humano se combinavam, recriando novas teorias médicas a respeito da etiologia e forma de transmissão das doenças (Chalhoub, 1996, pp. 64-5).
  • 15
    Carta de Adolfo Lutz para Emílio Ribas (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 30.8.1902).
  • 16
    Ver
    A febre amarela, relatório da missão francesa (
    Revista Médica de São Paulo, ano VII, n
    o 1, 15.1.1904, p. 12).
  • 17
    Carta de Adolfo Lutz para Emílio Ribas (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 28.2.1902).
  • 18
    Os primeiros contatos de Lutz com a missão francesa ocorreram no ano anterior. Lutz solicitou a Oswaldo Cruz, através de correspondência, informações sobre os membros da comissão francesa. Numa carta-resposta, Oswaldo Cruz informou que havia conversado com os drs. Simond e Marchoux a respeito dos pontos que interessavam a Lutz. Informou que os franceses ainda não haviam iniciado seus trabalhos por falta de material e que desejariam estudar, além da febre amarela, os hematozoários dos animais, fazendo referência ao relatório de Lutz sobre esse assunto. Demonstraram interesse em ir a São Paulo e conhecer pessoalmente Lutz, pela importância dos seus trabalhos já publicados. Carta de Adolfo Lutz para Oswaldo Cruz de 19.11.1901 e de Oswaldo Cruz para Adolfo Lutz de 20.11.1901 (Arquivo Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz).
  • 19
    Carta de Adolfo Lutz para Emílio Ribas (Arquivo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, 30.8.1902).
  • 20
    Como exemplo, cito aqui duas notas explicativas no relatório da missão francesa que se reportaram aos trabalhos de Lutz: "Este mosquito é bem o
    Culex fatigans, segundo o sr. dr. Lutz" e "Sabe-se, pelas pesquisas de Lutz, que em grande número dos vegetais, cujas folhas conservam água de chuva, pode favorecer a multiplicação dos mosquitos" (
    Revista Médica de São Paulo, ano VII, n
    os 1, 2, 15.1.1904, pp. 38, 39, respectivamente).
  • 21
    Luis Pereira Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1840, formou-se em ciências naturais e medicina pela Universidade de Bruxelas, revalidando seu diploma no Brasil em 1865. Foi deputado estadual e federal por São Paulo, além de presidente do Senado daquele estado. Foi o primeiro presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, de 1895 a 1896. Além de obras médicas, escreveu sobre filosofia, política e religião. É considerado um grande divulgador das idéias de Auguste Comte no Brasil, embora tenha aberto dissidência com os expoentes do Apostolado Positivista do Rio de Janeiro. Morreu em São Paulo em 1923 (Lemos, op. cit., p. 63; Ribeiro, op. cit, p. 150; e Sacramento Blake, 1983).
  • 22
    Esses relatórios foram publicados integralmente na
    Revista Médica de São Paulo (ano VI, n
    o 4, fev.-jul. 1903), em
    O Brasil-Médico (ano XVII, set. 1903), e em
    O Estado de S. Paulo (fev.-jul. 1903).
  • 23
    ‘Relatório da comissão médica convidada pela diretoria do Serviço Sanitário para acompanhar as experiências’ (1903) e ‘Profilaxia da febre amarela — Memória’ (1903) são trabalhos de Emílio Ribas, publicados em importantes periódicos médicos do país, que se baseavam sobretudo nas informações advindas dos relatórios de inspetores sanitários e de médicos clínicos que atuavam nas cidades do interior de São Paulo.
  • 24
    Para uma abordagem crítica em torno da criação do mito de Oswaldo Cruz, ver Britto (1995). Sobre os contatos mais efetivos de Oswaldo Cruz com os trabalhos paulistas nesses primeiros anos do século XX, ver Almeida (1998).
  • 25
    Com relação às conclusões de Ribas apresentadas no congresso:
    "Se, portanto, quisermos, em síntese final, exprimir em conclusões o resultado deste trabalho, somos forçados a deduzir das premissas por eles enunciadas que:
    I- O
    Stegomyia fasciata é incontestavelmente o transmissor mais importante — único demonstrado — da febre amarela.
    II- As condições sanitárias atuais de três das nossas mais importantes cidades — Santos, Campinas e Sorocaba — ligam-se intimamente às medidas que produziram a quase extinção do
    Culex taeniatus, em grande cópia aí existente antes dessas providências.
    III- Não se observa o desenvolvimento de uma epidemia de febre amarela em ponto onde esse veiculador não exista.
    IV- As epidemias de febre amarela são produtos não só da sua presença como também de sua relativa quantidade.
    V- Tudo leva a acreditar não só que os resultados colhidos nas poucas cidades ultimamente infeccionadas prendem-se intimamente aos esforços atinentes à extinção desse
    Culex, como também que em muitas outras não houve epidemias de febre amarela pelas medidas postas em prática e que impediram a reprodução de uma epidemia generalizada, ou tão extensa em seus limites, como a que se deu, entre nós, em 1889.
    VI- O prognóstico epidêmico será dos mais desfavoráveis, se, em uma localidade cujos prédios não ofereçam condições para a extinção dos mosquitos, concorrerem as circunstâncias de ausência de providências nos primeiros casos, em presença de grande quantidade de
    Stegomyias e verificação de uma temperatura ambiente compatível com a atividade desses insetos.
    VII- A vigilância sanitária nos quarteirões de casas em que for impossível a calafetação para o expurgo contra o mosquito e tiver havido doentes de febre amarela, sem a proteção contra a picada desses dípteros, será pelo menos de dois meses, em vista da possibilidade da transmissão da moléstia por um
    Stegomyia que tenha picado um amarelento 57 dias antes.
    VIII- As condições meteorológicas favorecem o desenvolvimento de uma epidemia de febre amarela pela ação direta não só sobre a proliferação dos mosquitos, como também sobre a reprodução do organismo patogênico no corpo do inseto infeccionado.
    IX- A estação fria, diminuindo a atividade do
    Stegomyia, mas não interrompendo completamente as suas funções de transmissor, não contra-indica a continuação das medidas contra o mosquito, tendentes a prevenir uma nova epidemia na estação calmosa.
    X- Finalmente, acreditamos que as bases de uma boa profilaxia da febre amarela são:
    a) destruição dos mosquitos e das condições que permitem o seu desenvolvimento;
    b) notificação e proteção de todo o caso, embora suspeito, com a maior brevidade possível;
    c) medidas tendentes à proteção contra o
    Stegomyia em relação a todas as pessoas que têm receptividade mórbida."
  • 27
    Telegrama de Palmeira Rippert enviado a Emílio Ribas um dia após a votação (Acervo do Museu de Saúde, Pública, 20.7.1903).
  • 28
    Carta enviada por Oswaldo Cruz para Emílio Ribas (20.7.1903), Acervo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas.
  • 29
    Patrick Manson, médico pesquisador inglês que desenvolveu estudos sobre a propagação da malária pelo mosquito
    Anopheles. Nesse período ocupava o cargo de presidente da Society of Tropical Medicine and Hygiene.
  • 30
    Correspondência de Bento Bueno para Emílio Ribas (25.7.1923).
  • 31
    Correspondência de Paula Souza para Emílio Ribas (9.10.1924).
  • 32
    White (1.9.1924, pp. 193-7). É interessante notar que até mesmo o método de utilização de peixes para destruir as larvas dos mosquitos foi considerado pelo autor como prática implementada originalmente pela ação da Fundação Rockefeller em Guayaquil. No entanto, numa pequena nota fez a seguinte retificação: "Depois de escrito este artigo, tive ciência de que nas campanhas de febre amarela do Rio e outros estados do Brasil, o ilustre brasileiro dr. Oswaldo Cruz empregou largamente os peixes como elemento de destruição das larvas dos mosquitos. Faço assim com prazer esta correção."
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Fev 2000

    Histórico

    • Aceito
      Maio 1999
    • Recebido
      Nov 1998
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