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Epidemia como desafio sociopolítico: a gripe espanhola na Bahia

Epidemics as a sociopolitical challenge: the Spanish flu in Bahia

LIVROS & REDES

Mary Ann Mahony

Professora-associada do Departamento de História/Central Connecticut State University. mahonym@mail.ccsu.edu

Na primavera de 1918, o fazendeiro Francisco Fernandes Badaró, conhecido pelos amigos como Sinhô, morreu de gripe espanhola na cidade de Ilhéus, interior da Bahia. O homem considerado o símbolo da violência rural no Brasil morreria de uma doença cotidiana, cerca de seis meses antes dos eventos contados no romance de Jorge Amado, Terras do sem fim, em que Sinhô Badaró é personagem importante. Ainda que a gripe atingisse fortemente a Bahia nos fins de 1918, repercutindo, até na narrativa literária de um dos seus mais proeminentes romancistas, até agora faltavam estudos históricos acerca da epidemia da influenza de 1918 e 1919 na região. O estudo da historiadora Christiane Maria Cruz de Souza nos proporciona uma investigação de primeira qualidade a respeito do fenômeno da gripe espanhola na Bahia.

No seu trabalho, Souza segue o ramo da historiografia mais recente, argumentando que as doenças e as epidemias são fenômenos sociais, reflexos das sociedades em que se espalham. Lembra-nos que há uma diferença importante entre a maneira pela qual a cultura popular faz uso do termo 'epidemia' e a definição médico-científica. Os médicos consideram uma epidemia, "a manifestação, em uma coletividade ou região, de um grupo de casos de alguma enfermidade que excede claramente a incidência prevista" (Luiza Barbosa citada na p.18). Portanto, nem o número de doentes, nem o número de mortos, nem a severidade da doença definiriam, por si sós, a epidemia; mas, sim, a diferença entre o que a comunidade médica esperava acontecer e o que de fato aconteceu. Assim, a historiadora enfatiza que a gripe espanhola na Bahia merece ser estudada, pois "a gripe, doença sazonal e benigna entre os baianos, vai irromper de forma inusitadamente virulenta em meados de setembro de 1918" (p.18). Continua, afirmando que "o medo e a ansiedade gerados pela repentina intensificação das experiências de morte determinam a necessidade de entender o fenômeno, e o caráter de espetáculo exige resposta visível e imediata". Como já sabemos, os momentos de crise são momentos em que as diferenças sociais, as atitudes dos diversos grupos sociais e o poder são claramente revelados.

A gripe espanhola teve entrada na Bahia pelo porto de Salvador em setembro de 1918 e em um mês já tinha atingido níveis epidêmicos. Espalhou-se primeiro pela capital do estado, e daí foi adentrando o interior, viajando pelas vias de comunicação, principalmente os rios e as estradas de ferro. Exceção era a gripe no sul do estado, na zona cacaueira, região que contava com laços mais estreitos com os moradores da capital da República, de onde partiu um vapor levando passageiros já acometidos pela doença ao porto de Ilhéus. Na Bahia, a gripe não vitimou tantas pessoas como em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Nem chegou a destruir tantas vidas nem famílias como o cólera na Bahia oitocentista, mas Souza revela, que a gripe trouxe à tona as imensas discrepâncias sociais da sociedade baiana, assim como a fraqueza do sistema médico e das políticas de saúde públicas locais. Com uma imprensa altamente politizada, a doença não deixou de entrar na agenda das discussões políticas, sobretudo no que se refere às formas de enfrentar o mal, tema que encontrou papel importante nos debates eleitorais naquele estado.

O trabalho está divido em seis capítulos, uma introdução e uma conclusão. Sem perder de vista essas questões gerais, a introdução apresenta o framework do estudo, introduzindo a relação entre as doenças, a sociedade e a política. O primeiro capítulo da obra examina o contexto social no qual a influenza cresceu. A cidade de Salvador estava cheia de prédios velhos e com infraestrutura precária, faltavam os meios básicos de saneamento e higiene pública. Em outras palavras, a cidade era extremamente suja e insalubre. De toda forma, as elites letradas da época não deixaram de criar seus planos de modernização social e saneamento da cidade, mas a chegada da gripe revelava, com absurda força, como eram inadequados seus meios.

O segundo capítulo discute especialmente a maneira pela qual a gripe constitui-se como agenda nos debates políticos da época. Salienta que a doença chegou a Salvador no contexto da transferência do poder dos monarquistas aos republicanos. A inabilidade das autoridades estatais para enfrentar a ameaça da gripe logo gerou fortes críticas da oposição. No capítulo seguinte, Souza esclarece que a gripe se transformou em epidemia não só por problemas políticos, em termos gerais, mas também por questões relacionadas à organização do sistema de saúde. A pesquisadora nos revela que os médicos começaram por não levar a sério a gripe espanhola como doença. Alguns deles não consideram a doença perigosa, estando mais preocupados com o cólera e a tuberculose.

Nas primeiras semanas da epidemia, por exemplo, os médicos realizaram um debate sobre a origem e o nível de perigo que representava a gripe para a população da região. A incerteza, perceptível nos debates, levou à hesitação em recomendar medidas protetoras para médicos e público. Naquele contexto, enquanto as vítimas da gripe começavam a morrer, a comissão médica, nomeada pelo governo para recomendar meios para enfrentar a epidemia, perdia valiosas semanas investigando a doença, debatendo longamente acerca de sua origem e caráter. O problema, em parte, era que a comunidade médica, com boas razões, estava preocupada com as moléstias tradicionalmente perigosas na Bahia: o cólera, a febre amarela, e a tuberculose. Salienta-se aliás que até a metade da epidemia de influenza no estado, a tuberculose provocava mais vítimas fatais do que a epidemia.

O capítulo quarto revela como a gripe interferiu na vida cotidiana da cidade de Salvador. O leitor pode perceber como a gripe desorganizou seriamente a vida pública na cidade. Os dados não são completos, mas evidenciam que grande parte da população contraiu a doença, e os meios públicos e privados que as autoridades e pessoas utilizaram para fazer face à ameaça da doença transformaram sensivelmente a vida social soteropolitana. Entre outras medidas, as pessoas permaneceram enclausuradas em suas residências e não apertavam mais as mãos umas das outras.

De qualquer modo, nem todos os baianos podiam ficar em casa para ser cuidados por familiares ou empregados domésticos; muitos não tinham teto algum, viviam expostos a toda sorte de problemas, sanitários ou não. Não surpreende, então, que os membros das camadas mais baixas da sociedade morressem em porcentagem superior à relativa aos membros da classe média e alta. Como Souza enfatiza, a doença e suas estatísticas só ganham significado pleno no contexto social em que se inserem.

Em seu penúltimo capítulo, a autora mostra que as providências tomadas pelas autoridades políticas tinham pouco efeito. Não era suficiente publicar anúncios em jornais ou distribuir panfletos; igualmente não era suficiente informar aos médicos e profissionais de saúde pública como tratar a doença, pois a maioria da população baiana era analfabeta e não podia ter acesso aos anúncios e demais informações provenientes desses profissionais. Além do mais, a crônica falta de médicos e a pobreza da maioria da população praticamente impediam que a gente do povo consultasse um médico e consumisse medicamentos comerciais. Na verdade, as medidas tomadas pelo governo e estabelecimentos médicos sinalizavam para o despreparo quase completo das autoridades em lidar com qualquer epidemia.

O livro finaliza com o exame da trajetória da gripe pelos sertões da Bahia. Aqui, revela-se, até mais fortemente que antes, a fragilidade do sistema médico baiano. A Faculdade de Medicina da Bahia formava quadros profissionais altamente qualificados a cada ano, mas poucos médicos iam viver nas cidades pequenas ou nas zonas rurais do estado. Se o número de médicos na cidade era pequeno, minúscula era a quantidade de doutores no interior. Quando a gripe chegou, a gente do interior se encontrava completamente sem acesso a médicos e serviços oficiais de saúde. Por outro lado, uma consulta a um médico na capital significava, normalmente, uma viagem longa e dispendiosa. Muitos então - como também não deixava de acontecer na cidade - buscavam soluções para seu sofrimento nas práticas de cura da medicina caseira ou na religião.

Cabe sinalizar que a autora baseia seus argumentos em pesquisa exaustiva. Ela consultou jornais, publicações médicas, relatórios e ofícios governamentais de Salvador, do interior da Bahia e do Rio de Janeiro. A bibliografia reflete extensiva leitura de estudos secundários sobre a história das doenças e das epidemias em língua portuguesa e inglesa, assim como estudos sobre a história da Bahia durante a República Velha (1889-1930).

Souza não se aprofunda nos debates sobre a abolição da escravidão na Bahia, nem sobre as peculiaridades da democracia baiana durante a República Velha, nem sobre a existência ou não do racismo no Brasil pós-abolição. De todo modo, ela nos revela a hierarquia, as estruturas sociais e a política herdadas da Colônia e do Império, que legaram uma estrutura social e institucional incapaz de surtir efeitos positivos no enfrentamento da epidemia naquela região do país. Para sorte de todos, a epidemia da gripe espanhola durou pouco tempo...

  • Epidemia como desafio sociopolítico: a gripe espanhola na Bahia

    Epidemics as a sociopolitical challenge: the Spanish flu in Bahia
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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