Introdução
O presente estudo tem como objetivo apresentar indicadores para avaliação de Capsi construídos por meio de uma pesquisa de intervenção participativa realizada junto com os trabalhadores dos Capsi de Campinas. Desse modo, espera-se contribuir com o campo da avaliação de serviços de saúde, uma área de pesquisa muito importante para o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e que, no recorte da saúde mental de crianças e adolescentes, é particularmente incipiente.
Incluir crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira foi uma ação iniciada em 2001, após a promulgação da Lei nº 10.216, que estabelece a saúde mental como uma política de governo. Na III Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), pela primeira vez, foram construídas diretrizes para o cuidado infantojuvenil, incluindo os princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente como componentes da assistência; afirmando que as crianças e adolescentes são sujeitos psíquicos e de direitos; e indicando a expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), a organização intersetorial da rede de cuidados e a evitação da medicalização e institucionalização do sofrimento de crianças e adolescentes1 .
Apenas dois meses depois da III CNSM, foi publicada a Portaria nº 336 versando sobre a criação dos Centros de Atenção Psicossocial para crianças e adolescentes e caracterizando-os como um serviço ambulatorial, responsável pela regulação da “porta de entrada” da rede assistencial, organização da demanda e do cuidado no território, supervisão das unidades de atendimento psiquiátrico e supervisão e capacitação da atenção básica. Em 2005, o Ministério da Saúde2 publicou os princípios para a política nacional de saúde mental infantojuvenil, incluindo a perspectiva de que todas as crianças e adolescentes são sujeitos e, portanto, responsáveis pelos seus sintomas, sofrimentos e demandas, além de possuidores do direito ao cuidado. Nesse sentido, afirmou-se a responsabilidade pelo acolhimento universal e respostas efetivas em saúde mental, realizando encaminhamentos implicados e em diálogo com as instituições, construindo permanentemente a rede com outros serviços e ofertando às demandas do público infantojuvenil um cuidado de base territorial e intersetorial. Tais princípios são referendados em documento elaborado em 2014 pelo Ministério da Saúde em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público3 , no qual se enfatiza a importância do trabalho em rede tanto no setor saúde, a partir da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), quanto na articulação com setores como educação e o sistema de proteção social integral.
A produção acadêmica nacional sobre os avanços e desafios na implantação da política de saúde mental de crianças e adolescentes é diversa e aponta importantes direções para pensar as práticas. Existem estudos sobre a relação entre o Capsi e a atenção básica4 . Alguns trabalhos discutem as limitações na formação dos profissionais para trabalhar com saúde mental, tanto na atenção básica5 quanto nos Capsi6 . Outros autores abordam os desafios do Capsi em relação à gestão em rede e à intersetorialidade7 . Existem diversas publicações sobre as famílias das crianças que frequentam os Capsi que abordam recortes como: as dificuldades enfrentadas pelas famílias diante da situação de saúde mental de suas crianças8 e a sobrecarga dos cuidadores de usuários de Capsi9 . Em relação aos aspectos metodológicos se percebe que muitas pesquisas são feitas nos serviços, porém, em sua maioria, os estudos não incluem os informantes no processo de construção da pesquisa em momentos como a análise dos resultados e os seus desdobramentos práticos.
Lima et al10 realizaram pesquisa avaliativa com desenho participativo visando identificar indicadores qualitativos sobre o cuidado às crianças e adolescentes com autismo na rede de Capsi da região metropolitana do Rio de Janeiro. Com base na realização de grupos focais com profissionais e familiares foram identificados cinco temas ordenadores: Organização do Capsi; Projeto Terapêutico Individual (PTI); Atendimento e mobilização dos familiares; Rede, território e direitos; e Formação dos profissionais e processos de trabalho. Os autores realizaram uma contribuição significativa, porém, restrita aos indicadores qualitativos no cuidado com autismo e suas famílias. Nesse sentido, visando contribuir para o preenchimento das lacunas no conhecimento, no presente estudo iremos apresentar indicadores quantitativos representativos das boas práticas necessárias frente às demandas do público infantojuvenil nos Capsi.
No cenário internacional, Olin et al11 apontam a necessidade de ampliar e aprofundar estudos sistemáticos sobre indicadores de qualidade em serviços de saúde mental, considerando-se as peculiaridades de crianças e adolescentes. Os citados autores apresentam indicadores de qualidade de serviços de suporte familiar do estado de Nova York, que foram construídos com base no método Delphi e com a participação de experts , assim como os resultados da aplicação destes indicadores por meio de um estudo quantitativo. Yang et al12 apresentam indicadores para avaliar o sistema de saúde mental de crianças e jovens em Ontário (Canadá), destacando que se trata de um trabalho inédito que tem como precedentes apenas a Escócia e Austrália entre os países de língua inglesa.
História e fundamentos teóricos do campo da avaliação participativa de serviços de saúde mental
Passos et al.13 defendem que está em curso um processo de institucionalização da avaliação no SUS, que vem ganhando destaque, embora não exista consenso sobre o que se entende por avaliação. Os citados autores fazem referência aos trabalhos de Guba e Lincoln14 sobre as quatro gerações que apresentam diferentes formas de conceber e produzir o campo da avaliação. Nas três primeiras gerações, há problemas como a supremacia do ponto de vista gerencial nos processos avaliativos, a não inclusão do pluralismo de atores e a hegemonia do paradigma positivista que desconsidera o contexto da avaliação e a priorização de métodos quantitativos. “Uma quarta geração emerge quando alguns autores passam a propor uma avaliação mais participativa e inclusiva dos atores envolvidos”13 (p. 219).
O presente estudo toma como referência dessa tradição a quarta geração e, portanto, lança mão do conceito de “participação” no sentido pragmático e emancipador , o que significa valorizar a complementariedade entre a qualidade técnica dos resultados e a inclusão dos grupos de interesse ( stakeholders ) no processo avaliativo.
Atualmente, no âmbito da gestão do SUS, são poucas as iniciativas de avaliação que contemplam os serviços de saúde mental. O Pacto pela Saúde15 inclui atores das três instâncias federativas e estabelece algumas áreas prioritárias, inclusive a atenção básica. Em portaria emitida em 200716 , na qual foram estabelecidos indicadores que deverão orientar as pactuações em cada contexto, não constam indicadores em saúde mental, porém, são listadas algumas metas do Conselho Nacional de Saúde no sentido de ampliar a oferta de serviços de saúde mental. Já o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) inclui quatro indicadores que dizem respeito à proporção de atendimentos em saúde mental, assim como à quantidade de atendimentos a usuários de álcool e outras drogas17 . A Organização Mundial da Saúde (OMS) e seus escritórios regionais traçam objetivos comuns para as políticas setoriais do mundo. Exemplos são o “Programa de Ação para reduzir as lacunas em saúde mental” (mhGAP) e o correspondente “Manual de intervenções para transtornos mentais, neurológicos e por uso de álcool e outras drogas na rede de atenção básica à saúde”, que incentivam o uso de indicadores para contribuir com o monitoramento do programa18 . Contudo, “o distanciamento entre formuladores e eventuais usuários das propostas pode levar à não utilização das propostas ou ao uso descontextualizado das mesmas e à sua ‘tecnificação’”19 (p. 37).
No âmbito da Saúde Coletiva brasileira, Ayres20 traz contribuições da abordagem hermenêutica ao campo da avaliação em saúde, apontando que a hermenêutica em Gadamer e nos autores contemporâneos que com ele dialogam concorre filosoficamente para “o situar-se necessário a qualquer conhecimento rigoroso”20 (p. 56). Nesse sentido, só cabe falar de método e epistemologia como um caminho encontrado pelo pesquisador para realizar aquela específica construção discursiva. Assim:
[...] a validação desse conhecimento estará apoiada centralmente não na verificabilidade (metódica) daquele conhecimento, mas na capacidade por ele demonstrada de levar uma dada situação problematizada a uma expressão discursiva mais fecunda20 . (p. 57)
Nesse sentido, é importante lembrar que essa fecundidade é a capacidade de favorecer o entender sobre algo.
Onocko-Campos et al19 produziram indicadores como produto de uma avaliação participativa dos Caps III de Campinas, integrando as contribuições da hermenêutica com a produção de narrativas e sua transformação em textos. Onocko-Campos21 traz a perspectiva de Ricoeur, que recusa a oposição entre distanciamento alienante (crítica) e participação por pertença (tradição) que caracteriza, respectivamente, a teoria crítica e a hermenêutica filosófica. Para Ricoeur, é importante reconhecer o lugar legítimo de ambas e o texto emerge como solução para lidar com o problema da objetivação e do método que é trazido com a questão do distanciamento. Assim “...o texto revela o caráter fundamental da historicidade humana, comunicação na e pela distância”21 (p. 285).
Para Furtado et al22 , os indicadores são “expressões simples, frequentemente numéricas” (p. 38) capazes de mensurar ou “informar sobre um fenômeno” (p. 38), apontando, traduzindo ou indicando um “estado, movimento ou mudança em ‘fenômeno’ que por alguma razão pretendemos monitorar e ou avaliar” (p. 38). Os indicadores só têm sentido desde que sejam “legitimados e consensuados entre os que efetivamente os usarão como instrumento de diálogo, geração de compromissos e monitoramento” (p. 38). Para isso, é necessário partilhar o conceito subjacente ao indicador. Também é importante lembrar que os indicadores têm vida útil variável em função de mudanças sociais. Ao mesmo tempo é necessário considerar como critérios de qualidade do indicador que exista: “boa representatividade e cobertura; uniformidade da concepção e método; simplicidade de construção e interpretação; se possível resumir várias situações”22 (p. 39).
Métodos
Considerando que a participação dos grupos de interesse no processo avaliativo pode potencializar os efeitos de uma intervenção23 , a pesquisa incluiu trabalhadores dos quatro Capsi existentes no município de Campinas. Vale mencionar que Campinas possui uma população de aproximadamente 1.194.000 habitantes. Trata-se de um município pioneiro na implantação da reforma psiquiátrica, que possui ampla cobertura de Caps, centros de saúde e outros serviços que integram a Raps, o que o torna propício para a realização de estudos como este.
Não foi possível incluir familiares e usuários devido a limitações de tempo do estudo. Entre os meses de março e agosto de 2018, ofertou-se um curso de extensão formalizado junto com a Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp intitulado “Qualificação da assistência à saúde mental infantojuvenil”, que incluiu a construção processual de indicadores para avaliação dos Capsi. A proposta do curso com carga horária de oitenta horas – dirigida a trabalhadores de todos os níveis de escolaridade – foi construída em diálogo com a literatura sobre Capsi e no contato com os serviços por meio de visitas. Os horários e periodicidade do curso foram pactuados junto com os quatro serviços. Foram ofertadas cinco vagas a cada serviço – nas quais as equipes são em média de vinte trabalhadores –, buscando incluir um número representativo de trabalhadores, porém, sem prejudicar as rotinas assistenciais. A escolha dos participantes ficou a cargo de cada serviço. Após algumas desistências nas primeiras semanas, 17 trabalhadores permaneceram até o fim de curso, entre os quais estavam psicólogos, fonoaudiólogos, médicos, enfermeiros, monitores, residentes, técnicos, estagiários e gestores, sendo 15 mulheres e dois homens. Dessa forma, qualificamos a participação tanto em amplitude, incluindo sujeitos de diferentes áreas de formação e com potencial de aplicação dos indicadores nos serviços, quanto em profundidade, considerando os trabalhadores sujeitos ativos em etapas tradicionalmente restritas às decisões dos gestores e financiadores24 .
Ao longo de oito encontros, foram abordados temas como o lugar das famílias; brincar e ambiência no Capsi; relações raciais e de gênero; e cuidado a adolescentes, com ênfase em adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas. Após um momento de aula dialogada, os participantes se dividiam em três GAPs24 , com cerca de seis trabalhadores, além de dois facilitadores. Os GAPs constituíram-se como um espaço no qual os participantes aprofundaram as discussões das aulas e as relacionaram com as vivências práticas em articulação com levantamentos realizados em “Atividades de dispersão”.
O processo das atividades de dispersão foi conversado e registrado nos GAPs. Ao modo das narrativas hermenêuticas, que produzem importantes efeitos nos participantes21 , no início de cada novo GAP realizou-se a leitura da narrativa da semana anterior, momento em que os participantes puderam, então, retificar-se e se reposicionar sobre os temas. Operou-se uma construção textual ao elaborar narrativas com base nas transcrições dos GAPs e, assim, “...a transformação das falas em narrativas já operou uma primeira parte da interpretação: a extração dos principais argumentos e seu encadeamento lógico”21 (p. 286).
Seguindo a perspectiva de Ricoeur, o que o texto significa não coincide mais com o que o autor quis dizer. Isso tem como consequência hermenêutica que o distanciamento não é um produto agregado da metodologia, mas é constitutivo do texto como escrita e é também condição de interpretação. Desse modo, objetivação e interpretação complementam-se, “por isso, interpretar é manifestar o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto (e não buscar algum latente oculto no texto). É compreender-se diante da obra”21 (p. 287). Assim, validaram-se as narrativas que subsidiaram o processo de construção dos indicadores. Tal como no estudo de Onocko-Campos21 , a transformação das transcrições dos GAPs em narrativas foi parte de um exercício interpretativo que buscou organizar de maneira inteligível o manifesto do texto.
Com base na leitura dos textos das narrativas dos oito primeiros encontros – e em um total de 24 GAPs –, elaborou-se uma grade de cada um dos temas abordados nas aulas, identificando diversos núcleos argumentais. Essa organização foi realizada por ao menos dois membros da equipe de pesquisa de maneira independente e posteriormente discutida coletivamente até a construção de um consenso.
Os participantes foram convidados a refletir sobre a grade de cada tema e a pensar em possíveis indicadores. Em seguida, com respaldo na oficina de construção de indicadores descrita acima e em diálogo com os estudos de avaliação participativa dos Caps III em Campinas21 , no estado de São Paulo24 , e no Capsi do Rio de Janeiro10 , os pesquisadores elaboraram e apresentaram uma primeira versão dos indicadores quantitativos, assim como um guia de boas práticas. Esses indicadores foram discutidos, adaptados e validados pelos participantes em duas oficinas de construção de consenso. A seguir, apresentamos a lista dos indicadores quantitativos pactuados, bem como uma breve síntese das dimensões da assistência. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob o parecer nº 2.482.854.
Resultados
Por limitações de espaço, apenas 11 indicadores que dizem respeito ao PTS serão apresentados detalhadamente na tabela 1 ; os outros 13 indicadores serão apresentados de maneira suscinta na tabela 2 .
Tabela 1 Indicadores para avaliação do PTS dos Capsi
Dimensão: PTS | |||||
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Nome do indicador | Definição | Interpretação | Fonte de dados | Período | Método de cálculo |
Presença de PTSs | Proporção de usuários que possuem um PTS | Reflete a capacidade do serviço de se responsabilizar pelo cuidado traçando planos de atuação que considerem a singularidade de cada usuário. | Prontuário | A cada três meses | Número de usuários que possuem PTS Número de usuários atendidos no serviço |
Atualização de dados do usuário | Proporção de fichas de acolhimento, folha de rosto e ficha do PTS atualizadas | Reflete a capacidade de manter dados atualizados dos usuários. | Prontuário | Anual | Número de usuários que tiveram dados atualizados no último ano Número de usuários no último ano |
Discussão conjunta dos Projetos Terapêuticos Singulares pela equipe do Capsi | Proporção de Projetos Terapêuticos Singulares que foram discutidos e avaliados conjuntamente por toda equipe do Capsi | Reflete a capacidade da equipe de discutir e se responsabilizar conjuntamente pelos casos. | Ata de reunião da equipe, Plantão, Folha de rosto ou Prontuário | A cada 12 meses | Número de PTSs discutidos nos últimos 12 meses pela equipe Número de PTSs no serviço |
Construção compartilhada do PTS de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas | Proporção de usuários que fazem uso problemático de substâncias psicoativas para os quais há discussão conjunta do PTS com a Atenção Básica, Assistência Social e Sistema Judiciário | Aponta a possibilidade de construir parcerias intra e intersetoriais. | Prontuário | A cada três meses | Número de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas que tiveram o PTS discutido com a Atenção Básica, Assistência Social e Sistema Judiciário Número de PTSs de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas |
Construção compartilhada do PTS com a família de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas | Proporção de usuários que fazem uso problemático de substâncias psicoativas para os quais há discussão conjunta do PTS com a família | Reflete a capacidade de incluir as famílias de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas na construção do PTS. | Prontuário | A cada três meses | Número de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas que tiveram o PTS discutido com a família Número de PTSs de adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas |
Inserção escolar | Proporção de usuários frequentando regularmente a escola ou cursos profissionalizantes | Reflete a construção da reabilitação psicossocia na rede intersetorial. | Prontuário | A cada três meses | Número de usuários em idade escolar frequentando regularmente a escola ou cursos profissionalizantes Número de usuários em idade escolar atendidos no Capsi |
Inserção no mercado de trabalho | Proporção de usuários com 16 anos ou mais que possuem trabalho remunerado | Reflete a construção da reabilitação psicossocia na rede intersetorial. | Prontuário | A cada três meses | Número de usuários com 16 anos ou mais que possuem trabalho remunerado Número de usuários com 16 anos ou mais atendidos no Capsi |
Projeto de vida e adolescência | Proporção de PTSs nos quais consta o "Projeto de Vida" do usuário | Reflete a preocupação do serviço com construir o cuidado a partir da escuta do usuário. | Prontuário | A cada três meses | Número de usuários de 12 anos ou mais que tiveram seu projeto de vida indagado Número de usuários com 12 anos ou mais atendidos no serviço |
Fármaco-centralização do tratamento | Proporção de usuários recebendo unicamente medicação nos últimos dois meses | Reflete a dificuldade em transitar do cuidado fármaco-centrado para o cuidado integral. | Prontuário | A cada dois meses | Número de usuários recebendo exclusivamente tratamento farmacológico nos últimos dois meses Número de usuários nos últimos dois meses |
Taxa de alta | Proporção de alta nos últimos três meses | Reflete a capacidade de construir a continuidade do cuidado. | Prontuário | A cada três meses | Número de usuários que receberam alta por não precisarem mais de tratamento no Capsi nos últimos três meses Número de usuários dos últimos três meses |
Taxa de abandono | Proporção de abandono nos últimos três meses | Reflete as dificuldades para ofertar o cuidado necessário. | Prontuário | A cada três meses | Número de usuários que deixaram de frequentar o Capsi há dois meses ou mais Número de usuários atendidos no serviço |
Tabela 2 Versão abreviada de indicadores para avaliação dos Capsi
Dimensão | Nome do indicador | Método de cálculo |
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Acolhimento | Completude das informações sobre os usuários | Número de fichas de acolhimento/prontuários que atendem os critérios de completude das informações entre os casos que chegaram ao serviço nos últimos trinta dias Número de casos que chegaram ao serviço nos últimos trinta dias |
Cuidado dirigido às famílias | Envolvimento do usuário e sua família na avaliação do PTS | Número de PTSs repactuados entre o profissional de referência, usuário e família nos últimos três meses Número de usuários com PTS |
Ofertas de cuidado às famílias | Número de usuários cujos familiares participaram de atividades no serviço nos últimos três meses Número de usuários atendidos no serviço | |
Articulação com a rede | Construção compartilhada de PTSs com a Atenção Básica | Número de PTSs elaborados em conjunto com a Atenção Básica nos últimos três meses Número de PTSs no serviço |
Atuação dos Capsi na Atenção Básica | Número de casos de saúde mental da Atenção Básica que receberam atendimento direto da equipe do Capsi Número total de casos discutidos nas reuniões de matriciamento | |
Construção compartilhada de PTSs e intersetorialidade | Número de PTSs construídos com outros serviços nos últimos três meses Número de PTSs no serviço | |
Interlocução com a escola | Número de usuários que frequentam a escola e que tiveram seu PTS discutido com a escola nos últimos seis meses Número de usuários que frequentam a escola | |
Oferta de diálogo com as instituições acolhedoras | Número de casos discutidos em conjunto com o técnico de referência da instituição acolhedora Número total de usuários vinculados às instituições acolhedoras | |
Transição para rede de cuidado - adulto | Número de usuários com 17 anos ou mais incluídos em planos de transição Número de usuários com 17 anos ou mais atendidos no serviço | |
Absorção dos usuários encaminhados para a rede Caps destinada a adultos | Número de usuários com 17 anos ou mais absorvidos pela rede Caps destinada a adultos Número de usuários com 17 anos ou mais encaminhados para a rede Caps destinada a adultos | |
Ambiência | Combate à discriminação | Número de atividades de combate à discriminação (6) |
Processo de trabalho e sofrimento institucional | Combate à discriminação e processo de trabalho | Número de discussões em reuniões de equipe quanto às diversas formas de discriminação (6) |
Oferta de supervisão clínico-institucional | Número de supervisões realizadas no último mês (2) |
PTS
Houve consenso de que o PTS seria uma ferramenta indispensável para se pensar o cuidado dos usuários, uma vez que sua presença reflete a capacidade do serviço de se responsabilizar pelo cuidado traçando planos de atuação que considerem a singularidade de cada usuário. Nesse sentido, o primeiro indicador dessa seção diz respeito à existência dessa ferramenta e parte dos que se seguem traz uma série de questões que deveriam ser observadas e contempladas na elaboração e repactuação desse indicador. Sinalizaram-se, por exemplo, aspectos como a necessidade de atualização dos dados dos usuários, bem como a discussão no mínimo anual do caso de cada usuário com toda a equipe do Capsi. Ambas as situações dizem respeito à capacidade da equipe de repensar, discutir e se responsabilizar conjuntamente pelos casos.
Entre os elementos que foram entendidos como questões essenciais a serem levadas em conta na elaboração do PTS estiveram a inserção escolar, inserção no mercado de trabalho e o projeto de vida dos usuários adolescentes. A inserção dessas questões foi pautada tanto na necessidade de estimular a construção do cuidado a partir da escuta do usuário quanto no intuito de incluir possíveis marcadores de sucesso no processo de reabilitação psicossocial. Nesse sentido, tanto a manutenção do vínculo escolar quanto de trabalho, quando for o caso, podem servir como indicadores de resultado das ações do serviço. Ainda em diálogo com a possibilidade de pontuar os resultados do serviço, destaca-se o indicador relativo à taxa de alta que diz respeito aos casos que deixaram de precisar do tratamento no Capsi, podendo ser acompanhados por outros pontos da rede, se necessário. Esse indicador não deve ter seu numerador confundido com aqueles relativos à taxa de abandono que, por outro lado, refletem as dificuldades em ofertar o cuidado necessário.
Houve entendimento ainda de que deveria haver pontuações específicas para a construção do PTS de usuários adolescentes que fazem uso problemático de substâncias psicoativas. Dessa forma, além da construção do PTS com a família, destacaram-se as articulações com Atenção Básica, Assistência Social e Sistema Judiciário.
Cabe destaque ainda para criação de um indicador relacionado à possível medicalização dos usuários. A centralização do tratamento em uma terapêutica medicamentosa foi vista como negativa, originando assim o único indicador, além da taxa de abandono, cujo resultado esperado deve ser o mais próximo possível de zero.
Acolhimento
A partir de diversos questionamentos acerca dos usuários, constatou-se que comumente não havia no serviço uma série de informações que, posteriormente, foram entendidas como essenciais para elaboração do PTS. Nesse sentido, o indicador em questão busca refletir a capacidade do Capsi de registrar dados importantes sobre o usuário desde os primeiros encontros.
Cuidado dirigido às famílias
Os indicadores relativos ao cuidado dirigido às famílias refletem duas dimensões de grande valia na perspectiva da reabilitação psicossocial no que tange aos familiares. A primeira delas diz respeito à inclusão da família na avaliação e repactuação constante do PTS dos usuários, aspecto tido como fundamental para continuidade do cuidado nos espaços que ultrapassam aqueles assistidos pelo serviço. Já a segunda diz respeito à oferta de cuidado à família, fator essencial para assegurar a inclusão dos familiares, prevenindo repercussões negativas na vida desses sujeitos.
Articulação com a rede
Os indicadores relativos à articulação com a rede refletem o entendimento dos trabalhadores sobre a importância do envolvimento de diversos atores para o sucesso do cuidado. Nesse sentido, destaca-se a presença de indicadores que apontam para o diálogo com outros dispositivos da rede de serviços, em especial a Atenção Básica, e para o trabalho intersetorial, no caso das escolas. No tocante à Atenção Básica, levantou-se como problemática os casos em que o Capsi realiza atendimentos decorrentes de matriciamento, muitas vezes individuais, mas que não são contabilizados como ações do serviço, uma vez que os prontuários estariam vinculados unicamente à Unidade Básica de Saúde. Por isso criou-se um indicador que consegue avaliar a capacidade de o Capsi suprir as demandas de atendimento especializado na Atenção Básica.
As discussões apontaram ainda para o desafio de incluir interlocutores de instituições acolhedoras nos casos de usuários institucionalizados. Vale ressaltar que essa é uma população cujos vínculos familiares geralmente são frágeis ou inexistentes e que, por muitas vezes, os técnicos de referência da instituição acolhedora assumem a função de parceiros do cuidado que, em geral, seria ocupada pela família. Outro ponto crucial foram os acionamentos da rede necessários para fazer a transição dos adolescentes que chegam à idade adulta para modalidades de atendimento destinadas aos adultos. Houve consenso de que os planos de transição são importantes e deveriam ser trabalhados com antecedência. Por isso, criou-se um indicador que considerasse a existência desses planos e outro que levasse em conta os planos de transição que são frustrados devido à baixa absorção da rede de cuidado aos adultos, especialmente no que se refere à rede Caps.
Ambiência
Embora os debates nos GAPs tenham levantado uma série de questões relevantes quanto à ambiência, houve dificuldade em traduzi-las em indicadores. Boa parte das discussões acabou por gerar uma série de diretivas que integraram o “Guia de boas práticas”. Contudo, destaca-se que o indicador levantado nessa dimensão foi atravessado pela perspectiva de combate às diversas formas de discriminação, tema exposto nas aulas ofertadas durante a capacitação.
Processo de trabalho e sofrimento institucional
Houve consenso sobre como muitas questões no serviço, inclusive relativas ao processo de trabalho, são atravessadas pelas questões de gênero e raça que, muitas vezes, não são discutidas com a atenção necessária. Nesse sentido, levantou-se um indicador que aponta para a necessidade de que haja entre a equipe, pelo menos uma vez ao mês, discussões sobre o modo como o serviço vem problematizando diversas formas de discriminação. A oferta de supervisão clínico-institucional foi pontuada como um elemento essencial para o processo de trabalho em si e como um elemento protetor em relação ao sofrimento institucional. Houve o entendimento de que seriam necessárias supervisões quinzenais, pelo menos.
Discussão
Assim como no estudo pioneiro de Onocko-Campos et al21 , aqui também o exercício interpretativo envolveu um árduo processo de organização do que foi dito. Os produtos da pesquisa-intervenção constituem a verdade que foi construída no diálogo21 por trabalhadores de diversas categorias e que representaram os quatro Capsi de Campinas.
Ao analisar as mudanças na organização do cuidado em saúde mental voltado às crianças e adolescentes na rede de Campinas entre os anos 2008 e 2015, Teixeira et al25 identificaram alterações significativas em relação às fontes de encaminhamento, aumento nas taxas de usuários atendidos e diminuição nas taxas de abandono. Ao mesmo tempo, os autores pontuam a necessidade de maior articulação da rede, principalmente com as escolas, e ampliação do acesso. Os resultados do presente estudo vão ao encontro do trabalho de Teixeira et al25 ao incluir diversos indicadores sobre a articulação de rede, inclusive a aproximação com a escola.
Acredita-se que os indicadores apresentados aqui constituem um avanço em relação aos indicadores para avaliação do cuidado a autistas nos Capsi10 , que teve como produto indicadores qualitativos. Na atual pesquisa, foram construídos indicadores quantitativos, aplicáveis ao conjunto dos serviços. Diferentemente dos referidos autores, defende-se aqui que a inclusão de indicadores quantitativos pode qualificar o cuidado cotidiano ofertado nos Capsi, sem desconsiderar a complexidade do objeto. Os indicadores incluem aspectos fundamentais da assistência, bastante apontados em estudos nacionais e internacionais, tais como a importância de levantar informações sistemáticas sobre os usuários, as famílias e o cotidiano da assistência26 ; a importância do envolvimento dos usuários na construção do próprio cuidado desde a chegada ao serviço27 ; a necessidade de inclusão da família no cuidado e na construção do PTS28 ; e a centralidade do trabalho em rede, dando particular atenção às demandas dos adolescentes com uso problemático de substâncias psicoativas29 . Também foi possível construir indicadores sobre temas que têm pouca visibilidade na assistência à saúde mental de crianças e adolescentes, como gênero30 e relações raciais31 . Construir indicadores que reconhecem o sofrimento institucional e a necessidade de supervisão clínica institucional – dimensão já apontada em outros estudos22 – é também um ponto relevante.
O diálogo incipiente com a literatura internacional constitui uma limitação deste estudo, o que tem relação com a grande diversidade na organização dos sistemas de saúde e das abordagens terapêuticas avaliadas, tornando difícil a comparação entre as diferentes realidades nacionais.
Destaca-se como ponto forte que os indicadores – inclusive sua redação final – foram pactuados em duas oficinas de construção de consenso junto com os trabalhadores de diversas categorias dos quatro Capsi de Campinas. Assim como no estudo realizado por Onocko-Campos et al19 , os indicadores atendem aos critérios de: utilidade, na medida que preenchem necessidades de informação dos grupos de interesse; viabilidade, pois utilizam informações disponíveis e de fácil acesso; e precisão, porque revelam informações tecnicamente adequadas.
Outra limitação do presente estudo é que não houve tempo suficiente para aplicar o produto nos serviços de maneira regular, o que poderá ser objeto de novas pesquisas. Acredita-se que os indicadores poderão ser aplicados em outros contextos, após as adaptações necessárias, em função das características de cada local e após serem legitimados no diálogo entre os diferentes atores.