Introdução
A complexidade da questão climática, com suas múltiplas causas e consequências, tem possibilitado diferentes enquadramentos (frames) do fenômeno (Jang; Hart, 2015; Spence; Pidgeon, 2010; Nisbet, 2009). Apesar de um forte consenso científico (Cook et al. 2013), existem desacordos e resistências entre países, cientistas, indústrias, policymakers e organizações não governamentais (ONGs) em relação ao enfrentamento do aquecimento global (Ostrom, 2012; Anderson, 2009). Os frames relacionados aos efeitos e possíveis soluções do problema têm sido empregados estrategicamente por diversos atores, em um esforço de moldar a opinião pública e o processo decisório (Singh; Swanson, 2017; Hannigan, 2014).
As posições e interesses do goveno brasileiro nos debates multilaterais sobre mudança climática, por exemplo, têm sido marcados por considerações de ordem de soberania, segurança e defesa do seu crescimento econômico. O governo brasileiro liderou as nações em desenvolvimento nos debates sobre o clima exigindo ações incisivas dos países industrializados, ao mesmo tempo em que definiu metas claras, mas voluntárias, para reduzir emissões de gases do efeito estufa (GEE) no Brasil (Vieira; Dalgaard, 2013).
Entre as metas propostas feitas pelo Brasil no âmbito do Acordo de Paris firmado em 2015, por exemplo, estão a redução de emissões em 37% (GWP-100) em 2025, em relação aos níveis de 2005, e a possibilidade de redução de até 43% (GWP-100) em 2030. Para isso, o governo se comprometeu com o aumento do uso de energias renováveis na matriz energética e em zerar o desmatamento ilegal na região amazônica, além de adotar medidas de restauração e reflorestamento em todo o território (Itamaraty, 2015).
Ao mesmo tempo, o Brasil aspira tornar-se um dos maiores produtores de petróleo com as reservas offshore do Pré-sal1, estimadas entre 119-176 bilhões de barris (Lefèvre; Wills; Hourcade, 2018). As emissões de GEE baseadas em 176 bilhões de barris corresponderiam, segundo estimativas, a 18% de todo o carbono que a humanidade poderia emitir até 2100, para manter o aquecimento do planeta abaixo de 1,5oC (Matsuura, 2017).
Com foco analítico nas interações entre ciência e política em torno de questões energéticas e climáticas, esse artigo identificou diferentes interpretações e enquadramentos (frames) estabelecidos por cientistas brasileiros sobre o papel do petróleo, especificamente das reservas do Pré-sal, num contexto de mudança climática. Em seguida analisaram-se as reverberações dessas interpretações nas decisões do governo federal, em dois momentos de inflexão nas negociações internacionais sobre o clima: na participação brasileira na COP-15, por meio da sua Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC), estabelecida em 2009, e na COP-21, por meio da sua Contribuição Nacionalmente Determinada (iNDC), proposta em 2015. Neste artigo, estas interpretações são compreendidas como narrativas científicas, ou seja, explanações oferecidas por cientistas com base no conhecimento científico disponível e a partir de suas visões, interpretações e valores particulares, que contêm elementos descritivos e prescritivos sobre determinado problema com possíveis implicações políticas (Keller, 2009). A abordagem adotada ancora-se em diferentes contribuições da ciência política (Keller, 2009; Stone, 1989; 1997), da sociologia ambiental (Hannigan, 2014) e dos estudos sociais em ciência e tecnologia (Jasanoff; Wynne, 1998; Monteiro, 2012).
Neste artigo, as narrativas científicas sobre o Pré-sal e mudança climática foram tratadas como elementos de potencial influência e reverberação nas políticas climáticas brasileiras. Três narrativas científicas emergem do conjunto de materiais analisado (incluindo jornais, artigos, leis, documentos governamentais, conteúdos midiáticos e entrevistas com pesquisadores): i) o Pré-sal como agravante da mudança climática (identificada como Narrativa A); ii) o Pré-sal como eixo do desenvolvimento nacional (Narrativa B); e iii) o Pré-sal como fomentador da transição energética para fontes de baixo carbono (Narrativa C). Os resultados aqui apresentados e discutidos mostram como elementos factuais e valorativos são articulados nas narrativas científicas sobre o Pré-sal e, ao mesmo tempo, destacam as imbricações destas narrativas com as decisões do governo de proteger a expansão de petróleo no país, com o Pré-sal, tanto na Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC) quanto na Contribuição Nacionalmente Determinada (iNDC), proposta pelo Brasil na COP-21 em 2015.
Referencial teórico e metodológico
Narrativas científicas e policy making
Narrativas, no sentido mais amplo, são definidas como histórias simples que descrevem um problema e suas causas, mostram suas consequências e sugerem soluções (Roe, 1994). Mais recentemente, as narrativas têm sido adotadas em estudos que enfocam interpretação, argumentação e justificação por parte dos cientistas (Forrester, 2017; Currie; Sterelny, 2017; Morgan; Wise, 2017; Beatty, 2017). Por narrativa da ciência entende-se aquela que é estabelecida e reforçada por cientistas ou atores que reivindicam a participação na comunidade científica (Keller, 2009).
A narrativa, entendida como uma categoria particular de comunicação e um método de organização cognitiva (Herman, 2009), é tratada como um instrumento relevante na comunicação da ciência e na explicação de fenômenos complexos (Downs, 2014). Para Dahlstrom (2014) , a apresentação de achados científicos por meio de narrativas torna tais fenômenos mais acessíveis, intuitivos e memoráveis. Particularmente para questões ambientais, Hannigan (2014) argumenta que os cientistas elaboram determinados discursos para dar voz a suas questões e às reivindicações ambientais. Nessa estratégia, valem-se de argumentações cognitivas, sociais, materiais e interpretativas para enquadrar uma questão. Contudo, as escolhas realizadas sobre como contar a história, ao mesmo tempo que destacam, ocultam certos aspectos dos fenômenos (Gabriel, 2004).
As narrativas científicas contêm tanto elementos descritivos quanto prescritivos, e possibilitam interpretações, avaliações e soluções particulares para um problema (Entman, 2004; Von Meier; Miller; Keller, 1998). Ao combinar elementos factuais e normativos, cruzam a fronteira entre ciência e política (Jasanoff; Wynne, 1998), embora sejam, frequentemente, apresentadas como se fossem inteiramente factuais, apoiando-se na autoridade da ciência para sustentarem um dado enquadramento (van Bommel; van der Zouwen, 2012; Keller, 2009; Stone, 1989).
Na análise sobre processo político, Stone (1997) argumenta que a narrativa científica é compreendida como um instrumento para integração de ideias, direcionando a conceituação de um problema político. Nesse processo, a narrativa científica compete com outras narrativas. A autora identifica dois enredos principais que, em geral, moldam as narrativas, sejam científicas ou outras: (i) uma história de declínio, em que um estado de coisas anteriomente bem sucedido está se perdendo; e (ii) uma história de controle, em que um estado tolerado, mas não desejado, pode ser aliviado por meio de novas ações em curso (Keller, 2009; Stone, 1997).
Para conseguir estabilidade e ganhar status de problema na agenda política, é importante que uma narrativa tenha a capacidade de retratar um problema como solúvel (Keller, 2009; Lawton, 2007). Keller (2009), por exemplo, ao analisar as narrativas científicas sobre chuva ácida e mudança climática nos Estados Unidos, argumenta que uma narrativa ganha estabilidade por meio de arranjos institucionais que crescem em resposta a ela. Tais arranjos consolidam a narrativa na medida em que as atividades institucionais reproduzem e reforçam uma visão particular de uma questão (Keller, 2009; Hannigan, 2014; Hajer; Hoppe; Jennings, 1993). Para conseguir estabilidade as narrativas devem contar com dispositivos retóricos e enredos familiares e apoiar-se em valores ou crenças profundamente arraigadas (Keller, 2009).
Hermwille (2016), em estudos sobre sociedades em transição, discute como as narrativas podem influenciar processos decisórios e como ajudam a delimitar o espaço do que é politicamente viável, contribuindo assim para a inércia dos regimes no que diz respeito à mudança sociotécnica. Em temas controversos como o da mudança climática, envolvendo multi-atores, as narrativas são mais ou menos aceitas pelos atores políticos dependendo da extensão com que concordam com suas crenças compartilhadas e motivações políticas (Lawton; Rudd, 2014; Shanahan; Jones; McBeth, 2011; Jenkins-Smith; Sabatier, 1993).
A revisão de literatura sobre narrativas, em particular a científica, evidencia que suas análises no processo político iluminam também os argumentos em jogo, os conceitos e os enquadramentos dados na elaboração e implementação de políticas públicas. Nessa perspectiva, estudos sobre narrativas científicas trazem importantes contribuições para a abordagem analítica de arenas, particularmente para compreender como cientistas e discursos científicos são estabelecidos e mobilizados para influenciar decisões políticas. A noção de arena remete: i) ao locus ou espaço social de interação e construção dos problemas sociais (Hilgartner; Bosk, 1988); ii) a uma metáfora para descrever a localização simbólica de ações políticas que influenciam decisões coletivas (Renn, 1992); iii) a um political establishment no qual os atores dirigem suas exigências àqueles que são responsáveis pela tomada de decisão, na esperança de influenciar o processo decisório (Hannigan, 2014); e iv) a um sistema de relações que influencia e dirige a formulação e implementação de políticas públicas (Ferreira, 2004; 2012; Ferreira et al., 2017).
Procedimentos de pesquisa: levantamento e análise de dados
Esse trabalho identificou e analisou as narrativas científicas sobre o Pré-sal e mudança climática e suas possíveis reverberações nas decisões, a partir de pesquisa qualitativa, descritiva e interpretativa. Os procedimentos e instrumentos de pesquisa utilizados consistem em pesquisa documental, realização de entrevistas e análise de conteúdo.
Pesquisa documental
A pesquisa documental incluiu análise: i) de textos publicados nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo entre 2007 e 2016; ii) de artigos científicos levantados nas bases Google Acadêmico, Scielo, Scopus e base multidisciplinar da Elsevier; iii) da Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC) (Lei n. 12.187); e iv) da iNDC brasileira apresentada e aprovada na COP-21em Paris.
Para identificar e analisar os debates protagonizados e reverberados no palco midiático, os jornais selecionados, além de sua importância em termos de tiragem e circulação, estão sediados nos dois estados da federação de maior impacto econômico do Pré-sal, São Paulo e Rio de Janeiro. O recorte temporal adotado na pesquisa documental desses dois jornais correspondeu ao período de janeiro de 2007 a dezembro 2016, que engloba o anúncio da descoberta, o início da produção dessas reservas e a realização da COP 21 em Paris. Para a consulta nos acervos destes jornais foram utilizadas as seguintes palavras-chaves: pré-sal - meio ambiente; pré-sal - mudança climática; pré-sal - transição energética. Foram identificados e analisados ao todo 30 textos, distribuídos em: linha editorial, opinião, reportagem e carta de leitores. Já a busca complementar com artigos científicos foi realizada a partir da utilização dos seguintes descritores em português e em inglês em associação com pré-sal (pre-salt): mudança climática (climate change), impactos ambientais (environmental impacts), transição energética (energy transition) e Brasil (Brazil). Cabe destacar que não foi objeto da pesquisa a realização de uma revisão sistematizada da literatura científica a partir desses descritores. O levantamento nessas bases teve apenas o objetivo de confrontar o conteúdo obtido nas entrevistas realizadas e nos documentos analisados.
Entrevistas
A análise inicial dos textos publicados nos dois jornais permitiu a identificação de um grupo de cientistas que atuam em questões climáticas e energéticas no Brasil. Desse grupo, nove cientistas foram entrevistados. A seleção para a realização das entrevistas semiestruturadas levou em conta os seguintes aspectos: (i) visibilidade midiática nacional dos pesquisadores; (ii) posturas públicas diferentes sobre questões climáticas e energéticas; (iii) envolvimento em atividades de pesquisa e ensino em instituições brasileiras; e (iv) resposta positiva à solicitação de entrevista, quando da realização da pesquisa empírica. Estas entrevistas possibilitaram a obtenção de informações sobre conteúdos divulgados acerca dos temas tratados em outras mídias, ampliando, assim, os documentos analisados nesse artigo para além dos dois jornais selecionados. Esses conteúdos também foram analisados, permitindo a identificação de narrativas de 20 cientistas brasileiros.
Análise
De uma perspectiva analítica que privilegia múltiplos textos (orais e escritos) para análise de narrativas (Keats, 2009), e considerando que a heterogeneidade de materiais acessados permite maior consistência na identificação das narrativas científicas, o artigo estrutura-se em dados provindos de jornais, artigos, leis, documentos governamentais, conteúdos midiáticos e entrevistas. Esse conjunto de materiais foi analisado a partir da técnica de análise de conteúdo, cujas finalidades são a descrição objetiva, sistemática e qualitativa do conteúdo manifesto (Bardin, 1977); e de análise de narrativas (Stone, 1989; 1997; Keller, 2009) para identificação de histórias causais, enunciados descritivos e prescritivos, problemas e soluções, culpados e vítimas.
O conjunto de informações recolhidas e analisadas foi confrontado com a literatura sobre mudança climática e transição energética e permitiu a identificação de três narrativas científicas sobre o Pré-sal e mudança climática no Brasil. A análise dessas narrativas explora como seus argumentos, ideias e frames se articulam com os posicionamentos do governo nos dois momentos que interessam a esse artigo: COP-15, por meio da Política Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC), estabelecida em 2009; e COP-21, por meio da sua Intended Nationally Determined Contributions (iNDC), proposta em 2015. A análise buscou compreender, especialmente, como as narrativas científicas identificadas se aproximam e se distanciam das decisões do governo brasileiro. A figura 1 traz uma representação gráfica da metodologia adotada na pesquisa.
Resultados e discussão
Narrativas científicas sobre o Pré-sal, mudança climática e transição energética no Brasil
O perfil dos cientistas, cujas narrativas são analisadas nesse trabalho, é descrito no Quadro 1. Nele sinalizam-se também aqueles que foram entrevistados no âmbito da pesquisa realizada.
Quadro 1. Características dos cientistas e suas narrativas sobre o Pré-sal
Formação | Instituição | Área de atuação | Participa de instituição sobre mudança climática? | Onde expressou sua posição? | Entrevistado na pesquisa? | Narrativa predominante | |
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1 | Sociologia, Economia, Demografia. | IBGE1 | Dinâmica populacional, políticas públicas e desenvolvimento sustentável | Não | Revistas e blogs | Sim | Narrativa A |
2 | Filosofia, Ciência Política, Economia | USP2 | Economia, desenvolvimento sustentável e impactos socioeconômicos das mudanças climáticas | PBMC12 | Jornais | Não | Narrativa A |
3 | Engenharia Eletrônica, Computação Aplicada | INPE3 | Geoinformática, modelagem ambiental, análise espacial, bancos de dados geográficos, processamento de imagens de sensores remotos | Não | Revista de divulgação científica | Não | Narrativa A |
4 | Engenharia Eletrônica e Física | UNICAMP4 | Ciências Exatas e da Terra, Física da Matéria Condensada | Não | Jornal Folha de S. Paulo | Não | Narrativa A |
5 | Física, Ciências Atmosféricas | UECE5 | Microfísica e macrofísica de nuvens, modelagem atmosférica, climatologia, mudanças climáticas e meteorologia aplicada | PBMC | Jornais, revistas, blogs | Sim | Narrativa A |
6 | Engenharia Eletrônica, Meteorologia | INPE | Meteorologia, climatologia, modelagem climática e ciência do sistema terrestre | IPCC13, PBMC e Rede Clima | Audiência Pública, Congresso Nacional e Jornais | Não | Narrativa B |
7 | Sociologia, Relações Internacionais | UFABC6 | Economia, política internacional, geopolítica da energia, China, política externa brasileira, integração e economia brasileira contemporânea. | Não | Artigo científico e revistas | Não | Narrativa B |
8 | Biologia Molecular | UNIFESP7 e SBPC8 | Glicoquímica e glicobiologia | Não | Jornais, revistas e site de notícias | Não | Narrativa B |
9 | Jornalismo, Relações Internacionais, Ciência Política | UFABC | Energia e relações internacionais, geopolítica do petróleo | Não | Sites de notícias e blogs | Não | Narrativa B |
10 | Engenharia Civil, Engenharia Nuclear e Planejamento Energético | USP | Planejamento energético, modelos de demanda e recursos e oferta de energia, uso racional de energia | Não | Jornais, sites de notícia, livros, artigo científico | Sim | Narrativa B |
11 | Engenharia Elétrica, Economia, Engenharia de Sistemas | UFRJ9 | Energia e meio ambiente, planejamento energético, planejamento ambiental, desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas | IPCC, PBMC, FBMC14 | Jornal, sites de notícias e Relatório do PBMC | Sim | Não afiliação a nenhuma das três narrativas |
12 | Engenharia Mecânica, Planejamento Energético, Engenharia de Produção | UFRJ | Planejamento de transporte, mobilidade sustentável, energia renovável, mudança climática e cidades e meio ambiente | IPCC, PBMC | Jornal, sites de notícias e blogs | Sim | Narrativa C |
13 | Física, Ciências Físicas | USP | Física nuclear, energia, planejamento energético e biomassa | IPCC | Jornal, artigo científico | Sim | Narrativa C |
14 | Geólogo, Doutor em Geociências | UNESP10 | Petrologia sedimentar de rochas carbonáticas.. paleoecologia de microorganismos marinhos | Não | Jornal | Não | Narrativa C |
15 | Física, Engenharia Nuclear, Doutor em Física | UFRJ | Planejamento energético, mudanças climáticas e epistemologia e história da ciência | FBMC, IPCC | Jornais, audiência, Congresso Nacional. | Sim | Narrativa C |
16 | Engenharia Química e Planejamento Energético | UFRJ | Eficiência energética, matriz energética, cogeração, biocombustíveis, refino de mercado e mercado de petróleo e derivados tecnologia CCS | PBMC | sites de notícias, jornais, artigos | Não | Narrativa C |
17 | Engenharia de Minas, Engenharia Mineral, Engenharia de Petróleo | USP | Engenharia de Minas, com ênfase em exploração e produção de petróleo, engenharia de reservatórios de petróleo | Não | Jornal da ciência e outros jornais | Não | Narrativa C |
18 | Engenharia Elétrica, Planejamento Energético | UFRJ | Planejamento energético e mudanças climáticas. | IPCC e PBMC | Jornais, rádio, revistas e artigo científico | Sim | Narrativa C |
19 | Ciências Econômicas, Economia Industrial Economia Aplicada | UFRJ | Organização industrial e dinâmica das indústrias de energia, regulação e políticas energéticas e inovação | Não | Blogs da área de petróleo e energia | Não | Narrativa C |
20 | Ciências Econômicas | PUC-RJ11 | Economia, com ênfase em história econômica do Brasil, economia do meio ambiente, desenvolvimento econômico sustentável, história do aquecimento global | Não | Jornais e site de notícias | Não | Narrativa C |
Siglas: 1 Instituto Brasileito de Geografia e Estatítica; 2 Universidade de São Paulo; 3 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais; 4 Universidade Estadual de Campinas; 5 Universidade Estadual do Ceará; 6 Universidade Federal do ABC; 7 Universidade Federal de São Paulo; 8 Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência; 9 Universidade Federal do Rio de Janeiro; 10 Universidade Estadual Paulista; 11 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; 12 Painel Brasileiro de Mudança Climática; 13 International Panel on Climate Change; 14 Fórum Brasileiro de Mudança Climática.
Fonte: Elaboração dos autores.
Narrativa A: o Pré-sal como agravante da mudança climática
Para esta narrativa, o Pré-sal, em função do seu volume, é um agravante da mudança climática, pois há um entendimento entre os cientistas de que a exploração das últimas reservas fósseis, que inclui o Pré-sal brasileiro, é incompatível com qualquer perspectiva de manter o sistema climático sob limites seguros. Para esses cientistas, o Pré-sal e outras reservas lançarão uma quantidade de CO2 que extrapolará substancialmente o marco de 450 ppm de CO2 na atmosfera, marco considerado em alguns estudos como um tipping point para a estabilidade/manutenção dos sistemas ecológicos (McNeil; Matear, 2008; Hoegh-Guldberg et al., 2007). Segundo o cientista 5, o Pré-sal é especialmente problemático, pois “A quantidade de carbono armazenada nas reservas fósseis (incluindo o Pré-sal) é da ordem de 2,8 trilhões de toneladas métricas, o que é no mínimo cinco vezes mais do que supostamente seria permitido queimar” (Cientista 5, trecho citado em texto de blog pessoal em 2013).
Nessa perspectiva, a queima do petróleo do Pré-sal contribuiria para consumir e ultrapassar o orçamento de carbono remanescente (Geels, 2014), aumentando a sensibilidade climática2 do planeta. Nas palavras do cientista 5, “A exploração e queima dessa matéria-prima colocam o Brasil, também, na engrenagem global de mudanças climáticas” (trecho de texto divulgado na Agência Universitária de Notícias, 2018). Os cientistas desta narrativa evocam a imagem de um sistema próximo do colapso e apontam a necessidade de ações preventivas envolvendo a diminuição ou a não utilização dessas reservas petrolíferas, bem como a reversão dos investimentos energéticos em fontes renováveis. Esta é a posição do cientista 1, quando questiona se “não seria melhor utilizar todos estes recursos que vão ser aplicados no Pré-sal para investir em equipamentos e tecnologia de energia verde, renovável e de baixo-carbono” (Cientista 1, trecho de texto divulgado no Portal Ecodebate em 2010).
Esse sentido de urgência na redução das emissões está em consonância com estudos recentes como o de Raftery e colaboradores (2017), que apontam para a necessidade de diminuição das emissões mais rapidamente do que no passado recente para se atingir a meta de 1,5-2°C de aquecimento até 2100. Para esses autores, há apenas 5% de probabilidade de se manter o aquecimento global, até o fim do século, dentro de um limite de 2°C. Para isso, segundo McGlade e Ekins (2015), um terço das reservas de petróleo, a metade das de gás e mais de 80% das de carvão devem permanecer não utilizadas entre 2010-2050.
Além de o setor fóssil se configurar como um dos principais responsáveis pelo aquecimento do planeta, este também é tratado nessa narrativa como um vilão e como força contrária às ações de mitigação, devido aos recursos de poder de ordem instrumental, discursiva, institucional e econômica de que dispõe (Geels, 2014). Para o cientista 5, “A indústria de combustíveis fósseis se constitui hoje em dia no núcleo central do capitalismo global. É a essas corporações, destrutivas em sua essência, que interessa a extração dos combustíveis fósseis até a última pedra de carvão e gota de óleo via fratura, dentre outras” (Cientista 5, trecho citado em texto de blog pessoal em 2013). Essa também é a perspectiva do cientista 2: “Como a decisão referente a esses investimentos não é tomada levando em conta seus efeitos globais, cada país, cada empresa dá as costas aos evidentes impactos destrutivos desses projetos” (Cientista 2, trecho de texto divulgado na Folha de S. Paulo em 2013). Segundo ainda o cientista 4, a única explicação para a continuidade de investimentos no Pré-sal “é a concentração de poder político que a exploração de petróleo proporciona em um monopólio de fato na mão do Estado” (Cientista 4, trecho de texto divulgado na Folha de S. Paulo em 2009).
Essa narrativa também traz e reforça o conceito de “carbon lock in” (Seto et al., 2016; Unruh, 2000) na sua crítica aos investimentos no Pré-sal. Este conceito descreve a interdependência em relação aos combustíveis fósseis por meio de um processo de co-evolução institucional e tecnológica que inibe a difusão de fontes de baixo carbono, apesar de possíveis vantagens ambientais e econômicas (Unruh, 2000). Para o cientista 4, com a exploração do Pré-sal, “negligencia o governo a ampliação da produção do etanol, cuja tecnologia já está desenvolvida, priorizando a promessa incerta do pré-sal. E isso apesar do potencial de produção maior, de investimentos menores para a mesma produção de energia e da sustentabilidade desse biocombustível” (Cientista 4, trecho de texto divulgado na Folha de S. Paulo em 2009). Do mesmo modo, para o cientista 2, os investimentos no Pré-sal “trazem o inevitável inconveniente de fortalecer as estruturas materiais e institucionais da economia baseada em combustíveis fósseis” (Cientista 2, trecho de texto divulgado na Folha de S. Paulo em 2012).
Essa narrativa questiona a visão do Pré-sal como um fator de redenção social e eixo condutor do desenvolvimento nacional, narrativa que será analisada a seguir. Para os cientistas da Narrativa A, há uma evidente contradição nessa perspectiva desenvolvimentista do Pré-sal brasileiro. Essa é a posição, por exemplo, do cientista 2, que nomeou tal visão como “um mito do veneno que salva” (Cientista 2, trecho de texto divulgado na Folha de S. Paulo em 2013).
Nessa mesma linha, para o cientista 3, “o Brasil terá de rever a ideia de que a exploração de petróleo da camada Pré-sal irá redimir a economia brasileira”. Para ele, “não é possível estar na coalizão de altas ambições (descarbonização) e, ao mesmo tempo, cogitar vender 6 milhões de barris de petróleo por dia” (Cientista 3, trecho de texto publicado na Revista Pesquisa Fapesp em 2016).
Narrativa B: o Pré-sal como eixo do desenvolvimento nacional
Os cientistas desta narrativa reconhecem a relação entre combustíveis fósseis e aquecimento do planeta. Contudo, questionam e relativizam a contribuição do Pré-sal para o problema e destacam seus potenciais benefícios sociais e econômicos. Essa narrativa enquadra o petróleo do Pré-sal, principalmente, como oportunidade econômica e social, e não como ameaça climática. Ela ressalta o caráter estratégico dessas reservas para a inserção internacional brasileira na geopolítica do petróleo e na retomada de crescimento econômico (Heidrich; Haslam, 2016). Por exemplo, na perspectiva do cientista 9, “a causa das mudanças climáticas não é a extração de combustíveis fósseis, e sim, o consumo concentrado, principalmente, nos países industrializados [...] a proporção a ser fornecida pelo Brasil ao mercado global de petróleo no auge da produção do Pré-sal equivalerá a uma ínfima parcela do total” (Cientista 9, trecho de texto divulgado no Brasil de Fato em 2014).
Essa narrativa destaca o tema da equidade no enfrentamento da mudança climática. Portanto, ao justificar e defender o Pré-sal, ela acentua a questão das emissões desiguais3 entre os países, a responsabilidade histórica diferenciada entre eles, e a necessidade de preservação das oportunidades de crescimento econômico dos países em desenvolvimento, como o Brasil (Klinsky et al., 2017). Para esses cientistas, os maiores vilões do aquecimento global são os países desenvolvidos, notadamente os Estados Unidos: “nunca se propôs a redução da oferta de petróleo como política ambiental. Mesmo nesse caso, não parece justo que a conta do sacrifício seja paga pela periferia do mundo. Se é para deixar o óleo embaixo da terra, por que não começar pelos Estados Unidos?” (Cientista 9, trecho de texto divulgado no Brasil de Fato em 2014).
Além disso, para o cientista 10, qualquer decisão acerca de restrições na produção e consumo deve ser tomada numa escala global, e não no nível de um país. Para ele, dada a dinâmica global do petróleo, se um país se restringir na produção, outro vai ocupar o seu espaço (Cientista 10, trecho de entrevista concedida em 2015). Considerando que, como até o momento não existia nenhum regime internacional que impusesse restrições à exploração de combustíveis fósseis para limitar a extensão da mudança climática, essa narrativa defende que não faz sentido o Brasil abrir mão de suas grandes reservas petrolíferas.
Para a narrativa B, o petróleo ainda representa um recurso energético de menor custo, maior excedente econômico, de alta disponibilidade e baixa entropia (Sauer, 2016) e cuja tendência é uma diminuição gradual (Schutte, 2013). Esse entendimento é compartilhado pelo cientista 7, para quem o Brasil não estaria indo na contramão da história ao investir no Pré-sal, já que a transição para fontes de baixo carbono dificilmente acontecerá em um horizonte que torne a exploração do Pré-sal inviável (Cientista 7, trecho de documento do IPEA de 2012). Essa visão é respaldada por trabalhos que entendem que, mesmo com todos os esforços, a transição para fontes de energia mais renováveis levaria algumas décadas, pois, além de forte respaldo político, os combustíveis fósseis permanecem relativamente baratos, e são apoiados por uma infraestrutura muito ampla e duradoura (Chow; Kopp; Portney, 2003).
O Pré-sal é tratado nessa narrativa como produto e fomentador de pesquisa e desenvolvimento4 (Mancini; Paz, 2018; Gielfi, 2017), particularmente por meio da principal empresa brasileira do setor e a que mais investe em P&D no país, a Petrobras (Gielfi, 2017). A narrativa coloca o setor petrolífero como uma mola propulsora do desenvolvimento pelo efeito multiplicador que exerce sobre outros setores industriais e de serviços (Piquet; Hasenclever; Shimoda, 2016).
Dentro de uma visão nacional desenvolvimentista, materializada num novo marco regulatório5, o Pré-sal é visto como um instrumento valioso na diminuição dos níveis de desigualdade social no país, e propulsor de um modelo de desenvolvimento próprio amparado na ciência e tecnologia (Heidrich; Haslam, 2016). Isso pode ser evidenciado pela afirmação do cientista 10, de que “a existência de uma reserva de pré-sal poderia financiar um plano nacional econômico e social e a Petrobras deveria ser contratada no regime de prestação de serviço” (Cientista 10, trecho de texto divulgado em O Globo em 2011), assim como pela do cientista 9, de que “a exploração do Pré-sal, desde que feita de modo racional e conforme os interesses nacionais, é indispensável para viabilizar o acesso de milhões de brasileiros a condições melhores de saúde, educação, cultura, moradia e saneamento” (Cientista 9, trecho de texto divulgado no site Brasil de Fato em 2014). Já para o cientista 6, “o Brasil deveria usar os recursos advindos da exploração do petróleo do Pré-sal para financiar a criação de um modelo de desenvolvimento único e autônomo, amparado em sólidos pilares de ciência e tecnologia, que favorecesse a exploração racional de seus próprios recursos naturais e de outras regiões tropicais” (trecho de texto divulgado na Agência Senado em 2009).
O Pré-sal não é visto aqui como um problema para a transição energética de baixo carbono. Para o cientista 10, “o enfrentamento das mudanças climáticas também exigirá posicionamento, com investimento em ciência e tecnologia para amenizar os impactos que a substituição energética terá na estrutura de produção e de consumo” (trecho de texto divulgado na Revista Carta Capital em 2011). Na perspectiva do Cientista 7, embora “pareça ser um desafio paradoxal: garantir que o pré-sal contribua para que o desenvolvimento no país englobe a transição para uma economia de baixo carbono”, ele defende esse caminho a partir de “políticas claras e firmes, evitando ao máximo um crowding out do etanol e a instauração de uma cultura do desperdício” (trecho de texto divulgado em documento do IPEA, 2012). No entanto, é a terceira narrativa que enfatiza e aprofunda a relação causal entre o Pré-sal e a consolidação de uma transição energética menos intensiva em carbono.
Narrativa C: o Pré-sal como fomentador da transição energética para fontes de baixo carbono
Os cientistas dessa narrativa entendem que a cadeia do petróleo ainda apresenta enormes economias de escala e escopo, com custos relativamente baixos em comparação com seus concorrentes e suportada por uma ampla e bem estabelecida infraestrutura. O Pré-sal é tratado como estratégico, tanto do ponto de vista da segurança quanto da transição energética. Para o cientista 16, “o petróleo, juntamente com o urânio, é imbatível em termos de energia estocada em um volume ínfimo e que ao mesmo tempo pode ser controlado (armazenado). Ainda que, em médio e longo prazo, a demanda por petróleo tenda a estagnar e depois declinar, seu banimento não parece possível” (trecho de texto divulgado no site da Revista Planeta em 2015).
Na perspectiva do cientista 12, as metas e alcances na redução das emissões em torno do desmatamento assumidas pelo Brasil, nos biomas da Amazônia e do Cerrado, permitirão o aumento das emissões do setor petrolífero sem comprometer os compromissos firmados pelo país (trecho de texto divulgado no site da Academia Brasileira de Direito em 2009).
No entanto, os cientistas desta narrativa defendem que parte da renda do Pré-sal seja destinada para a consolidação de um sistema energético menos intensivo em carbono, especificamente no desenvolvimento e disseminação de fontes de energia renovável, incluindo aquelas não tecnologicamente maduras e que exigem investimentos em capital reprodutível (Szklo; Schaeffer, 2006). Essa ideia é defendida pelo cientista 14 quando afirma que “com os recursos advindos da produção do petróleo do pré-sal, o Brasil poderá investir de forma consistente em programas tecnológicos para geração de energia ‘limpa’. Isso nos permitirá ingressar de maneira mais robusta na fase pós-petróleo” (trecho de texto publicado em O Globo em 2009). Essa posição é reforçada também em artigo científico, cuja autoria é compartilhada pelos cientistas 13, 18 e 16: “devido à percepção de urgência da mudança climática, ao contrário da maioria das transições passadas, a transição para um regime baixo em carbono precisará ser deliberadamente gerenciada ou projetada. O uso de parte das rendas do petróleo pode ajudar a ‘projetar essa transição’” (trecho de artigo científico publicado na revista Energy Policy em 2014; tradução nossa).
Essa narrativa defende o petróleo enquanto fomentador de sistemas de energia alternativos baseados em fontes renováveis, conforme entendimento dos cientistas 16 e 18. Para estes, por meio de suas infraestruturas consolidadas e do aprendizado tecnológico, é o petróleo que estabelece a escala necessária para a introdução de novas fontes de energia. Esse entendimento é colocado em artigo cuja autoria é compartilhada por alguns cientistas que reproduzem a narrativa C, no qual afirmam que: “é vital incluir o petróleo na ‘equação dinâmica’, descrevendo a transição para uma economia ‘mais descarbonizada’. É vital garantir que as virtudes do petróleo deixem de ser barreiras para as fontes alternativas e se tornem agentes facilitadores dessas mesmas fontes alternativas” (trecho de artigo científico publicado na revista Energy em 2006; tradução nossa).
Esta narrativa destaca as “virtudes do petróleo” (Szklo; Schaeffer, 2006) como catalizadoras do processo de desenvolvimento e disseminação de fontes renováveis. Para o cientista 20, “o uso inteligente do Pré-sal é utilizar estes recursos para potencializar a transição para outra matriz energética, aproveitando as vantagens comparativas do Brasil em biomassa, solar, eólica, pequenas hidrelétricas” (Cientista 20, trecho de texto divulgado no Valor Econômico em 2009). Além dos recursos financeiros, o conhecimento científico e tecnológico desenvolvido para as condições geológicas extremas do Pré-sal brasileiro, principalmente na área de novos materiais e softwares, são tratados nessa narrativa como pilares importantes para a transição energética. Conforme a cientista 12, esse conhecimento e tecnologia “serve para outras coisas também, e você vai se desenvolvendo, vai criando capacidades que podem ser aplicadas em outras fontes energéticas, além da indústria de petróleo e gás” (Cientista 12, trecho de entrevista concedida em 2015).
Ao mesmo tempo, em curto prazo, a narrativa sugere a substituição de energias fósseis mais poluentes por outros fósseis de menor emissão de GEE. Nesse sentido, o gás natural das reservas do Pré-sal é colocado em destaque “como o mais limpo dos combustíveis fósseis” (Cientista 13, trecho de texto divulgado na Revista Pesquisa Fapesp em 2016), “que vai permitir a transição de um mundo mais carbono intensivo para um mundo menos carbono intensivo” (Cientista 18, em trecho de texto divulgado no site Pagina 22). Essa posição em relação ao gás natural tem sido defendida em um conjunto de trabalhos que apontam as potencialidades desse combustível na transição energética (McGlade et al., 2018; Vahl; Casarotto Filho, 2015; Santos et al., 2007).
Essa narrativa apresenta uma posição atenuante ou paliativa para o problema climático, justificando também o próprio petróleo do Pré-sal como menos danoso ao clima que “as areias betuminosas do Canadá e o petróleo ultrapesado da Venezuela” (Cientista 13, trecho de texto divulgado na Folha de S. Paulo em 2009). Do mesmo modo, para o cientista 18, “se o Brasil exporta petróleo do Pré-sal, que é um petróleo bom, você até poderia dizer, sim, que o País está ajudando a reduzir as emissões no mundo” (Cientista 18, trecho de texto divulgado no site Pagina 22).
Quadro 2. Síntese das narrativas analisadas
Narrativas científicas sobre o Pré-sal brasileiro | |
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Agravante da mudança climática (Narrativa A) | Imagem de um sistema próximo do colapso ou do descontrole. Necessidade de ações preventivas e de intervenção para deter ou retardar crise iminente. História de declínio. Necessidade de diminuição da exploração dessas reservas e reversão dos investimentos energéticos em fontes renováveis. Questionamento da perspectiva do Pré-sal enquanto fator de redenção social e eixo condutor do desenvolvimento nacional. Cientistas afiliados a diferentes áreas de conhecimento. |
Eixo do desenvolvimento nacional (Narrativa B) | Reconhecimento da problemática do clima e da relação direta entre os combustíveis fósseis e o aquecimento do planeta. Impacto, contribuição e responsabilidade do Pré-sal para o problema é questionado e relativizado frente aos potenciais benefícios do empreendimento para o país. Setor petrolífero é visto como uma mola propulsora do desenvolvimento pelo efeito multiplicador que exerce sobre outros setores industriais e de serviços. Cientistas principalmente das áreas de planejamento energético, relações internacionais e ciências políticas. |
Fomentador da transição energética para fontes de baixo carbono (Narrativa C) | As metas e alcances na redução das emissões em torno do uso da terra permitirão o aumento das emissões do setor petrolífero sem comprometer os compromissos firmados pelo país. O Pré-sal brasileiro é estratégico tanto do ponto de vista da segurança, quanto da transição energética. Os recursos financeiros, científicos e a infraestrutura já consolidada do petróleo podem ser utilizados para a disseminação de fontes renováveis. Perspectiva atenuante, paliativa e gradual da transição energética. Cientistas predominantemente da área de planejamento energético. |
Narrativas científicas sobre o Pré-sal e processo decisório climático brasileiro
Neste tópico, analisa-se a forma como os argumentos, ideias e perspectivas dessas três narrativas apareceram na Política Nacional de Mudanças Climáticas e na INDC brasileira apresentada na COP 21 em Paris.
Política Nacional de Mudanças Climáticas
A PNMC, aprovada em 2009 (Lei nº 12.187/09), formalizou os compromissos assumidos internacionalmente pelo país na COP 15 e se tornou o marco regulatório para as ações brasileiras de mitigação e adaptação (Motta, 2011). Ela estabeleceu a meta voluntária de redução de emissões de GEE entre 36,1% e 38,9% até 2020, baseada nas emissões de 2005, por meio de planos setoriais de mitigação (energético, agrícola e siderúrgico) e conservação de biomas, principalmente a Amazônia e o Cerrado (Rodrigues Filho et al., 2016). Para La Rovere e colaboradores (2014), o foco das ações de mitigatição na PNMC estava, sobretudo, voltado ao setor de uso da terra, especificamente no combate ao desmatamento da Floresta Amazônica.
A PNMC foi baseada no Plano Nacional de Mudanças Climáticas, resultado da articulação e mobilização do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, desde 2000 (Barbi, 2016). O governo federal vetou pontos na PNMC que traziam orientações e diretrizes em relação aos combustíveis fósseis. Por exemplo, foi excluído o inciso III do art. 4º que entendia que a PNMC visava ao “estímulo ao desenvolvimento e ao uso de tecnologias limpas e ao paulatino abandono do uso de fontes energéticas que utilizem combustíveis fósseis” (Brasil, 2009a). Também foi vetado o artigo 10 que versava sobre “a substituição gradativa dos combustíveis fósseis, como instrumento de ação governamental no âmbito da PNMC” (Brasil, 2009a). O Ministério de Minas e Energia justificou, em documento oficial, que a política energética do país já vinha priorizando a utilização de fontes de energia renováveis em sua matriz, o que tornava inadequada, segundo o então ministro, uma diretriz focada no abandono do uso de combustíveis fósseis (Brasil, 2009b).
Essas alterações na PNMC evidenciam que o governo buscou preservar o Pré-sal de compromissos e questionamentos em relação à questão climática. Essa interpretação é reforçada no Plano Decenal de Energia (PDE) de 2015, que é um instrumento da PNMC. Nesse PDE, cerca de 70% dos recursos previstos (cerca de R$ 1 trilhão e meio de reais) para investimentos até 2025 estavam voltados à exploração e produção de fontes fósseis como petróleo e gás. Para o desenvolvimento de biocombustíveis, por exemplo, foram previstos em torno de 3% desse total (EPE, 2015). Nesse sentido, o PDE é visto como um dos instrumentos mais refratários a ações efetivas que contribuam com reduções nas emissões de GEE dentro da PNMC (Neves; Chang; Pierri, 2015). A participação relativamente alta da energia renovável no sistema energético brasileiro, comparado à média de outros países, foi retradada pelo governo como demonstração efetiva da contribuição do Brasil, sendo o Pré-sal não prejudicial nesse sentido (Vieira; Dalgaard, 2013).
Para o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que assessorava o Ministério de Minas e Energia (MME) na área de estudos e pesquisas sobre planejamento energético entre 2004 e 2016, “não existe incompatibilidade do Pré-sal com a manutenção da matriz renovável” (trecho de texto divulgado no site Página 22, 2014). Ainda na sua concepção, e em consonância com as narrativas B e C, “todos os órgãos internacionais não apontam que o petróleo será substituído no curto prazo” (trecho de texto divulgado no site Página 22 em 2014).
O argumento e a preocupação da narrativa A - de que o Pré-sal seria um agravante do aquecimento global, independentemente de se o consumo desse petróleo ocorrer dentro ou fora do país - não foram considerados na PNMC com os vetos do governo em relação aos pontos que tratavam dos combustíveis fósseis. Para o governo brasileiro, como também evidenciado nas narrativas B e C, o Pré-sal não seria incompatível com os compromissos climáticos brasileiros, já que a maior parte do petróleo seria exportada, e mesmo as emissões adicionais do Pré-sal no país seriam compensadas por ações na área de uso do solo e energia renováveis. Portanto, assim como na Noruega (Down; Erickson, 2017), o Brasil sinaliza reduzir as emissões e limpar a sua própria contabilidade de carbono internamente, mas fazendo o oposto no exterior, considerando que a maior parte do petróleo do Pré-sal seria voltada à exportação6.
Se existe uma sintonia entre os argumentos das narrativas B e C e os discursos e ações governamentais, não se pode dizer o mesmo em relação às expectativas destas narrativas quanto ao Pré-sal se constituir num eixo do desenvolvimento nacional e fomentador de energias renováveis. Em termos de políticas sociais, os recursos do Fundo Social, por exemplo, não têm sido aplicados a contento em setores chaves como educação e saúde. Falhas e brechas na regulamentação desse fundo têm levado à aplicação dos recursos em outras finalidades (BBC Brasil, 2016), e à proposição de medidas no Congresso Nacional para reduzir a destinação de recursos para tais setores. Em 2018, uma das propostas em tramitação no Congresso pretendia retirar 20% das receitas do Fundo Social do Pré-Sal destinadas a investimentos em saúde e educação, para subsidiar a expansão da rede de gasodutos do País (Warth, 2018; Ventura, 2018).
Embora o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC)7, enquanto instrumento da PNMC, tenha começado a utilizar os recursos provenientes do setor fóssil para apoio a projetos e estudos e financiamento de ações que visem à mitigação e à adaptação climática (Neves; Chang; Pierri, 2016), essa destinação foi prejudicada em 2012 com a aprovação do novo marco regulatório do Pré-sal. Uma parte dos recursos da participação especial8 na exploração de petróleo que era destinada ao FNMC acabou sendo destinada ao Fundo Social do Pré-sal. Desde 2012, o FNMC, que era o único mecanismo que previa a dotação de recursos petrolíferos para enfrentamento da mudança climática, não tem nenhuma previsão orçamentária seja do Fundo Social ou por qualquer fatia do orçamento da União.
Alguns trabalhos (Machado; Vilani, 2016; Viola; Franchini, 2013; Vieira; Dalgaard, 2013) sustentam que os altos investimentos do Brasil em combustíveis fósseis ilustram uma contradição entre a política energética e a retórica ambiental no processo de tomada de decisões do governo brasileiro. Para Viola e Franchini (2013), esse movimento já colocou certos limites à política externa brasileira em relação à transição para uma economia de baixo carbono, com a moderação da diplomacia do etanol desde o final de 2007.
Quadro 3. Síntese dos pontos centrais do governo brasileiro para a PNMC e conexões com as narrativas científicas analisadas
Pontos centrais do governo brasileiro para a proposta da PNMC | Narrativas científicas |
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Preservação da exploração e produção de petróleo do Pré-sal de compromissos, restrições e questionamentos em relação à questão climática | B, C |
Brasil tem participação relativamente alta na matriz energética renovável comparado à média de outros países | B |
Não existe incompatibilidade do Pré-sal com a manutenção da matriz renovável | B, C |
Órgãos internacionais não apontam que o petróleo será substituído no curto prazo | B |
Pré-sal não seria incompatível com agenda climática, já que a maior parte do petróleo seria exportada e as emissões nacionais seriam compensadas por ações na área de uso do solo e energia renováveis | C |
Utilização da renda do petróleo para promoção de fontes renováveis no país | B, C |
Fonte: Elaboração dos autores.
COP-21 e iNDC brasileira
O Acordo de Paris, firmado ao final da COP-21, marca um novo modelo de contribuição dos países, não mais com imposição de metas, mas com contribuições voluntárias, sendo que cada país indicou sua iNDC com base nas suas capacidades domésticas (Victor, 2016). A iNDC brasileira propõe a redução de 37% de GEE em 2025 e de 43% de redução em 2030, em comparação com os valores de 2005 (Itamaraty, 2015). A contribuição brasileira estabelece algumas diretrizes: aumento do uso de biocombustíveis, desmatamento ilegal zero, restauração e reflorestamento de 12 milhões de hectares, participação de 45% de energias renováveis na matriz energética, aumento da participação de fonte eólica, solar e biomassa, alcance de 10% de eficiência energética, e fortalecer a agricultura de baixa emissão, todos até o ano de 2030 (Itamaraty, 2015).
Reis e colaboradores (2017) entendem que agricultura e ecossistemas ainda são os principais eixos estruturantes da iNDC proposta pelo Brasil, mesmo com uma mudança nas emissões entre 2005 e 2014. Em 2005, o setor de uso do solo foi responsável por 58% das emissões nacionais. Entretanto, as emissões do setor de uso da terra diminuíram significativamente, atingindo 19% do total de emissões em 2014. Essa redução nas emissões deveu-se principalmente à redução do desmatamento na Amazônia desde 2004. Já as emissões de outros setores de atividade aumentaram nesse período. Energia e agricultura foram os setores que tiveram o maior aumento nas emissões de 2005 a 2012. Em 2014, as emissões do setor de energia, por exemplo, representaram 36% do total.
Um dos estudos que embasaram a iNDC brasileira na COP-21, intitulado “Implicações econômicas e sociais de cenários de mitigação de gases de efeito estufa no Brasil até 2030-IES-Brasil” (La Rovere et al., 2016), envolvendo trinta cientistas brasileiros, aponta que as ações voltadas ao desmatamento seriam ainda o principal eixo que iria permitir ao país cumprir os objetivos de redução das emissões em 2020. O estudo considerou, em seus cenários futuros de emissões, a expansão da extração de óleo bruto no país de 167% entre 2010 e 2030, atingindo a marca de 5,5 milhões de barris por dia (Mbbl/dia). Assumiu-se, dentro da perspectiva das narrativas B e C, que a maior parte do volume extraído (57% em 2030) seria destinada à exportação e, consequentemente, não comprometendo as metas de redução de emissão no país.
Diante desse quadro, algumas análises (Araújo; Leite, 2016; Lucon et al., 2016) sugerem que, mesmo com as intenções de expansão dos biocombustíveis na sua INDC, o Brasil tem se tornado mais intensivo em carbono, e não menos, devido ao aumento da dependência de combustíveis fósseis e investimentos pesados nos campos de petróleo do Pré-Sal. Além disso, tem tomado decisões contraditórias à sua iNDC. Em 2015, por exemplo, o governo cortou do plano plurianual de investimentos para 2016-2019 a inclusão da expansão da geração de energia solar e eólica e aumentou subsídios para a indústria de petróleo (Araújo; Leite, 2016). Outro exemplo nesse sentido foi a aprovação da Lei nº 13.586 de 2017, que prevê uma série de subsídios por 20 anos para petrolíferas estrangeiras que atuam no país e para a estatal Petrobras. O Congresso Nacional já havia aprovado, em 2016, a Lei 13.365/2016, que revogou a obrigatoriedade da participação da Petrobras como única operadora na exploração do petróleo do Pré-sal. Essa mudança abriu caminho para acelerar o ritmo de investimentos estrangeiros no setor e elevar a participação de outras gigantes petroleiras na produção de petróleo e gás no Brasil (Alvarenga, 2016). Essa é outra decisão que frustra as expectativas de cientistas das narrativas B e C. Para o cientista 15, “a mudança enfraquece a Petrobras e retira a prioridade do Brasil no desenvolvimento de tecnologia para a exploração de águas profundas” (Cientista 15, trecho de texto divulgado no Portal G1, 2016).
Após a apresentação da iNDC brasileira, mesmo as ações de combate ao desmatamento, que eram o principal carro chefe do país no campo da mitigação, vêm sofrendo ameaças num contexto de crise e instabilidade política. Rochedo et al. (2018) argumentam que o abandono das políticas de controle do desmatamento e o apoio político às práticas agrícolas predatórias, por exemplo, têm colocado em risco a contribuição do Brasil para o Acordo de Paris. O novo quadro político nacional também traz novas incertezas e ameaças no campo da diplomacia climática e nos compromissos assumidos pelo país nesse tema. Marcado por um discurso anti-ambientalista, o atual governo recusou-se a sediar a COP-25 e se manifestou a favor da retirada do país do Acordo de Paris, caso fira a soberania nacional (Klein; Rosas, 2018).
Quadro 4 Síntese dos pontos centrais do governo brasileiro para a iNDC e conexões com as narrativas científicas analisadas
Pontos centrais do governo brasileiro para a proposta da INDC | Narrativas científicas |
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Preservação da exploração e produção de petróleo das metas e ações de mitigação do país | B, C |
Aumento do uso de biocombustíveis e energias renováveis sem diminuição da exploração e exportação do petróleo | B, C |
Desmatamento ilegal zero, restauração e reflorestamento são pontos centrais para a mitigação | C |
Fortalecimento da agricultura de baixa emissão | - |
Permanência e intensificação da produção petrolífera no país nas próximas décadas | B |
Considerações finais
Na arena científica brasileira, e sobretudo entre o grupo de cientistas analisado neste artigo, o debate sobre a mudança climática não está pautado e nem restrito às posições dicotômicas entre céticos e aquecimentistas. Contudo, o prevalecente consenso sobre o problema foi substituído por divergências em torno das ações de mitigação no país. Num contexto nacional marcado pela existência de grandes reservas petrolíferas e por seu real peso político, social, econômico e tecnológico, a amplitude de disciplinas, visões e abordagens científicas contribuiu para o surgimento de diferentes narrativas científicas sobre o papel do petróleo num contexto de mudança climática e de transição energética.
Diferentemente de visões que mostram que os cientistas tendem a estar associados a frames que destacam problemas e suas causas, enquanto os políticos e gestores a frames que enfatizam julgamentos e soluções (Trumbo, 1996), as três narrativas científicas analisadas evidenciam tanto interpretações causais quanto expectativas e proposições sobre petróleo e mudança do clima. Nessas narrativas, combinam-se tanto elementos factuais quanto subjetivos, tais como o otimismo individual, enredos dramáticos, símbolos, esperança, orgulho nacional e incerteza (Sovacool; Brossmann, 2013). Se, para a narrativa A, os benefícios globais gerados com a redução da extração de petróleo no Brasil são concretos e diretos para minimizar o problema climático global, para as narrativas B e C isso não é claro e certo. Além disso, para essas duas últimas narrativas, a utilização do Pré-sal é justificada com base na contínua demanda por petróleo, na inexistência de restrições legais e políticas para o uso dessa fonte, na possibilidade de os recursos gerados serem empregados em políticas sociais, científicas e tecnológicas e, ainda, de servirem como uma alavanca para a transição energética.
Portanto, as narrativas analisadas evidenciam a multidimensionalidade e complexidade das questões energética e climática, especificamente em relação ao papel e uso de petróleo em países com grandes reservas deste recurso, como é caso brasileiro. Contudo, essas narrativas também contribuíram para embasar e justificar decisões governamentais voltadas para o aumento da disponibilidade de petróleo no mercado global. Tais decisões dificultam a diminuição do peso dos combustíveis fósseis na matriz energética global a médio prazo, colocando em cheque os acordos climáticos internacionais de não ultrapassar o aumento de 1,5ºC na temperatura média global.
Das três narrativas científicas tratadas, as narrativas B e C apresentaram maior proximidade e entrelaçamento com as decisões do governo brasileiro, na COP-15 e COP-21, de proteger o Pré-sal de questionamentos, imposições e compromissos de ordem climática e de concentrar suas ações de mitigação, principalmente no setor de uso e ocupação da terra. Nesse sentido, não é possível falar, portanto, numa desconexão entre ciência e política em relação às decisões que levaram à intensificação da produção petrolífera no Brasil com o Pré-sal. Entretanto, as expectativas e prescrições presentes e constituintes das narrativas B e C em relação ao Pré-sal (de este constituir-se num indutor de desenvolvimento nacional e de transição energética) não se concretizaram até o momento e defrontam-se com limites e incertezas para o futuro. Cabe destacar, ainda, que mesmo o combate ao desmatamento, principal foco das propostas empreendidas pelo Brasil, sobretudo na iNDC, encontra-se ameaçado com a nova correlação de forças no executivo federal resistente à questão climática. O Brasil, visto anteriormente como um importante ator global na mitigação, pode reverter drasticamente seu papel.
Por fim, do ponto de vista teórico-metodológico, o artigo evidencia e reforça a relevância da abordagem de narrativas científicas para compreensão do processo de policy making e das interfaces entre ciência e política em torno de questões controversas e multifacetadas, como é o caso da mudança climática.