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A patologia da normalidade: Erich Fromm e a crítica da cultura capitalista contemporânea

The pathology of normalcy: Erich Fromm and the critique of contemporary capitalist culture

Resumo

Neste artigo, procuro problematizar a crítica de Erich Fromm à cultura do capitalismo contemporâneo. Para tanto, faço uma releitura especialmente, mas não apenas, de uma de suas principais obras maduras, o livro Psicanálise da sociedade contemporânea (The sane society), no qual o autor sedimenta seu projeto analítico de uma “psicanálise humanista”. Na primeira parte o artigo reconstrói, através da ideia de “patologia da normalidade”, a crítica de Fromm aos fundamentos culturais do capitalismo contemporâneo. Na segunda parte, a reconstrução é levada adiante através dos conceitos de “caráter social” e “alienação”, de modo a compreender como o capitalismo tardio do século XX aprofunda, como nunca antes, uma cultura anti-humanista. Na conclusão, procuro argumentar como a obra de Fromm pode ser de grande valia para a compreensão dos problemas tanto individuais quanto coletivos da atualidade.

Palavras-chave
Erich Fromm; patologia da normalidade; caráter social; alienação; capitalismo

Abstract

In this article, I seek to problematize Erich Fromm’s critique of the culture of contemporary capitalism. To this end, I especially review, but not only, one of his main mature works, the book The Sane Society, in which the author establishes his analytical project of a “humanistic psychoanalysis”. In the first part, the article reconstructs, through the idea of a “pathology of normalcy”, Fromm’s critique of the cultural foundations of contemporary capitalism. In the second part, this reconstruction is carried forward through the concepts of “social character” and “alienation”, to understand how the late capitalism of the 20h century deepens as never before an anti-humanistic culture. In the conclusion, I argue that Fromm’s work can be of great value in understanding both the individual and collective problems of today.

Keywords
Erich Fromm; pathology of normalcy; social character; alienation; capitalism

Erich Fromm é, sem dúvida, um dos maiores pensadores da modernidade. Sua vasta obra é de fundamental importância, tanto para o desenvolvimento da psiquiatria e psicologia contemporâneas quanto para a filosofia e as ciências sociais. Neste artigo, eu gostaria de explorar alguns aspectos do seu pensamento, com o objetivo de demonstrar como este é decisivo para a construção de uma crítica à cultura do capitalismo contemporâneo. Para tanto, vou recorrer especialmente, mas não apenas, ao seu livro Psicanálise da sociedade contemporânea (1970) (The sane Society, 1955), sem dúvida uma de suas principais obras. O livro é a parte final de uma trilogia, que se inicia com O medo à liberdade (1974) (Escape from freedom, 1941) e tem como sequência Análise do homem (1964) (Man for himself, 1947). Neste seu projeto analítico, que encontra seu auge no terceiro livro, Fromm leva a cabo a sua tentativa de compreender as razões do mal-estar existencial predominante na modernidade, atentando para suas consequências políticas negativas.

A trilogia faz parte da obra madura de Fromm. Em O medo à liberdade (1974), ele demonstra que os movimentos totalitários apelavam para o anseio de fugir à liberdade conquistada na modernidade na qual o indivíduo, liberto das amarras medievais, não estava em liberdade para construir uma vida significativa baseada na razão e no amor, procurando, por isso, a segurança na submissão a um líder, uma raça ou um Estado. Também em Análise do homem (1964), Fromm procurou tratar de um mecanismo psicológico específico, no quanto isso pareceu condizente com seu objetivo principal. No primeiro livro da trilogia, ele enfrenta principalmente o problema do caráter autoritário, como no caso do sadismo e do masoquismo. No segundo livro, ele vai além e procura desenvolver a ideia de várias orientações de caráter, substituindo o sistema freudiano do desenvolvimento da libido por uma concepção da evolução do caráter em termos interpessoais (Fromm, 1964FROMM, Erich. Análise do homem. Rio de janeiro: Zahar editores, 1964.). Nesse livro, definido por ele mesmo como uma “psicologia da ética”, o autor procurou discutir o problema da ética, das normas e dos valores como condutores da realização e das potencialidades do eu.

Com isso, desde o primeiro livro da trilogia, no qual fez uma reconstrução da ideia de liberdade desde a era da Reforma, passando pela tematização de mecanismos de fuga como autoritarismo, destrutividade e conformismo de autômatos, Fromm esteve preocupado, assim como outros teóricos da primeira geração de Frankfurt, em compreender a “psicologia do nazismo” (Fromm, 1974FROMM, Erich. O medo à liberdade. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1974.). Também Adorno se debruçou sobre o tema do fascismo e a questão da autoridade, em ensaios emblemáticos como Antissemitismo e propaganda fascista, Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista e Observações sobre política e neurose (Adorno, 2015ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.), além de seu clássico Estudos sobre a personalidade autoritária, de 1950 (Adorno, 2019ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora da Unesp, 2019.), no qual procurou, a partir de pesquisa empírica, desenvolver um método para medir os níveis de internalização de preconceitos (pensando a partir do antissemitismo) e da ideologia totalitária, típicos da personalidade autoritária. Horkheimer também apresenta contribuições importantes nessa direção, como, por exemplo, em seu artigo Autoridade e família, no qual analisa a família burguesa como cerne de reprodução dos padrões autoritários do capitalismo tardio (Horkheimer, 2015HORKHEIMER, Max. Teoria crítica. São Paulo: Perspectiva, 2015. t. I: Uma documentação.), com o que concorda totalmente Fromm, como veremos adiante.

Para Fromm, em consonância com isso, seria preciso compreender a ilusão da individualidade e os paradoxos da liberdade como impedimentos culturais específicos para a construção de uma sociedade democrática. Não por acaso, O medo à liberdade é escrito e publicado em 1941, durante a segunda guerra mundial. Nele, Fromm ressalta que os eventos políticos daquele momento e os riscos neles implícitos para as conquistas máximas da cultura moderna, ou seja, a individualidade e a originalidade da personalidade, fizeram-no concentrar-se no aspecto decisivo para a compreensão da crise cultural e social dos seus dias, a saber, o significado da liberdade para o indivíduo moderno (Fromm, 1974FROMM, Erich. O medo à liberdade. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1974.). A preocupação central com o problema da liberdade também pode ser vista nas análises de Marcuse, tanto em seu Eros e civilização, de 1955 (Marcuse, 1975MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1975.), no qual procura reconstruir o problema do domínio sob o princípio de realidade freudiano, bem como posteriormente, em O homem unidimensional, de 1964, no qual analisa o problema das novas formas de controle no capitalismo tardio e, consequentemente, a construção de uma consciência infeliz (Marcuse, 2015MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional. Estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro, 2015.).

Outro ponto alto da obra madura de Fromm é seu livro A sobrevivência da humanidade (1964) (May man prevail?, 1961). O livro é surge no ápice da guerra fria e de suas consequentes preocupações, como seu título sugere. Nele, o autor atualiza suas teses sobre o autoritarismo, a liberdade e a democracia. Sua crítica agora é montada contra o perigoso senso comum predominante nos Estados Unidos e no Ocidente como um todo, ou seja, o de que o comunismo, representado pela União Soviética e a China, seria um movimento revolucionário-imperialista empenhado na conquista do mundo pela força ou pela subversão. Com isso, apenas um potencial de contra-ataque e de retaliação suficientemente forte seria capaz de conter tal ameaça e de assegurar a paz, o que dependeria de aliados militares em todo o mundo (Fromm, 1964FROMM, Erich. A sobrevivência da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1964.).

Nada poderia ser mais falso e perigoso, segundo Fromm. Tal posição era fortalecida pela convicção de que a política norte-americana não era apenas a única esperança de sobrevivência material, mas também a única recomendada pelas considerações morais e espirituais. Este senso comum acreditava representar a liberdade e o idealismo, enquanto os russos e seus aliados representariam a servidão e o materialismo. Considerava-se até mesmo o risco da guerra e da destruição, pois seria melhor morrer do que ser escravo (Fromm, 1964FROMM, Erich. Análise do homem. Rio de janeiro: Zahar editores, 1964.). Diante disso, nesse importante livro, atualmente esquecido no Brasil, assim como boa parte da obra de Fromm, o autor procura desconstruir estas falsas premissas, guiadas por suposições fictícias e deformadas de um “espírito confuso” que impunha um grave perigo a toda a humanidade (Fromm, 1964FROMM, Erich. A sobrevivência da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1964.). Qualquer semelhança com a realidade atual não é mera coincidência. Depois de levar a cabo seu importante projeto, com forte teor político, de diagnóstico e prognóstico das patologias da sociedade contemporânea, Fromm vai se dedicar cada vez mais a escritos de natureza existencial, como seus livros The art of loving, de 1956 (2008)FROMM, Erich. The art of loving. Nova York: Continuum, 2008., e To have or to be?, de 1976 (2013FROMM, Erich. To have or to be? Londres: Blommbury, 2013., que se destaca dentre seus últimos trabalhos.

Dentre seus comentadores e críticos, podemos ressaltar o trabalho de Rainer Funk. Em artigo recente, ele analisa como a obra de Fromm, especialmente com sua percepção relacional da ação e sua teoria sobre o caráter social, permite uma aproximação produtiva entre a psicanálise e a sociologia (Funk, 2019FUNK, Rainer. Erich Fromm: bringing psychoanalysis and sociology together. Fromm Forum, Tübingen, edição especial, n. 23, p. 9-23, 2019.). Nessa direção, o artigo de Adorno Sobre a relação entre sociologia e psicologia apresenta interessantes considerações, especialmente a partir de sua crítica a Parsons e às dificuldades deste em perceber a complexidade da relação entre personalidade e sociedade (Adorno, 2015ADORNO, Theodor. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.). No artigo Adorno e a psicanálise, Sérgio Paulo Rouanet (2003)ROUANET, Sérgio P. Adorno e a psicanálise. Tempo brasileiro, Adorno 100 anos, Rio de Janeiro, n. 155, p. 131-156, 2003. também tematiza aspectos interessantes dessa discussão.

Além destes, Thomas Kühn tem utilizado a psicanálise humanista de Fromm para tematizar as patologias e contradições atuais do mundo corporativo (Kühn, 2019KÜHN, Thomas. Leadership in a digitally transforming social world based on Fromm’s humanistic approach. Fromm Forum, Tübingen, edição especial, n. 23, p. 95-107, 2019.). Daniel Burston, por sua vez, ressaltou a importância da obra de Fromm para a história da psicanálise, inclusive por conta de seu debate com Marcuse acerca das questões do instinto e do inconsciente (Burston, 1991BURSTON, Daniel. The legacy of Erich Fromm. Cambridge: Harvard University Press, 1991.). Ademais, Neil McLaughlin analisou as razões complexas que levaram Fromm a se tornar influente no pensamento crítico norte-americano entre as décadas de 1940 e 1960, bem como sua redução ao ostracismo nos anos de 1970 e 1980, com a ascensão de Derrida, muito articulado academicamente, na Europa e nos Estados Unidos (McLaughlin, 1998MCLAUGHLIN, Neil. How to become a forgotten intellectual: intellectual movements and the rise and fall of Erich Fromm. Sociological Forum, v. 2, n. 3, p. 215-246, 1998.).

Recentemente, Hartmut Rosa afirmou que Fromm é o primeiro teórico da “ressonância” no século XX, conceito este cunhado por Rosa para retomar, nas sociedades atuais, o caminho contrário ao da alienação, preocupação esta sofisticada em Fromm, de modo a encontrar um verdadeiro lugar de conforto e liberdade do “ser no mundo” (Rosa, 2019ROSA, Hartmut. Die Quelle aller Angst und die Nabelschnur zum Leben: Erich Fromms Philosophie aus resonanztheoretischer Sicht. Fromm Forum, Tübingen, edição especial, n. 23, p. 144-160, 2019.). Além disso, outras leituras recentes procuraram fazer aproximações à obra de Fromm. Maccoby e McLaughlin (2019)MACCOBY, Michael; MCLAUGHLIN, Neil. Socialpsychoanalysis and radical humanism: a Fromm-Bourdieu synthesis. Fromm Forum, Tübingen, edição especial, n. 23, p. 45-57, 2019., por exemplo, fizeram um diálogo crítico entre Fromm e Bourdieu, a partir das semelhanças e diferenças entre os conceitos de caráter social e habitus, tendo como referência analítica um estudo de caso realizado por Fromm sobre o caráter social em uma comunidade mexicana. Ehnis e Voigt (2019)EHNIS, Patrick; VOIGT, Katrin. Fromm’s contribution to the analysis and critique of the ongoing rise of right-wing movements. Fromm Forum, Tübingen, edição especial, n. 23, p. 138-151, 2019., por sua vez, ressaltaram a atualidade de Fromm para se pensar a ascensão atual de movimentos de direita, compreendendo a ideia de alienação como baseada em sentimentos como ansiedade, sensação de impotência e indiferença. Além desses, Chancer (2019)CHANCER, Lynn. The compatibility of frommian and feminist theory: an argument for relevance and revision. Fromm Forum, Tübingen, edição especial, n. 23, p. 33-44, 2019. destacou a importância da obra de Fromm para os estudos feministas, considerando suas críticas ao amor simbiótico e ao sadomasoquismo, às necessidades de reconhecimento mútuo e às objeções aos pressupostos patriarcais na obra de Freud. Por fim, Uozumi (2019)UOZUMI, Tomohiro. Erich Fromm and American individualism. Fromm Forum, Tübingen, edição especial, n. 23, p. 177-181, 2019. percebeu a influência da tradição de análise do individualismo americano na obra de Fromm, especialmente em O medo à liberdade, tradição aquela que se remete a autores como Tocqueville, David Riesman e Robert Bellah. Nessa direção, Fromm teria sugerido que o autoritarismo é resultado da solidão como fruto do individualismo moderno.

Nas ciências sociais brasileiras, atualmente, a obra de Fromm é quase inexistente, ao contrário de Habermas e Honneth, expoentes das gerações posteriores da escola de Frankfurt. Uma busca recente na plataforma Scielo, tanto por “autor” quanto por “assunto”, não apresenta nenhum resultado. Uma rara referência encontrada é um artigo de Jessé Souza, sobre Freud, Fromm e Adorno, no qual procura comparar a obra dos três autores e analisar a recepção da psicanálise nos trabalhos empíricos da primeira geração de Frankfurt. Souza destaca o pioneirismo da obra de Fromm no sentido de perceber as predisposições socialmente adquiridas que podem levar à adesão de uma pessoa ao autoritarismo ou à democracia (Souza, 2008SOUZA, Jessé. Freud, Fromm e Adorno: acerca da recepção da psicanálise nos trabalhos empíricos da Escola de Frankfurt. In: MIGLIEVICH-RIBEIRO, Adélia et al. (Orgs.). A modernidade como desafio teórico: ensaios sobre o pensamento social alemão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 259-272.).

Voltando à Fromm, especialmente na parte final da trilogia, Psicanálise da sociedade contemporânea, ele oferece um formato final para o projeto que batizou como uma “psicanálise humanista” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 12). A tese central desta sua empreitada é

a de que as paixões básicas do homem não estão arraigadas em suas necessidades instintivas, mas nas condições específicas da existência humana, na necessidade de encontrar nova relação com o homem e a Natureza após haver perdido a relação primária da etapa pré-humana

(Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 12).

Esta afirmação parte de uma reconstrução do pensamento freudiano e permite a Fromm um duplo movimento interpretativo: ele culturaliza as paixões básicas da humanidade e sugere que elas podem mudar de acordo com a época histórica e o contexto econômico e social. A primeira parte do movimento ancora-se em sua ruptura com a perspectiva freudiana de que nossas paixões mais profundas se explicam por nossas necessidades instintivas. A segunda parte está embasada na identificação das “condições específicas da existência humana” como base para a construção do conteúdo de nossos desejos e da nossa vontade.

Com isso em mente, eu gostaria de fazer aqui um exercício teórico no sentido de utilizar esta compreensão de nossa condição cultural humana para tentar trazer à tona a especificidade do comportamento e das paixões determinados pelo conteúdo específico da cultura do capitalismo contemporâneo. Nesse sentido, a obra de Fromm apresenta sua relevância por perceber que a principal doença de nosso tempo não é aquela individualizada em pessoas que não se enquadram nos padrões do bom comportamento definidos pela cultura do mérito e do sucesso, mas sim uma doença coletiva e objetiva compartilhada em alguma medida por cada um de nós. Especialmente em Psicanálise da sociedade contemporânea, Fromm (1970)FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. procura ir além de seu preciso diagnóstico nos livros anteriores da trilogia, ao esboçar sugestões concretas para a construção de uma “sociedade sã”. Para tanto, Fromm estava muito convicto de que o “progresso”, no melhor sentido deste conceito, apenas pode existir quando acontecem simultaneamente determinadas modificações nas esferas econômica, sociopolítica e cultural, ou seja, qualquer progresso restrito a apenas uma dessas esferas seria destrutivo para o progresso em todas as outras (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

De modo a desenvolver aqui os argumentos de Fromm, dividirei o texto a partir de agora em duas partes. Primeiro, veremos como ele questiona nossa condição de saúde mental e identifica o seu oposto. Nesse sentido, será fundamental compreender o que Fromm define como “patologia da normalidade”. Depois, será preciso reconstruir de que maneira ele situa culturalmente o indivíduo na sociedade capitalista contemporânea, pensando especialmente na condição existencial construída desde a segunda metade do século XIX até a primeira do século XX. Nesta parte, precisaremos de especial atenção à relação entre os conceitos de alienação e saúde mental. Por fim, procuro esboçar uma conclusão que aponte para a atualidade da obra de Fromm, a partir de tais pressupostos.

A patologia da normalidade na cultura capitalista contemporânea

Devemos a ideia de patologia social, em boa medida, a Durkheim. Sua preocupação com a coesão social e com as formas de divisão do trabalho anômicas não por acaso estava intimamente articulada ao seu interesse em compreender as razões sociais do suicídio (Durkheim, 2019DURKHEIM, Émile. O suicídio. Estudo de sociologia. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2019.). Recentemente, Axel Honneth (2015)HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015. trouxe de volta a ideia de patologia como um elemento central em sua reconstrução crítica para a compreensão dos paradoxos do que chamou, tomando emprestada a definição de Richard Sennett (2006)SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006., de “novo capitalismo”. Desde os estudos clássicos de Durkheim até a obra contemporânea de Honneth, a identificação da patologia social enquanto chave interpretativa central das sociedades modernas encontra na obra de Erich Fromm um divisor de águas. Para ele, a patologia da normalidade seria a condição existencial insana das sociedades capitalistas contemporâneas, que ao mesmo tempo se imaginam como racionais e mentalmente sadias (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Não por acaso, em Psicanálise da sociedade contemporânea, Fromm inicia sua análise a partir de uma pergunta fundamental: somos mentalmente sadios? O pano de fundo que orienta esta questão é o mesmo que incomodou toda a primeira geração da escola de Frankfurt: um mundo que sobreviveu a duas guerras mundiais e que, nos anos de 1950, se apavorava com a possibilidade de uma terceira, nuclear, risco este que já naturalizamos em nosso imaginário atual e agora se transfere para a aceitação da política de morte da pandemia. Fromm inicia seu livro pintando um panorama geral acerca das contradições a esse respeito, tanto na vida política quanto na econômica e sociocultural. Em termos políticos, muitas vezes admiramos estadistas por tentarem evitar a guerra, desconhecendo o fato de que muitas vezes estes mesmos são os culpados. Em termos econômicos, restringimos nossa produtividade agrícola a fim de estabilizar o mercado, embora milhões de pessoas precisem de alimento. Nosso grau de alfabetização aumentou consideravelmente, além de nosso acesso aos meios de comunicação. Mas isso não nos tornou mais inteligentes nem nos deu acesso imediato ao que há de melhor na literatura ou na música. Pelo contrário, a indústria cultural toma boa parte de nosso tempo com coisas ordinárias, carentes de “senso de realidade” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Além disso, reduzimos a média de horas de trabalho à metade do seu total, em comparação com meados do século XIX, e com isso temos mais tempo livre. Não sabemos, entretanto, como utilizá-lo.

Diante desse panorama paradoxal, Fromm estrutura sua crítica a boa parte da psiquiatria e da psicologia, que se recusa a identificar na totalidade da sociedade (e não no indivíduo) uma carência de sanidade mental. Sua percepção fundamental aqui identifica que o problema da sanidade mental em uma sociedade não se resume ao número de indivíduos “desajustados” ou “desviantes”, mas ancora-se no desajustamento da própria cultura. Em outros termos, a preocupação fundamental de Fromm e sua principal chave analítica nessa direção não residem na patologia individual, mas sim na “patologia da normalidade” coletiva, particularmente referindo-se ao contexto da sociedade ocidental contemporânea (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Um indício do caminho equivocado tomado pela psiquiatria e pela psicologia dominantes, para Fromm, em seu tempo, deve-se à inexistência de dados que permitam identificar a incidência de doenças mentais nos vários países do mundo ocidental.

No geral, Fromm procurou condensar psicanálise e sociologia, reproduzindo aqui uma das marcas centrais da primeira geração de Frankfurt. A separação acadêmica dessas disciplinas impede a realização de análises mais amplas, como, por exemplo, perceber que a própria sociedade é que se encontra doente, ou seja, perceber a vida coletiva, em sua ação e representações, como um ente passível de padecimento e sofrimento. Este movimento teórico se mostra, a partir de autores como Fromm, Adorno, Marcuse e, posteriormente, Axel Honneth, fundamental para o desdobramento de um dos aspectos centrais da teoria crítica, que é exatamente identificar as patologias das sociedades contemporâneas e a busca por suas razões. Inclusive, é possível que a separação acadêmica entre psicanálise e sociologia tenha privado, nas últimas décadas, uma sociologia da cultura capitalista, como tento fazer aqui, de recursos analíticos provenientes do casamento entre as duas disciplinas.

Nesta perspectiva, Fromm considera correta a suposição de que um alto índice de suicídio em uma sociedade reflita diretamente a sua falta de estabilidade e de saúde mental. Para ele, estava claro que esse cenário não resulta de pobreza material, considerando que os países mais pobres apresentam os mais baixos índices de suicídio, segundo dados da década de 1950, e que a crescente prosperidade material da Europa foi acompanhada por um número crescente de suicídios. Fromm também estava convicto de que o alcoolismo é um sintoma de instabilidade mental e emocional. Longe de reproduzir o clichê de que os países ricos são tristes e os pobres são felizes, Fromm estava identificando no suicídio e no alcoolismo efeitos de um problema experienciado coletivamente. Com efeito, ele sabia que as causas estavam ancoradas em aspectos essenciais da cultura capitalista.

Não por acaso, Fromm identifica na combinação entre índices de suicídio e homicídio um interessante fator sobre a insanidade mental de seu tempo. O que mais chamou sua atenção foi que os dados derivavam de países ricos como Estados Unidos, Suíça, Suécia e Dinamarca. Sua conclusão é alarmante: os países da Europa que se situam entre os mais democráticos, pacíficos e prósperos, ao lado dos Estados Unidos, são exatamente aqueles que apresentam os mais sérios sintomas de perturbação mental (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Com isso, chegamos a um ponto alto da análise, quando ele identifica a grande contradição cultural e existencial do Ocidente. Ou seja, o objetivo de todo o desenvolvimento socioeconômico do mundo ocidental é a vida materialmente confortável, além da distribuição relativamente igual de riqueza, da democracia estável e da paz. Na prática, os países que mais se aproximaram deste ideal são exatamente aqueles que apresentaram os maiores sintomas de desequilíbrio mental. Isso o conduz a algumas perguntas de ordem fundamental:

Será que a vida de prosperidade da classe média nos deixa, a despeito de atender às nossas necessidades materiais, com uma sensação de intenso tédio, sendo o suicídio e o alcoolismo formas patológicas de fuga a esse tédio? Serão aquelas cifras uma drástica ilustração confirmadora de que “nem só de pão vive o homem”, e indicativas de que a civilização moderna malogra em satisfazer às necessidades profundas do homem? Em caso afirmativo, quais serão estas necessidades insatisfeitas?

(Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 24).

O enfrentamento a estas questões o leva a uma pergunta-síntese: pode uma sociedade estar enferma? É a partir dela que ele procura desenvolver a ideia de patologia da normalidade. Para tanto, Fromm se posiciona contra um relativismo sociológico dominante em sua geração. Ele está se referindo aqui à postura da maioria dos sociólogos que acreditavam ser uma sociedade normal enquanto esta aparentemente “funciona” e que uma patologia só pode ser definida em termos da falta de ajustamento individual ao estilo de vida coletivo (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Para ele, em contrapartida, falar de uma “sociedade sã” implica uma premissa diferente desse relativismo sociológico. Isso apenas faz sentido se admitirmos a existência de uma sociedade que não seja sã, e esta suposição implica, por sua vez, a existência de algum critério universal de saúde mental válido para toda a humanidade. Apenas este critério pode permitir o julgamento do estado de saúde de cada sociedade. Esta seria uma postura básica de seu “humanismo normativo”, como ele mesmo o define (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 26).

Nesse sentido, o que em sua geração se chamava de “natureza humana” não passa de uma de suas muitas manifestações e, com frequência, de manifestação patológica, tendo sido geralmente a função dessa definição equivocada defender um tipo particular de sociedade como sendo consequência necessária da constituição mental da humanidade (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Assim, o verdadeiro problema, para Fromm, está em deduzir a “essência” comum a toda a “raça humana” das inumeráveis manifestações de sua natureza, tanto “normais” quanto patológicas, como podem ser observadas nos diversos indivíduos e diferentes culturas.

O que a humanidade faz no processo histórico, segundo Fromm, é desenvolver o seu potencial, transformando-o de acordo com as suas próprias possibilidades. Este ponto de vista não é nem biológico nem sociológico, mas transcende esta dicotomia pela suposição de que as principais paixões e tendências humanas resultam da “existência total” da humanidade, de que são definidas e determináveis, conduzindo algumas delas à saúde e felicidade, outras, à doença e à infelicidade (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Uma determinada ordem social não “cria” essas tendências fundamentais, mas estabelece quais das paixões em potencial, que existem em número limitado, deverão tornar-se manifestas ou dominantes.

Com isso, o humanismo normativo considera que a saúde mental só é de fato alcançada se a humanidade se desenvolve até a plena maturidade, segundo as características da natureza humana. A insanidade mental, nesse sentido, consiste no malogro de tal desenvolvimento. Baseado nesta premissa, o critério de saúde mental não deve ser o de ajustamento individual a uma determinada ordem social, mas um critério universal, válido para toda a humanidade, que ofereça alguma resposta satisfatória ao problema da existência humana (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Tais percepções pavimentam o caminho para que Fromm identifique uma importante diferença entre doença mental individual e doença mental social. Para tanto, ele sugere uma diferenciação entre os conceitos de “defeito” e “neurose” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Isso nos conduz a uma reflexão sobre a própria ideia de liberdade. Para Fromm, se uma pessoa malogra em atingir a liberdade, a espontaneidade e a expressão genuína do eu, ela pode ser considerada possuidora de sérios defeitos, desde que se admita que a liberdade e a espontaneidade são fins objetivos a serem atingidos por cada ser humano. Logo, se este fim não é atingido pela maioria de uma determinada sociedade, temos um fenômeno de “defeito socialmente modelado” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 29). Com isso, uma pessoa pode ter perdido algo em riqueza humana e em sentimento autêntico de felicidade, sendo compensado pela segurança da harmonia com o resto da humanidade, pelo menos da forma como ele a conhece. Na verdade, seu próprio defeito poderá ter sido elevado à categoria de virtude por sua cultura, podendo, com isso, proporcionar-lhe uma intensa sensação de êxito (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Sendo assim, o defeito socialmente modelado pela cultura capitalista contemporânea nos conduz à condição de criaturas que agem e sentem como autômatos, que jamais experimentam algo de realmente seu, que sentem o seu eu inteiramente como pensam que supostamente o seja. Para ele, com isso, o sorriso artificial substituiu o sorriso espontâneo, a tagarelice substituiu a palestra comunicativa e o surdo desespero substituiu a dor autêntica (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Com efeito, para a maioria das pessoas, a cultura oferece modelos que permitem “viver com um defeito sem se tornar doente”. Tudo funciona como se cada cultura fornecesse o remédio contra a exteriorização de sintomas neuróticos manifestos resultantes do defeito produzido por elas mesmas.

A esta altura, já podemos compreender aquilo que boa parte da sociologia definiu como “desvio”. Para Fromm, o modelo proporcionado pela cultura não funciona para uma determinada minoria. Trata-se de pessoas cujo “defeito” individual é mais sério do que o da média das pessoas, de forma que os remédios culturalmente oferecidos (em grande parte pela indústria cultural) não são suficientes para impedir a eclosão da doença manifesta (aqui, Fromm está pensando, por exemplo, em pessoas fortemente motivadas a buscar poder e fama). Por outro lado, há também aqueles cuja estrutura de caráter e, portanto, cujos conflitos diferem dos da maioria, de forma que os remédios eficazes para a maioria não lhes causam nenhum efeito. Nesse grupo de pessoas, nosso autor situa indivíduos de integridade e sensibilidade maiores do que as da maioria e que, exatamente por isso, se negam a aceitar o “narcótico cultural”, enquanto, ao mesmo tempo, não se encontram suficientemente fortes e sadios para viverem salutarmente “contra a correnteza” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Em suma, Fromm define este projeto investigativo, remetendo-se explicitamente ao seu mestre Freud, como uma “pesquisa da patologia das comunidades civilizadas” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 34). Para tanto, baseia-se na ideia de que uma sociedade sã precisa corresponder às necessidades da humanidade, e isso não necessariamente se refere ao que a humanidade sente como suas necessidades, considerando que até os mais patológicos desejos podem ser subjetivamente sentidos como aquilo de que a pessoa mais necessita. O que ele quer dizer é que as sociedades devem corresponder ao que constitua objetivamente as necessidades humanas, nas formas em que estas possam ser determinadas pela investigação da natureza “cultural” humana. No próximo tópico, avançaremos em sua análise com os conceitos de caráter social e alienação, bem como com a identificação da situação humana determinada pelo capitalismo do século XX, de modo a compreender como esta se apresenta, ao que tudo indica, como a forma mais acabada de “patologia da normalidade” experienciada pela humanidade.

Caráter social e alienação na sociedade capitalista do século XX

Caráter social e alienação serão os dois conceitos-chave que guiarão nossa reconstrução do pensamento de Fromm nesta parte. Esta articulação nos permitirá compreender um tema central em sua obra, a saber, o incômodo e a insuficiência da experiência humana no contexto criado pela cultura capitalista contemporânea. Para tanto, Fromm acreditava que seria preciso chegarmos a uma ideia da “personalidade do homem médio” que vive e trabalha sob os grilhões dessa cultura. Este seria um aspecto central para compreendermos o conceito de “caráter social”. Com este conceito, Fromm procura dar conta do “núcleo da estrutura do caráter compartilhada pela maioria dos indivíduos de uma mesma cultura”, o que difere do caráter individual, distinto em cada um dos indivíduos pertencentes a esta mesma cultura (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 86).

Fromm acreditava que os membros de uma sociedade, suas classes e seus grupos de status precisam necessariamente comportar-se de maneira que lhes permita funcionar no sentido exigido pela cultura capitalista. Com efeito, a função do caráter social consiste exatamente em modelar as energias dos membros da sociedade de forma que sua conduta não seja assunto de decisão consciente quanto a seguir ou não uma norma social, mas uma questão de simplesmente desejarem comportar-se como têm de comportar-se, alcançando, com isso, prazer em proceder da forma exigida pela cultura. Em suma, a função do caráter social consiste em “moldar e canalizar a energia humana em uma determinada sociedade, para que esta possa continuar funcionando” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 87). Como exemplo, Fromm argumenta que a sociedade industrial moderna não teria alcançado os seus objetivos, caso não tivesse arregimentado a energia dos indivíduos livres para trabalhar com uma intensidade sem precedentes. Ou seja, a “necessidade” de trabalhar, de pontualidade e de ordem precisou se transformar em “impulso” interior para tais objetivos, o que significa que a sociedade precisou produzir um caráter social de modo a que tais impulsos fossem a ele inerentes (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Nessa direção, podemos considerar as estruturas da sociedade e a função do indivíduo na cultura como determinantes do conteúdo do caráter social. Com efeito, Fromm considerava a família como uma espécie de “agência psíquica da sociedade”, ou seja, a organização que assume a missão de transmitir as exigências da sociedade à criança em crescimento (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Considerando que o caráter da maior parte dos pais é expressão do caráter social predominante, transmitem-se à criança, dessa maneira, os traços essenciais da “estrutura de caráter socialmente desejável” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 90). Assim, os métodos educativos só podem ter importância como mecanismo de transmissão e ser corretamente entendidos se compreendermos, antes de tudo, quais tipos de personalidade são desejáveis e considerados necessários em uma determinada cultura.

De modo a compreender exatamente como a cultura capitalista conforma o caráter social no século XX, precisamos entender primeiramente a conformação do capitalismo no século XIX, segundo Fromm. Para ele, é de fundamental importância o papel do mercado moderno como “mecanismo central da distribuição da produção social” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 94), sendo esta instituição, exatamente por isso, a base da formação das relações humanas na sociedade capitalista. O mercado, assim, seria um mecanismo de distribuição, já no século XIX, que se regula automaticamente, o que torna desnecessário dividir a produção social segundo um plano novo ou tradicional e, com isso, elimina a necessidade de se usar a força como base central da reprodução social. Com isso, o funcionamento econômico do mercado repousa sobre a competição de indivíduos que querem vender suas mercadorias, assim como o seu trabalho ou os seus serviços no “mercado de trabalho e de personalidade” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.), concordando aqui com a interpretação de seu contemporâneo Wright Mills (1976)MILLS, Charles W. White Collars. The American middle classes. Nova York: Oxford University Press, 1951.. A conclusão é que, nessa luta pelo sucesso, ruíram as regras sociais e morais da solidariedade humana, considerando que a importância da vida agora consiste em simplesmente ser o primeiro em uma corrida competitiva (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Com isso, Fromm arrisca uma definição da situação moral da sociedade capitalista já no século XIX:

O que caracteriza a distribuição da renda no capitalismo é a falta de proporção equilibrada entre o esforço e o trabalho de um indivíduo e a consideração social que se lhe concede sob a forma de compensação financeira. Em uma sociedade mais pobre do que a nossa, essa desproporção teria por consequência extremos de luxo e pobreza maiores do que poderiam tolerar as nossas normas morais.1 1 Aqui Fromm está naturalmente pensando em sociedades centrais, como os Estados Unidos e a Alemanha. A reflexão se posiciona como uma crítica aos efeitos ainda mais perversos que a cultura capitalista produz em sociedades periféricas, como a brasileira. Porém eu não desejo acentuar os efeitos materiais dessa desproporção, mas seus efeitos morais e psicológicos. Um dos efeitos é a desvalorização do trabalho, dos esforços e habilidades do homem. O outro está em que, enquanto o meu ganho estiver limitado pelo esforço por mim desenvolvido, o meu desejo também o estará. Por outro lado, se minha renda não é proporcional ao meu esforço, não haverá limitações para os meus desejos, pois sua satisfação depende das oportunidades oferecidas por determinadas situações do mercado e não de minhas próprias capacidades

(Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 97).

Com isso, Fromm percebe, no século XIX, o germe de uma condição moral que se intensificará no século XX. Isso lhe permite compreender que o prazer da propriedade em si, independentemente da produção e da busca de lucros, é um dos aspectos fundamentais do caráter das classes média e alta do século XIX. Em resumo, o caráter social no século XIX é uma mescla de autoridade racional e irracional. Trata-se de um caráter essencialmente hierárquico, embora não mais, como na sociedade feudal, baseado no direito divino e na tradição, mas simplesmente na posse de capital, com todos os efeitos descritos acima. Em suma, o conflito entre capital e trabalho se coloca acima do próprio conflito entre as classes e da luta pela participação no produto social. Trata-se de um conflito entre princípios de valorização, ou seja, “entre o mundo das coisas e sua acumulação e o mundo da vida e sua produtividade” (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 101).

Vamos agora reconstruir, segundo Fromm, as principais mudanças, tanto materiais quanto morais e psicológicas, na sociedade capitalista do século XX, bem como seus efeitos na experiência individual. Para ele, a mudança mais flagrante, do século XIX para o XX, é a da técnica e o maior uso da máquina a vapor, do motor de combustão interna, da eletricidade, bem como o começo do emprego da energia atômica. Articulado a isso, presenciamos o aumento da importância do mercado interno de cada nação. Toda a organização econômica repousa no princípio da produção e do consumo em massa. Com isso, presenciamos o que ele define como “milagre da produção” e “milagre do consumo”. Agora, os seres humanos manejam forças infinitamente maiores e mais poderosas do que aquelas que a natureza outrora lhes oferecera. Já não há barreiras tradicionais que impeçam que alguém compre o que quiser, teoricamente. Tudo está ao alcance de todos, tudo pode ser comprado e consumido.

Diante desse panorama, Fromm se coloca as seguintes questões, de ordem vital: de que tipo de pessoas a nossa sociedade atual necessita? Qual é o caráter social adequado ao século XX? Sua resposta sugere uma direção para uma reinterpretação radical do sentido da cultura capitalista. O capitalismo do século XX, para ele, necessita de pessoas que cooperem sem atritos em grandes grupos, que desejem consumir cada vez mais, e cujos gostos estejam padronizados e possam ser facilmente influenciados e previstos. Também necessita de indivíduos que se sintam livres e independentes, que se percebam não submetidos a nenhuma autoridade, a nenhum princípio e a nenhuma consciência, mas que desejem ser mandados, fazer simplesmente o que deles se espera e adaptar-se sem atritos à ordem social. Isso o conduz a outra pergunta: como pode o ser humano ser guiado sem se recorrer à força, ser conduzido sem chefes, ser incitado sem metas, a não ser aquela de tomar parte no desenvolvimento, de atuar e de avançar? (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

O conceito de alienação de Marx, psicologizado por Fromm, será a chave mestra que o guiará rumo à resposta. Para tanto, ele inicia reconstruindo duas características essenciais do capitalismo no século XX: a quantificação e a abstratificação. Nesse sentido, a transformação do “concreto” em “abstrato” desenvolveu-se muito além do simples balanço e da quantificação dos incidentes econômicos na esfera da produção. O homem de negócios moderno não só lida com dinheiro aos milhões, mas também com milhões de clientes, milhares de acionistas e milhares de operários e empregados de escritório. Todas essas pessoas são peças de uma máquina gigantesca que precisa ser controlada e cujos efeitos precisam ser calculados. Com isso, cada pessoa é representada por uma entidade abstrata, por uma cifra, e sobre tal base calculam-se os incidentes e riscos econômicos, preveem-se as tendências e tomam-se as decisões (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

A separação entre proprietários e diretores das grandes empresas, já existente no século XIX e agora mais intensa, é um aspecto central para a compreensão desse cenário. Os trabalhadores são contratados por instituições cujos diretores são partes impessoais da empresa e não indivíduos em contato pessoal com outros indivíduos que eles empregam. A única pessoa que está em contato com o produto de uma empresa (ou uma seção) em sua totalidade é o diretor. Entretanto, para ele, o produto é uma abstração, cuja essência é o valor em câmbio, enquanto o trabalhador, para quem o produto é uma coisa concreta, não trabalha nunca com ele como um todo (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Com isso, a cultura contemporânea abriu caminho a uma referência quase exclusiva às qualidades abstratas das coisas e das pessoas e ao esquecimento de nossa relação com sua constituição material e singularidade. As pessoas agora são avaliadas como encarnações de um valor de câmbio quantitativo. Para Fromm, este processo de abstratificação tem raízes profundas que se remetem às próprias origens da era moderna, ou seja, à dissolução de todo o quadro concreto de referência no processo da vida.

Até o fim do século XIX, a natureza e a sociedade ainda não haviam perdido seu caráter concreto e sua precisão. Os mundos natural e social ainda eram manejáveis, ainda tinham contornos definidos. Por outro lado, as grandezas com as quais lidamos hoje são cifras e abstrações, estando muito além dos limites alcançáveis pela experiência concreta. Não restou nenhuma estrutura de referência manejável, observável, que se adapte às dimensões propriamente humanas. Enquanto nossos olhos e ouvidos recebem impressões somente em proporções humanamente manejáveis, nosso conceito do mundo perdeu precisamente esta qualidade e não mais corresponde às nossas dimensões humanas. A ciência, os negócios e a política perderam todos os fundamentos e proporções que fazem sentido humanamente. Como nada é concreto, nada é real, tudo se torna possível, de fato e moralmente. Em suma, a humanidade foi arrancada de toda a posição definida de onde possa dominar e manejar sua vida. Somos agora arrastados velozmente por forças que nós mesmos criamos (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

A esta altura, temos pavimentado o caminho para o início da compreensão do conceito de alienação, em seu formato desenvolvido por Fromm. Ele nos remete à questão mais fundamental, ou seja, perceber quais são os efeitos mais profundos do capitalismo contemporâneo na personalidade humana. Para tanto, Fromm compreende a alienação enquanto um modo de experiência no qual a pessoa se sente como um estranho, alienado de si mesmo. Não se sente como centro de seu mundo, criador de seus próprios atos, tendo estes e suas consequências sido transformados em seus senhores, aos quais precisa obedecer. A pessoa alienada não tem contato consigo mesma e com as outras pessoas. Percebe a si e aos demais como coisas, com os sentidos e com o senso comum, mas, ao mesmo tempo, sem relacionar-se produtivamente consigo mesma e com o mundo exterior (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Com isso, a pessoa que é movida principalmente por sua sede de poder ou dinheiro, por exemplo, já não sente a si mesma com a riqueza e a ausência de limitações de um ser humano, mas torna-se escrava de um impulso parcial nela existente, que se projeta em objetivos externos e pelo qual está possuída. Em suma, para Fromm, o fato em comum a vários fenômenos humanos, como a adoração de ídolos, o amor idolátrico a uma pessoa, o culto idolátrico de Deus, a adoração de um chefe político ou do Estado e o culto idolátrico às exteriorizações de paixões irracionais resume-se ao fenômeno da alienação. Com isso, o fato é que a humanidade não sente a si mesma como portadora ativa de seus poderes e riquezas, mas como uma coisa empobrecida que depende de poderes exteriores a ela e nas quais projetou sua substância vital (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Nesse contexto, é muito interessante o papel que Fromm atribui aos diretores de empresas no processo de alienação da cultura capitalista contemporânea. Para ele, os executivos manejam o todo e não a parte, mas também são, eles mesmos, alheados de seu produto como coisa concreta e útil. Sua tarefa consiste em empregar proveitosamente o capital investido por outros. É muito sintomático, com isso, o fato de os diretores, que têm a seu cargo as relações de trabalho e as vendas, ou seja, os encargos de manipulações humanas, adquirirem uma importância cada vez maior no capitalismo. Os executivos, assim como os trabalhadores, lidam com gigantes impessoais: a empresa competitiva gigantesca, o gigantesco mercado interno e mundial, um consumidor gigantesco que precisa ser incitado e manejado, sindicatos gigantescos e governos igualmente gigantescos. Todos esses gigantes possuem vida própria e são eles que determinam a atividade dos diretores e executivos de empresa (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Não foi por acaso que Fromm identificou a centralidade da função de diretor na reprodução da cultura capitalista alienada. O problema sobre o papel dos diretores suscita um dos fenômenos mais significativos dessa cultura, ou seja, o problema da burocratização, conhecidamente analisado por Max Weber. O que está em jogo aqui? Tanto a administração dos grandes negócios como a dos governos é realizada por uma burocracia. Com isso, os burocratas se tornam especialistas na administração de coisas e de pessoas. Por isso, em razão da grandeza do aparato a ser administrado e da consequente abstratificação, a relação dos burocratas com as pessoas é de alienação total. Isso nos possibilita compreender a frieza e o distanciamento com os quais um diretor de empresa, com uma assinatura, é capaz de demitir milhões de pessoas de uma só vez. Assim, as pessoas administradas são apenas objetos que o administrador vê, sem amor ou ódio, de modo impessoal. O burocrata-diretor não deve sentir nada, com respeito a sua atividade profissional, ou seja, deve manipular as pessoas como se fossem cifras ou coisas. Com isso, os burocratas-diretores são inevitáveis: sem eles a empresa entraria em colapso em pouco tempo, já que ninguém mais conhece o segredo que a faz funcionar (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

A validade dessa análise se confirma pelo fato de que, ao longo do século XX, a importância dos grandes negócios tornou-se cada vez maior em seu papel normativo em nossa cultura. Neste ponto, Fromm recorre ao pensamento de Peter Drucker, o conhecido mentor das organizações, para encontrar uma sucinta e precisa definição. Para este último, as corporações crescem como instituições determinantes da vida, mesmo daqueles que não fazem parte delas diretamente. Com isso, “todo o caráter da sociedade é determinado e moldado pela organização estrutural da grande empresa, pela tecnologia da instalação de produção em massa e pelo grau de realização das nossas convicções e promessas sociais nas grandes empresas e pelas grandes empresas” (Drucker apud Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970., p. 131). Como consequência, os proprietários das grandes empresas também têm com elas uma relação de quase total alienação. Sua propriedade consiste em um pedaço de papel representativo de certa quantidade de dinheiro. Não têm nenhuma obrigação com a empresa e nenhuma relação concreta com ela.

Em suma, a função dos diretores de empresa no capitalismo nos permite compreender alguns aspectos gerais da tese de Fromm. Nessa direção, ele ressalta que, diferente da maior parte das outras sociedades, nas quais as regras sociais são explícitas e fixadas à base do poder político ou da tradição, o capitalismo não tem regras explícitas. Contrariamente, baseia-se no princípio de que somente quando cada indivíduo luta por seus interesses no mercado o resultado será o bem comum, e a consequência será a ordem e não a anarquia. Nesse sentido, a alienação entre os indivíduos resulta na perda dos vínculos gerais e sociais que caracterizavam a sociedade medieval e quase todas as sociedades pré-capitalistas (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Com isso, a “personalidade alienada” que se põe à venda no mercado de personalidades tem necessariamente que perder grande parte de seu sentimento de dignidade, característico das pessoas nas culturas pré-modernas. A personalidade alienada acaba perdendo o “sentimento de seu eu”, de si mesmo como entidade única e irreproduzível. Nessa direção, o sentimento do eu precisa nascer da experiência que uma pessoa tem de si como sujeito de seus pensamentos, sentimentos, decisões, julgamentos e atos. Pressupõe que a experiência seja exclusivamente individual e não alienada. As coisas não possuem um eu, da mesma forma que as pessoas que se tornaram coisas também não podem possuir (Fromm, 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.).

Por fim, Fromm vai articular a relação entre o caráter social alienado produzido pela cultura capitalista e os problemas do mérito e do suicídio. Para ele, o indivíduo moderno tem um problema inédito, ou seja, refletir sobre se a vida merece ser vivida e, como consequência, depara-se com as sensações de que a vida é um fracasso ou um êxito. Tal experiência tem como base um conceito da vida como um empreendimento que deve produzir necessariamente algum lucro. Com isso, o fracasso é sentido como a falência de um negócio, no qual as perdas são maiores do que os lucros (Fromm 1970FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.). Para ele, esta interpretação da vida como um empreendimento comercial parece ser a base do aumento de suicídios na sociedade ocidental contemporânea. Para Fromm, a tese da anomia de Durkheim, ou seja, a perda dos vínculos sociais tradicionais, para explicar o suicídio, teria ignorado o importante fato de que nós modernos internalizamos a necessidade incontornável de perceber a vida através de uma ideia de “balanço” de uma empresa comercial, que pode fracassar. Em termos gerais, com isso, Fromm constrói uma crítica radical da cultura capitalista, no sentido de perceber seus efeitos inevitáveis na construção do sofrimento humano em nosso tempo.

Conclusão – a atualidade de Erich Fromm

Diante do exposto, a percepção de um caráter social alienado, conforme realizada por Fromm, pode ser um importante caminho para se pensar o “capitalismo flexível” atual. Ela nos ajuda a definir os aprofundamentos e a radicalização propriamente culturais de aspectos vitais do capitalismo contemporâneo. A ideia de caráter social alienado é decisiva para a compreensão das práticas e da mentalidade criadas como norma e como expectativa atualmente pelo capitalismo. Com isso, podemos problematizar em que medida o comportamento padronizado pelo “novo” capitalismo flexível, fenômeno este definido por Richard Sennett (2006)SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006. como “corrosão do caráter”, não seria uma atualização da condição de “patologia da normalidade”, como compreendido por Fromm em seu tempo.

Contrário às promessa de felicidade, reconhecimento e realização no capitalismo atual, o que uma observação atenta da cultura capitalista atual sugere, conforme analisado por Sennett (2006)SENNETT, Richard. A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006., aproxima-se bastante da descrição de Fromm com sua tese do caráter social alienado: entrega total ao sistema de trabalho, busca incessante e sublimação de todas as necessidades no consumo, ausência de tempo livre e perda do sentido de uma vida realmente preenchida de significado. E isso sem contar o conteúdo do trabalho realizado pelos principais diretores e executivos, ou seja, a construção consciente e a reprodução de uma dominação social de classes ainda mais invisível e insensível do que aquela vista em períodos anteriores, como deixa claro a comparação realizada por Boltanski e Chiapello (2009)BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. entre a mentalidade e a ação dos executivos das décadas de 1960 e 1990.

Com isso, diante do exposto, podemos notar que a obra de Erich Fromm é responsável por um tipo de crítica profunda da cultura capitalista, tendo esta como aspecto central a identificação da produção objetiva do sofrimento humano na forma de sua sensação de incompletude e mal-estar. Para ele, a liberdade precisa ser interpretada como um problema de ordem sociológica e coletiva, e não simplesmente de ordem psicológica e individual (Fromm, 1974FROMM, Erich. O medo à liberdade. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1974.). Em sua ruptura com o pensamento freudiano, Fromm sedimenta sua percepção de que a “psicologia do nazismo” explica-se pela necessidade que o indivíduo moderno tem de fugir de suas possibilidades de liberdade. Por um lado, a liberdade moderna proporcionou independência e racionalidade, quando permitiu ao indivíduo romper com os grilhões da sociedade pré-individualista. Por outro, fez com que ele se sentisse sozinho, angustiado e impotente. Assim define Fromm a ambiguidade da liberdade dos modernos. Esta análise pode ser de grande valia para compreendermos o fenômeno de ascensão da extrema direita na atual conjuntura global.

Isso fica claro, por exemplo, quando Fromm compreende que o indivíduo moderno, angustiado por seu isolamento, pode tentar fugir do peso de sua liberdade para a busca de novas dependências e para a submissão a algum líder ou a alguma forma de autoridade. Este seria um aspecto central da conformação específica do fenômeno contemporâneo da alienação. Por um lado, a vida econômica, estruturada por um mercado de trabalho cada vez mais indigno e seletivo, tende a empurrar as pessoas para uma forma de individualismo negativo, contrário à realização da liberdade e da autenticidade do eu. Tal realização exigiria formas de vida contrárias ao caráter social alienado, caráter este que encontra profundas afinidades com o perfil profissional individualista e desprendido exigido hoje pelo “novo” capitalismo flexível. Essa realidade se intensifica diante da desconstrução de direitos e da institucionalização da indignidade do trabalho, entregando milhões de pessoas à condição econômica e existencial de vulnerabilidade e descartabilidade.

Em consonância, a vida política também é seriamente comprometida, na medida em que os mesmos indivíduos alienados na busca de segurança material e realização pessoal, diante de uma sequência de frustrações podem fugir dessa falsa liberdade e individualidade na submissão a líderes autoritários que prometam alguma redenção. Esta possibilidade se amplia diante de um processo, que acompanhamos agora, de banalização, novelização e deslegitimação da esfera política no mundo inteiro, reduzida pela grande mídia a um espaço de corrupção intrínseca e não de ação coletiva legítima. Como consequência, a realização plena do eu, como idealizada por Fromm, perde-se de seu caminho, confirmando o valor de sua análise sobre nossa patologia da normalidade, que esconde suas verdadeiras razões, como ele diria, no “espírito confuso” que domina a cultura capitalista. Sua obra, com isso, é de grande valia para a compreensão da obscuridade em nosso tempo.

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    Aqui Fromm está naturalmente pensando em sociedades centrais, como os Estados Unidos e a Alemanha. A reflexão se posiciona como uma crítica aos efeitos ainda mais perversos que a cultura capitalista produz em sociedades periféricas, como a brasileira.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2019
  • Aceito
    09 Jan 2020
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