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Capitalismo, esquizofrenia e raça. O negro e o pensamento negro na modernidade ocidental

Mbembe, Achille. . Crítica da razão negra . 1. ed. Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta Lança

Crítica da razão negra, de Achille Mbembe (original em francês pela editora La Découverte, 2013), é um desses livros que nasceu já clássico: clássico não no sentido de antigo, ou imune à passagem do tempo, mas no sentido borgeano de ter sido escolhido por uma comunidade de leitores como leitura obrigatória. E o livro é, de fato, leitura obrigatória não apenas para aqueles que se interessam pela questão do “negro”,1 1 “Nègre” no original, “black” na tradução ao inglês. Como veremos adiante, Mbembe analisa a categoria “negro” como uma construção histórica de longa duração que não se refere apenas aos sujeitos africanos e afrodescendentes, mas ao contrário se constrói como sinônimo de uma outredade absoluta; trata-se, portanto, de uma “ficção útil” que ultrapassa a questão da cor da pele, a origem ou a localização geográfica do sujeito negro. mas para todos aqueles que, de alguma forma, se interessam pela relação entre raça e modernidade, ou posto de outra maneira: raça, Estado e mercado. Porque o que o autor denomina devir-negro do mundo é, concretamente, uma teoria explicativa das relações entre o pensamento racial no mundo ocidental e a emergência da modernidade em sua relação intrínseca com o desenvolvimento do Estado moderno e do capitalismo, sobretudo da chamada acumulação primitiva do capital (que, diga-se de passagem, tanto Mbembe como a teórica italiana Silvia Federici não veem como uma etapa superada do desenvolvimento do capitalismo, e sim como algo ainda em curso). Situando-se entre a filosofia, a história e a crítica, Crítica da razão negra é, ao mesmo tempo, uma abrangente e provocadora reflexão sobre os conceitos de “raça”, “negro” e “África” no ocidente, e um panorama histórico das relações raciais no mundo ocidental entre os séculos XV e XXI. Ao mesmo tempo que analisa os processos históricos dos quais derivam estes conceitos, Mbembe também nos oferece um recorrido do que eu chamaria “pensamento negro” - a sua “razão negra” -, dialogando criticamente com uma série de filósofos, teóricos e escritores negros que se debruçaram sobre a sua condição e refletiram sobre as possibilidades de emancipação do negro no mundo ocidental; uma tradição cujo ponto alto o autor localiza entre as décadas de vinte e setenta do século XX, mas de cuja ideias ele se apropria para pensar o século XXI.

Apesar de que percorre um longo caminho histórico, a maior parte do livro se concentra em dois momentos históricos especialmente paradigmáticos da história das relações entre Europa e África, assim como a construção dos conceitos de “negro” e “raça”: o pensamento ilustrado do século XVIII francês e o colonialismo europeu sobre o continente africano no século XIX. Se bem faz remontar o termo “negro” ao século XVI, e conceda especial atenção à maneira como esta categoria opera nas Américas francesa e inglesa, é durante o iluminismo e o neocolonialismo europeus que Mbembe localiza o ponto nodal da construção do negro como sujeito racializado no Ocidente e, como tal, contraponto à humanidade encarnada pelo “branco”:

o Negro e a raça têm significado, para os imaginários das sociedades europeias, a mesma coisa. (...) a sua aparição no saber e no discurso modernos sobre o homem (e, por consequência, sobre o humanismo e a Humanidade) foi, se não simultâneo, pelos menos paralelo; e, desde o início do século XVIII, constitui, no conjunto, o subsolo (inconfessado e muitas vezes negado), ou melhor, o núcleo complexo a partir do qual o projeto moderno de conhecimento - mas também de governação - se difundiu. (p. 10)

Antes de entrar a fundo no conteúdo do texto, no entanto, proponho uma pergunta: por que a tradução portuguesa do livro saiu três anos antes da sua tradução ao inglês, quando o mercado de editoras acadêmicas nos Estados Unidos - para ficar apenas com os Estados Unidos - é reconhecidamente mais ativo e mais lucrativo que o mercado editorial português tomado em seu conjunto?

A pergunta permite um sem-fim de hipóteses. Uma hipótese seria a de que foram os portugueses os primeiros europeus a ocupar as costas africanas e estabelecer o tráfico de escravos daquele continente, para o resto do mundo. A teoria, no entanto, é preguiçosa: sabemos do papel de companhias inglesas no tráfico de escravos de origem africana e, mais importante, do papel preponderante das colônias da América do Norte no que diz respeito à construção da categoria “negro”. Além disso, tal hipótese apelaria ao nacionalismo português, algo do que o livro de Mbembe se afasta de forma notável.

Outra hipótese seria o interesse que o livro poderia suscitar em outros países de língua portuguesa, sobretudo as ex-colônias portuguesas na África e o Brasil. Mais condizente, esta hipótese não explica o outro lado da história: o fato de que o livro tenha demorado tanto em publicar-se em língua inglesa, quanto Mbembe na verdade confere certo protagonismo à Inglaterra e aos Estados Unidos tanto no que diz respeito ao tráfico negreiro e à escravidão como à construção das fabulações responsáveis pelo surgimento da figura do negro, e que em última instância determinariam os rumos da ideologia racial na modernidade.

Uma possível resposta encontra-se, talvez, na tese central que Mbembe desenvolve ao longo deste livro, e que encontra particular resistência no mundo anglo-saxão: a ideia de que o liberalismo - tanto econômico, como político - não é incompatível com a escravidão e o racismo; ao contrário, é o liberalismo que cria o negro e a noção de “raça”, indissociável desta figura. Para Mbembe, ao mesmo tempo que o Estado moderno surge com e para o mercado global - é a máquina de guerra do Estado moderno que permite a empresa colonial, isto é, a escravidão em massa, o sistema de plantação e a acumulação primitiva de capital -, o liberalismo é a ideologia que justifica esta operação. Obviamente, Mbembe diferencia os processos históricos e ideologias específicos que distinguem o colonialismo dos séculos XV-XVIII, daqueles que irão caracterizar o século XIX e boa parte do século XX. No entanto, o autor não observa uma real ruptura entre esses dois tipos de colonialismos - e capitalismos - no que diz respeito à questão do negro. Ao contrário, é o surgimento da noção de humanidade, no esteio do iluminismo e o liberalismo, o que garante a definitiva separação desta entre “brancos” - sinônimo de “homem”, neste contexto - e “negros” - vistos como uma outredade absoluta, como espécie de semi-homens cuja diferença radical frente ao “homem branco” justificaria a empresa colonizadora. Nos termos de Walter Migonolo, seria no século XVIII que se processa a separação dos homens entre humanitas e anthropos.

É esta a tese que o autor desenvolve nos três primeiros capítulos do livro, “A questão da raça”, “O poço da alucinação” e “Diferença e autodeterminação”. Seu ponto de partida, o questionamento das categorias “negro” e “África”, e com elas, da noção de “raça”. Para Mbembe, o negro é uma ficção, um conjunto de fabulações elaboradas no esteio do capitalismo mercantil e do estabelecimento do sistema de plantação. A criação da categoria “negro”, à qual logo se vincularia a noção de “raça”, teria por finalidade estabelecer uma diferença radical, entendida como insuperável, entre a humanidade europeia e esse outro, o negro, sobre o qual se projetam todo tipo de medos e ansiedades. Esse outro, prossegue Mbembe, não seria homem no sentido pleno da palavra, mas sim objeto: pré-humano, vivendo em estado primitivo, incapaz de autogovernar-se, o negro seria então reduzido à condição de escravo - mercadoria e trabalho - e a empresa colonial justificada como obra “civilizatória” e inclusive “humanitária”; algo que, segundo o autor, continuaria informando o neoliberalismo do século XXI e os processos de globalização.

Junto com as categorias “negro” e “raça”, surge a “África”, terra desconhecida e que não se quer conhecer, sobre as quais se projetariam também uma série de fabulações. A partir de então, negro e África passariam a ser diretamente associados: o colonialismo e o desenvolvimento do capitalismo dariam lugar, ao mesmo tempo, a uma territorialização da raça e racialização do espaço. Essa associação sine qua non entre negro e África é algo que os próprios sujeitos negros abraçariam em seus primeiros intentos de emancipação, reclamando sua “africanidade essencial” como parte de sua identidade, e canibalizando assim o discurso europeu.

Outro aspecto fundamental destes capítulos são as íntimas relações que se estabelecem entre o Estado moderno, o mercado e o racismo. Para Mbembe, o Estado moderno surge como instrumento do mercado e produto da razão mercantilista, a partir dos quais não apenas se estabelece uma partilha do mundo, mas uma partilha na qual a raça ocupa um papel central. Se o principal objetivo da lei e da burocracia é a coerção e controle dos corpos, e o medo é o principal instrumento do Estado - como já afirmara Michel Foucault -, é sobre o negro que irá se projetar este medo, e portanto sobre seu corpo que se exercerá o controle do Estado. Além do mais, o surgimento do direito moderno, na Europa, implicou entender tudo o que está além dela - homens incluídos - como ao mesmo tempo além e aquém da lei. Para Mbembe, o Estado moderno e o liberalismo surgem, então, como instrumentos biopolíticos por excelência que irão permitir e justificar a escravização do negro - entendido como ameaça, como conjunto de fabulações e de disparates que por sua vez disparam afetos -, o estabelecimento do sistema de plantação e, com isto, de um mercado global:

No ensaio La Naissance de la biopolitique, Foucault defende que, na origem, o liberalismo “implica intrinsecamente uma relação de produção/destruição [com] a liberdade”. Esquece-se de explicar que, historicamente, a escravatura dos Negros representa o ponto culminante desta destruição da liberdade. Segundo Foucault, o paradoxo do liberalismo é que “é necessário, por um lado, produzir a liberdade, mas esse próprio gesto implica que, do outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc.” A produção da liberdade tem portanto um custo cujo princípio de cálculo é, acrescenta Foucault, a segurança e a protecção. Por outras palavras, a economia do poder característica do liberalismo e da democracia do mesmo tipo assenta no jogo cerrado da liberdade, da segurança e da protecção contra a omnipresença da ameaça, do risco e do perigo. (...) O escravo negro representa este perigo. (p. 143)

É neste sentido que o liberalismo e inclusive o discurso sobre direitos humanos solidificam o racismo. O liberalismo econômico tem por base o comércio de escravos, responsável pelo desenvolvimento do capitalismo e pelo que hoje chamamos globalização. Neste contexto, o negro ocupa o papel de mercadoria e de matéria energética: ele é, ao mesmo tempo, homem-mineral (não homem, natureza), homem-metal (escravo, instrumento de extração) e homem-moeda (produtor de mercadorias e mercadoria em si mesmo). Por sua vez, o liberalismo político e o discurso sobre os direitos humanos, herdeiro do iluminismo, utilizam a escravidão como metáfora da condição humana em seu conjunto, ao mesmo tempo que apagam a existência do racismo sob a bandeira da igualdade e da fraternidade: trata-se de um discurso universalizante que, por isso mesmo, é incapaz de dar conta da diferença histórica sobre a qual se fundam as categorias “negro” e “raça”. Ao contrário, sugere Mbembe, trata-se de reafirmá-las ante a suposta impossibilidade de conciliação entre a “raça branca”, portadora de humanidade e cidadania plenas, e a “raça negra”:

O direito é, portanto, neste caso, uma maneira de fundar juridicamente uma certa ideia de Humanidade enquanto estiver dividida entre uma raça de conquistadores e uma raça de servos. Só a raça de conquistadores é legítima para ter qualidade humana. A qualidade do ser humano não pode ser dada como conjunto a todos e, ainda que o fosse, não aboliria as diferenças.2 2 Mbembe se refere aqui ao direito moderno, e que continua informando tanto o funcionamento do Estado como o discurso sobre direitos humanos. Fundado numa noção universalizante de humanidade, o discurso sobre direitos humanos, de acordo com Mbembe, teria como resultado a obliteração da cisão fundamental que se estabelece a partir da própria criação da categoria “homem”. (p. 111)

O século XIX concluiria o trabalho de exclusão a partir do qual a África e o negro se vêm separados da “história da civilização”: sem lei e nem razão, a África e o negro deveriam ser paulatinamente “introduzidos” ao processo civilizatório sob a égide europeia. A noção de “decadência do ocidente”, bastante popular nas primeiras décadas do século XX, e o exotismo com o qual se recobre o continente africano - visto pela vanguarda europeia e também caribenha como portador de uma vitalidade perdida no velho continente -, não fazem senão reafirmar esses discursos, ainda quando se buscava reivindicar o termo “negro” como categoria de autodeterminação, e não mera projeção alheia.

Paralelamente à descrição dos processos históricos que discute, Mbembe vai deslindando o pensamento negro, a sua “crítica da razão negra”, à que irá se dedicar de maneira mais direta a partir do capítulo três. Durante os séculos XV-XVIII, o negro expressa uma espécie de cisão a partir do qual habita a si mesmo como um outro, expressando mesmo um desejo de ser outro - como já o havia sugerido Franz Fanon. Neste primeiro momento, o negro abraçaria os discursos e fabulações que o constroem como tal e lhe retiram a sua humanidade, ao mesmo tempo que está obrigado a reconhecer sua condição humana. Mesmo com o fim do tráfico de escravos e os movimentos de emancipação do século XIX, afirma Mbembe, o pensamento negro reproduziria as três respostas elaboradas pelo Ocidente no que diz respeito ao “problema africano”: a noção de que África representaria uma humanidade sem história, aquém da razão e da lei; a noção de que a diferença radical do negro é algo a emendar-se, para o qual se faria necessário administrar, ainda que de forma indireta, tanto os escravos libertos e seus descendentes como o continente africano como um todo; a ideia de que o negro deve assimilar-se ao projeto civilizatório europeu para tornar-se um ser humano e um cidadão.

Se nesse primeiro momento o negro experimentaria um processo de desapropriação e de degradação, num segundo momento, o pensamento negro se caracterizaria pela vitimização. Para Mbembe, o pensamento negro do século XIX e inícios do século XX teria sido incapaz de escapar do universalismo e humanismo liberal-ilustrados, abraçando a noção de reabilitação como forma de afirmar a sua humanidade. Neste contexto, o pensamento negro não nega, mas sim incorpora a noção de raça, fazendo dela fundamento para sua ideia de nação:

A reafirmação de uma identidade humana negada por outro participa, neste sentido, do discurso da refutação e da reabilitação. Mas se o discurso da reabilitação procura confirmar a co-pertença negra à Humanidade, não recusa, no entanto - exceto em raros casos -, a ficção de um sujeito de raça ou da raça em geral. Na realidade, abraça esta ficção. Isto é tão válido para a negritude como para as variantes do pan-africanismo. (p. 158)

Além disso, e como vítima, o negro passaria a ver a sua própria história como série de fatalidades causadas por um inimigo externo, planteando a necessidade de superar o seu passado e inclusive esquecê-lo, para poder gerar uma possibilidade de futuro.

É este, em grande medida, o tema do capítulo quatro deste livro, “O pequeno segredo”, dedicado à questão da memória e ao que o autor denomina “modos de inserção da colônia no texto negro”. Como origem da cisão fundamental a partir da qual emerge o negro, locus de uma perda originária, a colônia será contraditoriamente algo comemorado e relegado ao esquecimento. A colônia, afirma Mbeme, se apresenta para o negro ao mesmo tempo como violência e como espécie de espelho no qual se reconhece a si mesmo. Neste sentido, a memória da colônia se apresentará como ponto fulcral da literatura negra, e com ela, o problema do olhar: é o olhar do colonizador que cria o negro, um olhar que não vê mais além de um corpo sobre o qual projeta todo tipo de ansiedade sexual, e que se alimenta da sua própria ignorância:

África propriamente dita - à qual acrescentaria o Negro - só existe a partir do texto que a constrói como ficção do outro. (...) Por outras palavras, África só existe a partir de uma biblioteca colonial por todo o lado imiscuída e insinuada, até no discurso que pretende refutá-la, a ponto de, em matéria de identidade, tradição ou autenticidade, ser impossível, ou pelo menos difícil, distinguir o original da sua cópia e, até, do seu simulacro. (p. 166)

Outro aspecto que Mbembe associa à colônia é seu papel como produtora de desejos e alucinações. A colônia, afirma ele, faz circular no continente africano toda uma série de mercadorias e bens simbólicos que excitam o desejo dos colonizados, que passam quase imediatamente a ser considerados signos de prestígio, status, classe etc. Nesse sentido, a colônia é, também, objeto de desejo. Sua memória, então, apresenta-se à literatura africana como algo que ultrapassa os limites daquilo que a linguagem pode expressar, mas também como inelidível.

O quinto capítulo de Crítica da razão negra, “Réquiem para o escravo”, está dedicado quase exclusivamente à literatura negra. Neste capítulo, Mbembe se debruça sobre certos motivos correntes na literatura contemporânea, e que remetem à duplicidade de que nela se recobre a figura do negro: reverso da humanidade, mas incapaz de ignorar sua condição humana, o negro se identifica com seu duplo, a sua sombra, convertendo-se em espécie de fantasma, alienado do próprio corpo. Na realidade - e aqui Mbembe se afasta notavelmente do marxismo clássico -, dissociar-se do próprio corpo, metamorfosear-se, seria condição fundamental para a emancipação do negro, uma vez que a operação básica do capitalismo racial consiste precisamente em converter o negro em corpo para o trabalho, isto é, em objeto.

O último capítulo do livro, “Clínica do sujeito”, nos oferece um recorrido do pensamento negro no século XX, analisando criticamente diferentes propostas de emancipação que marcaram o período: especificamente, as de Marcus Garvey, Aimé Césaire, Franz Fanon e Nelson Mandela. Após comentar em detalhe cada um desses pensadores, Mbembe propõe dividir o pensamento negro contemporâneo em dois períodos: um primeiro no qual o desejo de autodeterminação passaria pela afirmação da diferença e celebração da negritude, do qual o exemplo máximo seria Aimé Césaire; e um outro, o do século XXI, no qual se abraçaria o significante negro não como forma de autoafirmação ou autocompadecimento, mas sim para melhor livrar-se dele. Para Mbembe, o atual mundo globalizado requereria uma crítica radical da raça, tanto política como ética, a partir da qual seria possível passar de uma afirmação da diferença para uma afirmação da comunidade humana. Valendo-se, sobretudo, de Fanon, e estendendo a questão do negro ao que o autor chama “novos condenados da terra”, Mbembe afirma que qualquer projeto efetivamente emancipador, nos dias de hoje, requer que o negro abandone o papel de vítima, por um lado, e que os colonizadores assumam a sua responsabilidade, de outro. Trata-se, segundo ele, de insistir na lógica da justiça; algo que se observa em movimentos negros contemporâneos como Black Lives Matter:3 3 Refiro-me ao principal slogan do movimento BLM, “No justice, no peace!” (Sem justiça não há paz!), mas também ao fato de que o movimento rejeita a “boa consciência branca”, que via de regra se limita a converter o negro em vítima e portanto reproduz a lógica paternalista a partir da qual operam as relações raciais.

Enquanto persistir a ideia segundo a qual só se deve justiça aos seus e que existem raças e povos desiguais, e enquanto se continuar a fazer crer que a escravatura e o colonialismo foram grandes feitos da “civilização”, a temática da reparação continuará a ser mobilizada pelas vítimas históricas da expansão e brutalidade europeia no mundo. Neste contexto, é necessária uma dupla abordagem. Por um lado, é preciso abandonar o estatuto de vítima. Por outro, é preciso romper com a “boa consciência” e a negação da responsabilidade. Será nesta dupla condição que é possível articular uma política e uma ética novas, baseadas na exigência de justiça. (p. 297)

Seria impossível dar conta aqui de toda a riqueza intelectual e gama de ideias que desenvolve Achille Mbembe nesse livro. Para finalizar, ressaltaria a contribuição teórica que oferece o autor, que compartilha com Fanon a qualidade de não poupar a sensibilidade do leitor. Claramente inspirado nas obras de teóricos como Gilles Deleuze e Michel Foucault, Crítica da razão negra responde a esses teóricos apontando a centralidade do negro e da noção de raça para o desenvolvimento da modernidade. Ao mesmo tempo, Mbembe incorpora em sua escritura as contribuições de toda uma série de teóricos negros - africanos, caribenhos e norte-americanos -, e até mesmo de teóricos latino-americanos como Walter Mignolo. Trata-se portanto de um arcabouço teórico que apenas em aparência deriva direta ou exclusivamente da tradição francesa. Ao demonstrar a relação inelidível entre o pensamento sobre raça no Ocidente, a constituição do Estado moderno e o mercado, Mbembe desloca o centro de preocupações da crítica de esquerda europeia da história do capital e dos chamados direitos humanos para a questão da raça. Ao mesmo tempo, o autor denuncia também as contradições do pensamento libertário e nacionalista negros, ressaltando suas dívidas para com a “razão branca” e insuficiências no que diz respeito a qualquer perspectiva de futuro. Por fim, apesar de enfocar-se na questão do negro em sua relação com a África e o colonialismo europeu - o negro como homem de origem ou descendência africana - as teses desenvolvidas em Crítica da razão negra, como indica o próprio autor, referem-se antes ao que ele denomina um devir-negro do mundo; expressão que introduz a possibilidade de pensar outros sujeitos racializados - muçulmanos, por exemplo - como os “novos negros” do mundo contemporâneo, e que reforça a ideia de que a categoria negro não passa de uma ficção útil. Não humano ou sub-humano, e ainda, ameaça ao mundo dos “brancos” - o que equivale a dizer, à “humanidade” mesma - o negro é portanto passível de ser explorado, isolado do resto da “humanidade” e, inclusive, exterminado. Neste sentido, Crítica da razão negra oferece não apenas chaves fundamentais para pensar-se a experiência do outro na modernidade, mas também a sua emancipação; aspecto fundamental para o desenvolvimento da humanidade mesma.

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    “Nègre” no original, “black” na tradução ao inglês. Como veremos adiante, Mbembe analisa a categoria “negro” como uma construção histórica de longa duração que não se refere apenas aos sujeitos africanos e afrodescendentes, mas ao contrário se constrói como sinônimo de uma outredade absoluta; trata-se, portanto, de uma “ficção útil” que ultrapassa a questão da cor da pele, a origem ou a localização geográfica do sujeito negro.
  • 2
    Mbembe se refere aqui ao direito moderno, e que continua informando tanto o funcionamento do Estado como o discurso sobre direitos humanos. Fundado numa noção universalizante de humanidade, o discurso sobre direitos humanos, de acordo com Mbembe, teria como resultado a obliteração da cisão fundamental que se estabelece a partir da própria criação da categoria “homem”.
  • 3
    Refiro-me ao principal slogan do movimento BLM, “No justice, no peace!” (Sem justiça não há paz!), mas também ao fato de que o movimento rejeita a “boa consciência branca”, que via de regra se limita a converter o negro em vítima e portanto reproduz a lógica paternalista a partir da qual operam as relações raciais.
  • 4
    Como citar - Mbembe, Achille . Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta Lança. 1. ed. Resenha de ROBYN, Ingrid. Capitalismo, esquizofrenia e raça. O negro e o pensamento negro na modernidade ocidental. Topoi. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 18, n. 36, p. 696-703, set./dez. 2017. Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2017
  • Aceito
    21 Ago 2017
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