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O trabalho do professor-estagiário de língua portuguesa: uma atividade direcionada a quem?

The work of Portuguese language trainee teachers: an activity addressed to whom?

Resumos

Este artigo apresenta uma reflexão acerca do trabalho do professor-estagiário de língua portuguesa, considerando a importância e a complexidade dessa atividade. Fundamentado na teoria bakhtiniana e nas ciências do trabalho, este estudo, de caráter qualitativo, tem como objetivo investigar para quem é direcionada a atividade dos professores de língua portuguesa durante o período de estágio supervisionado, de modo a observar qual é a influência desse direcionamento no desenvolvimento do trabalho docente. Para tanto, são analisados enunciados concretos produzidos a partir de entrevistas semiestruturadas com três alunos do curso de Letras de uma universidade privada do interior do Rio Grande do Sul. Resultados apontam para o fato de que a questão do direcionamento da atividade é bastante conflituosa, pois, apesar de os estagiários considerarem que deveriam ter o aluno como principal destinatário, nem sempre isso se concretiza, já que precisam adequar seu trabalho a exigências distintas, muitas vezes divergentes de seus próprios pontos de vista.

Professor-estagiário; Abordagem dialógica; Direcionamento da atividade


This paper presents a reflection concerning the work of Portuguese Language trainee teachers, considering the importance and complexity of this activity. The study - based on Bakhtin's theory and on labor sciences - aims at investigating who the activity of PL teachers is addressed to during the supervised training, in order to observe the influence of this action in their work development. This work thus analyzes actual utterances produced by semi-structured interviews conducted with three Letters students from a private university of a city in Rio Grande do Sul state, Brazil. The results pointed to the fact that the issue related to whom the activity is addressed to is a very conflicting. Although trainee teachers think their pupils should be their main addressees, this does not always happen, because these professionals need to adapt their work to dissimilar requirements which are oftentimes divergent from their own points of view.

Trainee teachers; Dialogical theory; Activity addressing


O trabalho do professor-estagiário de língua portuguesa: uma atividade direcionada a quem?1 1 Este artigo é um desdobramento de parte da dissertação de Josiane Redmer Hinz (2009), defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas, sob a orientação da Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa di Fanti.

The work of Portuguese language trainee teachers: an activity addressed to whom?

Josiane Redmer HinzI; Maria da Glória Corrêa Di FantiII

IDoutoranda em Letras. PUCRS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Programa de Pós-Graduação em Letras. Porto Alegre – RS – Brasil. 90619-900 – josirh@gmail.com

IIPUCRS – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Faculdade de Letras. Porto Alegre – RS – Brasil. 90619-900 – gdifanti@gmail.com

RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão acerca do trabalho do professor-estagiário de língua portuguesa, considerando a importância e a complexidade dessa atividade. Fundamentado na teoria bakhtiniana e nas ciências do trabalho, este estudo, de caráter qualitativo, tem como objetivo investigar para quem é direcionada a atividade dos professores de língua portuguesa durante o período de estágio supervisionado, de modo a observar qual é a influência desse direcionamento no desenvolvimento do trabalho docente. Para tanto, são analisados enunciados concretos produzidos a partir de entrevistas semiestruturadas com três alunos do curso de Letras de uma universidade privada do interior do Rio Grande do Sul. Resultados apontam para o fato de que a questão do direcionamento da atividade é bastante conflituosa, pois, apesar de os estagiários considerarem que deveriam ter o aluno como principal destinatário, nem sempre isso se concretiza, já que precisam adequar seu trabalho a exigências distintas, muitas vezes divergentes de seus próprios pontos de vista.

Palavras-chave: Professor-estagiário. Abordagem dialógica. Direcionamento da atividade.

ABSTRACT

This paper presents a reflection concerning the work of Portuguese Language trainee teachers, considering the importance and complexity of this activity. The study – based on Bakhtin's theory and on labor sciences – aims at investigating who the activity of PL teachers is addressed to during the supervised training, in order to observe the influence of this action in their work development. This work thus analyzes actual utterances produced by semi-structured interviews conducted with three Letters students from a private university of a city in Rio Grande do Sul state, Brazil. The results pointed to the fact that the issue related to whom the activity is addressed to is a very conflicting. Although trainee teachers think their pupils should be their main addressees, this does not always happen, because these professionals need to adapt their work to dissimilar requirements which are oftentimes divergent from their own points of view.

Keywords: Trainee teachers. Dialogical theory. Activity addressing.

A vida conhece dois centros de valores, diferentes por princípio, mas correlatos entre si: o eu e o outro, e em torno destes centros se distribuem e se dispõem todos os momentos concretos do existir [...]

Bakhtin (2010, p.142)

Considerações iniciais

Não há dúvidas de que o trabalho do professor de língua materna e/ou estrangeira tem sido objeto de reflexão a partir de diferentes perspectivas, como no âmbito da Educação e da Linguística Aplicada, em que se discute o trabalho de ensino, visando à discussão das formas mais produtivas de transmissão de conhecimento. No entanto, considerando a importância da formação do conhecimento e tendo em vista o papel do professor no processo ensino-aprendizagem, pouco ainda se tem explorado, como enfatiza Saujat (2004), o ensino como trabalho, ou seja, a atividade em que "os professores em trabalho tecem". Saujat (2004, p.29), seguindo Daniellou, observa que, de um lado, os fios da atividade docente estão ligados "[...] às instruções oficiais, às ferramentas pedagógicas, [...] às características dos estabelecimentos e dos alunos, às regras formais, ao controle exercido pela hierarquia." e, de outro, os fios estão ligados à própria história do professor, "[...] a seu corpo que aprende e envelhece; a uma imensa quantidade de experiências de trabalho e de vida; a vários grupos sociais que lhes oferecem saberes, valores, [...] a projetos, desejos, angústias, sonhos."

Nessa direção, Faïta (2005a, p.117) observa que "[...] o 'trabalho' de professores ainda é raramente considerado como tal.", pois pouco se exploram "[...] os modos como o professor se investe na realização das tarefas assim como a intensidade desse investimento." A complexidade da atividade em geral e da docente em particular convoca do pesquisador uma abordagem interdisciplinar entre os estudos da linguagem e do trabalho. É nesse contexto que desenvolvemos o presente estudo, discutindo aspectos relacionados à formação docente, mais especificamente no que se refere ao trabalho do professor de língua portuguesa em fase de realização do estágio supervisionado.

O período de estágio, bastante relevante na formação profissional docente, muitas vezes é considerado um momento difícil, visto que várias são as expectativas, ansiedades e, até mesmo, frustrações enfrentadas pelos professores em situação de estágio. Esses conflitos vividos pelos estagiários podem ser justificados, dentre outros fatores, pela pouca experiência profissional, pela preocupação com a aprendizagem dos alunos e, principalmente, pela dúvida em relação ao direcionamento de sua atividade: O trabalho do professor-estagiário é direcionado a quem? Aos alunos? À instituição em que está atuando? Aos pais dos alunos? Ao professor titular da disciplina que ministra? Ao supervisor de estágio?

Considerando o conflito instaurado, temos como objetivo investigar para quem é direcionada a atividade dos professores de língua portuguesa durante o período de estágio supervisionado, de modo a observar qual é a influência desse direcionamento no desenvolvimento do trabalho docente. A partir da discussão desse questionamento, entendemos que seja possível desenvolver reflexões que contribuam para uma maior compreensão da atividade docente em situação de estágio.

Para o desenvolvimento da investigação, partimos dos pressupostos teóricos desenvolvidos por Bakhtin e seu Círculo2 2 O Círculo de Bakhtin é formado por um grupo de estudiosos, cujos principais integrantes da área da linguagem são M. Bakhtin, o líder, V. N. Volochinov e P. N. Medvedev, que tinham interesses filosóficos comuns e se reuniam para debater suas ideias, principalmente entre 1919 e 1929, na Rússia (CLARK; HOLQUIST, 1998; MORSON; EMERSON, 2008). Para referirmo-nos às reflexões teórico-metodológicas do Círculo, utilizamos expressões como teoria bakhtiniana, teoria/obra de Bakhtin e pensamento bakhtiniano, tendo como pressuposto que as ideias são representativas do grupo. , que concebem a linguagem como constitutivamente dialógica, e estabelecemos interface com as ciências do trabalho, que têm contribuído significativamente para a compreensão de diferentes atividades laborais, considerando sua complexidade e a importância de os trabalhadores terem um espaço de verbalização sobre o seu fazer. A questão do direcionamento da atividade perpassa tanto a perspectiva dialógica quanto a do trabalho.

Para a teoria bakhtiniana, toda atividade de linguagem é dirigida ao outro. É nesse sentido que o enunciado, "real unidade da comunicação discursiva", é delimitado pela alternância dos sujeitos do discurso, o que o configura como "um elo na cadeia da comunicação discursiva", conectado, simultaneamente, aos enunciados precedentes e subsequentes (BAKHTIN, 2003, p.274). De acordo com o filósofo russo, assim como interessam as ressonâncias dialógicas dos enunciados precedentes, interessam as antecipações das respostas dos enunciados subsequentes, uma vez que o falante enuncia esperando uma ativa compreensão responsiva, por isso "[...] um traço essencial (constitutivo) do enunciado é o seu direcionamento a alguém, o seu endereçamento." (BAKHTIN, 2003, p.301, grifo do autor).

No que tange à perspectiva do trabalho, Faïta (2005a, p.118, grifo do autor) observa que a atividade profissional "[...] é orientada, sem exceções, pelo indivíduo agindo em direção aos outros, ao meio de trabalho constituído em torno do objeto desse trabalho, em sua dimensão coletiva; e em direção também a ele mesmo, aos seus saberes formais e incorporados." Nesse sentido, Amigues (2004, p.41-42) destaca que o trabalho do professor é uma atividade situada socialmente, "instrumentada e direcionada", já que "[...] para agir, o professor deve estabelecer e coordenar relações na forma de compromisso, entre vários objetos constitutivos de sua atividade." Para Faïta (2005a), o analista do trabalho do professor, ao focalizar a problematização no direcionamento da atividade, tem como centro de reflexão o conflito, o qual causa um duplo desconforto: (i) o trabalho real do professor não se deixa ver e (ii) a reflexão sobre a própria atividade requer que os professores pesquisados façam associações num processo dinâmico, "que está sempre por ser iniciado".

Para o desenvolvimento da análise do direcionamento da atividade do professor-estagiário, contamos com a participação de três alunos do curso de Letras – em período de realização de estágio supervisionado – de uma universidade privada do interior do Rio Grande do Sul. Tendo em vista, conforme orientam as ciências do trabalho com as quais dialogamos, a importância da criação de espaços de fala para o trabalhador refletir sobre o seu fazer frente ao pesquisador, desenvolvemos entrevistas semiestruturadas, que proporcionaram a emergência de conflitos sobre a atividade em foco. Dada a circulação de diferentes temas nos enunciados produzidos na situação específica criada para a pesquisa, selecionamos para análise e discussão o tema que orienta este artigo: o direcionamento da atividade do professor-estagiário.

Este trabalho está organizado em três partes, seguidas das "Considerações finais". Na primeira, apresentamos conceitos desenvolvidos pelo Círculo de Bakhtin. Em seguida, discutimos contribuições advindas das ciências do trabalho, procurando estabelecer relação com reflexões acerca da atividade docente. Na terceira parte, abordamos a questão do direcionamento da atividade do professor-estagiário de língua portuguesa, apresentando aspectos metodológicos da pesquisa e a análise de base enunciativo-discursiva desenvolvida.

Perspectiva bakhtiniana: princípio dialógico, valoração e produção de sentidos

C'est le ton qui fait la musique.

Voloshinov (1981b, p.304).

O princípio dialógico, base epistemológica da teoria bakhtiniana, fundamenta os diferentes conceitos desenvolvidos pelo Círculo, sendo objeto central de reflexão no que diz respeito à constituição da linguagem. Contestando a concepção de língua como um sistema de normas imutáveis e o entendimento de que a enunciação é um ato individual, Bakhtin (2006) destaca que a língua é dinâmica e a enunciação se concretiza como interação social, em um momento histórico. Já nessas reflexões propõe que toda enunciação efetiva, em diferentes materializações, está em acordo ou desacordo com "alguma coisa" (BAKHTIN, 2006), ou seja, há relação de sentido entre os contextos, relações dialógicas.3 3 Sobre essas reflexões, consultar Vozes em tensão: considerações sobre a constituição dialógica do discurso (DI FANTI, 2012).

De acordo com essa abordagem, a língua é observada em situações concretas, sendo a enunciação materializada como uma resposta no diálogo social. Sob esse enfoque, a importância da língua não está na norma linguística, na sua forma estática, fechada, mas sim no seu uso dinâmico, na intrínseca relação com a vida, em que a interação verbal entre sujeitos situados social e historicamente constitui a realidade fundamental da língua (BAKHTIN, 2006). É nesse sentido que a linguagem é considerada como uma atividade dialógica, instaurada por atitude responsiva ativa.4 4 As rubricas "enunciação" e "enunciado", na obra bakhtiniana, conforme explica o tradutor Paulo Bezerra (BAKHTIN, 2003), advêm do termo russo viskázivanie, significando tanto o ato de enunciar em palavras, como o seu resultado, um romance, por exemplo. Por isso, o tratamento dado ao enunciado equivale ao da enunciação.

Desde os primeiros textos de Bakhtin, como é o caso de Para uma filosofia do ato responsável (BAKHTIN, 2010, p.44), podemos perceber o ato-atividade como um ato responsável do Ser, "um componente real, vivo, do existir-evento", capaz de "superar a perniciosa separação e a mútua impenetrabilidade" entre a cultura e a vida. O ato como evento é constituído de múltiplas inter-relações, já que todo dado "[...] é sempre dado junto com alguma coisa a ser feita, a ser alcançada [...]" (BAKHTIN, 2010, p.84). A palavra, como evento, ultrapassa o objeto dado, uma vez que a palavra é avaliativa, ou seja, estabelece uma relação que não é indiferente ao objeto do dizer. No ato concreto, em processo, o sujeito não tem álibi, ou seja, está implicado com sua participação única e insubstituível. Na constitutiva e tensa relação com o outro, cada um ocupa um único e irrepetível lugar; são dois centros de valor, essencialmente diferentes, mas organicamente correlacionados entre si. Nessa relação de interdependência, o sujeito e o discurso, dimensões indissociáveis, se constituem e se alteram na relação com outros sujeitos e outros discursos.

Sob esse enfoque, Voloshinov (1981a, p.198), em Le discours dans la vie et discours dans la poésie, destaca que o enunciado concreto "[...] nasce, vive e morre no processo da interação social dos participantes [da interlocução]." Logo, é a interação que dá forma e significado ao enunciado, uma vez que constitui o enunciado do seu interior, formando uma unidade entre os interlocutores. A situação extraverbal, nesse sentido, não é de modo algum a causa exterior do enunciado, isto é, não se trata de uma força mecânica de fora, determinista, mas sim a situação "[...] se integra ao enunciado como um elemento indispensável à sua constituição semântica." (VOLOSHINOV, 1981a, p.191).5 5 As traduções dos textos consultados em francês são de nossa responsabilidade.

Há uma constitutiva avaliação social no enunciado, materializada em sua forma mais pura pela entonação, que determina a escolha das palavras e a forma da totalidade verbal. A entonação conduz o discurso para fora de seus limites verbais (VOLOSHINOV, 1981a, p.193-194), pois ela "se situa sempre na fronteira entre o verbal e o não-verbal, o dito e o não-dito", estabelecendo um vínculo orgânico entre o discurso e a vida. Sendo a entonação social por excelência, é por meio dela que o locutor entra em contato com os interlocutores e assume uma posição ativa a certos valores. Toda entonação, no dizer de Voloshinov, é orientada segundo duas direções: uma em relação ao interlocutor como aliado e testemunha, e outra em relação ao objeto do enunciado como terceiro participante vivo, revelando diferentes graus de valoração (mais ou menos positivos).

Em La structure de l'énoncé, Voloshinov (1981b), observando ser o enunciado a unidade concreta da comunicação discursiva, destaca que o verbal (dito) é constituído pelo extraverbal, o subentendido (não dito), formado pela situação e o auditório, incluindo espaço, tempo, objeto do dizer e atitude, a valoração dos interlocutores frente ao tema. Enfatiza, assim, que o sentido do enunciado depende da situação de produção, da orientação social ao interlocutor e da entonação, a expressividade, que organiza a escolha das palavras e a sua disposição no enunciado concreto. A entonação, nessa perspectiva, é a condição de existência do enunciado, que é concebido em função de um interlocutor, isto é, de sua compreensão e de sua resposta. Assim, a entonação, como valoração, estabelece vínculo entre a enunciação, sua situação e seu auditório, pois é o condutor mais sensível das relações sociais existentes entre os interlocutores e uma determinada situação: "[...] uma só e mesma palavra, uma só e mesma expressão tomam sentido diferente segundo a entonação [dada]." (VOLOSHINOV, 1981b, p.304). Por isso o entendimento de ser "o tom que faz a música", como destacado como epígrafe nesta seção, já que a diferença das valorações (acento avaliativo, expressividade), em função das situações engendradas, determina a diferença de sentidos de uma mesma expressão verbal, a valoração de um em relação ao outro.

O discurso, em Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 1997, p.181), é considerado a "língua em sua integridade concreta e viva", um fenômeno social complexo, multifacetado, que nasce a partir do diálogo entre discursos diversos. Ao discutir diferenças entre as relações lógicas e dialógicas, Bakhtin (1997, p.184) afirma que "[...] as relações dialógicas são absolutamente impossíveis sem relações lógicas e concreto-semânticas mas são irredutíveis a estas e têm especificidade própria." Para o pensador russo, as relações dialógicas dizem respeito às relações de sentido entre enunciados concretos de sujeitos ativos, tendo como referência o todo da interação verbal. Essas relações de diálogo podem ser estabelecidas entre quaisquer enunciados postos lado a lado no plano do sentido e mesmo pelos que forem separados um do outro no tempo e no espaço, mas forem confrontados na dimensão dos sentidos.

No ensaio O discurso no romance, Bakhtin (1998, p.86) observa que "[...] entre o discurso e o objeto, entre ele e a personalidade do falante interpõe-se um meio flexível, frequentemente difícil de ser penetrado, de discursos de outrem, de discursos 'alheios' sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema." Assim, o discurso encontra o objeto já falado, já avaliado, iluminado ou desacreditado por discursos de outrem. Nessa rede de discursos, o discurso do locutor entra em tenso diálogo com os alheios, "[...] em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros." (BAKHTIN, 1998, p.86) Constituindo-se no âmbito do já-dito e orientando-se para o discurso-resposta, o discurso é tecido heterogeneamente por uma diversidade de vozes (posições sociais, pontos de vista) mais ou menos aparentes.

Bakhtin (2006, p.117), em Marxismo e filosofia da linguagem, observa que é pela palavra que nos dirigimos ao interlocutor, pois ela sempre parte de alguém e dirige-se a alguém, materializando um espaço discursivo entre os interlocutores: "[a] palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre o meu interlocutor. A palavra é um território comum do locutor e do interlocutor." e é considerada um fenômeno ideológico por excelência, que se concretiza como enunciado. Sua materialização será sempre afetada por relações sociais e terá sentidos diferentes de acordo com os contextos de utilização. A palavra "[...] está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial." (BAKHTIN, 2006, p.99), ou seja, a palavra é sempre ideológica, pois significa no interior de relações sociais, por sujeitos históricos, socialmente organizados, portanto ideológicos.

Em Os gêneros do discurso, Bakhtin (2003) observa que o diálogo é constitutivo do enunciado, já que todo enunciado está intrinsecamente ligado a outros enunciados, mais ou menos aparentes. Essa interligação se dá de diferentes formas, pois nos enunciados "se cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo" (BAKHTIN, 2003, p.274). O enunciado é um elo e a "real unidade da comunicação discursiva", sendo delimitado pela "alternância de sujeitos do discurso", responsivos e ativos (BAKHTIN, 2003, p.274-275, grifo do autor). Desse modo, destaca que o enunciado – independentemente da sua extensão – tem "autor" e "destinatário", apresentando uma "vontade discursiva", "[...] que determina o todo do enunciado, o seu volume e as suas fronteiras.", e vai repercutir na escolha do gênero do discurso (BAKHTIN, 2003, p.281).

Os gêneros do discurso, segundo Bakhtin (2003), são "tipos" de enunciados com relativa estabilidade, reconhecidos de uma coletividade, que, em diferentes situações, permitem as interações sociais. Tais formas de enunciados, dinâmicas, históricas e culturais, refletem e refratam de modo mais imediato, preciso e flexível as mudanças que transcorrem na vida social, uma vez que são indissociáveis das atividades humanas, que se realizam em esferas a partir das quais os sujeitos interagem. Os gêneros do discurso são reconhecidos por características relativamente recorrentes – estilo verbal (seleção de elementos linguísticos), tema (singularidade de sentido) e forma composicional (estruturação do todo) – que se manifestam em diferentes práticas sociais. Nas variadas materializações dos gêneros, observamos também o estilo individual – dialógico – de cada sujeito nas relações que estabelece com o outro.

O enunciado possui um "direcionamento", um "endereçamento" ao destinatário, que, ocupando uma posição também ativa, determina a constituição do enunciado, uma vez que a percepção que o locutor tem dele interfere na composição e no estilo do enunciado. Com isso, ao construir seu enunciado de modo ativo, o locutor sempre leva em conta quem é o seu destinatário, o que se pode perceber pela antecipação de respostas: "[...] até que ponto [o outro] está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação." (BAKHTIN, 2003, p.302).6 6 Sobre essas reflexões, consultar Vozes em interação: tecendo discursos e sentidos (DI FANTI, 2010). Esse destinatário, em diferentes graus de proximidade e distanciamento, é projetado no enunciado de maneira ativa, já que o locutor leva "[...] em conta as suas concepções e convicções, os seus preconceitos [...], as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva." (BAKHTIN, 2003, p.302) do enunciado pelo destinatário.

Tais observações são importantes para o estudo que aqui se propõe ao considerarmos a questão do endereçamento como constitutiva das atividades de linguagem e de trabalho.

Ciências do trabalho e atividade docente

[...] a linguagem é a única a autorizar a capitalização de nossas

experiências práticas, ou seja, a acumulação, a conservação

dos saberes que adquirimos por meio de uma prática.

Faïta (2010, p.181)

Nesta seção, apresentamos breves reflexões acerca das ciências do trabalho que consideram a linguística como fundamental para o entendimento das atividades laborais, em especial a abordagem ergológica e os estudos da clínica da atividade, além de tecermos considerações a respeito da atividade docente.

Os estudos da ergologia, reformulando conceitos da ergonomia da atividade, como trabalho prescrito e trabalho real, tarefa e atividade, que associam tarefa a prescrições e atividade à realização das tarefas, consideram a dimensão humana da atividade e contestam uma possível relação direta entre o prescrito e o real, uma vez que sempre há muitas lacunas a serem preenchidas pelo trabalhador. Logo, procurando ampliar a reflexão sobre a distância entre a tarefa e a atividade realizada, a ergologia propõe os conceitos de "normas antecedentes" e "renormalizações" para a análise e transformação das situações de trabalho. Schwartz, para tanto, associa o conceito de trabalho com o de "atividade industriosa", que envolve sempre um "debate de normas". Além disso, ressalta que "[...] o trabalho é pleno, independente do fato de ser assalariado, formal ou informal, doméstico ou mercantil." (SCHWARTZ, 2006, p.459).

A abordagem ergológica propõe, por conseguinte, que se observe o constante embate entre as "normas antecedentes" e as "renormalizações", pois as normas que precedem a atividade não dão conta da complexidade do trabalho que, por ser uma atividade humana, portanto dinâmica, exige constantes renormalizações. O trabalho, considerado uma organização viva, sujeito à infidelidade do meio, não pode ser concebido como simples execução de tarefas, uma vez que o trabalhador está constantemente se deparando com a necessidade de gerir as instabilidades que caracterizam as atividades. Isso ocorre porque sempre há algo de singular no desenvolvimento do trabalho, que exige gerenciamento de variabilidades, usos de si no dizer de Schwartz (2007a). Ao fazer uso de si, o trabalhador, além de revelar as singularidades que constituem sua atividade profissional, demonstra que "cada um não está em seu lugar somente para executar" (SCHWARTZ, 2007a, p.194, grifo do autor). O uso de si, segundo o filósofo, ocorre a partir da seguinte dualidade: o uso de si por si, de acordo com as necessidades do trabalhador, e o uso de si pelos outros, que se refere aos que cruzam a atividade de trabalho, como as normas científicas, organizacionais e hierárquicas.

Para Schwartz (2007a, p.136), "[...] a linguagem no trabalho é rica e o trabalhador a utiliza para regular sua atividade." Nessa relação, o autor propõe a distinção entre duas dimensões: a linguagem comum e a linguagem distanciada. A primeira delas é utilizada durante a atividade de trabalho, enquanto que a segunda é baseada na utilização de conceitos, que auxiliam na reflexão sobre a atividade. Quando o trabalhador necessita mobilizar esses conceitos acerca de sua atividade profissional, tem a oportunidade de maior compreensão do trabalho, pois passa a entender como se insere nas atividades e na sociedade.

Considerando essa perspectiva, algumas abordagens do trabalho têm incentivado a criação de diferentes espaços de fala para o trabalhador como uma oportunidade de não só aproximar a experiência da academia com a vivencial, mas também proporcionar a criação de saberes sobre o profissional e sua atividade. Esse é o caso dos estudos da clínica da atividade (CLOT et al., 2001) que, articulando propostas de Bakhtin e Vygotsky, propõem a compreensão do trabalho a partir de duas dimensões: a atividade realizada e o real da atividade. A atividade realizada corresponde ao que pode ser diretamente observado, o que realmente se faz durante o trabalho. Já o real da atividade diz respeito ao que não é aparente (o que poderia ser feito, o que gostaria de fazer e não conseguiu, o que foi impedido de realizar etc.), porém é considerado importante pelo trabalhador e interferiu na sua atividade.

Sob esse enfoque, é um desafio desenvolver metodologias que proporcionem o acesso à atividade realizada e ao real da atividade. Se, para a primeira, parece não haver tanta dificuldade, para a segunda é necessário o engajamento do trabalhador-pesquisado em um espaço dialógico de verbalização sobre seu fazer. A partir de um afastamento, espacial e temporal, o trabalhador deve ser instigado a falar sobre sua experiência. É criado, portanto, um novo espaço de produção de saberes, em que são desenvolvidos discursivamente conhecimentos sobre o sujeito e o trabalho, proporcionando a circulação de pistas discursivas sobre o real da atividade que podem ser problematizadas na análise do material de investigação.

Faïta (2010, p.182-183, grifo do autor), referindo-se à relação linguagem e trabalho, observa que a "[...] linguagem constitui em si mesma uma atividade no centro da atividade." e acrescenta que observar a linguagem como "[...] atividade sobre a atividade introduz naturalmente um novo ponto de vista: o que parte de uma tomada de distância com relação a essa atividade." Desse modo, destaca que a "atividade sobre" pressupõe um distanciamento e a verbalização sobre o trabalho, ou seja, formalização, descrição e estruturação da "análise por meio da linguagem". É um exercício exigente, segundo o linguista analista do trabalho, "[...] mas frutífero para o desenvolvimento pessoal e profissional."

Por razões metodológicas, Clot e Faïta (2000) desenvolvem a noção de gêneros da atividade, visando contemplar a compreensão da complexidade da atividade de trabalho. Observam que os gêneros são formados por um plano do discurso, que contém um estoque de enunciados, protótipos de maneiras de dizer ou de não dizer, e um plano da técnica, que é o regime de utilização das técnicas em um meio profissional. Os gêneros da atividade, para os autores, constituem-se como os pressupostos sociais, uma memória impessoal e coletiva que possibilita a atividade pessoal. Tendo em vista a instância singular da materialização da atividade, a estilização do gênero pelo sujeito, estabelece-se uma tensão entre o esperado, conhecimento partilhado, e os desdobramentos sucessivos (mudanças, equívocos, sucessos, prejuízos), marcando um movimento de permanente recriação.

No que diz respeito ao trabalho do professor, Amigues (2004) afirma que a atividade é geralmente considerada a partir das regras ou prescrições propostas pela instituição. Isso faz com que grande parte das pesquisas na área da Educação julgue e faça críticas ao trabalho docente, já que as ações dos professores não correspondem ao que se esperaria. Portanto, sem haver a compreensão de que não existe uma relação direta entre o que é prescrito e o que é realizado, cada vez mais há uma desvalorização desse trabalho.

Sendo assim, percebeu-se a necessidade de maior compreensão das dimensões que constituem a atividade profissional do professor e da complexidade que a caracteriza, levando em consideração, para tanto, a relação entre linguagem e trabalho. De acordo com Amigues (2004, p.41-45), o trabalho do professor é uma atividade situada socialmente, instrumentada e direcionada "[...] não apenas aos alunos, mas também à instituição que o emprega, aos pais, a outros profissionais." Para agir, "[...] o professor deve estabelecer e coordenar relações na forma de compromisso, entre vários objetos constitutivos de sua atividade." Dentre esses objetos que constituem a atividade do professor, o autor cita as prescrições (reorganizadas "tanto no meio de trabalho do professor como do dos alunos"), os coletivos (da profissão, dos professores da disciplina, dos professores da classe etc.), as regras do ofício (particularidades que ligam os profissionais entre si, como "uma memória comum e uma caixa de ferramentas", que pode gerar renovação e controvérsias) e as ferramentas (a serviço das técnicas de ensino: manuais, exercícios etc.). A atividade é assim "[...] o ponto de encontro de várias histórias (da instituição, do ofício, do indivíduo, do estabelecimento [...]).", em que o professor estabelece relação com o outro (em sentido amplo), não se limitando à sala de aula. Além disso, "[...] o professor é, ao mesmo tempo, um profissional que prescreve tarefas dirigidas aos alunos e a ele mesmo; um organizador do trabalho dos alunos [...] um planejador." (AMIGUES, 2004, p.49).

Dessa forma, podemos ressaltar que a atividade do professor não se restringe à realização e à organização de suas próprias tarefas, mas também engloba a regulação, a prescrição e o planejamento das atividades dos alunos. Além disso, há dimensões relacionadas ao coletivo de trabalho que devem ser consideradas no decorrer das ações desse profissional.

Souza-e-Silva (2004, p.103, grifo do autor), ao abordar questões referentes à figura do professor, afirma que "[...] se ensinar é uma atividade, aquela da ação vivida, dizer como se procede para fazer tal ação, pertinente ao ato de ensinar, é outra atividade, aquela da ação direcionada a um interlocutor externo." Portanto, as práticas linguageiras constituídas a partir das reflexões sobre o trabalho docente e do professor em formação podem ser consideradas como uma forma de reconstrução e de ressignificação da atividade desse profissional.

O direcionamento da atividade do professor-estagiário de língua portuguesa

[...]eu preparava a minha aula voltada para os alunos [...]

mas o plano de aula [...] como eu tinha que mostrar

para a supervisora eu fazia voltado pra ela [...]

Professor-estagiário, participante da pesquisa.

Procedimentos metodológicos

Para a constituição do material de análise, levamos em consideração os pressupostos teóricos que embasam esta pesquisa: os estudos da linguagem e das ciências do trabalho. Em relação à primeira perspectiva, estudos da linguagem, mais especificamente a teoria dialógica do discurso, salientamos o caráter dialógico como constitutivo da linguagem, já que todo enunciado está intrinsecamente relacionado a outros enunciados. Sendo assim, esse diálogo permanente entre enunciados ocasiona uma movimentação de sentidos na interação verbal que deve ser levada em conta pelo pesquisador de modo a adotar uma postura de responsividade, um diálogo constante com o material de pesquisa (BAKHTIN, 2003).

Já em relação à segunda perspectiva, referente às ciências do trabalho, destacamos as contribuições de Schwartz e Faïta quanto à constituição de material de pesquisa. Os referidos autores salientam a importância de que se criem momentos de reflexão para que o protagonista do trabalho seja instigado pelo pesquisador a falar sobre a sua atividade. Com a criação de espaços para a verbalização sobre as atividades que desenvolve, o trabalhador tem oportunidade de conhecer melhor o próprio trabalho e produzir conhecimento sobre seu fazer diante do pesquisador.

No que tange à linguagem no trabalho, Schwartz (2007b, p.136) ressalta que "a linguagem no trabalho é rica", mas, como o trabalhador nem sempre se dá conta da complexidade da atividade que realiza, acaba afirmando que o trabalho "é muito simples" e que "não há nada a dizer" sobre ele. No entanto, quando ultrapassa a fase de considerar simples a atividade, já que começa a falar sobre ela, o trabalhador passa a considerar complexa a atividade, pois afirma que "é complicado demais para falar". Essas reflexões orientam para o desafio que se põe ao pesquisador, incitar o trabalhador, por meio da verbalização sobre o seu fazer, a discutir sobre a complexidade e a importância de sua atividade profissional.

De acordo com a perspectiva teórica interdisciplinar adotada e considerando a importância de se estudar a complexidade da atividade de trabalho de professores em formação, realizamos entrevistas individuais com três professores-estagiários de uma universidade particular do interior do Rio Grande do Sul. Os três estagiários entrevistados, alunos do 5º e 7º semestres, nomeados ficticiamente como Marcos, Laura e Carla, desenvolveram atividades em escolas da rede pública, sendo que um deles estagiou em uma escola municipal e os outros dois em escolas estaduais, na 7ª, 8ª e 6ª séries, respectivamente.

A entrevista, como espaço de verbalização, foi considerada sob uma perspectiva discursiva, conforme Rocha, Daher e Sant'Anna (2004), observando as particularidades da materialização do gênero do discurso em situação específica. Contestando a visão da entrevista como metodologia de acesso a informações necessárias à pesquisa, o que pressupõe uma abordagem de linguagem transparente, os autores propõem que a entrevista seja vista como uma "[...] nova situação de enunciação que reúne entrevistador e entrevistado, situada num certo tempo, num espaço determinado, revestida de um certo ethos, com objetivos e expectativas particulares." (ROCHA; DAHER; SANT'ANNA, 2004, p.174).

Tais reflexões subsidiam a presente pesquisa no sentido de se considerar a entrevista como um gênero do discurso flexível que se atualiza em cada situação de enunciação. As entrevistas, semiestruturadas, foram guiadas por um roteiro dinâmico previamente elaborado, que contempla aspectos relativos à atividade de estágio, como: "Qual a importância do estágio para o professor de língua portuguesa? Como é/foi a relação com a escola, o professor titular, os alunos, a comunidade escolar de modo geral (pais dos alunos, outros professores, funcionários etc.)? Como é/foi a relação com a supervisora do estágio e a comunidade universitária de modo geral (colegas de curso, disciplinas do curso, secretaria, coordenação etc.)? Quais os aspectos positivos da experiência (estágio supervisionado)? Que orientações foram seguidas, durante o estágio, para o desenvolvimento das aulas de língua portuguesa? Qual a sua maior preocupação no desenvolvimento das aulas durante o estágio? Com o aluno? Com o professor titular? Com a supervisora de estágio? Com o ensino? Com a aprendizagem do aluno?" etc. Com o roteiro proposto, foi incitada uma discussão mais ampla.

As entrevistas, nessa perspectiva, foram desenvolvidas como um espaço de fala e reflexão sobre a atividade docente dos participantes da pesquisa, oportunizando a emergência de conflitos. Para este artigo, especificamente, considerando o objetivo que norteia a reflexão – investigar para quem é direcionada a atividade dos professores de língua portuguesa durante o período de estágio supervisionado, de modo a observar qual é a influência desse direcionamento no desenvolvimento do trabalho docente – selecionamos um tema para a discussão: o direcionamento da atividade do professor-estagiário. Tal tema pôde ser observado, dentre outros momentos, quando se questionou os três professores-estagiários sobre qual era a maior preocupação que tinham ao planejar suas aulas.

O tema, conforme a teoria bakhtiniana (BAKHTIN, 2006), é dinâmico e materializa-se de diferentes modos no discurso, por isso possui valorações e sentidos distintos a cada enunciação, o que exige uma compreensão responsiva ativa. Para a observação do tema em foco, além de contemplar as condições de produção dos enunciados, recorremos a sua face reiterável, a significação, os elementos linguísticos. Essa medida contempla o estilo verbal do gênero e vai ao encontro do diálogo entre as relações dialógicas e lógicas. Para tanto, é válido destacar que todo enunciado é acentuado valorativamente, ou seja, possui posições ideológicas do sujeito do discurso. Assim, na enunciação, a forma linguística ganha acento de valor, entonação, e circula como enunciado, fazendo fluir sentidos diversos. Por conseguinte, os elementos linguísticos são considerados neste trabalho como pistas discursivas para a compreensão da circulação do tema e do movimento dos sentidos, o que engloba os diferentes interlocutores, espaço, tempo, aspectos histórico-sociais, posições ideológicas e acentos valorativos.

Tendo em vista as reflexões sobre os procedimentos adotados para o desenvolvimento desta investigação, apresentamos um resumo topicalizado dos principais aspectos considerados na análise: (i) tema: o direcionamento da atividade docente durante o estágio supervisionado; (ii) condições em que os enunciados são produzidos: situação específica de pesquisa em que os enunciados se materializam na interação verbal: entrevista; (iii) noções oriundas dos estudos do trabalho (como normas antecedentes, renormalizações, uso de si, atividade realizada e real da atividade) e da teoria dialógica (como dialogismo, enunciado, tema e acento de valor).

Passemos ao desenvolvimento da análise, considerando as teorias que embasam a reflexão de modo a compreender os enunciados em sua constituição dialógica. Nesse processo, analisamos como o sujeito enunciador vai se posicionando no seu discurso tanto em relação ao seu dizer quanto em relação aos outros que atravessam o seu dizer. Para tanto, a materialidade linguística é fundamental para a observação de pistas discursivas postas em circulação que desencadeiam diferentes relações de sentido.

O direcionamento da atividade docente na perspectiva de professores em formação: vozes em conflito

Para esta análise, são considerados enunciados (trechos individuais) das entrevistas dos três professores-estagiários concedidas para uma situação específica de pesquisa, no caso dissertação de mestrado, cujos procedimentos metodológicos incluíam outras instâncias de dizer.7 7 Os três participantes da pesquisa, além de concederem entrevistas individuais, também fizeram parte de um grupo de discussão, que visava confrontar, primeiramente, as diferentes concepções que surgiam no debate sobre a atividade de estágio e, em um segundo momento, seus posicionamentos a partir da leitura de um artigo que trata do trabalho docente na perspectiva ergonômica: O ensino como trabalho, de Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva (2004). O tema "direcionamento da atividade docente durante o estágio supervisionado" emergiu tanto nas entrevistas individuais quanto nas discussões em grupo, porém, devido aos limites de um artigo, optamos por discutir neste trabalho somente os enunciados produzidos nas entrevistas. Na dissertação, foram analisados outros dois temas: "concepções de ensino de língua portuguesa" e "dificuldades no desenvolvimento do estágio". Selecionamos para este artigo um segmento da entrevista de cada um dos estagiários (Marcos, Laura e Carla), oriundo do seguinte questionamento presente no roteiro pré-estabelecido para as entrevistas: "Qual a sua maior preocupação no desenvolvimento das aulas durante o estágio? Com o aluno? Com o professor titular? Com a supervisora de estágio? Com o ensino? Com a aprendizagem do aluno?".

Segmento(a): Marcos

[...] eu preparava a minha aula voltada para os alunos [...] voltada pra eles em termos até de desenvolver a aula [...] trabalhando com texto [...] trabalhando com gênero é muito mais fácil mas o plano de aula eu fazia (risos) como eu tinha que mostrar para a supervisora eu fazia voltado pra ela assim mas não condizia [...] era o que eu tinha dado mas não da maneira como eu trabalhei.

Percebemos nos enunciados do estagiário Marcos, ao responder ao questionamento da pesquisadora, o confronto entre dois destinatários do seu trabalho, os alunos e a supervisora de estágio. Esse embate pode ser observado a partir de sua referência ao "planejamento", o que seria realmente desenvolvido em suas aulas (focalizado na aprendizagem dos alunos), e ao "plano de aula" (voltado para a supervisora), que parece ser concebido como um documento exclusivamente prescritivo.

A emergência de fios dialógicos dos destinatários da atividade docente, diante da pesquisadora na situação de entrevista, pode ser explicada pelo embate entre as normas antecedentes, relativas à supervisão de estágio, e as renormalizações, praticadas pelo estagiário no exercício laboral em sala de aula. Embora possa ser notado o pouco espaço destinado ao uso de si para o estagiário exercer o trabalho em sala de aula, percebemos a subversão renormalizante das normas a partir do distanciamento entre o que efetivamente é dado em aula e o que é entregue para a supervisão. Por meio da disparidade entre o que faz em sala de aula e o que diz que faz para a supervisão, podemos perceber o uso de si por si, materializado na prática em sala de aula, e o uso de si pelo outro, nos planos de aula solicitados pela supervisão, na atividade docente de Marcos. Essa diferença entre o que é dito para a supervisora e o que efetivamente é desenvolvido pelo estagiário é reiterada pelos risos na entrevista, momento em que se percebe uma avaliação apreciativa, por meio de um tom irônico, já que são confrontadas duas enunciações, uma referente às atividades que desenvolve em oposição à outra sobre o que ele diz que desenvolve: "[...] eu preparava a minha aula voltada para os alunos [...] mas o plano de aula eu fazia (risos) como eu tinha que mostrar para a supervisora eu fazia voltado pra ela assim mas não condizia [...] era o que eu tinha dado mas não da maneira como eu trabalhei."

Na circulação do tema em foco, podemos perceber que a entonação apresentada pelo professor-estagiário expressa a interação social entre o locutor (próprio estagiário), o interlocutor (pesquisadora) e o tema (direcionamento de suas aulas). Tal inscrição no discurso apresenta índices de como o estagiário se responsabiliza por seu dizer. Assim, no conflito de vozes entre os diferentes destinatários da atividade docente, o professor-estagiário, ao abordar o desenvolvimento de suas aulas, utiliza formas verbais que indicam uma prática recorrente no desenvolvimento do estágio, como é o caso de "trabalhando", que se contrapõem discursivamente à forma acabada "trabalhei": "[...] eu preparava a minha aula voltada para os alunos [...] trabalhando com texto... trabalhando com gênero é muito mais fácil mas o plano de aula eu fazia (risos) como eu tinha que mostrar para a supervisora eu fazia voltado pra ela assim mas não condizia [...] era o que eu tinha dado mas não da maneira como eu trabalhei." Tais índices revelam o distanciamento entre o prescrito pela supervisora e a atividade "real" de trabalho do estagiário-docente.

Considerando a complexidade da atividade docente em situação de estágio supervisionado, referente às diversas vozes que entram em embate no exercício laboral, como o professor titular da disciplina, as normas da escola, a supervisão da universidade, o plano de aula solicitado, as normas do próprio estagiário, seus saberes, anseios e dificuldades, observamos nos enunciados analisados que Marcos se preocupa, principalmente, quanto ao direcionamento de sua atividade docente, com os alunos. Essa preocupação aparece tanto no nível do planejamento, quanto no do desenvolvimento das aulas, em que privilegia o trabalho com gêneros textuais.

A materialização do tema do direcionamento da atividade docente durante o estágio, seguindo os pressupostos bakhtinianos (BAKHTIN, 2006), acontece por meio do enunciado concreto, vivo, em uma dada situação de enunciação em que, não dispensando as formas linguísticas, o locutor posiciona-se, por meio de acentos valorativos, em relação aos outros sujeitos e discursos que atravessam e não deixam de influenciar o seu dizer. Desse modo, ainda que seja aparente o conflito do direcionamento da atividade, seja para os alunos seja para a supervisão, percebemos no discurso do professor-estagiário a importância dispensada em direcionar a atividade aos alunos, mesmo havendo influência da avaliação realizada pela supervisão, que parece não apresentar uma concepção de ensino de língua portuguesa afim com a do estagiário.

Com essas reflexões, em que o estagiário é convocado a verbalizar sobre sua prática docente, em uma situação de enunciação específica de entrevista, em um momento e espaço distanciado do da sala de aula, assumindo uma posição exotópica, distanciada, segundo as reflexões de Bakhtin (2003) e de Faïta (2005b), podemos perceber índices discursivos do real da atividade desenvolvida pelo professor. Esse real da atividade, que vai além do que efetivamente é realizado pelo trabalhador (atividade realizada), está diretamente relacionado à sua própria história. Dessa forma, o professor-estagiário, ao falar não somente sobre ações que realizou, mas também sobre aquelas que foram impedidas, que gostaria de ter praticado, está remetendo a aspectos que compõem essa dimensão da atividade: o "real". É válido salientar, por conseguinte, a importância das metodologias que proporcionam, de certa forma, pistas discursivas de acesso a experiências e saberes que provavelmente não seriam percebidas na observação das interações em sala de aula, sem esse espaço dialógico de verbalização sobre o trabalho.

Quanto ao posicionamento da estagiária Laura, parece haver um distanciamento do apresentado por Marcos no que diz respeito à avaliação da supervisão, porém uma aproximação quanto à preocupação com os alunos, o que podemos observar no seguinte trecho:

Segmento(b): Laura

[...] toda a vez que eu ia preparar aula eu tinha muito medo de saber se eu conseguiria passar o conhecimento pra eles [...] como a professora orientadora ela nunca foi assim em cima cobrando que a gente tivesse perfeitamente as coisas [...] eu acho que isso deixou a gente ficar mais à vontade pra pensar nos alunos e não na avaliação que ela tava fazendo.

Podemos notar que o direcionamento dado pela estagiária a sua atividade docente, focalizado principalmente na aprendizagem dos alunos, dialoga com outra perspectiva, referente à supervisão do estágio. Ao negar a preocupação com a avaliação da supervisora, a professora-estagiária está admitindo a sua existência, em um movimento dialógico, em função de já-ditos e possivelmente antecipando respostas, levando em consideração o seu interlocutor (no caso, a pesquisadora), conforme os pressupostos bakhtinianos.

A posição avaliativa da estagiária pode ser observada, entre outros momentos, quando, ao se referir à flexibilidade da supervisora, menciona a ausência de cobranças, ("como a professora orientadora ela nunca foi assim em cima cobrando"), o que dá pistas de não haver cobrança por parte da supervisora que comprometa o desenvolvimento da atividade da estagiária, não deixando, porém, de entrever a existência de um posicionamento contrário que corresponde à cobrança da supervisão, fazendo emergir um efeito de presença-ausência. Esse efeito pode ser relacionado ao entrecruzamento de diferentes pontos de vista constitutivos dos enunciados, como observa Bakhtin (2003).

Nesse contexto, é possível percebermos que, embora esteja sendo avaliada pela supervisora, a estagiária tem uma maior preocupação com o aluno. Esse posicionamento, que pode ser observado em "[...] eu acho que isso deixou a gente mais à vontade pra pensar nos alunos.", revela uma certa incerteza do locutor face ao que diz, no caso em relação à supervisão, o que remete à importância do direcionamento da atividade da estagiária ao aluno.

A variação das pessoas do discurso, "eu" e "a gente", pode ser justificada pelo fato de que a professora-estagiária fala, primeiramente, de uma situação particular sua ("eu ia preparar aula eu tinha muito medo"), em que demonstra preocupação em não proporcionar a aprendizagem dos alunos), e, posteriormente, de um contexto um pouco mais abrangente, que envolve também os seus colegas ("isso deixou a gente ficar mais à vontade"). Do ponto de vista dialógico, podemos entender facetas da constituição ideológica do sujeito e do discurso na relação de alteridade com outros professores em formação, o que dá índices de um certo saber partilhado pelo grupo de estagiários, algo como um pressuposto social da sua prática, pistas de um possível gênero da atividade: não havendo cobrança severa da supervisão, o estagiário consegue desenvolver sua atividade mais voltada para os alunos.

Considerando esse deslocamento, é possível percebermos que, materializando-se como uma atitude responsiva ativa, o uso da palavra "medo", reforçada pelo "muito" ("[...] toda a vez que eu ia preparar aula eu tinha muito medo de saber se eu conseguiria passar o conhecimento pra eles."), não só indica a avaliação negativa da estagiária em relação ao que está enunciando, mas também mostra sua insegurança em relação ao próprio desempenho em sala de aula, no que se refere ao ensino aos alunos. Essa manifestação de insegurança quanto a sua própria atuação, que somente pode ser entendida se considerarmos como referência manifestações de segurança de outros profissionais, a alteridade constitutiva do discurso, pode estar relacionada ao fato de ser uma professora em formação, não tendo, portanto, vasta experiência de prática docente. Tal aflição reforça a preocupação com os alunos, não deixando de ressoar o confronto entre a voz da teoria (o que foi aprendido na Universidade) e a da prática (sala de aula).

Na circulação de vozes que atravessam os dizeres da estagiária, podemos perceber o embate entre as normas antecedentes (conteúdo a ser desenvolvido e orientação da supervisão) e as renormalizações (a aula viva). Enquanto em relação à professora responsável pela supervisão a estagiária parece não encontrar dificuldade para o desenvolvimento de seu trabalho, em relação às suas próprias normas parece haver dúvidas. Percebe-se assim que, embora o locutor não se sinta pressionado por parte da supervisão ou por outra instância de normatização, podendo fazer uso de si na atividade docente, apresenta uma espécie de exigência pessoal em relação aos alunos, às suas normas, ao seu planejamento de aula, que, estando em permanente debate na prática profissional, exigem sempre renormalizações.

Na tensão entre o "medo" expresso em relação a um planejamento que possibilite a formação de conhecimento do aluno e a "tranquilidade" em relação à supervisão de estágio, podemos perceber a inscrição heterogênea do sujeito no discurso. Essa dimensão dialógica põe em dissonância pontos de vista que estão em jogo na atividade docente da estagiária, que, em sua complexidade, apresenta diferentes relações de sentido com outras vozes, mesmo que não aparentes, como convergência, sobreposição e divergência, em diferentes graus.

Se para Laura a questão do direcionamento parece não ser muito problemática, o mesmo não acontece com Carla, que, ao ser indagada sobre qual era a sua maior preocupação ao preparar as aulas, se com os alunos, com as exigências da escola ou com a supervisão de estágio, responde:

Segmento(c): Carla

[...] acho que todas elas [...] de certa maneira essas eram preocupações que sempre se faziam presentes [...] todas elas de determinada maneira [...] a forma de apresentar o conteúdo assim de tornar interessante pra que eles aprendessem melhor acho que era uma das maiores praticamente... a parte de ter que seguir aquele esquema também [...] às vezes dava vontade de dar uma fugida mas tinha que se tocar que não e que deveria voltar [...] deveria ter que conseguir trabalhar naquele tempo aquela parte [...] e a supervisão também não deixa de ser uma preocupação por saber que aquela pessoa tá analisando tudo minuciosamente o que tu tá fazendo pra depois apontar as coisas chatas e erradas [...] inadequadas na verdade [...] então todas elas preocupavam mas a parte assim de tornar agradável pros alunos pra que eles realmente aprendessem e realmente gostassem [...] acho que essa era a minha maior preocupação.

Podemos perceber, no movimento dialógico desencadeado pelos enunciados da estagiária, a existência de um conflito quanto ao direcionamento de sua atividade de trabalho, pois, para ela, todas as dimensões elencadas (alunos, normas institucionais e supervisão) influenciam o desenvolvimento de seu trabalho. A situação de entrevista, momento de distanciamento da atividade laboral, proporcionou a emergência desse confronto de diferentes perspectivas frente à pesquisadora. As posições avaliativas apresentadas pelo sujeito do discurso referem-se, portanto, à necessidade de levar em consideração tanto as prescrições que lhe eram impostas quanto o perfil de sua turma, a quem deveria propiciar aulas interessantes. Ressaltamos, entretanto, que esse posicionamento é assumido responsivamente no discurso de maneira cautelosa, o que pode ser percebido por meio de acentos apreciativos ao mencionar as preocupações que eram constantes em sua atividade laboral: "[...] acho que todas elas [...] de certa maneira essas eram preocupações que sempre se faziam presentes." Esse efeito de incerteza revelado pelo posicionamento do locutor pode estar relacionado ao conflito instaurado quanto ao direcionamento de sua atividade docente, tendo em vista a existência de vários destinatários que influenciam o seu trabalho e fazem exigências distintas.

Apesar dessa heterogeneidade de destinatários levados em consideração pela estagiária para desenvolver sua prática docente, ela ressalta, em dois momentos distintos, que seu objetivo principal é a aprendizagem dos alunos: (a) "[...] a forma de apresentar o conteúdo assim de tornar interessante pra que eles aprendessem melhor acho que era uma das maiores praticamente." e (b) "[...] tornar agradável pros alunos pra que eles realmente aprendessem e realmente gostassem [...] era a minha maior preocupação." Podemos perceber, nos enunciados em foco, a presença de orientações apreciativas em relação às aulas de língua portuguesa e na focalização da atividade docente no aluno, como desenvolver os conteúdos de forma "interessante" e "agradável" para que os alunos "aprendessem melhor" e "gostassem" das aulas.

Esses fatores correspondentes à preocupação quanto à forma de desenvolver a atividade de trabalho da estagiária podem ser considerados como pistas discursivas que remetem tanto à atividade realizada por ela quanto ao "real" da atividade. Em relação à atividade realizada correspondem as ações que puderem efetivamente ser desenvolvidas, já no que diz respeito à dimensão real da atividade são englobadas, além do que realmente se faz, o que se acredita que deva ser feito, mas muitas vezes se é impedido.

Percebemos ainda, nos enunciados de Carla, instâncias que correspondem ao debate entre as normas antecedentes e as renormalizações no desenvolvimento do estágio. Ao mencionar "aquele esquema" e "aquela parte" ("[...] a parte de ter que seguir aquele esquema também [...] deveria ter que conseguir trabalhar naquele tempo aquela parte."), a estagiária está se referindo a uma listagem de conteúdos oferecida pela escola, que deveria ser seguida durante o desenvolvimento de suas aulas, o que corresponde às prescrições estabelecidas pela instituição escolar. Todavia, Carla parece não estar satisfeita em ficar "presa" a essa norma antecedente, sentindo necessidade de, conforme Schwartz (2007a), fazer uso de si por si ("às vezes dava vontade de dar uma fugida"), já que o trabalhador não é um simples executor de tarefas. Dessa forma, em função de sua própria concepção de linguagem e das singularidades de seu contexto de atuação, ou seja, as necessidades apresentadas por seus alunos, as renormalizações eram inevitáveis, visto que aqueles conteúdos pré-estabelecidos não correspondiam ao que era exigido pela atividade viva de trabalho.

Entretanto, essa atitude de a estagiária propor renormalizações às prescrições impostas parece não ter tido aceitabilidade em seu contexto de trabalho, o que pode ser observado pela orientação avaliativa do enunciado quando afirma que, apesar de pretender realizar modificações em relação às prescrições, se dava conta de que "[...] deveria voltar [...] deveria ter que conseguir trabalhar naquele tempo aquela parte." Essa restrição ao trabalho como uso desi por si, isto é, atividade permeada por um retrabalho constante das normas, ocorre em função de diferentes vozes, provenientes da instituição escolar, que acreditam numa relação harmônica entre o prescrito e o realizado. Do ponto de vista dialógico, podemos entender que no enunciado, mesmo havendo vozes que orientam para uma conduta a ser seguida (os conteúdos pré-estabelecidos pela escola), como a da professora titular da disciplina que acompanha o cumprimento desses conteúdos, há o entrecruzamento de outras vozes, como as que lutam para ter mais espaço no desenvolvimento da atividade de trabalho.

Outra situação específica, contemplada na fala da estagiária, refere-se à avaliação por parte da universidade, realizada pela professora supervisora de estágio. Essa supervisão é representada pela estagiária por meio de índices discursivos que remetem a aspectos negativos: "[...] e a supervisão também não deixa de ser uma preocupação por saber que aquela pessoa tá analisando tudo minuciosamente o que tu tá fazendo pra depois apontar as coisas chatas e erradas [...] inadequadas." Nesse caso, a professora supervisora é considerada "aquela pessoa" que remete a "uma preocupação". Podemos entender que os itens lexicais escolhidos para se referir à supervisão, no contexto do enunciado, indicam uma atitude reativa do locutor, revelando uma relação dialógica de distanciamento entre o professor formador e aquele que está em formação, já que emergem pontos de vista que entram em confronto com avaliações do supervisor ("uma preocupação", "aquela pessoa") que pudessem ser positivas para a formação profissional. O cuidado pormenorizado ("minuciosamente") é avaliado negativamente por parte do sujeito enunciador, que atribui à análise da supervisão o levantamento de problemas, o que pode ser observado pelo uso de adjetivos – "chatas", "erradas" e "inadequadas"– que representam um grau elevado de avaliação. Em função disso, podemos dizer que os enunciados circulam em torno de pontos de vista que limitam a avaliação de estágio à indicação de problemas no desenvolvimento da atividade do professor-estagiário, entrando em confronto com avaliações que pudessem ser positivas para a formação profissional.

Considerações finais

Neste trabalho, discutimos, a partir da análise discursiva de enunciados produzidos em situação de entrevista, como se dá a orientação ou o endereçamento da atividade laboral de professores de língua portuguesa em formação, mais especificamente em situação de estágio supervisionado. Segundo a perspectiva ergonômica (AMIGUES, 2004), o trabalho docente é uma atividade necessariamente dirigida a alguém. Em outras palavras, o professor necessita de destinatário(s) para desenvolver seu trabalho. Dessa forma, o modo de agir do professor, ou seja, a maneira de desenvolver sua atividade, certamente será influenciada, como prevê também o endereçamento do enunciado (BAKHTIN, 2003), pelo direcionamento dado a ela, daí a importância de discutir essa questão no contexto de estágio, momento que pode ser considerado bastante complexo no que diz respeito à direção do trabalho.

Procurando estabelecer um diálogo entre as diferentes manifestações acerca do tema em questão nas entrevistas individuais realizadas pela pesquisadora com os estagiários participantes deste estudo, salientando o caráter dialógico dos enunciados que o perpassam, ressaltamos que há algo recorrente em todas elas: a preocupação principal dos estagiários, ao desenvolverem seu trabalho, é quanto à aprendizagem dos alunos. Porém, esse direcionamento não se dá de forma harmônica, sem conflitos, o que pode ser compreendido se considerarmos a complexidade da atividade docente, também abordada por Faïta (2005a, p.120), ao afirmar que "[...] o trabalho de ensino permanentemente se confronta a espaços irredutíveis entre o reiterável e o não-reiterável, entre o dado e o criado." Além disso, o autor destaca que "[...] se a orientação dos enunciados em direção a seus destinatários predetermina sua forma e natureza, ao contrário, ela pode nos esclarecer sobre as relações em jogo e seus determinantes."

Esse caráter conflituoso pode ser percebido claramente nas manifestações de Marcos e Carla, que mencionam outros fatores que também influenciam, de certa forma, suas práticas docentes, como as prescrições da escola e a avaliação da supervisão de estágio. Dessa forma, destacamos a complexidade característica da atividade docente no contexto de estágio, visto que o professor precisa lidar com diferentes valores que se entrecruzam. Esses valores, provenientes de experiências e formações diversas, acabam, de certa forma, influenciando a atividade de trabalho dos professores-estagiários e exigindo deles uma atitude responsiva ativa diante das situações que surgem no exercício laboral.

Confrontando os enunciados dos professores-estagiários, percebemos que, apesar de todos eles considerarem o aluno como principal destinatário da atividade docente, esse direcionamento nem sempre é priorizado. Isso ocorre em função da situação em que se encontram, desenvolvimento de estágio supervisionado, período de avaliação constante, por meio de perspectivas distintas (supervisão, escola, professor titular, alunos etc.) que apresentam os mais variados pontos de vista que não deixam de constituir a atividade do professor-estagiário. Essa característica de conflito no direcionamento do trabalho docente, ou seja, de não direcionar a atividade principalmente ao aluno, apesar de considerar essa ação importante, pode ser entendida como constitutiva do gênero da atividade do professor-estagiário, visto que corresponde a uma forma recorrente de esses professores desenvolverem suas atividades em sala de aula.

Para finalizar, destacamos que a dúvida quanto ao direcionamento da atividade docente no contexto de estágio acaba dificultando o desenvolvimento do trabalho dos estagiários, que, muitas vezes, são considerados simplesmente como executores de tarefas, não podendo levar em conta as peculiaridades de suas turmas para desenvolver seu trabalho. Dessa forma, podemos entender que tanto a escola quanto a universidade, responsáveis em diferentes graus pela formação desses profissionais, oferecem um espaço bastante restrito para o trabalho como uso de si por si. Entretanto, os estagiários buscam oportunidades para renormalizar, de acordo com as necessidades que surgem na atividade docente, uma vez que as prescrições não dão conta da complexidade de seu trabalho.

Recebido em 01 de outubro de 2011.

Aprovado em 24 de novembro de 2012.

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  • SCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. Tradução de Maria Elisabeth B. de Barros. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Coordenação de tradução e revisão técnica de Jussara Brito e Milton Athayde. Niterói: EdUFF, 2007a. p.191-206.
  • ______. A linguagem em trabalho. Tradução de Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva e Décio Rocha. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho & ergologia: conversas sobre a atividade humana. Coordenadora de tradução e revisão técnica de Jussara Brito e Milton Athayde. Niterói: EdUFF, 2007b. p.133-150.
  • ______. Entrevista. Revista trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v.4, n.2, p.457-66, 2006.
  • SOUZA-E-SILVA, M. C. P. O ensino como trabalho. In: MACHADO, A. R. (Org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. São Paulo: EDUEL, 2004. p.81-104.
  • VOLOSHINOV, V. N. Le discours dans la vie et discours dans la poésie: contribution à une poétique sociologique. Tradução de Georges Philippenko e Monique Canto. In: TODOROV, T. Mikahïl Bakhtine: le principe dialogique suivi de écrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Éditions du Seuil, 1981a. p.181-215.
  • ______. La structure de l'énoncé. Tradução de Georges Philippenko e Monique Canto. In: TODOROV, T. Mikahïl Bakhtine: le principe dialogique suivi de écrits du Cercle de Bakhtine. Paris: Éditions du Seuil, 1981b. p.287-316.
  • 1
    Este artigo é um desdobramento de parte da dissertação de Josiane Redmer Hinz (2009), defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Católica de Pelotas, sob a orientação da Profa. Dra. Maria da Glória Corrêa di Fanti.
  • 2
    O Círculo de Bakhtin é formado por um grupo de estudiosos, cujos principais integrantes da área da linguagem são M. Bakhtin, o líder, V. N. Volochinov e P. N. Medvedev, que tinham interesses filosóficos comuns e se reuniam para debater suas ideias, principalmente entre 1919 e 1929, na Rússia (CLARK; HOLQUIST, 1998; MORSON; EMERSON, 2008). Para referirmo-nos às reflexões teórico-metodológicas do Círculo, utilizamos expressões como teoria bakhtiniana, teoria/obra de Bakhtin e pensamento bakhtiniano, tendo como pressuposto que as ideias são representativas do grupo.
  • 3
    Sobre essas reflexões, consultar
    Vozes em tensão: considerações sobre a constituição dialógica do discurso (DI FANTI, 2012).
  • 4
    As rubricas "enunciação" e "enunciado", na obra bakhtiniana, conforme explica o tradutor Paulo Bezerra (BAKHTIN, 2003), advêm do termo russo
    viskázivanie, significando tanto o ato de enunciar em palavras, como o seu resultado, um romance, por exemplo. Por isso, o tratamento dado ao enunciado equivale ao da enunciação.
  • 5
    As traduções dos textos consultados em francês são de nossa responsabilidade.
  • 6
    Sobre essas reflexões, consultar
    Vozes em interação: tecendo discursos e sentidos (DI FANTI, 2010).
  • 7
    Os três participantes da pesquisa, além de concederem entrevistas individuais, também fizeram parte de um grupo de discussão, que visava confrontar, primeiramente, as diferentes concepções que surgiam no debate sobre a atividade de estágio e, em um segundo momento, seus posicionamentos a partir da leitura de um artigo que trata do trabalho docente na perspectiva ergonômica:
    O ensino como trabalho, de Maria Cecília Perez de Souza-e-Silva (2004). O tema "direcionamento da atividade docente durante o estágio supervisionado" emergiu tanto nas entrevistas individuais quanto nas discussões em grupo, porém, devido aos limites de um artigo, optamos por discutir neste trabalho somente os enunciados produzidos nas entrevistas. Na dissertação, foram analisados outros dois temas: "concepções de ensino de língua portuguesa" e "dificuldades no desenvolvimento do estágio".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      01 Out 2011
    • Aceito
      24 Nov 2012
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