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Estudo histológico dos enxertos ósseos homólogos humanos

A histological study of human allografts

Resumos

Devido ao crescente uso dos enxertos homólogos humanos (aloenxertos) nas cirurgias ortopédicas reconstrutivas, há a necessidade do completo conhecimento de suas características biomecânicas e histológicas. Este estudo compara, quanto às características histológicas, os enxertos de cadáver colhidos de côndilo femoral a fresco, aos criopreservados a menos 80° C por trinta dias. São comparados vinte espécimes em cada grupo, quanto aos seguintes parâmetros histológicos: viabilidade celular, presença de vascularização, necrose, manutenção da matriz óssea, processo inflamatório, remodelação óssea e fibrose. Após análise estatística utilizando o método de Fisher (p<0,05), o estudo conclui que apenas a viabilidade celular apresenta mudança significativa após a criopreservação. Os enxertos ósseos não necessitam de células viáveis para sua utilização. Logo, o processo de criopreservação é um método útil para o armazenamento dos aloenxertos em bancos de tecidos não inviabilizando seu emprego futuro nas cirurgias ortopédicas.

Aloenxerto; Histologia; Criopreservação


Due to the increasing use of the human allografts in the reconstructive orthopedic surgeries, the complete knowledge of its biomechanics and hystologics characteristic is needed. This study compared allografs picked of femoral condilar from cool air cadavers and after cryopreservation (under -80°C) for thirty days with relationship to the hystologic´s characteristic. Twenty specimens were compared in each group, with relationship to the following hystologic's parameters: cellular viability, vascularization presence, necrosis, and maintenance of the bony matrix, inflammatory process, bony remodelation and fibrosis. After statistical analysis using the Fisher's method(p<0,05), the study concluded that only the cellular viability had significant change after the cryopreservation. The bony grafts don't need viable cells for being used, so the cryopreservation process is an useful method for the allografts´s tissue bank storage, not making unfeasible its future employment in orthopedic surgeries.

Allograft; Histology; Cryopreservation


ARTIGO ORIGINAL

Estudo histológico dos enxertos ósseos homólogos humanos

André Donato BaptistaI; Andrey SorrilhaI; Túlio Augusto de Medeiros TormesI; Yussef Ali AbdouneI; Alberto Tesconi CrociII; Olavo Pires de CamargoIII; Claudia Regina G. C. M. de OliveiraIV

IResidente do IOTHCFMUSP

IIProfessor Associado da FMUSP, Chefe do Grupo de Artroplastias e do Banco de Tecidos do IOTHCFMUSP

IIIProfessor Associado da FMUSP, Chefe da Disciplina de Ortopedia Geriátrica, Oncológica e Reconstrutiva

IVChefe do Serviço de Anatomia Patológica do IOTHCFMUSP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Ovídio Pires de Campos 333, Banco de Tecidos do IOTHCFMUSP, 1º. Andar CEP 05403-010 - São Paulo SP E-mail: croci@usp.br

RESUMO

Devido ao crescente uso dos enxertos homólogos humanos (aloenxertos) nas cirurgias ortopédicas reconstrutivas, há a necessidade do completo conhecimento de suas características biomecânicas e histológicas. Este estudo compara, quanto às características histológicas, os enxertos de cadáver colhidos de côndilo femoral a fresco, aos criopreservados a menos 80° C por trinta dias.

São comparados vinte espécimes em cada grupo, quanto aos seguintes parâmetros histológicos: viabilidade celular, presença de vascularização, necrose, manutenção da matriz óssea, processo inflamatório, remodelação óssea e fibrose.

Após análise estatística utilizando o método de Fisher (p<0,05), o estudo conclui que apenas a viabilidade celular apresenta mudança significativa após a criopreservação.

Os enxertos ósseos não necessitam de células viáveis para sua utilização. Logo, o processo de criopreservação é um método útil para o armazenamento dos aloenxertos em bancos de tecidos não inviabilizando seu emprego futuro nas cirurgias ortopédicas.

Descritores: Aloenxerto; Histologia; Criopreservação.

INTRODUÇÃO

Os enxertos de ossos autólogos, homólogos e sintéticos têm desempenhado importante papel na cirurgia ortopédica reconstrutiva há algum tempo. Conhecer as características biológicas e biomecânicas destes materiais é de suma importância para seu emprego adequado( 3,7,10,12).

Os enxertos autólogos, embora tenham propriedades biológicas ideais na maioria dos casos, apresentam limitação quanto à quantidade possível de ser retirada, principalmente em situações que requeiram um grande volume de enxerto, como nas revisões de artroplastias de quadril e cirurgias oncológicas reconstrutivas. Os substitutos ósseos (hidroxiapatita, sulfato de cálcio, etc.) encontram-se em fase experimental, quanto às suas propriedades biomecânicas, de osteointegração e osteoindução, não sendo ainda uma alternativa definitiva(1).

Logo, o enxerto homólogo (aloenxerto) surge como boa opção. Após o advento dos bancos de tecidos, ampliação e melhora das técnicas de preservação, aumentaram as disponibilidades dos aloenxertos, o que vem de encontro às diversas necessidades ortopédicas(6,14).

Por ser preparado previamente ao procedimento da enxertia, o aloenxerto contribui de forma relevante na redução da morbidade cirúrgica e melhoria dos resultados finais, devido à redução do tempo cirúrgico e de isquemia (quando se utiliza o torniquete).

As desvantagens dos aloenxertos envolvem o risco da transmissão de doenças e o potencial de antigenicidade, complicações estas que podem ser controladas por meio dos métodos de congelamento e armazenamento. O risco infeccioso pode ser diminuído por meio de testes sorológicos dos doadores, descarte de material que produza cultura bacteriológica positiva, manipulação do enxerto sob condições assépticas e esterilização, seja por radiação ou óxido de etileno(2,5,6,11).

O potencial imunogênico altera-se conforme o preparo recebido pelos enxertos. Os enxertos frescos causam reações imunes inaceitáveis à sua aplicação clínica. O congelamento destes diminui de forma considerável esta resposta imune do hospedeiro, preservando as propriedades biomecânicas e osteoindutivas do enxerto. A associação de congelamento e desidratação, como na liofilização, diminui ainda mais a resposta imune, porém às custas de alterações biomecânicas indesejáveis(2,4,8,9,15).

Em nosso serviço o método de armazenamento é realizado pela criopreservação a menos 80° C, sendo o processamento realizado sob assepsia.

Alguns estudos mostram que a análise histológica do tecido captado é um passo imprescindível na seleção dos enxertos, visto que, mesmo sem história clínica prévia, os exames laboratoriais apontaram até 8% de achados histopatológicos de relevância que podem contra-indicar sua utilização. Dentre os achados estão: a condrocalcinose, a necrose avascular, o osteoma, o linfoma, o condrossarcoma e a doença de Paget(13).

OBJETIVOS

O objetivo deste estudo é analisar comparativamente as alterações histológicas do aloenxerto de fêmur distal de cadáver humano, após criopreservação a menos 80° C, em relação a um grupo controle conservado a 4° C.

MATERIAL E MÉTODO

Foram estudados 40 enxertos de fêmur distal, retirados de 20 cadáveres com idades entre 20 e 40 anos, sendo 20 fêmures direitos e 20 esquerdos, provenientes do Serviço de Verificação de Óbitos (SVO). Os cadáveres foram os não reclamados no SVO, mantidos por 48 horas a 4°C.

Os enxertos foram retirados através de pequena incisão sobre o côndilo femoral lateral, com uma trefina de um centímetro de diâmetro, a dois centímetros de distância da superfície articular. Após identificação, as peças foram envoltas em compressas umedecidas em solução fisiológica e embaladas em sacos plásticos para transporte do SVO até o Laboratório de Anatomia Patológica e ao Banco de Tecidos.

Das 40 peças obtidas, 20 foram destinadas ao estudo histológico imediato (grupo A) e as restantes (Grupo B) foram enviadas ao Banco de Tecidos para a criopreservação. Cada cadáver tem sempre uma peça em cada um dos Grupos, e os lados direito e esquerdo foram divididos de maneira alternada. As 20 peças do Grupo B, destinadas ao Banco de Tecidos, foram acondicionadas em embalagens seladas de polietileno de 0,5 µm, com tripla proteção e mantidas sob congelamento a menos 80° C em freezer vertical elétrico modelo SANYO MDF U3086S, com backup de CO², controle de manutenção de temperatura por monitoração gráfica e válvula de alarme interior, conectado a sistema de alarme externo para temperaturas superiores a menos 40º C e mantidas sob estas condições por 30 dias.

Todos os espécimes foram analisados no Serviço de Anatomia Patológica de nosso Departamento.

A preparação de cada uma das peças seguiu a seguinte metodologia:

1) Fixação em formol a 10% por 24 horas.

2) Descalcificação em ácido nítrico a 7,5% por 24 horas.

3) Processamento tecidual em aparelho histotécnico.

4) Três cortes histológicos de cada amostra.

5) Coloração pelo método de hematoxilina-eosina.

A microscopia analisou a quantidade de osteoclastos, osteoblastos, estroma vascular e a presença de osso imaturo e lamelar. Esta análise permitiu avaliar os seguintes critérios: viabilidade celular, vascularização, necrose, manutenção da matriz óssea, processo inflamatório, remodelação óssea e presença de fibrose.

Foram comparados estatisticamente através do teste de Fisher os resultados obtidos, qualitativa e quantitativamente, dos Grupos A e B. Consideramos significativos aqueles com índice de significância p < 0,05.

RESULTADOS

Dos 40 espécimes avaliados, 20 do Grupo controle (Grupo A) e 20 criopreservados (Grupo B), obtivemos os resultados que se seguem:

Quanto à viabilidade celular, o Grupo controle (A) teve 100% de manutenção da mesma (20/20). Já o grupo submetido ao congelamento apresentou 70% de viabilidade (14 das 20 espécimes avaliadas). Pelo método de Fisher isso nos dá p=0.02,ou seja, há diferença significativa entre os dois Grupos.

Já em relação ao item vascularização, o Grupo controle obteve 100% de positividade e o grupo criopreservado 85%. Assim temos, pelo método de Fisher, p=0.231, não havendo diferença significativa neste item.

Em outra análise, a necrose esteve presente em 100% dos espécimes, de ambos os Grupos. Ocorreu assim, pelo método de Fisher, p=1, não havendo diferença significativa.

Analisando a manutenção de matriz óssea, dos 40 espécimes avaliados, em 34 houve preservação da mesma, sendo 19 no Grupo controle (95%) e 15 no criopreservado (75%), o que nos dá um p=0.182, sem diferença estatística.

No item processo inflamatório, foram observados apenas 06 casos de positividade, 05 casos após criopreservação (25%) e apenas 01 no grupo controle (5%) tendo, portanto, p=0.182.

Na análise da remodelação óssea, esta se mostrou ausente em 12 espécimes do grupo criopreservado (65%) e 13 do Grupo controle (60%). Obteve-se então um p=1, insignificante estatisticamente.

Finalmente, quanto à fibrose, foi encontrada em apenas 9 dos 40 espécimes estudados, 05 no criopreservado (25%), e 04 no Grupo controle (20%). Assim, com p=1, sem diferença estatística também neste item.

Na Figura 1 estão representados os itens, em relação aos percentuais para cada Grupo estudado.


DISCUSSÃO

O enxerto ósseo homólogo humano, vem desempenhando papel importante na cirurgia ortopédica reconstrutiva. Sendo assim, é imprescindível o completo conhecimento de suas propriedades biomecânicas e histológicas, para que o armazenamento, processamento e utilização possam ser feitos de forma adequada(3,7,10).

O congelamento retarda a autólise causada pela liberação de enzimas proteolíticas, influenciando assim, as condições do meio ambiente celular(6,9).

Nos dados obtidos a necrose óssea esteve presente em todos os cortes analisados, o que leva a crer ser conseqüência do processo de degeneração natural dos cadáveres (embora conservados a 4 °C), já que as peças foram obtidas somente 48 horas após a morte dos doadores.

Considerando-se que a morte de um tecido não é determinada num evento estático (morte biológica do indivíduo), e sim uma seqüência de eventos ao nível celular, o estudo também avaliou nas peças anatômicas características concernentes aos tecidos vivos: a vascularização, a manutenção da matriz óssea, a presença de processo inflamatório, a fibrose e a remodelação óssea.

Nos espécimes criopreservados encontramos uma queda na qualidade da vascularização e da manutenção da matriz óssea, mas que não foram significativas estatisticamente.O aloenxerto criopreservado teve 85% de preservação de sua vascularização, fato que pode viabilizar sua revitalização mais precocemente.

O processo inflamatório esteve mais presente após congelação, o que prova que mesmo após o resfriamento, eventos ao nível celular continuam acontecendo, mas também de maneira insignificante para a qualidade final dos enxertos. Não se observaram diferenças entres os Grupos no que diz respeito à remodelação óssea e presença de fibrose.

O único aspecto histológico que mostrou alteração de significância estatística foi à viabilidade celular, apresentando queda após a criopreservação. A viabilidade celular é definida pelo aspecto nuclear da célula, a presença de nucléolo e integridade da membrana nuclear.

Alterações de pH, tensão de oxigênio e liberação de citocinas que ocorrem durante a criopreservação interferem no equilíbrio celular e no material genético nuclear (DNA), alterando a morfologia e a viabilidade das células. Entendemos ainda que durante o processo de resfriamento, o efeito físico de expansão de volume sofrido pela água, na faixa de temperatura que varia dos 4°C aos 0°C o que leva à lise celular.

Os aloenxertos ósseos são usados nas cirurgias ortopédicas reconstrutivas não só por suas propriedades osteoindutoras, mas principalmente as osteocondutoras. Assim, o arcabouço mineral ósseo preservado dos enxertos será preenchido por novos osteócitos do receptor após a osteointegração. Logo, a perda de viabilidade celular demonstrada por este estudo não contra-indica a utilização dos aloenxertos após criopreservação, pois os enxertos ósseos não dependem de células vivas para ter utilidade clínica e sim da matriz óssea, onde estão as proteínas morfogenéticas.

CONCLUSÕES

1. O congelamento ósseo a menos 80 ºC altera a viabilidade celular.

2. Não há diferença na vascularização, preservação da matriz, remodelação óssea e fibrose entre o congelamento ósseo a menos 80 ºC e o tecido a 4 ºC.

3. O processo de criopreservação, utilizado para o armazenamento dos enxertos homólogos humanos em bancos de tecidos, não altera suas qualidades de maneira que possa contra-indicar sua aplicação nas cirurgias ortopédicas.

Trabalho recebido em 21/05/2003

Aprovado em 25/07/2003

Trabalho realizado no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - São Paulo - SP

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  • Endereço para correspondência
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003

    Histórico

    • Aceito
      25 Jul 2003
    • Recebido
      21 Maio 2003
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