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Considerações sobre heterodiscurso a partir de Dom Quixote

RESUMO

Propõe-se neste artigo abordar alguns aspectos do heterodiscurso, a partir dos dois livros comumente referenciados como Dom Quixote de La Mancha. Ilustrando-se com base no texto cervantino, argumenta-se que a noção bakhtiniana de heterodiscurso abarca diferentes fenômenos: (i) diversidade de vozes, (ii) pluralidade de estilos e (iii) variedades de gêneros discursivos, que compõem a prosa romanesca.

PALAVRAS-CHAVE:
Heterodiscurso; Dom Quixote; Vozes; Estilos; Gêneros discursivos

ABSTRACT

The paper aims to discuss some aspects of heterodiscourse from two books commonly referenced as Don Quixote de La Mancha. Based on Cervantes's text, we argue that Bakhtin's notion of heterodiscourse encompasses different phenomena: (i) diversity of voices, (ii) plurality of styles, and (iii) varieties of speech genres, which comprise novelistic prose.

KEYWORDS:
Heterodiscourse; Don Quixote; Voices; Styles; Speech genres

Introdução

Em nova tradução, recentemente publicada, do texto O discurso no romance (BAKHTIN, 2015_______. O discurso no romance. In: _______. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Hucitec, 2015, p.79-122. [1930-1936]), Paulo Bezerra opta por verter o vocábulo russo raznorétchie para "heterodiscurso", diferenciando-se, portanto, da anterior tradução brasileira de Bernardini et al (BAKHTIN, 2010a_______. O discurso no romance. In: _______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 2010a, p.71-210. [1934-1935].)1 1 Os tradutores divergem sobre a data da escrita do texto "O discurso no romance". Para Paulo Bezerra, a obra teria sido escrita entre 1930 e 1936. Para Bernardini et al., o texto foi redigido entre 1934 e 1935. , em que o termo aparece traduzido como "plurilinguismo". A propósito, na tradução espanhola o termo também é vertido como "plurilinguismo" (BAJTIN, 1975BAJTIN, M. Teoría y estética de la novela. Madrid: Taurus, 1975.). Na edição norte-americana do texto bakhtiniano (BAKHTIN, 1981_______. The dialogic imagination: four essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and translated by Caryl Emerson and Michael Holquist. Austin, TX: Texas University Press, 1981.), opta-se por verter a palavra russa para "heteroglossia", tradução que, então, aparecerá em obras brasileiras, como as de Faraco (2006)FARACO, C. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. 2ed. Curitiba: Criar Edições, 2006. e Tezza (2003)TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003., que se apropriam do termo a partir da versão em língua inglesa.

Dadas essas múltiplas possibilidades de apropriação do termo russo, é válido pontuar que se considera coerente a nova a tradução para o português como "heterodiscurso", pois, mais do que uma pluralidade de vozes, importa ver no conceito bakhtiniano que as vozes se tornam diferentes por oposição a outras. A pluralidade é conquistada em face do outro: o discurso se torna dessemelhante (mas não necessariamente contrário) no contraste com os demais que o cercam.

Nesse sentido, a fim de discutir como o heterodiscurso recobre diversos fenômenos linguísticos-literários, analisa-se, neste artigo, passagens de Dom Quixote que exibem aspectos importantes do conceito desenvolvido por Bakhtin.

Explorar-se-á em cada uma das três seções seguintes facetas constitutivas do heterodiscurso. Na primeira, examina-se a pluralidade de vozes que compõem a narrativa, analisando como se organizam arquitetonicamente as vozes de autores, narradores e personagens. Observa-se, a seguir, como diferentes estilos literários e não literários são representados por meio das vozes dos partícipes da obra, concorrendo para o aspecto heteroestilístico do romance. Além disso, dedica-se uma seção para destacar a importância da diversidade de gêneros discursivos que se integram no romance, contribuindo para a heterodiscursividade, na medida em que essa miríade de gêneros agrega ao romance diversos estilos e vozes várias.

Encerrando o texto, realiza-se um balanço das discussões, apontando para o entendimento do heterodiscurso como um conceito mais amplo do que o de plurilinguismo. Se esse parece reduzir-se a línguas (ou variedades) sociais, aquele permite ver a própria complexidade dessas línguas, materializadas em diferentes vozes, em diferentes estilos, em gêneros diversos.

1 Heterodiscurso: diversidade de vozes, de estilos e de gêneros discursivos

Segundo Bakhtin (2015, p.27)_______. O discurso no romance. In: _______. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Hucitec, 2015, p.79-122. [1930-1936], o "romance como um todo verbalizado é um fenômeno pluriestilístico, heterodiscursivo, heterovocal". A partir dessa consideração, pretende-se explicitar as possíveis diferenças, para fins de análise, dos conceitos de pluriestilismo, heterovocalidade e heterodiscursividade.

Embora esses conceitos possam se sobrepor e, às vezes, até mesmo se confundirem, far-se-á uma exposição de cada um desses aspectos, a fim de mostrar suas peculiaridades ou mesmo suas pervasividades. A obra D. Quixote servirá de base para o exame proposto.

1.1 Heterodiscurso: diversidade de vozes

A heterovocalidade pode ser entendida como pluralidade de vozes e, dado que Bakhtin empreende seu estudo a partir da prosa romanesca, importa lembrar que essas vozes, a princípio, são de figuras específicas do romance: autor, narrador e personagens. Essas proposições bakhtinianas estariam, assim, circunscritas ao âmbito da literatura.

Schnaiderman (2005, p.20)SCHNAIDERMAN, B. Bakhtin 40 graus (Uma experiência brasileira). In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 2. ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005, p.13-21. [1997]., porém, oportunamente adverte que "por mais relevância que tenham os trabalhos de teoria literária baseados em Bakhtin, e por mais que eles ainda nos possam dar, o que ele deixou delineado para a exploração de outros campos parece particularmente rico em sugestões". A colocação de Schnaiderman é fundamental por atestar não somente a possibilidade, mas sobretudo a importância de se buscar levar as discussões bakhtinianas a outros campos do conhecimento.

Todavia cumpre ressaltar que algumas reflexões de Bakhtin tomam como material de análise a prosa literária para elaboração de conceitos. Daí porque é sempre razoável considerar essa procedência quando se pretende fazer a transposição de alguns conceitos bakhtinianos para outras esferas da comunicação, para textos que nem sempre guardam elementos presentes na prosa romanesca.

Em Dom Quixote, por exemplo, há complexas relações dialógicas entre as vozes de autores, narradores e personagens, configurando uma heterovocalidade singular, que concorre para a heterodiscursividade do romance. A começar pela questão dos "autores", que nessa obra é mesmo um capítulo à parte por vários motivos. Um primeiro é que, entre a publicação do Primeiro Livro, O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha, em 1605, e o Segundo Livro, O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha, em 1615, aparece uma continuação apócrifa do primeiro livro; continuação cujo autor seria, supõe-se embora sem consenso, Alonso Fernández de Avellaneda (cf. Vieira, 2012VIEIRA, M. Apresentação à segunda parte de D. Quixote. In: CERVANTES, M. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro [1615]. Trad. Sérgio Molina. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [2007]).

O interesse dessa questão no que diz respeito à discussão proposta é que a referência a esse Quixote apócrifo aparecerá nas bocas, nas vozes de D. Quixote, de Sancho e de outras personagens no Segundo Livro. Assim, uma realidade criada por outro autor (pessoa e criador) aparece no discurso de personagens cervantinas. De alguma maneira há certo deslocamento da relação hierárquica e exotópica mais comum ao romance, na medida em que o autor externo se torna objetificado nas vozes de personagens. Trata-se de algo suis generis, pois, como coloca Bakhtin (2011)_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. [1963], em geral é o discurso das personagens que é objeto do discurso do autor.

Em geral, as vozes das personagens são criações do próprio autor, são "objetos" para ele. No caso da referência ao D. Quixote apócrifo, as vozes não foram criadas por Cervantes, mas por outro autor. Assim, o que se coloca como objeto no romance cervantino não são vozes próprias, mas alheias. Há relações dialógicas, portanto, entre o texto de Cervantes e o texto apócrifo, não se tratando apenas de uma referência exterior simples: um retomando o outro. Para que as vozes das personagens do autor-criador apócrifo adentrem a arquitetônica do romance cervantino, essas vozes precisam passar por algumas instâncias: as vozes de autores, narradores, personagens. Não é, portanto, uma simples referência à obra exterior. É Cervantes que seleciona as vozes do romance apócrifo que entrarão em seu romance. Essas vozes, por sua vez, são conjugadas na arquitetônica do romance cervantino sob a égide de um autor-criador primário que, através de autores secundários, narradores e personagens, dá vez, de maneira refratada, às vozes alheias do romance apócrifo2 2 Acerca da distinção entre autor primário e secundário, consultar a explanação realizada por Bezerra (2005) a partir das ideias bakhtinianas. .

Trata-se já de uma faceta do heterodiscurso, na medida em que há relações dialógicas entre vozes de instâncias discursivas diversas: autor, narrador, personagens. Além disso, nesse caso, por meio dessas instâncias discursivas se conjugam enunciados procedentes de sujeitos diferentes: Cervantes e o autor apócrifo.

Além dessas relações dialógicas exteriores3 3 Para uma discussão sobre relações dialógicas interiores e exteriores, consultar Maciel (2017). , no ambiente das criações exclusivamente cervantinas é possível observar relações dialógicas várias entre as vozes de autor, narrador e personagens.

Uma questão a ser observada é a pluralidade de "autores" da obra. De uma perspectiva bakhtiniana qualquer obra tem dois autores fundamentais: o autor-pessoa e o autor-criador. O autor-pessoa é "elemento do acontecimento ético e social da vida" (BAKHTIN, 2003a_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.3-192. [192-]., p.9), é o sujeito que existe e vive no mundo real. Esse sujeito, quando se dispõe a realizar uma obra estética, precisa empregar conhecimentos cognitivos e valores éticos em um projeto discursivo que, uma vez encerrado, permitirá ver em sua criação estética única, singular, um autor-criador, "elemento da obra" (BAKHTIN, 2003a_______. O autor e a personagem na atividade estética. In: _______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003a, p.3-192. [192-]., p.9); um autor-criador que organiza o material verbal e dá sustentação ao projeto discursivo. Esse autor-criador é elemento da obra e somente daquela obra. O autor-pessoa, por certo, pode continuar escrevendo, por exemplo, e criando tantas outras obras, cada uma delas com uma organização arquitetônica própria, enfeixada sob a perspectiva de um autor-criador exclusivo dela.

Miguel de Cervantes é o autor-pessoa, mas para a análise de D. Quixote importa sobretudo entender o autor-criador, instância discursiva sob a qual se organiza a arquitetônica do romance. Como autor-pessoa, Cervantes pôde escrever outros títulos, mas a unidade de D. Quixote é signatária de um autor-criador exclusivo dessa obra.

Por meio desse autor-criador compõe-se um romance em que, talvez ao gosto barroco e certamente para dar vazão a um projeto paródico, são apresentados dois "autores" (secundários) da história de D. Quixote.

O primeiro autor, assim nomeado, da história seria Cide Hamete Benengeli. A história narrada por Benengeli, entretanto, não seria sua criação, mas seu relato de histórias compiladas em La Mancha, de tal sorte que o título de sua obra é "História de D. Quixote de La Mancha, escrita por Cide Hamete Benengeli, historiador arábico" (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.137).

A história desse primeiro autor (mais um compilador que um criador) é escrita em "caracteres [...] arábicos" (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.137). Em razão disso, o texto precisou passar por tradução para o espanhol. Isso conta o "segundo autor", o autor cristão (assim chamado por oposição ao autor mouro, árabe), que a partir da tradução do texto de Benengeli, (re)conta a história de D. Quixote. Há, portanto, duas instâncias "autorais" secundárias até o texto final de D. Quixote: o primeiro autor (Cide Benengeli) e o autor cristão. Tornam ainda mais complexa a questão as mudanças operadas no processo de tradução4 4 Essa passagem por várias instâncias narrativas é, segundo Riley (2000, p.53, grifo do autor), característica comum ao gênero "romance de cavalaria": "[...] a pretensão de que o manuscrito da maior parte do 'Quixote' estava escrita em árabe; e ainda é mais importante a atribuição da "história" ao sábio, mago e cronista mouro Cid Hamete Benengeli: ambos recursos literários são frequentemente utilizados nos romances cavaleirescos" (tradução direta de: "[...] la pretensión de que el manuscrito de la mayor parte del 'Quijote' estaba escrito en árabe; y aún es más importante la atribución de la 'historia' al sabio, mago y cronista moro Cid Hamete Benengeli: ambos recursos literarios son frecuentemente utilizados en los romances caballerescos"). .

A propósito, é relevante notar que o autor cristão não se limita a repassar a tradução do texto arábico, mas intervém nesse texto, recontando-o. Por vezes, geralmente no início de capítulos ou em seus finais, o autor cristão faz referência ao seu processo de recontar a história do mouro:

  1. Dizem que no próprio original desta história se lê que, chegando Cide Hamete a escrever este capítulo, seu intérprete não o traduziu como o escrevera, que foi um modo de queixa que o mouro teve de si mesmo por ter tomado entre mãos uma história tão seca e limitada como esta de D. Quixote [...] (CERVANTES, 2012_______. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [1615] [1615], p.507)5 5 Note que quando se faz referência à obra de 1615, está-se citando trecho do segundo tomo da obra, nomeado na tradução brasileira como Segundo Livro. .

  2. Mas deixemos Sancho com sua cólera, e fique a audiência em paz, e voltemos a D. Quixote, que o deixamos com o rosto vendado e curando-se das gatunas feridas, das quais não sarou em oito dias, num dos quais lhe aconteceu o que Cide Hamete promete contar usando da pontualidade e verdade com que sói contar as coisas desta história, por mínima que sejam (final do capítulo XLVII) (CERVANTES, 2012_______. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [1615] [1615], p.554).

Como se vê, há instâncias ou planos a serem considerados a respeito do suposto autor da obra. O primeiro autor seria o árabe Cide Hamete Benengeli, que compila e registra as peripécias de D. Quixote. A escrita do árabe, por sua vez, é vertida por um tradutor. Essa tradução, porém, não é o texto mesmo de D. Quixote. Esse texto é resultado da atuação de um outro "autor", um autor cristão, que a partir da história traduzida, apresenta a história de D. Quixote, modificando a própria tradução. Há, portanto, três instâncias em jogo: o autor árabe, o tradutor, o autor cristão.

Interessante pontuar, assim, que o relato é resultado de um complexo jogo discursivo, através do qual se refrata, por meio dessas três instâncias, o texto a que o leitor tem acesso. Além disso, acerca dessa difusa "autoria" é importante sublinhar que nenhum desses dois "autores" corresponde ao "autor-criador", o qual deve ser entendido mais como aquele que enfeixa e dá sustentação ao projeto discursivo de Cervantes nesta obra exclusiva, o elemento unificador da arquitetônica da obra.

O mouro, o cristão e o que cabe ao tradutor - cuja arte de verter sempre pressupõe certo trabalho criativo - são autores secundários, pois todos "eles são mensurados e determinados por sua relação com o autor-homem (como objeto específico de representação), [...] todos eles são imagens representadas que têm o seu autor, portador do princípio puramente representativo" (BAKHTIN, 2003b_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335. [1959-1961], p.314). Ou seja, diferentemente do "autor puro", cada um desses "autores" é "parcialmente representado, mostrado, [...] integra a obra como parte dela" (BAKHTIN, 2003b_______. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003b, p.307-335. [1959-1961], p.314)6 6 Os trechos citados não foram alterados na nova tradução de Bezerra (BAKHTIN, 2016b). .

Além disso, vale destacar, que a voz de Benengeli e a do tradutor só aparecem, mesmo quando diretamente citadas, refratadas pela voz do narrador cristão. A voz deste, portanto, é de suma importância, pois refrata o relato anterior de Benengeli e a do tradutor. Refrata, ainda, e dispõe as vozes das personagens: Quixote, Sancho Pança e todas as demais.

A propósito, a respeito da disposição das vozes das personagens na narração, observem-se alguns pontos.

Em certo momento da narrativa, D. Quixote se encontra em uma estalagem, que supõe ser um castelo e imagina estar abraçando sua amada Dulcineia d'El Toboso, quando na verdade se trata de uma das trabalhadoras do local. D. Quixote é, então, atacado por outro hóspede, o qual houvera antes combinado com essa trabalhadora um encontro para satisfazer seus "maus desejos" (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.215).

O episódio é assim descrito, em discurso direto, por D. Quixote a Sancho:

Só te direi que, invejoso o céu de tanto bem quanto ventura me pusera às mãos, ou, e isto é o mais certo, por ser encantado este castelo, como tenho dito, quando eu estava com ela em dulcíssimos e amorosíssimos colóquios, sem vê-la nem saber donde vinha, veio uma mão na ponta de um braço de algum descomunal gigante e me assestou uma punhada nas queixadas, tão forte que as tenho todas banhadas em sangue; e depois me moeu de tal sorte que estou pior que ontem quando encontramos aqueles arreeiros que, por demasias de Rocinante, nos fizeram o agravo que bem sabes. Donde conjecturo que o tesouro da formosa desta donzela deve estar guardado por algum encantado mouro, e não deve de ser para mim (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.220).

Nas palavras de D. Quixote, o autor de suas lesões é um "encantado mouro". Essas palavras de D. Quixote aparecem na voz do narrador em outra passagem do livro:

Em suma, vendo-se D. Quixote atado, e que as damas já se tinham ido, se deu a imaginar que tudo aquilo se fazia por via de encantamento, como da vez anterior, quando naquele mesmo castelo fora moído a pauladas por aquele mouro encantado do arreeiro; e maldizia lá consigo sua pouca discrição e discurso, pois, tendo da primeira saído tão mal daquele castelo, se aventurara a entrar nele a segunda [...] (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.632, grifo nosso).

O narrador, assim, integra na sua voz a voz de D. Quixote, refratando-a. Mais do que isso, muda sua orientação, pois o que era sério na voz da personagem é matizado ironicamente pelo narrador. Trata-se, pode-se dizer, de um discurso bivocal de orientação vária em que o "discurso se converte em palco de luta entre duas vozes" com "orientação semântica diametralmente oposta" (BAKHTIN, 2011_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. [1963], p.221) àquela em que originalmente foi empregada.

De algum modo, inclusive, essa refração da voz da personagem na voz do narrador pode ser aproximada ao "discurso provocante", conforme o vislumbra Bakhtin em algumas obras de Dostoiévski (BAKHTIN, 2011_______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 5ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. [1963]). Nessas obras, o narrador apropria-se da voz da personagem para acintosamente dela zombar. Diferentemente do que ocorre em Dom Quixote, porém, em Dostoiévski é como se o narrador dialogasse com a personagem, como se essa pudesse ouvi-lo. Assim, a ironia que recobre a voz é percebida pela própria personagem e não apenas pelo leitor, como ocorre em Cervantes.

De todo modo, essa mútua orientação entre as vozes de narrador e personagens já se apresenta em Cervantes. Possivelmente seu desenvolvimento em Dostoiévski mostraria o que, segundo Bakhtin, seria a evolução (de elementos) da prosa no gênero romanesco.

Do anteriormente exposto, cabe sintetizar, para melhor explicitação, que uma das características do heterodiscurso é esse complexo de relações dialógicas entre a voz de um (eu) e de um outro (hetero), do discurso de um e o(s) discurso(s) de outro(s). No caso da prosa romanesca, as relações dialógicas não opõem (somente) um autor-pessoa a outros discursos exteriores: a outras obras literárias, a discursos políticos, filosóficos, religiosos com os quais o autor dialoga mais ou menos explicitamente.

As relações dialógicas, vale mais uma vez enfatizar, não se dão entre textos, mas entre sujeitos que mobilizam esses textos. Na prosa romanesca, porém, é imprescindível considerar que o heterodiscurso, que o discurso do outro, adentra o romance sob os desígnios do projeto discursivo do autor-criador específico da obra. Nessa obra, as vozes alheias podem se espalhar por diferentes instâncias narrativas, emergindo no discurso de narradores e personagens. Já no próprio âmbito do romance, a voz do narrador é alheia às vozes das personagens, assim como as vozes destas lhe são alheias, outras. Além disso, para cada personagem a voz das demais é uma faceta do heterodiscurso, do discurso do outro com o qual se relaciona.

Desse modo, uma das características do heterodiscurso é a miríade de relações dialógicas que se estabelecem entre as vozes de instâncias próprias ao romance, quais sejam: autor(es), narrador(es) e personagens.

1.2 Heterodiscurso: diferentes estilos

Várias são as possíveis definições de estilo, todas certamente objeto de alguma controvérsia. De todo modo, seguindo-se o intuito desse artigo, propõe-se adotar uma definição bakhtiniana de estilo, assumindo que uma concepção de estilo embasada pelas reflexões do Círculo deve considerar dois aspectos: (i) as escolhas lexicais e fraseológicas e (ii) os gêneros discursivos através dos quais se concretiza o enunciado (BAKHTIN, 2016aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a, p.11-69. [1952-1953]).

Entende-se que o estilo é próprio de cada autor, mas nunca indiferente ao gênero discursivo em que o enunciado se concretiza. As escolhas lexicais e fraseológicas do autor se ajustam ao gênero discursivo. Daí porque Bakhtin diga que não existe estilo sem gênero, nem gênero sem estilo: "Onde há estilo, há gênero" (BAKHTIN, 2016aBAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: _______. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a, p.11-69. [1952-1953], p.21).

Não se deve, contudo, confundir estilo com gênero, pois o gênero discursivo possui características outras, como a estrutura composicional e o tema, além do próprio estilo.

Essa discussão foi levantada porque uma das características do heterodiscurso apontada por Bakhtin é o diálogo entre estilos. Segundo Bakhtin (2015, p.29, grifo do autor)_______. O discurso no romance. In: _______. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Hucitec, 2015, p.79-122. [1930-1936]: "o estilo do romance reside na combinação de estilos; a linguagem do romance é um sistema de 'linguagens'".

Em Dom Quixote há uma pluralidade de estilos, pois na obra confluem o estilo (parodiado) dos romances cavalheirescos, falas de pessoas cultas, como Dom Quixote, e de falas mais populares, como a de Sancho.

Exemplares do estilo dos romances de cavalaria, parodiados em Dom Quixote, são os títulos dos capítulos, entre os quais se destaca, por exemplo, o do capítulo XX do Primeiro Livro: "Da jamais vista nem ouvida aventura que com menos perigo foi acabada por famoso cavaleiro no mundo como a que acabou o valoroso D. Quixote de La Mancha" (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605], p.257)7 7 Dado que se aborda a questão estilística, apresenta-se, nesta seção, também o original em espanhol para fins de cotejamento. Segue o título do capítulo em espanhol: "De la jamás vista ni oída aventura que con más poco peligro fue acabada de famoso caballero en el mundo como la que acabó el valeroso Don Quijote de la Mancha" (CERVANTES, 2016 [1605], p.257). .

Nesse título, uma série de escolhas linguísticas acabam por ensejar um estilo de gosto cavalheiresco. O uso da preposição "da" com sentido de "a respeito de" tão própria a discursos (que se pretendem) cultos. O sintagma qualificativo "jamais vista nem ouvida" anteposto ao termo "aventura" a que se refere. O adjunto adverbial "com menos perigo" anteposto à locução verbal "foi acabada"; locução essa, a propósito, característica da assim chamada "voz passiva analítica", supostamente mais complexa que a "voz ativa" em ordem direta. A locução verbal é ainda complementada por um "agente da passiva" expresso, "por famoso cavaleiro", na sequência do qual aparece, tornando o período ainda mais complexo e longo e, portanto, mais ao sabor "erudito", uma oração subordinada adverbial comparativa: "como a que acabou o valoroso D. Quixote de La Mancha".

Os exemplos de trechos em que se sobressai o "estilo cavalheiresco" poderiam ser estendidos, dado que todo o texto de D. Quixote é deles repleto. Contudo o que se quer mostrar, mais do que exemplificar ostensivamente, é que esse estilo "salta aos olhos". E isso ocorre porque, mesmo sem análise literária ou explicação linguística, esse estilo deve soar estranho ao leitor, à sua linguagem cotidiana. O leitor provavelmente consegue reconhecer nessas escolhas linguísticas um arremedo do estilo cavalheiresco8 8 Aliás, esse estranhamento já era sentido desde o leitor coetâneo a Cervantes. Um dos modos de suscitar esse efeito paródico era o emprego de referências literárias recuperáveis pelo leitor, conforme assinala Riley (2000, p.55): "É evidente que Cervantes saboreava o delicioso absurdo de frases como as que os leitores de Quixote reconheceriam de imediato [...]" (tradução direta de: "Es evidente que Cervantes saboreaba el exquisito absurdo de frases como las que los lectores de Quijote reconocerían de inmediato"). .

Esse estilo, a propósito, não aparece apenas no discurso do narrador, mas na voz da personagem D. Quixote, o qual, por vezes, pretende falar como supõe falariam as personagens dos romances que lera.

Assim fala, por exemplo, com algumas "damas" que encontra à porta de uma estalagem:

  • - Non fuxan as vossas mercês, nem temam desaguisado algum, ca à ordem de cavalaria que professo non toca nem tange fazê-lo a ninguém, quanto mais a tão subidas donçelas como as vossas presenças demonstram" (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.69)9 9 No original: "- Non fuyan las vuestras mercedes, ni teman desaguisado alguno, ca a la orden de caballería que profeso non toca ni atañe facerle a ninguno, cuanto más a tan altas doncellas como vuestras presencias demuestran." (CERVANTES, 2016 [1605], p.69). Vale salientar que o tradutor, ao transpor ao português, esforça-se para demonstrar que mesmo para o espanhol da época a fala de D. Quixote soa "arcaica". .

Esse modo de falar pretende simular uma linguagem cavalheiresca, sem observar que se trata de um estilo literário e próprio da escrita, cuja transposição para a oralidade nessa situação comunicativa soa tão disparatada.

D. Quixote, porém, nem sempre fala assim. Essa fala está relacionada ao fato de ele supor assim ser necessário falar com damas. Com outras personagens, D. Quixote não busca se expressar de modo tão "arcaico", embora sua fala conserve sempre um matiz bastante erudito, como se vê a seguir, em conversa com Sancho Pança:

[...] e descalço pelos Montes Rifeus, que não sentado numa t- Que temes, cobarde criatura? De que choras, coração de manteiga? Quem te persegue ou te acossa, ânimo de rato caseiro, ou que te falta, desvalido em meio das entranhas da abastança? Acaso vais caminhando a pé ábua feito um arquiduque, seguindo o sesgo curso deste agradável rio, donde em breve espaço sairemos ao mar dilatado? (CERVANTES, 2012_______. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [1615] [1615], p.363)10 10 No original: "¿De qué temes, cobarde criatura? ¿De qué lloras, corazón de mantequillas? ¿Quién te persigue, o quién te acosa, ánimo de ratón casero, o qué te falta, menesteroso en la mitad de las entrañas de la abundancia? ¿Por dicha vas caminando a pie y descalzo por las montañas rifeas, sino sentado en una tabla como un archiduque, por el sesgo curso deste agradable río, de donde en breve espacio saldremos al mar dilatado?" (CERVANTES, 2012 [1615], p.363). .

O estilo parodicamente cavalheiresco do narrador e, por vezes, do próprio Quixote, as falas de matiz culta deste personagem e de outros convivem na obra com vozes que representariam certo falar mais popular. Exemplos são algumas falas de Sancho Pança como, a seguir:

Disse Sancho a seu amo:

- Senhor, eu já tenho reluzida minha mulher a que me deixe ir com vossa mercê aonde me quiser levar.

- Reduzida hás de dizer, Sancho! - disse D. Quixote -, e não reluzida.

- Uma ou duas vezes - respondeu Sancho -, se mal não me lembro, já supliquei a vossa mercê que não me emende os vocábulos quando entender o que quero dizer neles, e que, quando os não entender, diga "Sancho, ou maldito, não te entendo", e se eu não me declarar, então poderá me emendar, que eu sou tão fócil...

- Não te entendo, Sancho - disse logo D. Quixote -, pois não sei que quer dizer "sou tão fócil".

- "Tão fócil" quer dizer - respondeu Sancho - "sou tão assim".

- Menos te entendo agora - replicou D. Quixote.

- Pois, se não me pode entender - respondeu Sancho -, não sei como dizer. Não sei mais, e Deus seja comigo (CERVANTES, 2012_______. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [1615] [1615], p.111, grifo do autor).11 11 Mesmo na representação da fala de Sancho Pança, pretensamente mais popular, desconsideram-se aspectos próprios da oralidade como, por exemplo, sua sintaxe particular (MORAES, 2003) e os marcadores conversacionais (URBANO, 2003). Segue o trecho em espanhol: "Dijo Sancho a su amo: - Señor, ya yo tengo relucida a mi mujer a que me deje ir con vuestra merced adonde quisiere llevar-me. - Reducida has de decir, Sancho - dijo don Quijote -, que no relucida. - Una o dos veces - respondió Sancho -, si mal no me acuerdo, he suplicado a vuestra merced que no me emiende los vocablos, si es que entiende lo que quiere decir en ellos, y que cuando no los entienda, diga 'Sancho, o diablo, no te entiendo', y no me declare, entonces podrá emendarme, que yo soy tan fócil... - No te entiendo, Sancho - dijo luego don Quijote -, pues no sé qué quiere decir soy tan fócil. -Tan fócil quiere decir - respondió Sancho - "soy tan así". - Menos te entiendo agora - replicó don Quijote. - Pues si no me puede entender - respondió Sancho -, no sé cómo lo diga: no sé más, y Dios sea conmigo." (CERVANTES, 2012 [1615], p.111, grifo do autor).

A fala popular de Sancho e de outras personagens entrelaçam-se com as falas cultas de D. Quixote e de outros personagens, somados ao discurso parodicamente erudito do narrador, formando um compósito de vozes em que se representa certa diversidade linguística e estilística.

Possivelmente essa diversidade de vozes, muitas vezes relacionada a grupos sociais é entendida como "plurilinguismo", marcando a pluralidade de vozes sociais.

Acerca desse entendimento, pontua-se:

  1. o "heterodiscurso" não se mostra apenas como uma pluralidade de línguas ou variedades linguísticas, mas oposições de uma língua ou variedade a outra(s) língua(s) ou variedade(s). Uma variedade se constitui como tal por ser oposta, diferente, "hetero" em face de outras. No caso da obra "D. Quixote", o que faz perceber uma variedade como mais popular ou mais erudita é justamente sua relação, mais ou menos oposta, às outras variedades;

  2. uma das facetas do heterodiscurso certamente é essa da miríade das línguas ou variedades linguísticas que convivem no romance (e na vida). Heterodiscurso, contudo, não se restringe apenas a isso. Como já visto anteriormente, para uma compreensão mais adequada do heterodiscurso é mister considerar não apenas as vozes sociais representadas, mas as instâncias discursivas (narrador e personagens) que sustentam e dão vazão a essas vozes no romance.

1.3 Heterodiscurso: diversidade de gêneros discursivos

Para Bakhtin, qualquer enunciado apenas se concretiza em um gênero discursivo. Por conseguinte, o enunciado heterodiscursivo só pode ser apresentado por meio de algum gênero discursivo, através do qual se representem vozes de pessoas, se em um gênero não ficcional, ou de narrador e personagens, em gêneros ficcionais.

Em D. Quixote, por exemplo, é através de gêneros discursivos que se presentificam as vozes de narrador e personagens por meio das quais se representam vozes sociais que compõem a heterodiscursividade, a pluralidade de variedades linguísticas (sociais e estilísticas).

Qualquer gênero discursivo é prenhe de vozes alheias e próprias, marcadas ou não explicitamente. Há alguns gêneros discursivos, como o romance, porém, em que não apenas se integram vozes, mas outros gêneros. Ou seja, o romance tem a capacidade de conjugar em seu interior outros gêneros, como, por exemplo: cartas, poemas, contos curtos, etc. Como observa Bakhtin (2015, p.108, grifo do autor)_______. O discurso no romance. In: _______. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Hucitec, 2015, p.79-122. [1930-1936]: "[...] outra das formas basilares e substanciais de introdução e organização do heterodiscurso no romance: [são] os gêneros intercalados".

Apresenta-se, assim, outra faceta do heterodiscurso: a pluralidade de gêneros discursivos que compõem o romance. Essa pluralidade é de suma importância, pois, ao adentrar o gênero romance, os outros gêneros permitem que se integrem na prosa romanesca outras vozes de outros narradores, de outras personagens, cada um deles com sua variedade linguística sociodialetal, além de trazerem para o bojo do romance estilos próprios de outros gêneros discursivos.

É justamente isso que ocorre em D. Quixote, em que há uma plêiade de gêneros discursivos enformados pelo gênero romance. No Livro I (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605]), aparecem, por exemplo, os seguintes gêneros: bilhete (p.375), canção (p.183), cantiga (p.357-358), canto (p.157, 623, 625), cartas (p.311, 348, 349), epitáfios (p.194, 735, 739, 740), ovillejo (p.370), poemas (p.43) e sonetos (p.44, 45, 46, 47, 48, 50, 51, 52, 309, 372, 569, 570, 736, 737, 738). Além disso, aparece uma novela, dentro da qual há bilhete (p.520), carta (p.485) e sonetos (p.489 e 491). No Livro II (CERVANTES, 2012 [1615]_______. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [1615]) são notados, por exemplo, os seguintes gêneros: canto (p.790), cartas (p.443, 589, 601, 604, 613, 615), coplas (p.458), entremês (p.329), estância (p.797), glosa (p.233) e sonetos (p.167 e 236).

Bakhtin (2015)_______. O discurso no romance. In: _______. A teoria do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Hucitec, 2015, p.79-122. [1930-1936] comenta essa característica:

Basta mencionar Dom Quixote, muito rico em gêneros intercalados. [...] Aqui, eles servem a um objetivo básico: introduzir no romance o heterodiscurso, a diversidade de linguagens da época. Não se introduzem os gêneros extraliterários (por exemplo, os cotidianos) para "enobrecê-los", "literalizá-los", mas exatamente por sua extraliteralidade, pela possibilidade de introduzir no romance uma linguagem não literária (inclusive dialeto). A pluralidade de linguagens devia estar representada no romance (p.224).

Assim quando, por exemplo, se introduz uma carta, um gênero cotidiano, no romance, é possível dar espaço a discursos não literários. De outro lado, quando se introduzem poemas e novelas, têm-se gêneros literários, mas diversos do romance. Sejam literários ou não, essa pluralidade de gêneros permite uma pluralidade de estilos e de vozes confluindo, mais uma vez, para a estratificação das linguagens que compõe a heterodiscursividade da obra.

Considerações finais

Pretendeu-se neste artigo, a partir da obra D. Quixote, explorar a noção de heterodiscurso proposta por Bakhtin. Da análise empreendida, espera-se ter mostrado dois pontos principais: (i) a noção de heterodiscurso nasce no âmbito das análises que o pensador russo faz da literatura, mais precisamente do gênero romance; (ii) a noção de heterodiscurso não se restringe à pluralidade de variedades linguísticas sociais, não se restringe ao heterolinguismo.

De fato, esses dois aspectos estão relacionados, pois são justamente características do romance que permitem ver o heterodiscurso para além da pluralidade de variedades linguísticas. Isso porque, embora essa variedade seja característica fundamental do heterodiscurso, esse é, para Bakhtin, uma especificidade do romance. Heterodiscurso, portanto, a princípio não é a pluralidade de línguas e variedades linguísticas do mundo real, mas a representação dessa variedade no âmbito do romance. Neste, essa variedade aparece refratada nas vozes de autores, narradores, personagens, e, composicionalmente, tem espaço no próprio gênero romanesco ou em outros gêneros discursivos que o integrem.

Obras como D. Quixote, portanto, não podem ser tomadas como um estudo linguístico que contemple variedades sociais, históricas ou outras que compõem ou tenham composto a língua espanhola em determinado momento. No romance, algumas dessas línguas, linguagens ou variedades linguísticas são selecionadas por um autor-pessoa que, a partir de um autor-criador, refrata essas línguas, buscando representá-las ou recriá-las, dando-lhes espaço nas vozes de narradores e personagens, cujos enunciados estão sempre veiculados em gêneros discursivos. O heterodiscurso, portanto, é uma característica estética própria ao gênero romanesco. Outras análises poderão mostrar como heterodiscurso se apresenta em outros gêneros ou mesmo na vida real, ética e aberta (cf. Bakhtin, 2010b_______. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotelo e Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010b. [1920-1921] ).

  • 1
    Os tradutores divergem sobre a data da escrita do texto "O discurso no romance". Para Paulo Bezerra, a obra teria sido escrita entre 1930 e 1936. Para Bernardini et al., o texto foi redigido entre 1934 e 1935.
  • 2
    Acerca da distinção entre autor primário e secundário, consultar a explanação realizada por Bezerra (2005)BEZERRA, P. Dostoiévski: "Bobók". Tradução e análise do conto. São Paulo: Editora 34, 2005. a partir das ideias bakhtinianas.
  • 3
    Para uma discussão sobre relações dialógicas interiores e exteriores, consultar Maciel (2017)MACIEL, L. A (in)distinção entre dialogismo e intertextualidade. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 17, n. 1, p.137-151, 2017. Disponível em: [http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-170107-2616]. Acesso em: 01 ago. 2017.
    http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-1701...
    .
  • 4
    Essa passagem por várias instâncias narrativas é, segundo Riley (2000, p.53, grifo do autor)RILEY, E. Introducción al "Quijote". Trad. Enrique Torner Montoya. Barcelona: Crítica, 2000., característica comum ao gênero "romance de cavalaria": "[...] a pretensão de que o manuscrito da maior parte do 'Quixote' estava escrita em árabe; e ainda é mais importante a atribuição da "história" ao sábio, mago e cronista mouro Cid Hamete Benengeli: ambos recursos literários são frequentemente utilizados nos romances cavaleirescos" (tradução direta de: "[...] la pretensión de que el manuscrito de la mayor parte del 'Quijote' estaba escrito en árabe; y aún es más importante la atribución de la 'historia' al sabio, mago y cronista moro Cid Hamete Benengeli: ambos recursos literarios son frecuentemente utilizados en los romances caballerescos").
  • 5
    Note que quando se faz referência à obra de 1615, está-se citando trecho do segundo tomo da obra, nomeado na tradução brasileira como Segundo Livro.
  • 6
    Os trechos citados não foram alterados na nova tradução de Bezerra (BAKHTIN, 2016b_______. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: _______. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b, p.70-107. [1959-1961]).
  • 7
    Dado que se aborda a questão estilística, apresenta-se, nesta seção, também o original em espanhol para fins de cotejamento. Segue o título do capítulo em espanhol: "De la jamás vista ni oída aventura que con más poco peligro fue acabada de famoso caballero en el mundo como la que acabó el valeroso Don Quijote de la Mancha" (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.257).
  • 8
    Aliás, esse estranhamento já era sentido desde o leitor coetâneo a Cervantes. Um dos modos de suscitar esse efeito paródico era o emprego de referências literárias recuperáveis pelo leitor, conforme assinala Riley (2000, p.55)RILEY, E. Introducción al "Quijote". Trad. Enrique Torner Montoya. Barcelona: Crítica, 2000.: "É evidente que Cervantes saboreava o delicioso absurdo de frases como as que os leitores de Quixote reconheceriam de imediato [...]" (tradução direta de: "Es evidente que Cervantes saboreaba el exquisito absurdo de frases como las que los lectores de Quijote reconocerían de inmediato").
  • 9
    No original: "- Non fuyan las vuestras mercedes, ni teman desaguisado alguno, ca a la orden de caballería que profeso non toca ni atañe facerle a ninguno, cuanto más a tan altas doncellas como vuestras presencias demuestran." (CERVANTES, 2016CERVANTES, M. O engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha: Primeiro Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 7. ed. São Paulo: Editora 34 , 2016. [1605] [1605], p.69). Vale salientar que o tradutor, ao transpor ao português, esforça-se para demonstrar que mesmo para o espanhol da época a fala de D. Quixote soa "arcaica".
  • 10
    No original: "¿De qué temes, cobarde criatura? ¿De qué lloras, corazón de mantequillas? ¿Quién te persigue, o quién te acosa, ánimo de ratón casero, o qué te falta, menesteroso en la mitad de las entrañas de la abundancia? ¿Por dicha vas caminando a pie y descalzo por las montañas rifeas, sino sentado en una tabla como un archiduque, por el sesgo curso deste agradable río, de donde en breve espacio saldremos al mar dilatado?" (CERVANTES, 2012_______. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [1615] [1615], p.363).
  • 11
    Mesmo na representação da fala de Sancho Pança, pretensamente mais popular, desconsideram-se aspectos próprios da oralidade como, por exemplo, sua sintaxe particular (MORAES, 2003MORAES, L. A sintaxe na língua falada. In: PRETI, D. Análise de textos orais. 6.ed. São Paulo: Humanitas, 2003, p.169-188. [1993]) e os marcadores conversacionais (URBANO, 2003URBANO, H. Marcadores conversacionais. In: PRETI, D. Análise de textos orais. 6ed. São Paulo: Humanitas, 2003, p.81-102. [1993]). Segue o trecho em espanhol:
    "Dijo Sancho a su amo:
    • - Señor, ya yo tengo relucida a mi mujer a que me deje ir con vuestra merced adonde quisiere llevar-me.

    • - Reducida has de decir, Sancho - dijo don Quijote -, que no relucida.

    • - Una o dos veces - respondió Sancho -, si mal no me acuerdo, he suplicado a vuestra merced que no me emiende los vocablos, si es que entiende lo que quiere decir en ellos, y que cuando no los entienda, diga 'Sancho, o diablo, no te entiendo', y no me declare, entonces podrá emendarme, que yo soy tan fócil...

    • - No te entiendo, Sancho - dijo luego don Quijote -, pues no sé qué quiere decir soy tan fócil.

    • -Tan fócil quiere decir - respondió Sancho - "soy tan así".

    • - Menos te entiendo agora - replicó don Quijote.

    • - Pues si no me puede entender - respondió Sancho -, no sé cómo lo diga: no sé más, y Dios sea conmigo." (CERVANTES, 2012_______. O engenhoso cavaleiro D. Quixote de La Mancha: Segundo Livro. Edição Bilíngue. Trad. Sérgio Molina. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. [1615] [1615], p.111, grifo do autor).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2017
  • Aceito
    30 Mar 2018
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