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NUNES, J. A. Currículo e responsividade. Entre políticas, sujeitos e práticas. Cuiabá, MT: EduUFMTT, 2019. 314p.

NUNES, J. A. Currículo e responsividade. Entre políticas, sujeitos e práticas. Cuiabá, MT: EduUFMTT, 2019. 314

Sabemos que a questão educacional é um dos sérios problemas enfrentados pelo país, em todos os níveis e sob qualquer aspecto que a observemos. As análises relacionadas ao problema apontam diferentes causas para essa defasagem histórica, social e cultural do Brasil no campo da educação. Ao longo dos anos, sobretudo a partir de meados do último século, políticas públicas - mais ou menos eficientes e comprometidas com a qualidade de uma formação que promova uma cidadania responsável - têm sido implementadas e constantemente alteradas em termos legais. Mas os resultados, embora existam, ainda não correspondem às necessidades há tanto tempo sentidas.

Dentre as múltiplas questões educacionais que suscitam reflexões e ações aprofundadas a fim de gerar melhoria e aprimoramento no ensino, aquelas relativas aos currículos dos cursos das faculdades de filosofia não são novas. O imprescindível filósofo da educação Anísio Teixeira, em Educação não é privilégio, de 1953, já destacava a inadequação de seus currículos ao tratar do problema de formação do magistério:

[...] as Faculdades de Filosofia nasceram marcadas por esse espírito acadêmico de cultura especializada nas diversas disciplinas e não pelo espírito vocacional propriamente dito, as Faculdades de Filosofia não se revelaram capazes de ministrar a cultura básica para as profissões liberais nem a cultura dominantemente eclética e prática para os novos cursos secundários. Igualmente não se revelaram capazes de preparar o professor para os cursos normais, de tipo vocacional, reduzindo-se neste campo à formação em certa especialização pedagógica de validade duvidosa para as disciplinas de pedagogia das escolas normais, recebendo os demais professores da escola normal preparo especializado de tipo acadêmico. [...]

Os departamentos de educação, nessas escolas de filosofia, por isto que são, apesar de tudo, menos acadêmicos, são os de menor prestígio, existindo forte pressão para se fazerem também departamentos acadêmicos para ensinar pedagogia (TEIXEIRA, 1994TEIXEIRA, A. Educação não é privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994., p.129; p.130).

De uma forma ou de outra essas questões permanecem. Como nossa academia tem respondido a elas? Perguntas difíceis requerem respostas complexas, como a encontrada na obra que apresento: Currículo e responsividade. Entre políticas, sujeitos e prática, assinada por Jozanes Assunção Nunes, atualmente professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso e Técnica em Assuntos Educacionais da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação (UFMT). Mais especificamente, a pesquisa de doutorado que deu origem à obra detém-se nos problemas vivenciados pela autora na universidade: os “inquietantes dados divulgados em Relatórios do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), os quais revelam que os cursos de Letras carecem de significativas alterações” (p.13). O trabalho, então, configura-se como o anseio da pesquisadora de utilizar a ciência - a teoria dialógica do discurso - na compreensão da vida, em geral, e da vida universitária na comunidade de um curso de Letras, em particular, tentando responder qual a relação entre discursos legais/oficiais (Estado) e o discurso dos docentes, sujeitos responsáveis pela prática cotidiana no curso de Letras (Universidade). Ou, de forma particular, no momento das discussões acerca da necessária reestruturação do curso: “[C]como os professores que integram o Núcleo Docente Estruturante (NDE) de Cursos de Letras em processo de avaliação do MEC respondem aos discursos oficiais que tratam da reestruturação curricular” (NUNES, 2019, p.15). É uma questão delicada. Quem tem experiência na área sabe como esta relação da prática com os discursos que “vêm de cima” não é fácil.

O título da obra é amplo e convida o leitor a refletir a respeito de um aspecto especial e importantíssimo da educação - o currículo dos cursos de Letras1 1 Como sabemos, os cursos de Letras podem ser bacharelados ou licenciaturas, o que vai interferir no currículo. Embora, de início, as reflexões apresentadas na obra abranjam todos os cursos de Letras da universidade sede da pesquisa, vai se deter, ao final, num dos diversos cursos de Letras lá oferecidos. . A própria capa é bem elucidativa do conteúdo que encontraremos: um grande balão de fala amarelo no qual os dizeres “Currículo e Responsividade” dialogam com as políticas, sujeitos e práticas que serão objeto de análise; e são os postulados bakhtinianos que servirão de fundamento para a análise. A respeito de “responsividade”, lembremos o curto texto de 1919 - Arte e responsabilidade, um dos primeiros publicados por Mikhail Bakhtin. Nele, o jovem pensador russo de então chamava a atenção para a possível relação mecânica entre os campos da cultura humana: “Os três campos da cultura humana - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade” (BAKHTIN, 2006BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. XXXIII-XXXIV., p.XXXIII; itálicos nossos). Se essa relação for mecânica, afirma ele, será externa ao homem, e os campos - estranhos uns aos outros -, não se tocarão. É a responsabilidade pelos próprios atos, respostas a atos outros, que leva o homem a incorporá-los em sua própria unidade; e aqui penso no pesquisador, no cientista, na autora da obra. É esta responsividade - uma resposta responsável a candentes questões educacionais, que aflora do texto.

O Prefácio - Como interagem professores e discursos legais de âmbito educacional - de Beth Brait, professora e pesquisadora dos estudos do discurso (PUC-SP; USP; CNPq), é o primeiro ponto a balizar positivamente a obra. Em seguida, no Sumário, observamos a cuidadosa e detalhada estruturação do trabalho que, após a Apresentação, está dividido em três partes, englobando 8 capítulos, e as Palavras finais.

Na Parte I, apresentam-se os Postulados bakhtinianos: para firmar uma base teórico-metodológica. Nesse espaço, encontram-se explicitados os conceitos bakhtinianos que fundamentam a análise de modo bastante claro e comprometido. Isto é, percebe-se que Nunes não apenas explicita aqueles conceitos, mas incorpora-os firmemente na autoria do que redige. E, ao enunciá-los ao leitor, já os mobiliza na prévia apresentação do corpus que irá analisar, como vemos em:

Logo, os Pareceres e Resoluções da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) e do Conselho Nacional de Educação (CNE), assim como os enunciados dos professores do Núcleo Docente Estruturante dos Cursos de Letras estão inerentemente associados às instâncias institucionais em que foram produzidos e, por isso, refletem e refratam seus valores ideológicos, remetendo a uma posição axiológica. Tais enunciados são acompanhados por uma ênfase valorativa determinada, uma vez que, como explica o teórico [Volóchinov], sem uma ênfase valorativa, não há palavra. (NUNES, 2019, p.27).

Ou, ao tratar dos gêneros discursivos e o modo como diferem em relação às diferentes esferas de atividade social em que circulam, ela afirma:

Os gêneros mais coercitivos, como o Projeto Pedagógico do Curso de Letras Português e Literatura que será analisado, impõem à palavra um funcionamento discursivo mais estável que as entrevistas concedidas pelos sujeitos da pesquisa, por exemplo, mais suscetíveis à impregnação de vozes distintas (NUNES, 2019, p.28).

No capítulo 2 desta primeira parte, a autora discorre sobre as relações da Análise Dialógica do Discurso (ADD) com a Linguística Aplicada e mostra como se constituem os dados da pesquisa.

A Parte II nos apresenta As vozes ‘centrípetas’ do contexto de reestruturação de cursos: os documentos oficiais com quem os sujeitos da prática dialogarão para elaborar um novo currículo para o curso de Letras em foco. São Pareceres e Diretrizes elaborados no âmbito do Poder Federal, apresentados em seus contextos de produção: as condições históricas e sociais em que emergem, as novidades que introduzem, os princípios que os determinam, as vozes que neles dialogam. Nessa parte, Nunes mostra a dialogicidade nos documentos oficiais, apontando já-ditos, discursos-resposta que visam ao futuro, princípios norteadores da organização requerida pelo Estado, entre outros aspectos, sempre apoiada na materialidade discursiva dos textos.

A Parte III - Luta discursiva dos reestruturadores dos Cursos de Letras - inicia-se com a contextualização do surgimento dos Núcleos Docentes Estruturantes (NDE) como parte das estratégias sugeridas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) para melhorar os cursos mal avaliados. O NDE foi criado para que, “entre outras atribuições, seus membros realizassem a reformulação dos Projetos Pedagógicos dos Cursos, que seriam avaliados na visita in loco dos examinadores do Inep” [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa] (NUNES, 2019, p.180). Nesta parte, a autora mostra a tensão existente entre as vozes na configuração do Núcleo Docente Estruturante dos cursos de Letras e a dinâmica das discussões no grupo que acompanhou: se, por um lado, a instituição e o Núcleo acataram as “forças centrípetas” oficiais que motivaram a criação do NDE, por outro, resistiram “devido a forças outras, as centrífugas, que impediram o desenvolvimento pleno dos dispositivos legais” (NUNES, 2019, p.191), de modo a ressignificar o discurso oficial.

No último capítulo desta parte, Nunes analisa a entrevista coletiva realizada com os membros do NDE, organizando as respostas a partir dos princípios organizadores do currículo: “flexibilidade, interdisciplinaridade, relação teoria e prática e competência” (2019, p.247). Na análise dos vários fragmentos - todos transcritos na obra - a autora vai destacar os movimentos de inovação e continuidade caracterizadores do grupo, que ora concorda com o discurso oficial e busca a adequação da nova proposta curricular para o curso à legislação do MEC, ora não consegue superar o modelo já existente de transmissão de conhecimentos.

Nas Palavras finais, Jozanes A. Nunes surpreende o leitor: ao invés de concluir o texto simplesmente a partir do corpus que apresentou e analisou - os documentos oficiais, o projeto pedagógico elaborado pelo NDE e a entrevista coletiva dos integrantes do grupo do curso de Letras -, ela coloca em diálogo as ideias que emergem das análises com o modelo de avaliação (acreditação) de cursos existentes na Europa (Portugal, especificamente), vigente desde o Processo de Bolonha. São “reflexões mais amplas”, importantes num momento em que a globalização se torna um fato inquestionável. E a autora se posiciona axiologicamente em vários momentos, sempre defendendo que o “foco da educação não deve ser a concorrência institucional pelo mercado, mas a melhoria da qualidade, concebendo[-se] a educação como bem público” (NUNES, 2019, p.293).

Segundo a autora, um dos aspectos preconizados nos documentos não foi atingido na proposta curricular realizada pelo grupo que acompanhou - a necessária unidade entre teoria e prática. Segundo ela, o NDE observado apresentou “uma proposta curricular com poucas possibilidades de desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar, com articulação dos conteúdos das diversas áreas de estudo, a partir de efetiva unidade teoria-prática” (p.298). E essa última era exatamente uma das críticas levantadas por Anísio Teixeira no excerto citado inicialmente: “as Faculdades de Filosofia não se revelaram capazes de ministrar a cultura básica para as profissões liberais nem a cultura dominantemente eclética e prática para os novos cursos secundários” (TEIXEIRA, 1994TEIXEIRA, A. Educação não é privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994., p.129).

Para finalizar esta resenha, reafirmamos que a publicação é importante, em primeiro lugar, como uma amostra do que a academia vem produzindo na interface estudos discursivos/educação; em segundo, como um panorama do modo como ocorrem, na prática, os diálogos entre o discurso do Estado e aquele da Universidade; e, enfim, como reflexão responsável sobre as necessidades/prioridades/possibilidades de alteração dos currículos dos cursos de Letras.

Num país em que as várias reformas se sucedem, vale lembrar, neste parágrafo final, Darcy Ribeiro, que se autodenomina “especialista em reforma universitária”. Na Advertência de sua obra A universidade necessária [1969], admite um “profundo descontentamento com nossa universidade tal qual é”. Mas afirma ser possuidor de um otimismo radical: “Quem como eu critica e propõe com tamanha veemência, o faz porque acredita que é praticável erradicar a conivência, superar a mediocridade e vencer a alienação que denuncia” (1975, p.3). Esta obra é um exemplo da fé nessas possibilidades de mudança em nossa educação.

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    Como sabemos, os cursos de Letras podem ser bacharelados ou licenciaturas, o que vai interferir no currículo. Embora, de início, as reflexões apresentadas na obra abranjam todos os cursos de Letras da universidade sede da pesquisa, vai se deter, ao final, num dos diversos cursos de Letras lá oferecidos.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. XXXIII-XXXIV.
  • RIBEIRO, D. A universidade necessária 2. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
  • TEIXEIRA, A. Educação não é privilégio 5. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2020
  • Aceito
    27 Jul 2020
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