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Os gêneros "desgenerizados": discursos na pesquisa sobre espanhol no Brasil

Resumos

Em um corpus de comunicações apresentadas em congressos de mediano porte realizados no Brasil e referidos à língua espanhola, selecionamos aquelas que abordam problemáticas de gêneros denominados como "discursivos" e/ou "textuais", e verificamos que a grande maioria delas trata também de assuntos de ensino. Para fins analíticos, observamos quatro questões nessas comunicações: que articulação teórica embasa o trabalho, se ele considera ou não a especificidade de uma língua estrangeira, se inclui algum gênero em especial como objeto da discussão e, nos casos que o incluem, como esse gênero ou os enunciados que o representam são relacionados com outros enunciados ou com diferentes instâncias do discurso. A análise apontou desconsideração de propriedades que, nos referenciais teóricos aludidos, aparecem como centrais na problemática de gêneros, juntamente com um abandono da materialidade linguístico-discursiva como lugar de indagação.

Gêneros discursivos; Língua espanhola no Brasil; Gênero e diversidade linguística


In a communication corpus presented in middle-sized congresses in Brazil focusing the Spanish language, we have selected those which approach genre issues designated "discoursive " and/or "textual". We found that most of them seem to deal with teaching issues. We investigated four issues in those oral presentations: which theoretical articulation is the basis for the work, if it considers or not the peculiarities of a foreign language, if it includes a specific genre as an object for discussion and, in those cases which include it, how this genre or the utterances which represent it relate with other enunciations or different discourse features. We found a disregard for properties which, within the theoretical frameworks mentioned, seem to be central in genre issues, along with an abandonment of the linguistic-discursive materiality as a matter for studies.

Discourse genres; The Spanish language in Brazil; Genre and linguistic diversity


ARTIGOS

Os gêneros "desgenerizados": discursos na pesquisa sobre espanhol no Brasil

Adrián Pablo Fanjul

Professor da Universidade de São Paulo - USP, São Paulo-SP, Brasil; pesquisador do CNPq; adrianpf@yahoo.com

RESUMO

Em um corpus de comunicações apresentadas em congressos de mediano porte realizados no Brasil e referidos à língua espanhola, selecionamos aquelas que abordam problemáticas de gêneros denominados como "discursivos" e/ou "textuais", e verificamos que a grande maioria delas trata também de assuntos de ensino. Para fins analíticos, observamos quatro questões nessas comunicações: que articulação teórica embasa o trabalho, se ele considera ou não a especificidade de uma língua estrangeira, se inclui algum gênero em especial como objeto da discussão e, nos casos que o incluem, como esse gênero ou os enunciados que o representam são relacionados com outros enunciados ou com diferentes instâncias do discurso. A análise apontou desconsideração de propriedades que, nos referenciais teóricos aludidos, aparecem como centrais na problemática de gêneros, juntamente com um abandono da materialidade linguístico-discursiva como lugar de indagação.

Palavras-chave: Gêneros discursivos; Língua espanhola no Brasil; Gênero e diversidade linguística

ABSTRACT

In a communication corpus presented in middle-sized congresses in Brazil focusing the Spanish language, we have selected those which approach genre issues designated "discoursive " and/or "textual". We found that most of them seem to deal with teaching issues. We investigated four issues in those oral presentations: which theoretical articulation is the basis for the work, if it considers or not the peculiarities of a foreign language, if it includes a specific genre as an object for discussion and, in those cases which include it, how this genre or the utterances which represent it relate with other enunciations or different discourse features. We found a disregard for properties which, within the theoretical frameworks mentioned, seem to be central in genre issues, along with an abandonment of the linguistic-discursive materiality as a matter for studies.

Keywords: Discourse genres; The Spanish language in Brazil; Genre and linguistic diversity

1 Diversos momentos para a língua espanhola no campo científico brasileiro

Reiteradas vezes aparecerá neste artigo o termo "campo", incluído neste primeiro subtítulo, e começamos esclarecendo que o empregaremos com o valor que ganha na teorização construída a partir de Pierre Bourdieu, por exemplo, em BOURDIEU (1989), como espaço estruturado de posições em relação com uma prática social. Em boa medida, os fenômenos dos quais este artigo tenta dar conta têm a ver com relações e descontinuidades entre o campo científico e o campo educacional, sobretudo com deslocamentos de objetos e conceitos de um campo para o outro, processo necessariamente conflituoso. Começaremos com uma informação muito sintética, que não pretende ser um histórico, sobre lugares que o espanhol foi ocupando como objeto do campo científico no Brasil, mais especificamente na pesquisa desenvolvida na universidade. Já nesta síntese se visualizará que esses lugares têm sido afetados, como não podia ser de outro modo, pela circulação dessa língua em outros campos.

Até os anos 90, a presença da língua espanhola nos espaços acadêmicos e de pesquisa no país registrava um perfil fundamentalmente instrumental, ditado pelas funções a ela atribuídas. Estas eram viabilizar a leitura literária por parte do pesquisador ou do crítico e formar um professor para um ensino que, com exceção de estados como o Rio de Janeiro, onde a inserção da língua nos sistemas escolares públicos favoreceu reflexões específicas, teria lugar principalmente no âmbito das escolas de idiomas e secundariamente em alguns colégios privados, onde predominavam modelos concebidos para um ensino comunicativo, pensados para a língua como recurso econômico ou turístico. Os trabalhos de pós-graduação se dedicavam quase exclusivamente às literaturas nessa língua, sendo quase inexistente a reflexão linguística sobre o espanhol nesse âmbito. Como explicam CELADA e GONZALEZ (2000) em um texto que recomendamos a todo aquele que quiser ampliar, para aquela etapa, a apertada síntese que aqui fazemos, predominava uma abordagem da língua espanhola baseada no contraste mais superficial, termo a termo, herdada ainda de instrumentos dos anos 40, ou direcionada às metodologias e procedimentos didáticos para as modalidades de ensino que já mencionamos como as de maior visibilidade na época.

Nos últimos anos da década de 1990 e nos primeiros do século XXI, uma série de fatores combina-se para que esse lugar (ou falta de lugar) da língua espanhola na pesquisa brasileira entre em um processo de mudança e diversificação, que continua hoje, e no qual se observam diversas novas tendências junto com recorrências de etapas anteriores. O primeiro a levar em conta para compreender essas mudanças é um fator externo à academia e que se inicia nos campos econômico e político: os processos de integração regional que, antes e depois de sua institucionalização no Mercosul, dão lugar a inúmeros intercâmbios de bens culturais que determinam uma circulação qualitativamente diferente para as línguas na região. Nesse contexto, no campo científico, particularmente no que poderíamos considerar como seu subcampo acadêmico, o interesse pelas relações entre as línguas espanhola e portuguesa ganha uma crescente especialização. Especificamente nos estudos linguísticos, essa relação começa a ser abordada a partir de vertentes de forte desenvolvimento na universidade brasileira e de alguns países vizinhos: teorias sobre a aquisição de inspiração gerativista, aplicações de diversas perspectivas nos estudos discursivos e enunciativos e, em menor medida, mas também marcando uma crescente presença, estudos de gramática descritiva. São produzidos e divulgados, dentre outros, trabalhos de pesquisa sobre a aquisição do espanhol por brasileiros (GONZÁLEZ, 1994), sobre comparações entre o funcionamento do português brasileiro e do espanhol (GROPPI, 1997), sobre comparações entre as discursividades relacionadas a ambas as línguas (SERRANI, 1994; SANT'ANNA, 2000; FANJUL, 2002), ou sobre aspectos da subjetividade do brasileiro mobilizados pelo contato com o funcionamento do espanhol (CELADA, 2002), todos abrindo caminhos de interrogação que, graças à contribuição de novos pesquisadores, se mostram produtivos até hoje.

Paralelamente, e como parte do mesmo contexto de novas relações entre línguas e saberes nesta região do mundo, aumenta qualitativamente, no referido período, a presença da língua espanhola no campo educacional brasileiro. À crescente tendência a sua inclusão na grade do ensino regular no âmbito privado vem somar-se, em 2005, a lei federal 11.161, que dá um prazo de cinco anos para que todas as escolas de ensino médio a tenham como disciplina de oferta obrigatória1 1 Como análise da peculiar maneira como a Lei 11.161 determina a obrigatoriedade do espanhol na escola brasileira, recomendamos a leitura de Rodrigues, 2010. . Um processo análogo, mas muito mais lento, acontece em relação ao português brasileiro nos países vizinhos, sobretudo na Argentina2 2 A Lei 26.468 estabeleceu, na Argentina, em 2010, a obrigatoriedade da oferta de português no ensino médio, empregando uma formulação bastante parecida com a brasileira para o espanhol e dando um prazo de 8 anos. . Essa presença do espanhol no campo educacional requer, como não podia deixar de ser, a formação de professores e a consequente ampliação de vagas nas instituições de ensino superior. Desse modo, ela começa a impactar fortemente o campo acadêmico e de pesquisa, entrando em interação, não isenta de contradições, com as tendências em desenvolvimento nesse último, às quais nos referimos no parágrafo anterior.

Por uma parte, ganha impulso a reflexão na área de políticas linguísticas, fundamentalmente focalizando a análise de situações derivadas da própria implantação do espanhol nos sistemas escolares e do embate entre diversas políticas para essa língua no mundo e na região (LAGARES, 2010). Por outra parte, as próprias tendências dominantes, no país, na pesquisa e no planejamento da educação em linguagens, começam a ter efeitos nos novos espaços acadêmicos que se abrem para a língua espanhola. É sobre uma problemática que vemos relacionada a este último fator que trata este artigo.

2 Dois sintomas e uma indagação

Acompanhamos com muita atenção a divulgação da produção de conhecimento relativa ao espanhol no Brasil, tendo participado, pelo menos nos últimos anos, dos principais eventos onde essa produção é divulgada, e tendo acompanhado uma boa parte do que fica registrado em páginas e em publicações. Não desconhecemos que, em boa medida, as tendências que ali se observam são perceptíveis também nos âmbitos de trabalho com outras línguas estrangeiras e inclusive com o português, mas neste artigo nosso objeto de observação serão estudos sobre o espanhol.

Preocupa-nos que, recorrentemente, são desatendidos, em muitos trabalhos, não apenas o funcionamento linguístico, mas também a configuração textual e a própria discursividade. Embora nessas elaborações sejam ecoados legítimos avanços na compreensão das complexas relações entre linguagem, história e sociedade, a especificidade disciplinar tende a ser abandonada sem que por isso sejam assumidos com suficiência referenciais teóricos de outras ciências humanas e sociais.

Dois sintomas desse processo, que não vemos como "transdisciplinar" mas como de um certo aplainado disciplinar, têm despertado nossa atenção. Por uma parte, observamos um uso de terminologia e uma referência a conceitos construídos nas ciências sociais, que muitas vezes aparecem reduzidos ao senso comum. Não trataremos aqui dessa problemática, que deveria ser objeto de outro trabalho. Por outra parte, encontramos aquilo que motivou a indagação à qual se refere este artigo: abordagens teórico-práticas do que se denomina "gêneros discursivos" e/ou "gêneros textuais" que negligenciam as dimensões textual e discursiva, inclusive se consideradas a partir de qualquer um dos referenciais teóricos invocados nessas produções.

Na tentativa de melhor compreender e dar precisão àquilo que nos preocupa e, a partir dessa compreensão, argumentar para realizar uma contribuição válida, fizemos um levantamento nos anais de dois eventos de significativa convocatória para a área, realizados em 2010, de todas as comunicações que abordassem, de diversas maneiras, a problemática dos gêneros do discurso. Na seção seguinte descrevemos os objetivos e a metodologia desse levantamento, para passar, depois, para a análise dos resultados obtidos.

3 Nossa procura e seus procedimentos

Nossa indagação partia de um contato prévio com o que constituiria nosso corpus e de inquietações relativamente identificadas, pelo qual nos demos objetivos em relação a quatro problemáticas que indagaríamos nas produções a serem analisadas: a delimitação do referencial teórico, a atenção às relações dialógicas e interdiscursivas para os enunciados considerados ou ainda para caracterização de determinados gêneros, a atenção a aspectos da configuração textual e a consideração da especificidade de ter-se um universo linguístico-cultural estrangeiro como espaço de trabalho. Como se verá, a análise que desenvolveremos a partir do próximo item percorrerá esses quatro aspectos.

Procuramos congressos de alcance nacional com a maior presença possível de pesquisas em desenvolvimento referidas à língua espanhola no Brasil, apresentadas por pesquisadores em formação, de iniciação científica, mestrado ou doutorado e/ou de professores já atuantes nas universidades. Consideramos, então, os anais dos dois maiores eventos desse tipo acontecidos em 2010, dos quais também tínhamos participado: o VI Congresso Brasileiro de Hispanistas, organizado pela Associação Brasileira de Hispanistas, que teve lugar em Campo Grande entre 31/08 e 03/09/10 (ESTEVES e ZANELATTO, 2011), e o I Congresso Internacional de Professores de Línguas Oficiais do Mercosul, organizado por diversas associações de professores, dentre elas as de espanhol, dos estados brasileiros mais povoados, e que aconteceu em Foz do Iguaçu, de 19 a 22 de outubro de 2010 (FANJUL e MOREIRA, 2011). Foi importante, ainda, na nossa decisão, que se tratasse de congressos em que predominasse a apresentação de resultados de pesquisa, mesmo que ela fosse de um nível muito inicial, evitando aqueles trabalhos que se apresentam apenas como "relatos de experiência" e que não seriam de utilidade para nossos objetivos.

Do total de 259 trabalhos publicados nos dois congressos3 3 Cada um dos congressos teve muito mais comunicações, aproximadamente 250 um e 350 o outro, mas esse é o total dos que enviaram o texto da comunicação para publicação. , levantamos primeiramente aqueles que anunciassem incluir entre seus objetos de estudo, com maior ou menor centralidade, tanto a problemática dos gêneros de modo amplo quanto a abordagem de algum gênero em especial, identificado como tal (por exemplo, "gênero coluna de opinião", "gênero aviso de emprego", etc.). Consideramos a respeito tanto as comunicações que empregavam o termo "gêneros do discurso" (ou "discursivos") como "gêneros textuais" (ou "de texto"), e também as que alternavam ambas as denominações. Ficamos com um total de 14 comunicações4 4 Levando em conta a proximidade dos dois congressos, verificamos que não se repetissem trabalhos dos mesmos autores sobre a mesma pesquisa em andamento. Cabe esclarecer também que, no congresso de Foz do Iguaçu, havia trabalhos de autores de países vizinhos e/ou referidos a outras línguas, os quais não foram considerados porque nossa reflexão tem como objeto os estudos sobre língua espanhola no Brasil. .

Tivemos o critério de abordar essas comunicações como um corpus que seria observado a partir de assuntos transversais a todas elas. Não individualizaremos nenhum caso e, para tanto, não faremos citação. Nosso propósito é a discussão de tendências que vemos relacionadas à tensão entre campos que explicamos na primeira seção deste artigo, no contexto de uma transferência entre pesquisa e ensino que está em desenvolvimento e não pode ser reduzida a nenhum caso em especial. Por isso, embora a transcrição de algumas formulações e sua análise pudessem enriquecer nossa exposição, preferimos prescindir dessa possibilidade neste trabalho. Nosso procedimento foi determinar grandes variáveis e, depois de uma ponderação quantitativa dos trabalhos em torno delas, chegar a uma reflexão qualitativa que não precisasse analisar as expressões singulares.

A primeira constatação, antes mesmo de estabelecer qualquer outra diferenciação, foi que apenas um dos 14 trabalhos não tratava de situações de ensino. Todos os outros 13 se propunham como pesquisas para o ensino (em diferentes níveis e modalidades) ou a partir dele.

Com base nos objetivos enumerados no começo deste item, as interrogações que lançamos sobre as produções analisadas foram:

a) O referencial teórico acolhe, em torno dos gêneros, elaborações e conceitualizações de procedência teórica heterogênea? Quando é assim, ele evidencia percepção dessa heterogeneidade?

b) Nas propostas nas quais se focaliza um determinado gênero ou um grupo de enunciados atribuídos a um gênero, com que classe(s) de objetos ou de fenômenos são estabelecidas relações?

c) Quais aspectos da materialidade verbal são considerados, de fato, na caracterização dos gêneros ou na atribuição de enunciados a eles?

d) Naqueles trabalhos que tratam do ensino (como já informamos, a imensa maioria, 13 de 14), são levados em conta a entrada em contato com a língua segunda/estrangeira e a sua materialidade? Se sim, de que modos?

Além das regularidades que encontramos como resultados para essas indagações, a observação sistemática das produções nos mostrou a recorrência de outros dois fenômenos que integraremos na nossa análise. Por uma parte, nas argumentações de justificativa, um tipo de modalização contrastiva para a introdução do que é representado como metalinguagem, sobretudo como "gramática". Por outro lado, uma não diferenciação entre "gênero" e "enunciado" que chega a tomar forma de expressão de identidade em poucas das produções, mas que consideramos significativa, como veremos no item 5, devido à orientação argumentativa com a qual se relaciona, perceptível em muitos mais casos.

Nas seguintes seções, abordaremos sucessivamente as observações realizadas a partir das quatro perguntas que formulamos; cada seção corresponderá a uma delas. Propomo-nos que nosso trabalho não se limite à observação crítica do corpus que delimitamos, mas também que contribua para examinar a complexidade dos problemas que efetivamente se atualizam para todo pesquisador que tente pôr em relação categorias classificatórias para o discurso, como a de "gênero", com a questão da diversidade e alteridade linguística. E dado que uma boa parte do corpus que analisaremos é composta por trabalhos que se propõem a contribuir com as práticas de ensino, encerraremos o artigo tentando, também, uma reflexão direcionada à educação linguística.

4 O amálgama sobre a heterogeneidade

Nos referenciais teóricos de quase todos os trabalhos lidos são mencionadas e, em diferentes graus, comentadas ou resenhadas, fontes que podemos reconhecer como de dois acervos diferentes, pelo qual consideramos pertinente observar a partir de quais aspectos é produzida sua articulação. Por uma parte, é referido o conjunto de estudiosos que, nas últimas décadas, tem recebido a denominação de "escola de Genebra", dentre outros, alguns que citaremos ao longo deste artigo, como Jean-Paul Bronckart, Joaquim Dolz e Bernard Scheuwly. Por outra, o que poderíamos denominar como a recepção da obra do Círculo de Bakhtin, em alguns casos mediante a citação ou paráfrase do próprio teórico russo, em outros por meio da divulgação efetuada por pesquisadores posteriores.

Preferimos falar de "dois acervos" e não empregar outros termos que significariam delimitações mais nítidas, como "vertentes" ou "tradições", porque enquanto poderíamos reconhecer os genebrinos como uma corrente que hoje atua com uma identidade relativamente delimitada em um campo já constituído dos estudos discursivos, a recepção dos trabalhos do Círculo de Bakhtin, como adverte Bubnova (2009, p.5-6), deu-se no passado e dá-se hoje a partir de inquietações que não necessariamente guardam continuidade com os contextos históricos e epistemológicos da sua produção. De muitos e diversos lugares se dialoga hoje com essa complexa construção teórica, sendo inevitável que esse diálogo se estabeleça a partir das nossas polêmicas atuais, como desde já assumimos que acontecerá também neste trabalho quando abordarmos a teorização de Bakhtin sobre gêneros. Além disso, o conjunto ao qual hoje acedemos dessa obra nos aparece como relativamente descontínuo, não apenas devido ao hiato que nos separa dele, mas também a questões de tradução e ao caráter inconcluso de alguns dos textos que conhecemos, fatores que determinam certa oscilação terminológica5 5 A respeito, vejam-se, por exemplo, as observações feitas, com diferentes propósitos, por Fiorin (2006, 178-179) e Bronckart (2007, 143) a respeito do conceito de "texto" em Bakhtin. .

São compatíveis esses dois acervos? Cremos que há como se estabelecer, entre eles, confrontações instigantes, relações de convergência e divergência, que ensejem articulações produtivas para a reflexão e a pesquisa, embasadas na constatação de que não se trata de mesma coisa, nem de continuidade ou "herança". Os próprios genebrinos o revelam em maior ou menor grau. Bronckart (2007, p.141-143), por exemplo, explicita claramente diferenças com Bakhtin a respeito do tipo de relação entre atividade humana (o autor usa o termo "formas de atividade") e gêneros do discurso. Além disso, o desenvolvimento que ele realiza, no conjunto da obra referida, dos conceitos de "gêneros de texto" e de "ações de linguagem" evidencia um foco no plano cognitivo que se distingue não apenas da obra bakhtiniana, mas também dos interesses e dos interrogantes que marcaram sua recepção na teoria literária e nos estudos discursivos6 6 Sobre diferentes aspectos dessa recepção são esclarecedores os trabalhos de Fiorin (2006) e de Gregolin (2006). , centrados na heterogeneidade de vozes no discurso e na sua relação com as subjetividades e com a história.

Essa diferente implantação nas ciências humanas e da linguagem, combinada com a orientação privilegiada para o estudo da aquisição da linguagem e de sua pedagogia que se percebe na produção da corrente de Genebra, são visíveis também, do nosso ponto de vista, nas suas elaborações em torno dos gêneros. É significativa, a respeito, a identificação dos gêneros com "modelos", diferentemente da denominação "tipos", que predomina nas traduções de Bakhtin. Assim, em Schneuwly e Dolz (1999, p.7), os gêneros "de linguagem" são caracterizados como "modelo comum" e como "representação integrante", com um papel relevante na "apropriação" das práticas de linguagem pelo sujeito aprendiz. Ainda dentro da reflexão sobre cenários de ensino e aprendizagem, há pesquisadores que advertem diferenças entre a perspectiva que avaliam como "bakhtiniana" e a da escola que estamos considerando. Rojo (2008, p.9399), por exemplo, propõe e analisa tensões que resultam da articulação entre ambas, vendo na segunda o risco de ensejar uma abordagem pedagógica "prescritiva", precisamente pela concepção do gênero como modelo7 7 Interessa-nos deixar claro que não vemos relação necessária entre a caracterização do gênero, nem a de qualquer outra categoria, e o caráter mais ou menos prescritivo das práticas pedagógicas nas quais essa categoria se insere. Por exemplo, que um sociolinguista considere que em determinado espaço social há uma "língua modelar" não quer dizer que não possa promover um ensino que desestabilize esse caráter modelar e que desafie o status quo das relações entre línguas nesse espaço. O reconhecimento e a análise crítica da existência de um modelo não é igual a sua reprodução irreflexiva. porém, veremos como o desenvolvimento dos trabalhos, na sua maioria, afasta-se, de modo notável, do tratamento proposto para o discurso por qualquer um dos "acervos". .

Reiteramos que não vemos obstáculo para que uma proposta de pesquisa integre, no seu referencial teórico, a discussão dessas perspectivas, avaliando até que ponto cada uma delas pode contribuir para a formulação do seu problema e objetivos, ou para determinar seus procedimentos, desde que se evidencie reconhecimento e percepção da sua diversidade e descontinuidade. Chega, então, o momento de dar conta do que encontramos a respeito nos trabalhos que constituem o corpus que delimitamos.

Um dos 14 textos faz referência somente a um trabalho de Bakhtin, os outros 13 incluem menções e/ou citações dos dois "acervos" referidos nos parágrafos anteriores. Desses 13, em 4 casos registramos observações que mostram que se percebem diferenciações entre eles, ou pelo menos uma localização distinta no campo dos estudos da linguagem, ou das relações entre linguagem e sociedade. Nos outros 9, a indistinção é total. Em enumerações ou em sequência não interrupta aparecem tanto os trabalhos do Círculo de Bakhtin quanto de todos os autores já mencionados ou outros da mesma linha, em muitos casos, referidos indiretamente por outros autores. Em aplanamentos nos quais todas essas heterogêneas reflexões pareceriam ter sido historicamente produzidas para fundamentar a "importância dos gêneros" (categoria definida sem conflito nem matizes) no ensino, entra também a menção de textos de "gênero" e "esfera" completamente diferentes, como os documentos oficiais que norteiam o ensino no país, fundamentalmente as Orientações Curriculares Nacionais (MEC/SEB, 2006).

Mesmo levando em conta as limitações de espaço que impõe o formato estabelecido para comunicações em atas de congressos, a extensão desse resultado evidencia a pouca atenção ao embasamento teórico, ou a pouca relevância atribuída à construção desse embasamento na tarefa do pesquisador. Poderíamos pensar que essa carência se relaciona a escolhas práticas, que priorizam a aplicação de modelos ou a passagem direta para a reflexão sobre os objetos de pesquisa. Nas próximas seções,

5 Do enunciado aos exteriores. Dialogismo?

Em 10 dos 14 trabalhos analisados, são apresentados ou descritos enunciados específicos, enquadráveis em algum gênero, que foram objeto de uma indagação ou de um planejamento didático. Em 7 desses 10 trabalhos, especificamente no seu desenvolvimento explicativo, observamos uma passagem quase direta do enunciado singular a uma "realidade" extradiscursiva comentada sem qualquer referência a propriedades mais ou menos generalizáveis dos enunciados em questão. Em consequência, essa passagem se faz sem estabelecer relações de aliança e contestação entre o enunciado e outros enunciados, nem de confrontação entre o pretendido gênero e outros. O "dialogismo", termo ritualmente repetido nos parágrafos de referencial teórico, é completamente ignorado na prática.

Concordamos com Machado (2005, p.152) em que a teorização dos gêneros em Bakhtin considera "não a classificação das espécies, mas o dialogismo do processo comunicativo". Por isso, não nos parece coerente com essa base teórica pular do "exemplar da espécie" diretamente para a "realidade", seja que por tal se entenda o contexto socio-histórico ou a situação de ensino, sem interrogar, para tanto, as relações nas quais o enunciado se insere em uma esfera da atividade humana e da comunicação:

Todo enunciado deve ser analisado, do início, como resposta aos enunciados anteriores de uma esfera dada (o discurso como resposta é tratado aqui em um sentido mais amplo): refuta-os, confirma-os, completa-os, neles se baseia, e supondo-os conhecidos, de alguma maneira os leva em conta (BAJTÍIN, 2008, p.278).

8 8 Tradução nossa para o português. De modo geral, para esse texto de Bakhtin, empregaremos aqui a referida edição em espanhol, traduzida diretamente do russo. A grafia espanholizada "Bajtín" é a que se usa nessa edição. Consultamos, também, a edição brasileira traduzida do francês por Maria E. Galvão G. Pereira (BAKHTIN, 1997).

Ecoam, em quase todos os trabalhos da mostra colhida, como em muitos outros que ouvimos e lemos em congressos e seminários, afirmações sobre a necessidade de atender à "pluralidade /multiplicidade de vozes", à "polifonia" e aos discursos "outros". São sinais de uma filiação dominante, no campo acadêmico, a concepções sobre a relação entre linguagem, sujeitos e sociedade que, de diferentes maneiras, questionam a unicidade do sujeito falante e a imanência do texto, e nas quais nos incluímos. Mas sua repetição é também sinal de uma certa automatização, de que começam a transformar-se em meras fórmulas de inscrição em uma discursividade, com escassa relação com as práticas efetivas que acompanham. Apesar dessa repetição, como vemos, em 70% das comunicações que assumem um enunciado como objeto, não há qualquer tentativa de procurar, nele, "discursos alheios, semiocultos e com diferentes graus de alteridade", ou "sulcos que representam ecos longínquos" (BAJTIN, 2008, p.2809 9 Nas duas citações deste período, tradução nossa. ) da alternância dos sujeitos na interação. E nos 30% restante, embora se estabeleçam relações interdiscursivas10 10 Assumimos, com Fiorin (2006, p.165 e p. 181), a viabilidade de identificar "dialogismo" com "interdiscurso". , elas não ganham centralidade nos objetivos nem na análise de resultados.

Precisamente em relação ao dialogismo e a conceitos próximos registramos, ainda, em alguns textos da amostra, um fenômeno que percebemos também em outras produções que não fazem parte das que aqui observamos sistematicamente: um deslocamento para valores que esses termos poderiam ganhar no campo educacional, sobretudo entre docentes ou estudiosos da Educação que não se relacionam às ciências da linguagem. Com efeito, "dialogismo", "pluralidade de vozes" ou "palavra do outro" são ressignificados como possíveis qualidades do cenário de ensino/aprendizagem e suas práticas: que o aluno tenha a possibilidade de expressar-se criticamente, de contestar, ou de conhecer diferentes visões e perspectivas em torno de algum assunto. E os termos são transferidos para essa carga axiológica positiva sem qualquer marca que advirta que se estaria realizando um deslocamento de seu valor e de seu funcionamento, como se de fato continuasse falando-se da mesma coisa. A heterogeneidade do discurso deixa de ser constitutiva de todo enunciado para passar a ser vista como um traço distintivo de certas práticas que precisariam ser estimuladas em prol de um modelo de ensino ou, inclusive, de formação cidadã.

Essa axiologização positiva, eufórica, atinge um extremo em 4 casos da nossa amostra, que primeiramente chamaram nossa atenção por percebermos que se referiam aos enunciados individuais dos quais tratavam como "enunciado" ou "gênero" indistintamente. Uma leitura mais atenta foi mostrando que não se tratava apenas de uma indistinção entre o geral e o particular, mas da manifestação de uma classificação diferente. Não somente há o equívoco de que o enunciado seja "um gênero", mas também haveria enunciados que são gêneros e outros que não são. Os primeiros seriam aqueles que pertencem à comunicação "real", os enunciados "autênticos". Os outros seriam os que trazem consigo a "artificialidade" de um texto criado "para a aula" ou de supostas concepções sobre a língua como "uma gramática", recorrência à qual nos referiremos na seção seguinte.

É verdade que esse extremo se manifestou em poucos casos, mas precisamente por ser um extremo, deixa ver atrás de si uma tendência da qual ele é uma das continuidades esperáveis. Com efeito, o tipo de abordagem do enunciado, para a análise e/ou para o ensino, que a amostra insinua como bastante difundida não está muito longe dessa descaracterização conceitual. Levar um enunciado para o ensino ou incluí-lo em um levantamento para o planejamento didático, de modo que toda a prática com ele se reduza a comentar os "fatos" e "realidades" que ele registra ou poderia registrar, é obliterar, dentre outras coisas, aquilo que o relaciona a um gênero, é precisamente "desgenerizá-lo", por mais que lhe seja atribuída "autenticidade". Para perceber o enunciado na sua dimensão genérica, que constitui sua inserção na realidade, é imprescindível analisá-lo, como explica BAJTIN (2008, p.280) "no seu nexo com outros enunciados relacionados a ele". E é oportuna, para nossa passagem para o item seguinte, a observação que o pensador russo faz em um parêntese que segue imediatamente essa afirmação (p.280): "é costume analisar esses nexos unicamente no plano temático e não no discursivo, isto é, composicional e estilístico"11 11 Tradução nossa. .

6 Fugas da materialidade

Nos referenciais teóricos de praticamente todos os trabalhos analisados se mencionam fatores composicionais e de estilo como elementos para caracterização de gêneros, sempre a partir da bibliografia citada ou referida. Mas dos 10 trabalhos informados no item anterior, que apresentam enunciados específicos como objeto de estudos, apenas em 3 há uma efetiva abordagem analítica de aspectos que podem relacionar-se a essas duas dimensões, em dois casos aplicando com bastante originalidade alguns modelos descritivos. Um deles é precisamente aquele que não trata de ensino.

Dos outros 7, há 2 em que são comentadas características estilísticas do gênero escolhido, adequadamente relacionadas ao lugar social do destinatário que o gênero prefigura. Mas elas se reduzem à observação dos pronomes de tratamento, restringindo a dimensão estilística a um paradigma binário ("formal" /"informal").

Nos outros 5, nada se registra a respeito, nem sobre qualquer aspecto composicional. E de fato, a dimensão composicional não é abordada em nenhum dos 10, a partir de nenhum modelo, apesar de que não faltam, entre os referentes teóricometodológicos mencionados pelos autores, propostas e taxonomias, por sinal, aplicadas em muitos trabalhos produzidos no Brasil, inclusive nas áreas de línguas estrangeiras e também do espanhol. Concordamos com Brait (2006, p.9) em que não se postulou, a partir do Círculo de Bakhtin, "um conjunto de preceitos sistematicamente organizados para funcionar como perspectiva teórico-analítica fechada", mas chama nossa atenção que no "acervo" genebrino e nos referentes próximos dele reconhecidos pelos autores dos trabalhos que analisamos há, sim, modelos que, embora não sendo completamente fechados, mostram sistematicidade, como o "folhado textual" (BRONCKART, 2007, p.119-135), reconhecível em várias produções divulgadas no nosso meio, ou as "configurações específicas de unidades de linguagem" (SCHNEUWLY e DOLZ, 1999, p.11-12).

Cremos que a análise dos aspectos que em Bakhtin são denominados como "composicionais" requer debruçar-se sobre a materialidade verbal com um instrumental descritivo, que necessariamente recairá sobre unidades de diversa abrangência, bem como sobre vínculos semânticos e/ou sintáticos entre elas, havendo necessidade de recurso a metalinguagens que denominem essas unidades e esses vínculos. Por isso pensamos que é este o momento de nos referirmos a outra das recorrências que antecipamos no ponto 3 e que percorre os trabalhos analisados. Cabe destacar que, além de constatar sua aparição na nossa amostra, ressoa para nós como algo copiosamente ouvido e/ou lido no nosso contato com apresentações em fóruns da nossa área como um todo, para o estudo de qualquer língua, inclusive a nacional.

Trata-se de um modo de inserir, no enunciado, denominações referidas à descrição metalinguística, sobretudo a "gramática", mas não apenas ela. É um modo de enunciar caracterizado pelo contraste, que assume as seguintes formas:

- Negação de uma exclusividade: "Não apenas X" /"algo mais do que X"

- Exclusiva, opositiva ou adversativa. "Y e não X" /"Não X mas Y"

- Adversativa inclusiva: "Não apenas X mas Y",

O que representamos com "X" varia, sendo "a gramática", "as regras gramaticais", "os tipos textuais", "os marcadores argumentativos", "o código", enfim, com denominações mais os menos felizes, tudo que requer uma metalinguagem; inclusive em um caso aparece esse próprio termo. No lugar de "Y" está "o sentido", "o real", "as práticas" ou, simplesmente, "muito mais". Alguns exemplos que podemos dar e que espelham essa recorrência são "Não apenas uma gramática", "Não regras gramaticais, mas uma prática social", "Não apenas tipos textuais ou marcadores argumentativos, mas o sentido produzido em contextos reais"12 12 Não se trata de citações, mas de exemplos dados por nós para ilustrar, embora guardem correspondência com o que observamos nas produções lidas. . Esse tipo de formulação aparece praticamente na amostra toda, somente dois casos não a apresentam. Cremos que é pertinente nos perguntarmos pelo seu funcionamento argumentativo no espaço de interlocução em que se produz. Contra que e contra quem se argumenta? Trata-se de comunicações em congressos, quer dizer, o campo científico, ou uma interseção dele com os setores de maior capital simbólico no campo educacional. Faz quase 40 anos que não têm expressão, nessa interseção, concepções sobre as línguas ou sobre seu ensino que pudéssemos reputar como restritas a "regras", indiferentes ao contexto, que pensem a língua como frases isoladas ou estoques de palavras. Há décadas que o hegemônico entre nós é, precisamente, a preocupação com a produção de sentido e a procura de respostas sobre a linguagem entre as práticas sociais. Qual é a necessidade, então, dessa repetição quase ritual? Na medida em que, nas práticas de pesquisa e produção de conhecimento que efetivamente se assumem nessas produções, não se visualizam outras abordagens para a descrição e classificação dos fatos de linguagem, não evidenciariam essas reiterações, no seu excesso, a grande dificuldade que ainda se encontra para que o ensino de línguas possa ser alguma outra coisa diferente dessa formalização repetitiva? E a fuga da materialidade em direção a um "social" que não se indaga precisamente nos enunciados com os quais se trabalha, não terá a ver com essa carência?

Na sua recente intervenção em uma mesa redonda, discutindo o lugar dos estudos linguísticos na formação de professores, Gonzaléz (2011, p.10-11) se referia a esse paradoxo:

A falta desse aparelho descritivo faz também, do meu ponto de vista, que a gramática seja reduzida ao que ela pode ter de pior, e que, para sua abordagem, se lance mão de simplificações, de regras sem sentido, arbitrárias, de explicações já superadas pelo grande volume de pesquisas mais sólidas, regras e simplificações que, por sua vez, são aplicadas em atividades sem sentido, que não fazem mais do que (re)alimentar a rejeição pela gramática. Uma rejeição em muitos casos infelizmente reiterada inclusive por alguns formadores de professores. Em síntese, muitas vezes vemos negado, no ensino de línguas, o estudo de sua gramática, ou pelo menos relativizada sua importância, mas sempre se acaba, em algum momento, tendo que abordá-la e, na falta de um aparelho descritivo adequado, isso é feito da maneira mais redutora, quando não superada e equivocada. E é feito sem estabelecer as relações necessárias entre essa materialidade e o sentido.

E também na nossa amostra há lugares onde se percebe que, apesar do que se proclama, a relação efetiva com os fatos de linguagem, quando abordada, continua realizando-se de modo descontextualizado e sem tentar vinculação entre os níveis do funcionamento linguístico e discursivo. Em uma das comunicações analisadas, que tenta explicar a produtividade didática de um gênero que em momento nenhum é caracterizado a partir de qualquer critério discursivo, as únicas práticas didáticas propostas com três textos representativos dele são completar lacunas em branco para as ocorrências de uma determinada classe de palavra ou forma verbal (uma diferente para cada texto). Logo depois é localizado o "tema" do texto como "transversal", o texto é abandonado e é indicada aos alunos uma procura na web sobre os "fatos".

Não vemos, então, infelizmente "algo mais do que uma gramática". O que há é um distanciamento crescente da materialidade linguística e das regularidades em todos os planos do seu funcionamento, tanto a sintaxe quanto a produção de referência, bem como a trama textual, a configuração enunciativa e o dialogismo.

7 Alteridade entre línguas e indagação em gêneros

Como informamos na terceira seção do artigo, 13 dos 14 textos analisados tratam, de diferentes maneiras, do ensino, dando conta de levantamentos e classificações de gêneros para algum planejamento, ou avaliando resultados do trabalho em torno de algum gênero discursivo no cenário de ensino. Em 9 deles, o fato de tratar-se de uma língua outra somente se percebe a partir dos textos trazidos como objeto, mas não faz parte, de maneira nenhuma, da reflexão em torno da categoria de gênero discursivo ou textual e sua inserção no trabalho do pesquisador ou do docente, como se ela não ganhasse alguma especificidade ou complexidade quando se trata de uma ocasião de contato linguístico-cultural, como sem dúvida é o ensino de uma língua estrangeira. E em alguns dos casos em que se aborda, ela é reduzida à problemática de tal gênero existir ou não na outra língua/cultura.

Cremos que é realmente uma grande perda que pouco se indague a respeito da problemática dos gêneros do discurso em alteridades linguístico-culturais, sobretudo e precisamente em relação a gêneros que efetivamente existem em diversas línguas. Não apenas porque diferentes vertentes dos estudos discursivos dispõem de ferramentas teóricas que permitiriam iniciar uma reflexão a respeito, mas porque também há, na reflexão bakhtiniana sobre "expressividade", algumas pistas instigantes para abordar a complexa questão dos gêneros através de línguas diversas.

O "lampejo" do expressivo (BAJTIN, 2008, p.273) não existe nem nas palavras da língua nem na realidade, é gerado pelo contato entre ambas, contato que acontece no enunciado. Além da expressividade individual há, para o autor russo, uma expressividade própria de cada gênero, e nele a palavra ganha uma "expressividade típica" (2008, p.274). Porém, ela não pertence à palavra como item da língua, mas ao gênero, é como "uma espécie de eco de uma totalidade do gênero que ressoa na palavra" (p.275). A vinculação com a problemática da memória resulta evidente, e é a partir dela que teceremos algumas considerações.

Cremos que esse processo funciona de um modo necessariamente diferente na percepção de um falante para o qual essa língua é segunda. O eco pode ser ouvido de modos inesperados ou dispersar-se e, juntamente, a palavra, de algum modo, redireciona-se para a língua, porque devido ao estranhamento, para o estrangeiro se atualiza de modo premente a vinculação da palavra com o corpo da língua outra. Não cremos, porém, que a 'expressividade típica" se anule; e menos ainda na atualidade do português e do espanhol nesta região do mundo, contato que enseja reverberações para seus ecos particularmente instigantes.

Essas duas línguas, na América do Sul, protagonizam um tipo de proximidade particularmente interessante para o estudo do funcionamento discursivo, e não apenas pelo parentesco e pela irregular diferenciação na sua delimitação histórica como unidades glotopolíticas. Mais relevantes ainda nos parecem os efeitos de uma historicidade que tem em comum processos de colonização, embora desigualmente realizados, a inserção em formações sociais com desigualdades análogas e em uma região que, antes mesmo do que hoje se denominam "processos de integração", viveu como conjunto seu posicionamento relativo na economia e na política mundial.

Isso explica que pesquisas divulgadas no nosso meio considerem a memória discursiva como um espaço privilegiado para indagar sobre as atuais relações entre essas línguas e os deslocamentos das subjetividades no seu entremeio, termo especialmente feliz que tomamos emprestado do título de um artigo recente no qual se afirma que, em cada uma dessas línguas, permanecem

determinadas regularidades que, pelo trabalho de separação pelo qual passaram, produzem ressonâncias: lembrando, rememorando, indicando, evocando, insinuando ou simplesmente aludindo a formas de dizer do funcionamento da outra (CELADA, 2010, p.117-118).

Em indagação nossa sobre essa problemática (Fanjul, 2009, p.199), a partir do conceito de "espaço de memória" formulado por Pêcheux (1990), propusemos, para dar conta de relações entre o português e o espanhol no plano discursivo, a possibilidade de "espaços de memória compartilhados" entre sequências discursivas em ambas as línguas e de "um funcionamento parafrástico entre elas", favorecido pela discursividade e eventualmente opacificado pela diferença entre formas das línguas.

Pensando essa expressividade típica como uma memória do gênero na materialidade da língua, cremos que é particularmente produtivo observar sistematicamente essas aproximações e distanciamentos entre o português e o espanhol tanto em gêneros discursivos que se manifestam em espaços de abrangência mundial quanto naqueles que se delimitam como tais no espaço de uma das línguas, mas que permitem indagar sobre ecos de sua expressividade no espaço da outra. E, é claro, isso requer uma disposição para interrogar e descrever a materialidade.

Concluindo. Quais perfis e qual formação favorecer?

Tentamos fundamentar a preocupação que expressamos no início do artigo em relação ao que percebemos como uma crescente desatenção para o estudo do funcionamento linguístico, textual e discursivo, que constitui nossa especificidade como pesquisadores e formadores para a educação linguística. E não apenas na amostra analisada, mas também em um discurso que circula insistentemente nos mesmos espaços, os objetivos desse aspecto da educação são relacionados à necessidade de contribuir para desenvolver um senso de cidadania.

Mas, favorece o senso de cidadania afastar-se das metalinguagens? Estudiosos do papel das metalinguagens no desenvolvimento da cultura e das relações de poder estão muito longe de vê-las como um luxo dispensável ou inócuo. Auroux (2002, p.9) nos lembra que a gramatização "mudou profundamente a ecologia da comunicação humana e deu ao Ocidente um meio de conhecimento /dominação sobre as outras culturas do planeta." Cremos que uma grande contribuição nossa, como pesquisadores, para o papel formador do trabalho sobre linguagens na educação pode ser o de promover o conhecimento crítico acerca das metalinguagens em uma perspectiva transformadora, o que nunca conseguiremos fugindo delas.

E o que estamos vendo é que não é apenas da "gramática" que se foge, mas de tudo que signifique descrever algum tipo de regularidade na superfície discursiva ou nas suas relações interdiscursivas. O propósito pareceria ser sair o mais rápido possível do funcionamento das linguagens e passar para uma perspectiva avaliativa dos "temas" e "fatos". Esse rumo nos traz à lembrança a crítica de Bakhtin, que referimos no final do item 5, sobre o costume de analisar as relações entre enunciados somente "no plano temático e não no discursivo".

Não parece promissor formar um professor comentador de "assuntos" e "fatos" sem uma disciplina de estudo com a qual abordá-los. Menos ainda embasar esse perfil mediante pesquisas que construam instrumentos e práticas que o afastam da materialidade dos processos de significação, ao ponto de que, quando deve ou quer dar conta do funcionamento linguístico, somente lhe resultem compreensíveis as versões mais vulgarizadas da gramática normativa tradicional. Privaríamos, ainda, o aluno do desafio intelectual - e por que não, político - de ler e de enunciar, nas materialidades verbais, o dito /não dito que sustenta aspectos cruciais das relações humanas. Se esse desafio não lhe é dado no âmbito de trabalho com as linguagens, dificilmente haverá outro espaço da sua educação onde ele aconteça.

Recebido em 14/03/2012

Aprovado em 07/05/2012

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  • 1
    Como análise da peculiar maneira como a Lei 11.161 determina a obrigatoriedade do espanhol na escola brasileira, recomendamos a leitura de Rodrigues, 2010.
  • 2
    A Lei 26.468 estabeleceu, na Argentina, em 2010, a obrigatoriedade da oferta de português no ensino médio, empregando uma formulação bastante parecida com a brasileira para o espanhol e dando um prazo de 8 anos.
  • 3
    Cada um dos congressos teve muito mais comunicações, aproximadamente 250 um e 350 o outro, mas esse é o total dos que enviaram o texto da comunicação para publicação.
  • 4
    Levando em conta a proximidade dos dois congressos, verificamos que não se repetissem trabalhos dos mesmos autores sobre a mesma pesquisa em andamento. Cabe esclarecer também que, no congresso de Foz do Iguaçu, havia trabalhos de autores de países vizinhos e/ou referidos a outras línguas, os quais não foram considerados porque nossa reflexão tem como objeto os estudos sobre língua espanhola no Brasil.
  • 5
    A respeito, vejam-se, por exemplo, as observações feitas, com diferentes propósitos, por Fiorin (2006, 178-179) e Bronckart (2007, 143) a respeito do conceito de "texto" em Bakhtin.
  • 6
    Sobre diferentes aspectos dessa recepção são esclarecedores os trabalhos de Fiorin (2006) e de Gregolin (2006).
  • 7
    Interessa-nos deixar claro que não vemos relação necessária entre a caracterização do gênero, nem a de qualquer outra categoria, e o caráter mais ou menos prescritivo das práticas pedagógicas nas quais essa categoria se insere. Por exemplo, que um sociolinguista considere que em determinado espaço social há uma "língua modelar" não quer dizer que não possa promover um ensino que desestabilize esse caráter modelar e que desafie o
    status quo das relações entre línguas nesse espaço. O reconhecimento e a análise crítica da existência de um modelo não é igual a sua reprodução irreflexiva. porém, veremos como o desenvolvimento dos trabalhos, na sua maioria, afasta-se, de modo notável, do tratamento proposto para o discurso por qualquer um dos "acervos".
  • 8
    Tradução nossa para o português. De modo geral, para esse texto de Bakhtin, empregaremos aqui a referida edição em espanhol, traduzida diretamente do russo. A grafia espanholizada "Bajtín" é a que se usa nessa edição. Consultamos, também, a edição brasileira traduzida do francês por Maria E. Galvão G. Pereira (BAKHTIN, 1997).
  • 9
    Nas duas citações deste período, tradução nossa.
  • 10
    Assumimos, com Fiorin (2006, p.165 e p. 181), a viabilidade de identificar "dialogismo" com "interdiscurso".
  • 11
    Tradução nossa.
  • 12
    Não se trata de citações, mas de exemplos dados por nós para ilustrar, embora guardem correspondência com o que observamos nas produções lidas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012

    Histórico

    • Recebido
      14 Mar 2012
    • Aceito
      07 Maio 2012
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