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Dinâmica metropolitana e segregação sócioespacial

Metropolitan dynamics and socioespatial segregation

Dynamiques métropolitaines et ségrégation socio spatiale

Resumos

Este artigo analisa a evolução recente da segregação socioespacial em Salvador à luz do debate sobre as transformações das metrópoles no capitalismo globalizado. Reconhecendo que todas as grandes cidades de alguma forma terminam sendo tocadas pela globalização, o texto ressalta que entretanto os impactos desse processo não são uniformes nem convergem para um modelo único de cidade. É preciso considerar-se a conformação histórica de cada cidade, suas instituições, atores e decisões políticas locais, dentro de uma dinâmica definida pela continuidade/transformação, onde o pré-existente condiciona a irrupção do novo, o qual, em muitos casos, já começara a se esboçar no passado. Mostrando como se conformou uma metrópole extremamente desigual e segregada e como as transformações dos últimos anos vêm agravando essas perversões, a análise do caso de Salvador ilustra essas considerações.

metrópoles; segregação socioespacial; estruturas urbanas; transformações urbanas; Salvador


This article analyzes the recent evolution of the socioespatial segregation in Salvador to the light of the debate about transformations of the metropolises in the globalized capitalism. Recognizing that all the big cities in some way end up being touched by globalization, the text points out that, however, the impacts of that process are not uniform nor converge to a single city model. It is necessary to consider the historical conformation of each city, its institutions, actors and local political decisions, inside of a dynamics defined by the continuity/transformation, where the preexisting conditions the appearance of the new, which, in many cases, had already begun be felt in the past. Showing how an extremely unequal and segregated metropolis was formed how last years' transformations are worsening those perversions, the analysis of the case of Salvador illustrates those considerations.

metropolises; socioespatial segregation; urban structures; urban transformations; Salvador


Cet article analyse l'évolution récente de la ségrégation socio spatiale à Salvador, à partir d'un débat sur les transformations des métropoles au cœur du capitalisme globalisé. En reconnaissant que, d'une certaine manière, toutes les grandes villes finissent par être touchées par la globalisation, le texte fait remarquer que les impacts de ce processus ne sont cependant pas uniformes et qu'ils ne convergent pas vers un modèle unique de ville. La formation historique de chaque ville, ses institutions, ses acteurs et les décisions politiques locales doivent être prises en considération dans une dynamique définie par la continuité/transformation où ce qui préexiste conditionne l'irruption du nouveau qui, dans bien des cas, avait déjà commencé à être ébauché dans le passé. En montrant de quelle manière une métropole extrêmement inégale et ségréguée s'est formée et comment les transformations des dernières années viennent encore aggraver ces perversions, l'analyse du cas de Salvador illustre bien ces considérations.

métropoles; ségrégation socio spatiale; structures urbaines; transfor-mations urbaines; Salvador


DOSSIÊ

Dinâmica metropolitana e segregação sócioespacial

Metropolitan dynamics and socioespatial segregation

Dynamiques métropolitaines et ségrégation socio spatiale

Inaiá Maria Moreira de CarvalhoI; Gilberto Corso PereiraII

IProfessor-Doutor do Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica do Salvador; Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal da Bahia-UFBA, Rua Caetano Moura, 99, 1º sub-solo (Federação), Cep: 40.210-320, Salvador Bahia Brasil, E-mail: inaiammc@ufba.br

IIProfessor-Doutor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e do Mestrado em Geografia da Universidade Federal da Bahia,

E-mail: corso@ufba.br

RESUMO

Este artigo analisa a evolução recente da segregação socioespacial em Salvador à luz do debate sobre as transformações das metrópoles no capitalismo globalizado. Reconhecendo que todas as grandes cidades de alguma forma terminam sendo tocadas pela globalização, o texto ressalta que entretanto os impactos desse processo não são uniformes nem convergem para um modelo único de cidade. É preciso considerar-se a conformação histórica de cada cidade, suas instituições, atores e decisões políticas locais, dentro de uma dinâmica definida pela continuidade/transformação, onde o pré-existente condiciona a irrupção do novo, o qual, em muitos casos, já começara a se esboçar no passado. Mostrando como se conformou uma metrópole extremamente desigual e segregada e como as transformações dos últimos anos vêm agravando essas perversões, a análise do caso de Salvador ilustra essas considerações.

Palavras-chave: metrópoles, segregação socioespacial, estruturas urbanas, transformações urbanas, Salvador.

ABSTRACT

This article analyzes the recent evolution of the socioespatial segregation in Salvador to the light of the debate about transformations of the metropolises in the globalized capitalism. Recognizing that all the big cities in some way end up being touched by globalization, the text points out that, however, the impacts of that process are not uniform nor converge to a single city model. It is necessary to consider the historical conformation of each city, its institutions, actors and local political decisions, inside of a dynamics defined by the continuity/transformation, where the preexisting conditions the appearance of the new, which, in many cases, had already begun be felt in the past. Showing how an extremely unequal and segregated metropolis was formed how last years' transformations are worsening those perversions, the analysis of the case of Salvador illustrates those considerations.

Keywords: metropolises, socioespatial segregation, urban structures, urban transformations, Salvador

RESUMÉ

Cet article analyse l'évolution récente de la ségrégation socio spatiale à Salvador, à partir d'un débat sur les transformations des métropoles au cœur du capitalisme globalisé. En reconnaissant que, d'une certaine manière, toutes les grandes villes finissent par être touchées par la globalisation, le texte fait remarquer que les impacts de ce processus ne sont cependant pas uniformes et qu'ils ne convergent pas vers un modèle unique de ville. La formation historique de chaque ville, ses institutions, ses acteurs et les décisions politiques locales doivent être prises en considération dans une dynamique définie par la continuité/transformation où ce qui préexiste conditionne l'irruption du nouveau qui, dans bien des cas, avait déjà commencé à être ébauché dans le passé. En montrant de quelle manière une métropole extrêmement inégale et ségréguée s'est formée et comment les transformations des dernières années viennent encore aggraver ces perversions, l'analyse du cas de Salvador illustre bien ces considérations.

Mots-clés: métropoles, ségrégation socio spatiale, structures urbaines, transfor-mations urbaines, Salvador.

INTRODUÇÃO

Este artigo analisa a evolução recente dos padrões de segregação socioespacial e da conformação metropolitana de Salvador, primeira capital e atualmente a terceira maior cidade brasileira, com cerca de dois milhões e seiscentos mil habitantes. Ele se insere no debate sobre os efeitos das transformações das últimas décadas sobre as grandes cidades, com a constituição de um sistema urbano mundializado e a formação de uma nova ordem socioespacial nas áreas metropolitanas.

Em termos internacionais, esse debate tem sido marcado pelas contribuições teóricas de autores como Sassen (1991), ou Borja e Castels (1997), que ressaltam como o desenvolvimento espetacular de técnicas que comprimem o tempo e quase eliminaram a distância, a financeirização da riqueza e outras características da sociedade "pós-industrial" viabilizaram a constituição de um espaço mundial de acumulação; conformaram uma nova geografia e uma arquitetura produtiva que qualifica e desqualifica espaços em função de fluxos mundializados e nas quais cidades, pólos e regiões integram uma rede imensa e globalizada onde grandes empresas valorizam seus capitais em um número crescente de áreas e atividades, produzindo rápidas mudanças na divisão territorial do trabalho (Veltz, 1996).

Nessa rede, algumas aglomerações adquiriram uma renovada importância como global cities, transformando-se em lugares estratégicos para a gestão global da economia, por concentrarem o poder econômico, a sede das grandes corporações, o controle dos meios de comunicação, os serviços modernos e a difusão das mensagens dominantes, ocorrendo uma polarização crescente entre esses espaços e o resto do mundo e um aumento das diferenciações internas em cada uma das áreas envolvidas. Analisando as transformações em curso nessas cidades, com o declínio das atividades industriais e a expansão das atividades financeiras e dos serviços, Sassen formulou a hipótese da existência de vínculos estruturais e necessários entre os processos associados à globalização e a dualização social das metrópoles. Com a segmentação do mercado de trabalho, as transformações assinaladas produziriam uma nova estrutura social, marcada pela polarização entre categorias superiores e inferiores da hierarquia social e pela concentração de renda, assim como pela redução das camadas médias. Refletindo-se no plano espacial, esses processos gerariam, também, a dualização das estruturas urbanas.

Apesar da difusão e influência dessa hipótese, ela não se tornou consensual. Investigações efetuadas em grandes metrópoles internacionais não confirmaram a substituição da estrutura de classes da sociedade industrial por uma polarização entre os mais ricos e os mais pobres nem a dualização do espaço urbano, revelando, antes, que não se pode considerar a existência de uma única trajetória e tendências universais para as áreas metropolitanas, uma vez que a globalização constitui um processo contraditório e inacabado, com efeitos bastante seletivos sobre os diferentes territórios, e dinâmicas que envolvem a homogeneização, a diferenciação, a singularização ou a própria marginalização. Comandado por forças transnacionais, esse processo não elimina a influência das instituições, atores e decisões políticas nacionais e locais e, muito menos, da conformação histórica sobre a qual incidem as mencionadas transformações.

Assim, embora quase todas as grandes cidades sejam, de alguma forma, tocadas pelo processo de globalização, seu envolvimento depende da natureza e alcance desse processo (que não é uniforme nem converge para um modelo único de cidade), e sua dinâmica é definida pela continuidade ou transformação, onde o pré-existente condiciona a irrupção do novo, que, em muitos casos, já havia começado a se esboçar no passado (Mattos, 2004). Notadamente, no que diz respeito às estruturas urbanas, como ressalta Préteceille (2003), elas não podem ser interpretadas como um efeito direto das transformações recentes, pois constituem uma herança histórica dos efeitos de economia e da sociedade no longo prazo, centralizada tanto nas estruturas materiais do espaço construído como nas formas sociais de valorização simbólica e de apropriação.

Por isso mesmo, acompanhando esse debate, estudos efetuados sobre as grandes metrópoles da América Latina e do Brasil (Janoschka, 2002; Sabatini, 2003; Sabatini; Cáceres; Cerda, 2004; Mattos, 1999, 2004; Shapira, 2000; Duhau, 2005; Ribeiro, 1999; Taschner; Bogus, 1999; Borsdor, 2003) têm evidenciado principalmente a estabilidade das estruturas social e urbana nessas cidades. Persiste, em longa escala, o tradicional padrão periférico de segregação, em que as camadas de alta e média renda se concentram nas zonas centrais ou em uma direção geográfica determinada, enquanto os grupos de mais baixa renda se aglomeram em extensas áreas de pobreza, especialmente nas periferias mais distantes e pior equipadas, ao lado de transformações como:

  • o decréscimo demográfico e o empobrecimento de antigas áreas centrais, com o deslocamento de áreas tradicionais de negócios e a constituição de novas centralidades, associados à proliferação de novos artefatos de grande impacto na estruturação do espaço metropolitano, como complexos empresariais, grandes centros de comércio e serviços, resorts, hipermercados, centros de convenções, etc;

  • a difusão de novos padrões habitacionais e investimentos imobiliários destinados às camadas altas e médias, com a multiplicação de condomínios horizontais ou verticais fechados e protegidos, implantados, muitas vezes, em zonas antes populares, mas com uma segmentação que agora se expressa através de dispositivos explícitos de separação física e simbólica, como cercas, muros e sofisticados aparatos de segurança, estabelecendo outros padrões de segregação;

  • um crescimento da heterogeneidade das áreas populares e da segregação nos novos espaços ocupados pelos grupos de menor renda, com uma acentuação da tendência a suburbanização e à ocupação de bordas metropolitanas;

  • o abandono pelo Estado da maior parte de suas funções tradicionais de planejamento e gestão, com a transferência dessas funções para atores privados e uma crescente afirmação da lógica do capital imobiliário na produção e reprodução metropolitanas, alterando a paisagem e as condições urbanas.

Tendências dessa ordem vêm interferindo na conformação do espaço e na sua apropriação diferenciada pelas diversas categorias sociais em Salvador e na sua região metropolitana, oferecendo subsídios para a reflexão sobre as transformações recentes dessas regiões no caso brasileiro, como será visto nas páginas a seguir.

A CONFORMAÇÃO URBANA E METROPOLITANA DE SALVADOR

Fundada no início do período colonial, com funções político-administrativas e mercantis, Salvador sediou o governo geral do Brasil até 1763 como a mais importante cidade brasileira. Mas, com a transferência da capital do país para o Rio de Janeiro, o declínio da base agro-exportadora local e, posteriormente, a constituição de um mercado unificado nacionalmente e a concentração industrial no Centro-Sul, a cidade foi afetada negativamente, experimentando um longo período de estagnação econômica e populacional. A ampliação da sua área urbanizada ocorreu de forma paulatina e no entorno da Baía de Todos os Santos (do atual centro histórico à península de Itapagipe) até meados do século XX, quando a velha capital baiana começou a ser atingida por intensas transformações.

Conforme assinalado por estudos como os de Brandão (1981) e Souza (2000), já na década de 1940, com o desenvolvimento dos transportes através da ampliação das linhas de bonde, famílias de alta renda passaram a abandonar os tradicionais casarões do centro, instalando-se em áreas então mais afastadas, na direção sul, como os bairros do Garcia, Canela, Vitória e Barra, em grandes e belos palacetes, rodeados de jardins. Tangidas pela crise da agro-pecuária do Recôncavo e de outras regiões, intensas levas de migrantes de baixa renda dirigiram-se para Salvador, levando a população da cidade a passar de 217.235 habitantes em 1940, para 290.443 em 1950 (o que representa um incremento de 33,7%, contra apenas 2% registrados nas duas décadas anteriores), ampliando a demanda por habitações, pressionando a estrutura urbana e, notadamente, as áreas ocupadas pelas camadas populares.

Como a estrutura fundiária de Salvador era marcada por um alto grau de concentração de propriedade do solo em poder de algumas famílias e ordens religiosas ou sob o domínio do município, isso inibiu a abertura de novas áreas para ocupação, refletindo-se sobre as formas de acesso ao solo urbano. Como bem caracteriza Souza (2000), até os anos quarenta, a ocupação "espontânea" em terreno de outrem por habitações populares era uma prática comum e legítima, consentida ou mesmo incentivada por alguns proprietários de terras desocupadas na periferia urbana, até então pouco valorizada. Além de receber dos ocupantes uma pequena taxa anual no regime de enfiteuse, esses proprietários contemplavam a possibilidade de atrair infra-estrutura e serviços coletivos que urbanizariam as áreas adjacentes ao núcleo de ocupação.

Além disso, pelas condições topográficas naturais de Salvador, as possibilidades de acesso aos vales internos e às áreas periféricas, onde ocorriam às ocupações populares, eram muito difíceis, e, conseqüentemente, exigiam drenagem e obras viárias especiais de custo elevado. Com isso, permaneceram fora do mercado não apenas áreas mais distantes do centro como aquelas relativamente próximas, mas situadas em vales e charcos, onde se localizaram os primeiros bairros pobres de Salvador.

Em meados dos anos quarenta (quando as pressões por habitações já envolviam todas as classes sociais) a "crise habitacional" se torna generalizada, aumentando as expectativas de valorização do solo urbano e levando os proprietários das glebas vazias a resguardá-las para "engorda", no dizer de Brandão (1981). Essa perspectiva de "engorda", favorecida mais tarde por maciços investimentos em infra-estrutura, terminou por desencadear um processo de escassez deliberada de áreas disponíveis, acentuada progressivamente com o crescimento da cidade, o que penalizaria intensamente as parcelas mais pobres da população. Na medida em que a cidade urbanizada não oferecia espaço habitacional compatível com a sua renda (ou melhor, com a carência), começaram a se multiplicar as ocupações coletivas por "invasão", como passariam a ser designadas as áreas de habitação popular que se formaram ou cresceram por "ocupação espontânea" direta, e, sobretudo, de forma coletiva, iniciadas por famílias sem recursos e sem moradia, à revelia do proprietário fundiário, portanto, sem consentimento, intermediação ou comercialização" (Souza, 1990).

Iniciado em fins da década de 1940, com a invasão pioneira do Corta Braço, que, depois de intensas negociações políticas, conseguiu se consolidar, vindo a constituir o atual bairro popular de Pero Vaz, esse procedimento tornou-se comum e a sua própria denominação terminou por ser absorvida popularmente pelos moradores da cidade em geral, com o reconhecimento de que isso respondia a uma necessidade básica de quem não tinha outra alternativa. Ocupando terrenos de propriedade pública, particular ou duvidosa, as invasões se multiplicaram e, com o crescimento e a modernização da cidade, começaram a ser vistas como um problema, passando a ser reprimidas e realocadas pelo Estado em áreas periféricas distantes e desocupadas, o que contribuiu decisivamente para a segmentação e segregação constatadas atualmente em Salvador e na sua região metropolitana.

Transformações mais relevantes, porém, foram desencadeadas na década de cinqüenta, com a descoberta e exploração de petróleo no Recôncavo Baiano (por algumas décadas, responsável pela maior parte da produção nacional), o que estimulou o crescimento econômico, populacional e urbano de Salvador e de alguns municípios que hoje compõem a sua região metropolitana. Na década de sessenta, a região recebeu alguns investimentos industriais incentivados pela SUDENE e, dos anos 1970 para 1980, os esforços desenvolvimentistas do governo federal para complementar a matriz industrial brasileira, com a produção de insumos básicos e bens intermediários, levaram à implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari e do Complexo do Cobre.

Esses e outros investimentos tiveram um impacto extraordinário sobre a velha capital baiana, convertendo a indústria no foco dinâmico da economia regional e ampliando as articulações entre Salvador e os municípios vizinhos, que sediam os novos empreendimentos, conformando a Região Metropolitana de Salvador (RMS). Composta por dez municípios bem distintos em termos de áreas, população e condições econômicas, mas com uma integração e complementaridade que se superpõem à sua diferenciação, ela se tornou responsável por mais de 80% da indústria de transformação e por mais da metade da produção e da riqueza estadual.

Apesar dos seus reduzidos vínculos com os demais setores da economia baiana, os investimentos industriais estimularam direta ou indiretamente o surgimento de novas atividades e a expansão e modernização de outras, levando à constituição da RMS e sustentando um seu vigoroso crescimento, responsável, de meados da década de 70 à primeira metade da década de 80, por um crescimento do PIB baiano com taxas superiores às obtidas pela região Nordeste e pelo Brasil. Do ponto de vista de ocupação e do emprego, porém, os efeitos da industrialização não chegaram a ter um impacto tão elevado. A opção por uma indústria de bens intermediários, centrada em grandes plantas automatizadas de produção contínua, a exigüidade do mercado consumidor regional (pouco atrativo para investimentos com maior capacidade de absorção de mão-de-obra, como a indústria de bens de consumo final) e a centralização espacial e empresarial mantiveram a parcela de trabalhadores ocupados por esse setor bem mais reduzida que em outras metrópoles brasileiras. No Pólo Petroquímico de Camaçari, por exemplo, no início dos anos 1990, US$ 8 bilhões de investimento significaram 24 mil trabalhadores empregados diretamente. Vale dizer: 3 postos para cada milhão de dólares investido (Almeida, 2006).

Ainda, assim, com os efeitos desse crescimento sobre a construção civil, as atividades governamentais, o comércio e os serviços, a estrutura social da região também mudou, com ampliação e diversificação das classes médias e a emergência de um (reduzido) operariado industrial moderno. Contudo, as transformações assinaladas incidiram sobre um mercado de trabalho marcado pela super oferta de mão-de-obra de baixa qualificação, reforçada pela atração de fluxos migratórios para Salvador e sua área metropolitana, pela vinculação de uma grande parcela da força de trabalho a ocupações precárias e de baixa remuneração e por uma reduzida oferta de postos de trabalho de qualidade, impactando sobre as condições de pobreza e sobre as condições habitacionais de uma ampla parcela da população (Carvalho; Souza, 1980; Carvalho; Almeida; Azevedo, 2001).

Como seria de esperar, essas mudanças levaram a transformações radicais no tecido urbano. A expansão e a modernização econômicas assinaladas incidiram sobre uma região urbana pobre e incipiente, polarizada por uma cidade praticamente estagnada por várias décadas. Isso se deu de forma rápida e abrupta nas décadas de 1960 e 1970, com a realização por parte do Estado de grandes obras que acompanharam e anteciparam os vetores de expansão urbana e uma intensa ocupação informal de famílias de baixa renda na periferia.

Comprometida com uma modernização excludente e com os interesses do capital imobiliário, a Prefeitura de Salvador, que detinha a maioria das terras do município, transferiu sua propriedade para (muito poucas) mãos privadas, através da Lei de Reforma Urbana, em 1968. Promoveu uma ampliação do sistema viário, com a abertura das avenidas de vale, em áreas vazias, mas já apropriadas pelo capital imobiliário, extirpando do tecido urbano mais valorizado um conjunto significativo de assentamentos da população pobre, que ocupava tradicionalmente os fundos até então inacessíveis dos numerosos vales de Salvador. Erradicou invasões localizadas na orla marítima, área reservada ao turismo, outro componente da estratégia de crescimento e modernização da cidade (Brandão, 1981; Souza, 2000). Reprimiu sistematicamente outras invasões, transferindo seus moradores para a periferia mais distante e desvalorizada. Implantou a Avenida Paralela, a meio caminho entre o centro tradicional e o aeroporto, nos limites da cidade. O governo do estado, por sua vez, deslocou para essa avenida o centro administrativo do estado, contribuindo para o esvaziamento do centro tradicional, e tomou outras iniciativas que estimularam o espraiamento da urbanização na direção norte (onde o capital imobiliário vinha implantando novos bairros para a moradia dos grupos da alta e média renda), como a construção da chamada Estrada do Coco, contribuindo decisivamente para a segmentação e segregação socioespacial urbana em Salvador. A recém implantada Avenida Paralela rapidamente se configurou como um novo vetor de expansão da cidade.

Esse fenômeno foi acentuado no final dos anos 1970 com a construção do primeiro grande shopping regional, a transferência da estação rodoviária e a instalação do primeiro hipermercado da capital em uma região fora da área central. Com isso, a Orla Atlântica passou a concentrar os interesses e investimentos do capital imobiliário, a infra-estrutura, equipamentos, serviços e condomínios horizontais fechados, transformando-se na área onde se concentram as moradias das classes altas e médias de Salvador e de sua região metropolitana. Paralelamente à valorização da orla, o encarecimento do solo urbano na capital começou a empurrar a população mais pobre para o centro geográfico e as bordas da Baía de Todos os Santos em Salvador, assim como para os municípios vizinhos de Simões Filho e Lauro de Freitas.

Nesse segundo município, que possuía apenas 10.000 habitantes em 1970, sobrevivendo basicamente da produção e comercialização de hortifrutigranjeiros e da pesca, começou a haver uma grande proliferação de loteamentos populares no distrito de Itinga, vizinho a São Cristóvão, bairro popular já urbanizado de Salvador, situado no final da Avenida Paralela e próximo ao aeroporto, onde já circulavam algumas linhas de transporte coletivo. Naquela área, então ocupada por chácaras e pequenas fazendas, dado o baixo preço das terras e as reduzidas exigências e fiscalização do poder público municipal, diversos incorporadores passaram a vender pequenos lotes literalmente "no meio do mato", sem arruamento, água, transporte ou luz, que podiam ser pagos até 60 meses1 1 A extrema precariedade desses loteamentos _ em boa parte hoje urbanizados _ foi ressaltada por antigos moradores de Itinga em entrevistas realizadas por Dias (2005), mencionando como tinham de sair em grupos para transitar por verdadeiras picadas, onde comumente encontravam cobras, macacos e jacarés. (Dias, 2005).

Na década de 1980, com a implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari e a abertura da Estrada do Coco, que "diminuía" a distância entre Salvador e Lauro de Freitas, o capital imobiliário começou a oferecer empreendimentos mais qualificados na orla marítima desse município, que já se conurbava com a capital. O primeiro e mais importante deles foi Vilas do Atlântico, apresentado como um novo conceito de moradia, associado a uma vida saudável e integrada à natureza, em uma "comunidade" homogênea e longe do barulho, da poluição, criminalidade e outros males urbanos, ou como alternativa para a segunda residência.

Tanto Vilas do Atlântico como outros loteamentos e condomínios horizontais fechados que se multiplicaram nas suas imediações atraíram segmentos de alta e média renda de Salvador, transformando a orla marítima de Lauro de Freitas em uma continuação da área "nobre" da capital. Nos demais municípios da RMS, predomina uma população de baixa renda, em boa parte atraída pela implantação das indústrias e de outros empreendimentos, mas sem maiores e melhores oportunidades de ocupação.

Esse conjunto de processos levou à conformação de um espaço urbano onde, partindo-se de uma área estagnada, como o centro tradicional, configuraram-se três vetores de expansão bem diferenciados: a Orla Marítima norte, o "Miolo" e o Subúrbio Ferroviário, no litoral da Baía de Todos os Santos. O primeiro constituiu a área "nobre" da cidade de Salvador (estendendo-se até Lauro de Freitas), local privilegiado de moradia, serviços e lazer, onde se concentram a riqueza, os investimentos públicos, os equipamentos urbanos e os interesses do capital imobiliário. O segundo, localizado no centro geográfico do município, entre a Avenida Paralela e a BR-324, começou a ser ocupado com a implantação de conjuntos habitacionais para a "classe média baixa", na fase áurea da produção imobiliária articulada com o Sistema Financeiro de Habitação, tendo a sua expansão continuada por loteamentos populares e sucessivas invasões, com uma disponibilidade de equipamentos e serviços bastante reduzida. Já o Subúrbio Ferroviário teve a sua ocupação impulsionada inicialmente pela implantação da linha férrea, em 1860, constituindo, a partir da década de 1940, a localização de muitos loteamentos populares, que foram ocupados nas décadas seguintes sem o devido controle urbanístico, com suas áreas livres também invadidas. Transformou-se em uma das áreas mais carentes e problemáticas da cidade, concentrando uma população bastante pobre e sendo marcada pela precariedade habitacional, pelas deficiências de infra-estrutura, equipamentos e serviços e, mais recentemente, por altos índices de violência (Franco; Santos; Gabrielli, 1998; Souza, 2000).

ESTRUTURA URBANA E SEGREGAÇÃO

A apropriação diferenciada do espaço na RMS foi detalhada e analisada através da metodologia que vem sendo utilizada pelo Observatório das Metrópoles (Ribeiro; Lago, 2000), com base nos dados dos Censos de 1991 e 2000 sobre a ocupação da população economicamente ativa da RMS. As ocupações foram classificadas e agregadas em categorias mais abrangentes _ denominadas como CATs _ a partir do pressuposto teórico de que o trabalho constitui a variável básica para a compreensão das hierarquias e da estrutura social, traduzindo, em grande medida, o lugar que as pessoas ocupam nas relações econômicas e a dimensão simbólica que tem esse lugar (Bourdieu, 1989).

Em um segundo momento, foi analisada a distribuição dessas categorias no espaço da metrópole, usando-se como recorte territorial áreas definidas por uma agregação de setores censitários utilizada nos censos demográficos de 2000 pelo IBGE2 2 As Áreas de Expansão Domiciliar (AEDs), ou áreas de ponderação, são áreas "que conjugam critérios tais como tamanho, contigüidade (no sentido de serem construídas por setores limítrofes com sentido geográfico) e homogeneidade em relação a um conjunto de características populacionais e de infra-estrutura conhecida" (IBGE, 2002). Elas representam a menor unidade territorial que o IBGE disponibilizou para os dados da amostra do Censo demográfico de 2000. O processo de construção de áreas de ponderação consistiu em agregar setores censitários de 1991, tomando-se como referência de recorte espacial as áreas de 2000, de modo que fosse possível uma comparação entre a tipologia socioespacial de 1991 e 2000. e adaptada para os setores censitários utilizados no censo demográfico anterior, de 1991. Levando-se em conta como as diversas categorias ocupacionais encontravam-se representadas nessas diversas áreas da Região Metropolitana de Salvador, foi elaborada uma tipologia que as classificou em superior, média-superior, média, média-popular, popular, popular-inferior, popular operário agrícola e popular agrícola,3 3 Essa classificação foi realizada através de técnicas como a Análise Fatorial por Correspondência Binária e o Sistema de Classificação Hierárquica Ascendente (CHA). A primeira cria fatores pela ordem de explicação do problema, permitindo a diminuição da dimensionalidade do universo com que se está trabalhando e o conhecimento da importância de cada variável na composição da variação dos principais fatores. A segunda é um instrumento para definir agrupamentos a partir das informações dos fatores extraídos na análise fatorial, levando-se em conta a proximidade dos perfis das áreas e sua distância em relação ao perfil médio. Para se chegar ao resultado final, com a identificação dos sete tipos de área e resultados mais refinados, foi necessário proceder-se a uma seqüência de análises fatoriais e operações de classificação, uma vez que, fora dos espaços onde predominam as camadas superiores ou as camadas popular e agrícola, nas demais áreas o perfil social não se expressa com muita nitidez, em virtude de um alto grau de mistura social existente. Em trabalhos publicados anteriormente sobre a segregação socioespacial em Salvador, algumas dessas áreas tinham outra denominação ( popular-sub-proletária, por exemplo, ao invés de popular inferior). A designação atual (apresentada neste texto) teve o objetivo de torná-la homogênea entre as várias metrópoles que estão sendo pesquisadas pela rede do Observatório. de acordo com a composição dos seus moradores,

Na categoria superior, predominam os grandes empresários locais, dirigentes do setor público e do setor privado, ao lado do grupo denominado como intelectuais (ou seja, profissionais de nível superior, autônomos ou empregados); na média superior, o predomínio é dos intelectuais; na média, os profissionais de nível superior se misturam com pequenos empregadores e trabalhadores em ocupações técnicas, de supervisão, de escritório, ocupações médias de educação e saúde e atividades similares; a média popular (que só vai aparecer na análise baseada nos dados censitários de 1991) tem índices consideráveis das chamadas ocupações médias, mas, também, uma grande presença de categorias populares, como trabalhadores manuais da indústria e de serviços auxiliares e trabalhadores do comércio; nas áreas de caráter popular predominam trabalhadores manuais da indústria e do comércio, assim como prestadores de serviços com alguma qualificação; nas classificadas como popular inferior, há uma conjugação desses trabalhadores com prestadores de serviços não qualificados, trabalhadores domésticos, ambulantes e biscateiros. Como agrícolas foram classificadas aquelas que possuem uma expressiva freqüência de trabalhadores rurais, áreas essas menos urbanizadas e com baixa densidade demográfica, encontradas em alguns municípios da RMS, como São Francisco do Conde, Itaparica, Vera Cruz, Lauro de Freitas e Camaçari. Pela trajetória econômica e características de sua industrialização recente, Salvador e a RMS nunca possuíram uma classe operária numericamente expressiva ou bairros com essa composição.4 4 É digno de nota que, apesar da presença do pólo industrial em Camaçari, não se encontra uma área tipicamente operária em Salvador, nesse município ou nas suas proximidades, o que se deve a várias razões. Quando o Pólo Petroquímico foi instalado, Camaçari era um pequeno município de base agrária; as novas indústrias absorveram uma mão-de-obra relativamente qualificada, com remunerações superiores à média do mercado local e transporte especial para as fábricas, recrutada em Salvador ou fora da região; e, em uma conjuntura ainda marcada pelo autoritarismo, preocupações com a "segurança nacional" e com o "risco de constituição de um novo ABC" também parecem ter levado o governo federal a desestimular uma concentração operária. Mais recentemente, porém, com a instalação de uma grande unidade da Ford nesse município, com trabalhadores que recebem salários bem mais reduzidos que seus antecessores da petroquímica e um estímulo à sua fixação residencial nas proximidades das fábricas, isso começa a se modificar. Contudo, em algumas localidades de caráter popular agrícola, o peso relativo de trabalhadores da indústria moderna (como da Petrobrás ou do Pólo Petroquímico) e da construção civil, na sua reduzida população ocupada, levou a sua classificação como popular operário agrícola.

Analisando-se os padrões de apropriação do espaço de acordo com essa classificação, fica patente a ocupação da Orla Atlântica de Salvador e de Lauro de Freitas, (com quem o pólo metropolitano já se conurba) pelos grandes empregadores, dirigentes e trabalhadores intelectuais, em uma mancha praticamente contínua, limitada a Noroeste pela Avenida Paralela, eixo viário importante que faz a ligação de Salvador com o vetor de expansão do Litoral Norte e se configura como a fronteira dessa "cidade" com as áreas populares. Ressalve-se a existência do enclave que constitui o Nordeste de Amaralina, antiga invasão que se consolidou como um bairro popular de alta densidade demográfica, rompendo a continuidade da mancha, o que também ocorre com o bairro da Boca do Rio, um pouco mais ao norte, e o Bairro da Paz,5 5 O Bairro da Paz se conformou a partir da denominada "Invasão das Malvinas", efetuada na década de 1980, quando esse tipo de ocupação da terra não mais era tolerada na "área nobre" de Salvador. Após uma primeira expulsão, seus moradores voltaram e lutaram pela permanência na área, o que terminaram conseguindo, principalmente pela conjuntura política da época, marcada pela redemocratização do país. Hoje ele constitui o único enclave de população de baixa renda à beira da Avenida Paralela, com a sua área original "congelada" cercada e vigiada pelo capital imobiliário, que vem implantando o condomínio fechado Alphaville e outros grandes empreendimentos nessa região. à beira da Avenida Paralela, bem mais ao Norte. Como já foi mencionado, nesses espaços superiores, concentram-se os equipamentos públicos e privados mais importantes, modernos centros de comércio e serviços, grandes equipamentos urbanos (shoppings, multiplex, parques e centros de convenções) e as oportunidade de trabalho e obtenção de renda.

Os setores médios também ocupam essas áreas, assim como o centro tradicional e as áreas mais antigas da cidade. As áreas populares abrigam a população que não tem possibilidades de consumir o espaço da cidade moderna nem da cidade tradicional, alojando-se tipicamente em parcelamentos clandestinos e habitações precariamente construídas no Miolo ou no Subúrbio Ferroviário de Salvador e nos seus municípios vizinhos. Os trabalhadores de subsistência têm uma forte presença nessas áreas e em alguns pequenos interstícios da Orla Atlântica, como se observa pelo Mapa 1.


Como seria de esperar, há uma estreita articulação entre as características e a ocupação dessas diversas áreas e o valor do solo urbano. O Mapa 2 ilustra essa diferenciação, com os valores praticados pela administração municipal de Salvador para efeitos de cobrança do IPTU, tendo como referência os logradouros. Na classe zero, o valor do solo é superior a R$ 100,00 por metro quadrado; na classe um, ele varia de R$ 75,00 a R$ 100,00; na dois, de R$ 50,00 a R$ 75,00; na três, de R$ 30,00 a R$ 50,00 e, na quatro, ele fica abaixo de R$ 30,00.6 6 Dados publicados pela Secretaria da Fazenda do Município de Salvador. Esses números não refletem os valores reais e atuais praticados pelo mercado imobiliário, mas são indicativos das diferenças de valor do solo entre os vários espaços. Fica evidente uma correspondência com a tipologia espacial, com as áreas superiores e médio-superiores ocupando os espaços onde o solo urbano tem maior valor e as áreas populares ocupando os trechos menos valorizados do território municipal.


As Transformações dos Últimos Anos

Como foi visto, da década de 1960 à década de 1980, Salvador e sua região metropolitana experimentaram um vigoroso crescimento econômico, alavancado pela industrialização. Nos anos subseqüentes, porém, isto não mais ocorreu. Segundo Almeida (2006), entre 1970 e 1985, Salvador esteve entre as metrópoles mais dinâmicas do país, ao lado de Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Curitiba, Fortaleza e Belém. Mas, entre 1986 e 1996, esse crescimento se desacelerou, e Salvador perdeu terreno em relação a Curitiba, Belo Horizonte, Brasília e Fortaleza. Segundo estimativas do IPEA, o crescimento do PIB na capital baiana teria alcançado em média 9,1% ao ano entre 1970 e 1975, 11,3% entre 1975-1980, 3,3% entre 1980-85 e 5,7% entre 1985-1990, caindo para apenas 1% entre 1990-1996.

Na medida em que a nova indústria baiana dependia essencialmente dos capitais e mercados do centro-sul e do exterior, o esgotamento do padrão desenvolvimentista, a abertura, a reestruturação da economia brasileira e a nova orientação neoliberal do Estado (com o abandono das políticas industrial e de desenvolvimento regional) tiveram um impacto especialmente adverso sobre a estrutura produtiva local. Ainda conforme Almeida, essas mudanças ampliaram a penetração, no mercado nacional, de produtos e capitais estrangeiros, com as empresas, no Brasil, sendo obrigadas a competir em condições bastante desfavoráveis, prejudicaram as exportações (como no caso da indústria petroquímica) e levaram à quebra, desnacionalização ou privatização de numerosas unidades produtivas, afetando a dinâmica econômica e, especialmente, o nível e as condições de emprego.

Como em outras áreas do país, as transformações assinaladas implicaram uma rápida introdução de novas tecnologias e novos formatos organizacionais, que alteraram tanto o consumo como a localização da mão-de-obra. Empresas e outras organizações modificaram bastante suas estruturas e processos, passando a operar on line ou com base no just in time, a enxugar seus quadros, a organizar-se em redes de clientes e fornecedores, a eliminar departamentos de retaguarda (contabilidade ou armazenagem, por exemplo) e a terceirizar várias atividades, destruindo ou precarizando um grande volume de postos de trabalho. Na RMS, é emblemático o caso do complexo petroquímico, onde a mão-de-obra empregada foi reduzida para cerca de um terço do máximo alcançado nos anos 1980, com uma larga utilização do trabalho terceirizado e temporário. A terceirização avançou não apenas na petroquímica como na indústria metal-mecânica e em alguns importantes ramos da economia soteropolitana, como os serviços financeiros e de utilidade pública (Carvalho; Almeida; Azevedo, 2001).

Em uma metrópole marcada historicamente por problemas de incorporação da mão-de-obra, isso produziu uma verdadeira desestruturação do mercado de trabalho (Borges, 2003). A precariedade ocupacional se ampliou, os níveis de remuneração decresceram e _ explicitando os estreitos limites de incorporação produtiva da economia de Salvador e de sua região metropolitana (sob qualquer condição), muitas vezes encobertos pelo trabalho precário e mal remunerado _ o desemprego se elevou bastante, conferindo à capital baiana um triste campeonato no que se refere a essa questão.7 7 Informações coletadas pelo IBGE sobre a taxa média de desemprego aberto nas principais regiões metropolitanas do país evidenciam um agravamento geral desse problema a partir da década de 1990. Mas em nenhuma dessas áreas esse fenômeno foi tão acentuado quanto na RMS, onde essa taxa variou de 6,2% em 1991 até 15,7% em 2005. Com procedimentos mais elaborados, que levam em conta não apenas o desemprego aberto como o desemprego total (ou seja, a soma do desemprego aberto mais o desemprego por "bico" e por desalento), a Pesquisa de Emprego e Desemprego, efetuada pela UFBA/SEI/SEPLANTEC/SEADE/DIEESE, registra números ainda mais preocupantes. Entre 1987-1988, o desemprego total era de 15,7% em Salvador e 15,8% na Região Metropolitana. Entre 1997 e 1998, as taxas se elevaram para 21,8% e 23,2%, e, entre 2003 e 2004, chegaram, respectivamente, a 26,0% e 26,8%. Entre os que permaneceram ocupados, o percentual de trabalhadores na denominada "informalidade" passou de 37,7%, em 1987-1988, para 44,9% em 2003-2004, em Salvador e de 41,9% para 45,2% na Região Metropolitana (Almeida; Damasceno, 2005).

Assim, as mudanças associadas ao ajuste e à reestruturação produtiva para a abertura da economia brasileira à dinâmica da globalização tiveram um claro impacto sobre a estrutura social da RMS. Seu proletariado industrial, por exemplo, reduziu-se drasticamente com as privatizações e, sobretudo, a terceirização, interrompendo o processo de formação de uma classe operária moderna, reivindicativa e politizada, que vinha se conformando a partir do pólo petroquímico de Camaçari. Com a transformação das relações e condições de trabalho, cresceu o segmento dos pequenos empregadores e o proletariado terciário. Os setores médios parecem ter mantido a sua participação na estrutura social, mas com mudanças na sua composição (a exemplo da redução relativa dos assalariados, do crescimento dos ocupados por conta própria e do maior peso dos que trabalham em saúde e educação) e, principalmente, um grande empobrecimento.

Com a transferência de determinadas empresas e atividades de Salvador para São Paulo (metrópole global do Brasil), o grupo de grandes empresários e dirigentes também parece ter sido afetado. Contudo, os fenômenos em apreço levaram, sobretudo, ao crescimento do sub-proletariado, ampliando o contingente de trabalhadores de sobrevivência e de desempregados e acentuando um dos traços mais característicos da RMS, que persiste como um mar de pobreza com algumas ilhas de afluência.

Conforme dados do Censo de 2000, 26,6% da população ocupada na capital baiana percebiam um rendimento médio mensal de até um salário mínimo, e 54,8% de até dois salários mínimos, em todos os trabalhos; 67% ganhavam até três salários e apenas 33% acima desse valor. Para o conjunto de Região Metropolitana, esses números eram, respectivamente, de 28%, 56,7%, 68,9% e 31,1%.

Como seria de esperar, essas remunerações refletem os níveis de pobreza e de indigência encontrados em Salvador e na RMS. Considerando-se a freqüência de moradores com uma renda mensal familiar, per capita, de até meio ou de até um quarto do salário mínimo (indicadores usuais desses fenômenos), constata-se que o percentual de moradores pobres chegava, em 1991, a 35,28% em Salvador e a 53,2% para a média da Região Metropolitana. Em 2000, houve uma queda desses números para 30,7% e 46%, respectivamente. A proporção de indigentes, que alcançava 14,98% em Salvador e 27,5% na RMS, em 1991, também se restringiu, no ano 2000, passando para 13,45% em Salvador e para 23,1% no conjunto da região. Ainda que esse decréscimo não possa ser considerado como desprezível, os números em apreço permanecem bastante elevados, e essas pessoas dispunham de menos recursos em 2000 que em 1991. Tanto a intensidade da pobreza quanto a da indigência aumentaram no período (passando, respectivamente, de 42,14% para 54,28% em Salvador e de 43,4% para 55,7% na média da RMS), tornando-se mais "duras" e ampliando a precariedade de subsistência e as dificuldades de melhoria para aqueles nessa situação. Além disso, a concentração da renda também se acentuou. Se em 1991 os 20% mais pobres da população detinham 2,7% da renda, em 2000 eles se apropriavam de apenas 1,7%, enquanto o quinhão dos 10% mais ricos passou de 45,7% para 48,3% da renda total.8 8 Como assinalam Carvalho e Codes (2006), o indicador da intensidade da pobreza pode ser definido em termos da renda média dos pobres. Quanto maior for a distância entre essa renda média e o valor da linha de pobreza, maior a intensidade da pobreza. Aliado a uma estimativa da proporção de pobres na sociedade, esse indicador pode informar a magnitude de recursos que deveriam ser transferidos aos pobres, para que eles estivessem, ao menos, uma renda igual à da linha de pobreza. A intensidade da indigência é um indicador análogo, de interpretação semelhante, mas que desenvolve uma análise referenciada na linha de indigência. Os números sobre a intensidade da pobreza e da indigência em Salvador e na sua RMS têm por fonte o Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil, conforme o Metrodata (2004).

Com o fim das políticas nacionais de desenvolvimento industrial e regional e a nova ênfase na integração dos "espaços competitivos" do país à dinâmica global, em busca de novas alternativas econômicas para a Bahia e para a Região Metropolitana, tanto o governo estadual quanto os municípios têm apostado na concessão de incentivos fiscais para atração de novas indústrias e no incremento do turismo, com algum sucesso. Fugindo das "deseconomias de aglomeração", presentes no centro-sul (como os fortes sindicatos dos seus pólos industriais) e atraídas pelos incentivos e pelos baixos salários que prevalecem no Nordeste, algumas empresas têm se deslocado para o interior da Bahia e para a Região Metropolitana de Salvador.

Destaca-se, entre elas, o complexo automobilístico da Ford Nordeste, implantado em 2001, que compreende, além da montadora, um conjunto de trinta e três empresas sistemistas e um terminal portuário exclusivo, construído na Baía de Aratu, para o escoamento da produção no país e para consumidores das Américas do Sul e do Norte, além da importação de veículos. Com uma capacidade de produção de 250 mil veículos por ano, prevista para ser alcançada em 2005, foi estimado que esse Complexo geraria 7,5mil empregos diretos e estimularia a criação de mais 35 mil empregos indiretos. Operando já em plena capacidade, o Complexo Industrial vem contribuindo para o incremento da riqueza e para a ampliação do peso da indústria no PIB da RMS (onde a mesma está concentrada) e do estado da Bahia, inclusive através da demanda de serviços. O número de trabalhadores absorvidos diretamente pela empresa superou ligeiramente as estimativas, chegando a 8,5 mil em 2006, mas os salários são bem inferiores aos que prevalecem em outros pólos automobilísticos do Brasil9 9 Conforme informações obtidas, junto ao Sindicato, 55,6% dos trabalhadores do complexo automobilístico percebem até dois salários mínimos. e, como seria de esperar, os impactos desse empreendimento pouco contribuíram para alterar a estrutura ocupacional e o panorama social da RMS, persistindo as características que a colocaram como a terceira maior aglomeração de pobreza metropolitana do país.

Quanto ao espaço urbano, pode-se dizer que persistem as grandes tendências anteriores, associadas a transformações similares às que têm sido constatadas em outras metrópoles brasileiras e latino-americanas. Salvador chegou ao século XXI com os territórios do pólo e do município vizinho de Lauro de Freitas (com o qual se conurba) já totalmente urbanizados e a metrópole se espraiando em direção ao Norte, com a ocupação dos últimos espaços da velha capital e seu transbordamento para as bordas e para o periurbano, mantendo basicamente os mesmos padrões de apropriação do território e de segregação, como mostra o Mapa 3.


Enquanto persiste o esvaziamento e a deterioração do velho centro, o novo coração econômico da metrópole, que começou a se desenvolver com a implantação do Shopping Iguatemi, do primeiro hipermercado e de alguns dos primeiros prédios de escritórios, e se consolidou nos anos 90, continua a se expandir em torno do eixo da Avenida Tancredo Neves e da Avenida Paralela. Mas agora, isso se dá com a multiplicação de maiores, mais modernos e luxuosos shoppings, centros de negócios e serviços, centros médicos, "edifícios inteligentes" e outros artefatos da globalização, reforçando a valorização imobiliária do eixo urbano do litoral norte.

Confirmando a tendência a um maior isolamento e auto-segregação das elites, ressaltada por autores como Préteicelle (2003, 2006), as áreas superiores de Salvador permaneceram como tal, com o acréscimo de mais uma delas (o Horto Florestal) e uma crescente elitização e verticalização. Se, no conjunto dessas áreas, as unidades com renda domiciliar superior a vinte salários mínimos representavam 41,3% em 1991, em 2000 esse número subiu para 60,9%. Na Vitória, Graça e Barra, áreas tradicionais da população de alta renda em Salvador, velhas mansões estão sendo substituídas por elevados e luxuosos condomínios verticais fechados, que oferecem segurança, áreas de lazer e várias comodidades aos seus moradores, permitindo-lhes permanecer um maior tempo em áreas exclusivas e protegidas da violência e de outros problemas urbanos. Na nova área de tipo superior da cidade, esse padrão de moradia também é dominante.10 10 No Brasil e em outros países, onde a seguridade se converteu de atributo público indivisível para uma proteção individual ou de grupo ligado ao poder aquisitivo de cada um, a violência e o medo da violência têm levado à fortificação física do espaço, transformando-se em um dos princípios organizadores das cidades contemporâneas. Como assinala Amendola (2000), com a decadência dos critérios reguladores da distribuição territorial da violência e a afirmação, em seu lugar, do princípio da ubiqüidade e casualidade absoluta e a mescla da violência real com a reconstruída pela mídia e pelo imaginário, o cidadão aterrorizado busca viver em uma bolha protetora no interior da cidade, que deseja igualmente protegida, permanecendo o mais possível no interior de áreas fortificadas e blindando tanto a casa como a própria vida.

Nos demais espaços da cidade, porém, a evolução vem sendo mais complexa.11 11 Analisando a estrutura urbana da metrópole parisiense em um estudo publicado mais recentemente, Préteicelle (2006) constatou que as categorias superiores são as mais segregadas, e essa segregação vem se acentuando; nas demais áreas, há uma evolução social diversificada e uma mistura social mais freqüente, e os espaços populares vêm tendo o tecido social ameaçado pela precarização e pelo desemprego. Resguardadas as enormes diferenças (como, por exemplo, a ausência de espaços tipicamente operários), as transformações constatadas em Salvador apresentam uma certa semelhança com essa evolução. Concentradas na orla de Salvador, na Avenida Paralela e em Lauro de Freitas, onde os condomínios horizontais fechados se multiplicam, as áreas antes classificadas como média-superior preservaram essa condição. Mas a elas se juntaram algumas outras, localizadas em antigos bairros próximos ao centro tradicional (Nazaré, Politeama e Brotas), que passaram de média para média-superior. Transformações mais diversificadas atingiram as áreas de menor nível social.

Alguns espaços de Cajazeiras (onde passam as principais vias de acesso ao Miolo, se concentram os antigos conjuntos habitacionais e houve certa expansão do comércio e dos serviços), da Liberdade e adjacências e alguns trechos da Cidade Baixa, classificados, em 1991, como área média-inferior ou como popular, parecem ter atraído moradores de um nível social um pouco mais elevado, sendo categorizados como de tipo médio em 2000. Outras áreas populares, porém, a exemplo de Plataforma, Mata Escura, Pau da Lima ou certos segmentos de Cajazeiras sofreram uma expressiva deterioração na década de noventa, com a ampliação do número de prestadores de serviços não especializados, trabalhadores domésticos, ambulantes, biscateiros e desempregados entre os seus moradores. Essa evolução negativa também foi experimentada pelos enclaves de menor renda da Orla. O Nordeste de Amaralina passou do tipo médio popular para popular-inferior, a Boca do Rio de médio popular para popular e o Bairro da Paz se manteve estável como popular inferior em 1991 e 2000, como se observa pelo Mapa 4, que se segue.


Analisando a evolução da participação das categorias ocupacionais inferiores e superiores nas diversas áreas de ponderação, e cruzando esses dados com a evolução da densidade demográfica também por área, podem ser identificadas aquelas que mais têm recebido os contingentes populacionais que estão nos extremos da hierarquia social. Como áreas de expansão dos grupos de menor renda destacam-se o Alto de Santa Terezinha e a Boa Vista do Lobato, no Subúrbio Ferroviário, as áreas de Mata Escura e Cajazeiras, no Miolo, assim como as de Valéria e Areia Branca, nos limites de Salvador com os municípios vizinhos de Simões Filho e Lauro de Freitas, evidenciando como a tendência à concentração dos pobres na periferia mais distante e desequipada está se acentuando.

No outro extremo estão o Horto Florestal e Patamares-Pituaçu, como as áreas de expansão das categorias superiores, com destaque para a primeira, certamente a área mais elitizada da metrópole. Na Pituba, ainda que não tenha havido um aumento significativo da densidade demográfica, também se verifica um aumento claro da participação das categorias superiores, indicando uma maior elitização.

Em uma leitura um tanto esquemática, pode-se dizer que Salvador é uma metrópole que comporta uma cidade "tradicional", uma cidade "moderna" e uma cidade "precária". Na cidade tradicional, o tecido urbano é compacto, relativamente homogêneo, e não há um crescimento expressivo da população, que é composta predominantemente pelos setores médios. É a cidade que se constituiu a partir do centro antigo e de seu entorno. Já na cidade moderna, o tecido urbano está se modificando, com a produção de novas habitações e centros de consumo e serviços, construídos dentro de padrões arquitetônicos e urbanísticos elevados, com avançado processo de verticalização nas áreas mais densas e (ou) próximas ao centro. Ocupando, a partir do centro, as áreas próximas à orla atlântica e crescendo em direção ao litoral norte, ela é habitada basicamente pelas camadas mais altas da pirâmide social.

Finalmente, na cidade precária, habitada predominantemente pelos setores populares, o tecido urbano se caracteriza pela dispersão e pela contínua expansão, com o acréscimo de habitações precárias, em grande parte autoconstruídas, sem obedecer a padrões arquitetônicos e urbanísticos, com ocupação horizontal, excetuando-se as áreas próximas às vias de maior circulação e as áreas mais consolidadas em termos de ocupação do solo, onde estão em curso processos de verticalização, com grande adensamento, de padrão um pouco melhor.

Como foi visto, a cidade moderna e a cidade precária não são totalmente homogêneas em termos de tecido urbano, equipamentos e habitações. Na cidade moderna, existem ilhas de precariedade, e a cidade precária contém ilhas de relativa prosperidade. Ambas se expandem para além do município de Salvador. A primeira, seguindo o vetor da orla Atlântica, na direção dos municípios de Lauro de Freitas e Camaçari, já se estende, inclusive, além dos limites institucionais da RMS, em um padrão de urbanização que Reis (2006) denominou "urbanização dispersa"; a segunda se expande em direção a Simões Filho e ocupa a franja interna de Lauro de Freitas, município totalmente integrado a Salvador, tanto no lado "moderno" quanto no "precário".

Constatada em outras metrópoles do Brasil e da América Latina, essa nova tendência à suburbanização e à ocupação das bordas metropolitanas assim como o decréscimo demográfico do centro tradicional podem ser vistos através do Mapa 5. Vale ressaltar que as divisões e os fenômenos em apreço também passaram a ser estimuladas por alguns novos processos, como o crescimento do que atualmente está sendo denominado como turismo-imobiliário nos espaços metropolitanos da orla atlântica, com a contínua implantação de equipamentos e serviços de consumo, cultura e lazer, elementos que agora se somam ao surgimento de um segmento imobiliário de segunda residência para europeus.


Com exceção do turismo-imobiliário, não se pode dizer que as mudanças assinaladas guardem uma relação mais direta com a dinâmica da globalização. Como o caso de Salvador deixa patente, no processo de urbanização e desenvolvimento brasileiro, as desigualdades espaciais têm uma longa trajetória e um caráter extremado, com uma contribuição muito significativa da intervenção estatal. Há mais de duas décadas, Kowarick (1979) já chamava a atenção para o que denominou como "espoliação urbana"; ou seja, para os mecanismos pelos quais o poder público aumentava a concentração de riqueza e de renda dos grupos dominantes através da distribuição desigual de investimentos geradores do bem estar social urbano, tolerando, simultaneamente, as práticas de especulação imobiliária através das quais determinados segmentos se apropriavam, de uma maneira improdutiva, de parte expressiva do excedente econômico, e viabilizando um rebaixamento do custo da reprodução da força de trabalho, apoiado em salários que podiam ser constantemente deprimidos.

A constituição de poderosos circuitos de acumulação fundados na escassez relativa do solo urbano também foi destacada por Lessa (s/d), ressaltando como a internacionalização da economia, no processo de industrialização e desenvolvimento brasileiro, foi ancorada por uma "sagrada aliança", que garantiu uma complementaridade de interesses e uma solidariedade entre os capitais internacionalizados e os capitais nacionais, dominantes em órbitas não industriais. Como fiador dessa aliança, o Estado velou para que houvesse uma divisão de órbitas de atuação e uma distribuição horizontal do excedente, de forma a assegurar uma equalização da rentabilidade dos investimentos realizados nas diferentes órbitas, reservando o setor imobiliário para o capital nacional, adotando uma postura permissiva frente aos movimentos especulativos e tomando outras iniciativas que submeteram a organização do espaço urbano aos interesses e demandas do capital imobiliário. E, se os tempos, os atores e os mecanismos de espoliação urbana se transformaram, o poder do capital imobiliário permanece e até se fortalece nos dias atuais.

Por outro lado, em metrópoles regionais de periferia, como Salvador, a dinâmica da globalização tem impactos de caráter mais restrito e indireto, associados basicamente aos efeitos da reestruturação produtiva e da abertura econômica sobre o desenvolvimento e sobre as desigualdades regionais, aos novos padrões de intervenção estatal, às novas formas de produção e distribuição da riqueza e às transformações do mercado de trabalho.

Como foi visto, essas transformações foram espacialmente deletérias no caso de Salvador, com uma enorme precarização das ocupações, um desemprego de massa persistente e crônico e um empobrecimento de amplos contingentes populacionais, que atingiu notadamente, como seria de esperar, os bairros populares. Conforme os dados do Censo de 2000,12 12 Em decorrência de problemas de comparabilidade entre os Censos de 1991 e 2000, não foi possível analisar a evolução de renda nesse período. em 33,5% dos domicílios das áreas de tipo popular em Salvador, seus moradores tinham uma renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo, o que os colocava em uma situação de pobreza, e 14,3% de até meio salário mínimo, o que correspondia a uma situação de indigência. Em 5,4% do total de domicílios, os moradores não possuíam rendimento algum. Nas áreas do tipo popular inferior, esse números chegavam a 44,3%, 19,9% e 6,4%, respectivamente.

Em bairros como Plataforma, Mata Escura, Pau da Lima ou Nordeste de Amaralina, que, entre 1991 e 2000, passaram para o tipo popular inferior, a proporção de domicílios com moradores pobres era de 45,1%, 39%, 40% e 42%, e a de indigentes de 23,9%, 17,8%, 17,3% e 18,4%. Ademais, entre as pessoas de referência do domicílio, 47,3%, 37,29%, 35,1% e 28,2% não exerciam qualquer trabalho remunerado, e o número de jovens que não trabalhavam nem estudavam era particularmente elevado.

Essa concentração da pobreza em áreas homogêneas, afastadas e desassistidas, também contribui para a sua reprodução. Como diversos estudos têm assinalado (Bourdieu, 1999; Kaztman, 2001; Wacquant, 2001; Marques; Torres, 2006; Ribeiro, 2005), o local de moradia afeta as condições de vida e a rede de relações sociais de cada pessoa, a qualidade dos serviços públicos aos quais tem acesso, a sua probabilidade de conseguir trabalho e o tipo da sua ocupação. Áreas com alta concentração de pobreza apresentam, comumente, uma maior freqüência de atraso escolar, abandono do sistema educacional e gravidez precoce. Escolas e postos de saúde aí localizados funcionam mais precariamente, inclusive porque, com a distância e a carência de segurança nessas áreas, profissionais como médicos e professores vêm tendendo a evitá-las. Redes sociais homogêneas dificultam o acesso ao trabalho e reduzem as possibilidades de mobilidade social, assim como o estigma que atinge certos bairros.

Outro aspecto que não pode ser menosprezado é a questão do transporte. Além do desgaste a que os moradores das periferias são submetidos pela distância e pela precariedade do sistema de transporte público, seu custo tem se mostrado crescentemente incompatível com a renda de uma grande parcela da população, restringindo a sua mobilidade a estreitos limites ou obrigando-a a percorrer grandes distâncias a pé. Estudo realizado pelo IPEA constatou que 37 milhões de brasileiros não utilizavam o transporte público, em 2004, por falta de dinheiro para pagar a passagem. Na região metropolitana de Salvador, esse problema afetava 921.140 pessoas, correspondendo a 35% da população.

Associadas a uma expansão territorializada do tráfico de drogas, o crescimento das desigualdades e essa superposição de carências têm contribuído para a degradação dos padrões de sociabilidade e para o aumento da conflitividade e da violência nessas áreas, transformando-as em "territórios penalizadores e penalizados, situados no mais baixo nível da estrutura urbana e portadores de um estigma residencial poderoso" (Wacquant, 2001, p. 120).

Os jovens são particularmente atingidos por essa situação. Como o sistema educacional não consegue retê-los e o mercado de trabalho não os incorpora, muitos deles abandonam a escola e permanecem sem ocupação, desfiliados dos papéis que lhes são socialmente atribuídos, os de estudantes ou de trabalhadores. No caso de Salvador, por exemplo, a proporção de jovens que não trabalham nem estudam chega a 34% nas áreas de tipo popular e a 37,9% naquelas de tipo popular inferior. Essa inatividade, muitas vezes, é precursora da delinqüência, que ainda constitui o único meio para jovens sem qualquer perspectiva ascenderem a determinados padrões de consumo e a uma existência socialmente reconhecida. Não por acaso a violência tem crescido exponencialmente nesse tipo de áreas, com os jovens figurando como seus agentes e principais vítimas, explicando porque, em Salvador e em outras metrópoles brasileiras, as taxas de mortalidade por causas externas entre os jovens são similares às de países em guerra.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sumarizando as análises apresentadas, pode-se dizer que a dinâmica recente de Salvador é bem ilustrativa de como as transformações decorrentes da articulação da economia brasileira ao processo de globalização vêm afetando as metrópoles da periferia. Como foi visto, a abertura, o ajuste, o abandono das políticas industrial e de desenvolvimento regional e as novas orientações do Estado vêm tendo impactos expressivos sobre a divisão inter-regional do trabalho, a organização de produção e as relações de trabalho, com efeitos bastante adversos sobre a dinâmica econômica e as condições sociais dessas grandes cidades. Agravando dificuldades históricas de absorção da força de trabalho, no caso de Salvador, isso levou à própria desestruturação do mercado de trabalho, com uma flexibilização da relação salarial e uma queda da remuneração dos trabalhadores que atingiram e empobreceram até mesmo segmentos das classes médias, articulado a uma significativa ampliação do excedente de mão-de-obra e um enorme crescimento do desemprego.

No que tange à estrutura urbana, constata-se a persistência do padrão periférico de apropriação e utilização do território, que se conformou a partir de 1960, paralelamente ao aprofundamento de determinadas tendências anteriores e a algumas novas transformações. O esvaziamento demográfico e econômico do centro tradicional tem se acentuado, com o declínio ou a própria deterioração de diversas áreas, em que pese a existência de iniciativas ou propostas para a revitalização de algumas delas, a exemplo do Pelourinho ou do antigo Comércio. Atendendo a demandas de setores econômicos de ponta e das camadas de alta renda, a cidade "moderna" vem se expandindo e diversificando na orla e no novo coração econômico da metrópole, com a multiplicação de equipamentos de grande impacto na dinâmica e na imagem metropolitana, a exemplo dos já mencionados shoppings centers, edifícios corporativos e grandes hotéis. A proliferação de condomínios fechados, o incremento do turismo e os empreendimentos imobiliários a ele associados (incluindo, agora, a perspectiva da oferta de uma segunda residência nos trópicos, para europeus) têm contribuído para o espraiamento desses equipamentos para além dos próprios limites institu-cionais da região metropolitana.

Em suas grandes linhas, o padrão de segregação se mantém, com a acentuação das diferenças e das desigualdades entre o centro, a orla, o miolo e o subúrbio, entre a cidade "tradicional", a cidade "moderna" e a cidade "precária". A dinâmica dos espaços menores, porém, é bem mais complexa e heterogênea. Com a proliferação de condomínios verticais, ou horizontais fechados e protegidos, nas áreas superiores e médio-superiores, a auto-segregação das camadas altas e médias vem se acentuando. As áreas ocupadas principalmente pelas camadas médias tendem a se manter como tal, enquanto os espaços de caráter popular têm uma evolução diferenciada. Mais centrais e melhor equipados, alguns deles vêm atraindo outro tipo de moradores e diversificando a sua ocupação. Outros vêm sendo particularmente afetados pelos problemas ocupacionais, o desemprego, a expansão territorializada do tráfico de drogas e a superposição de carências, com uma expressiva deterioração das suas condições e o crescimento da anomia, da conflitividade e da violência. E, como os pobres vêm sendo empurrados para áreas cada vez mais distantes e desequipadas, a "urbanização dispersa" vem se acentuando e estendendo a cidade precária para os limites de Salvador com municípios vizinhos.

Assim, embora não conduzam a uma polarização, as transformações do presente vêm atualizando velhos processos e exacerbando as desigualdades sociais e espaciais, bem como a perversidade da segregação, ainda que isso se deva menos a necessidades e determinantes intrínsecos da globalização que aos interesses e às opções das elites nacionais e regionais, que vêm orientando a articulação do Brasil ao capitalismo mundializado e o desenvolvimento das regiões metropolitanas.

REFERÊNCIAS

(Recebido para publicação em junho de 2007)

(Aceito em agosto de 2007)

Inaiá Maria Moreira de Carvalho - Socióloga, Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos - CRH e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia e do Mestrado em Políticas Públicas e Cidadania da UCSal. Pesquisadora do CNPq. Tem participado de várias sociedades científicas, integrando comissões e a diretoria da ANPOCS e da SBPC. É autora de diversos artigos, publicados em periódicos nacionais e internacionais, livros e capítulos de livro, sendo o mais recente deles Como Anda Salvador". Salvador: EDUFBA, 2006. Seus trabalhos e interesses de pesquisa envolvem questões como pobreza e mercado de trabalho, trabalho infantil, desenvolvimento regional e desenvolvimento urbano.

Gilberto Corso Pereira - Arquiteto, Doutor em Geografia pela UNESP, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e professor do Mestrado em Geografia da UFBA. É autor de várias publicações, sendo a mais recente o livro "Como Anda Salvador", EDUFBA, 2006, além de artigos em periódicos nacionais e estrangeiros. Suas pesquisas têm versado sobre temas como segregação socioespacial, informação geográfica, sistemas de informação geográfica para planejamento urbano, visualização de informações espaciais.

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  • 1
    A extrema precariedade desses loteamentos _ em boa parte hoje urbanizados _ foi ressaltada por antigos moradores de Itinga em entrevistas realizadas por Dias (2005), mencionando como tinham de sair em grupos para transitar por verdadeiras picadas, onde comumente encontravam cobras, macacos e jacarés.
  • 2
    As Áreas de Expansão Domiciliar (AEDs), ou áreas de ponderação, são áreas "que conjugam critérios tais como tamanho, contigüidade (no sentido de serem construídas por setores limítrofes com sentido geográfico) e homogeneidade em relação a um conjunto de características populacionais e de infra-estrutura conhecida" (IBGE, 2002). Elas representam a menor unidade territorial que o IBGE disponibilizou para os dados da amostra do Censo demográfico de 2000. O processo de construção de áreas de ponderação consistiu em agregar setores censitários de 1991, tomando-se como referência de recorte espacial as áreas de 2000, de modo que fosse possível uma comparação entre a tipologia socioespacial de 1991 e 2000.
  • 3
    Essa classificação foi realizada através de técnicas como a
    Análise Fatorial por Correspondência Binária e o
    Sistema de Classificação Hierárquica Ascendente (CHA). A primeira cria fatores pela ordem de explicação do problema, permitindo a diminuição da dimensionalidade do universo com que se está trabalhando e o conhecimento da importância de cada variável na composição da variação dos principais fatores. A segunda é um instrumento para definir agrupamentos a partir das informações dos fatores extraídos na análise fatorial, levando-se em conta a proximidade dos perfis das áreas e sua distância em relação ao perfil médio. Para se chegar ao resultado final, com a identificação dos sete tipos de área e resultados mais refinados, foi necessário proceder-se a uma seqüência de análises fatoriais e operações de classificação, uma vez que, fora dos espaços onde predominam as camadas superiores ou as camadas popular e agrícola, nas demais áreas o perfil social não se expressa com muita nitidez, em virtude de um alto grau de mistura social existente.
    Em trabalhos publicados anteriormente sobre a segregação socioespacial em Salvador, algumas dessas áreas tinham outra denominação (
    popular-sub-proletária, por exemplo, ao invés de
    popular inferior). A designação atual (apresentada neste texto) teve o objetivo de torná-la homogênea entre as várias metrópoles que estão sendo pesquisadas pela rede do Observatório.
  • 4
    É digno de nota que, apesar da presença do pólo industrial em Camaçari, não se encontra uma área tipicamente operária em Salvador, nesse município ou nas suas proximidades, o que se deve a várias razões. Quando o Pólo Petroquímico foi instalado, Camaçari era um pequeno município de base agrária; as novas indústrias absorveram uma mão-de-obra relativamente qualificada, com remunerações superiores à média do mercado local e transporte especial para as fábricas, recrutada em Salvador ou fora da região; e, em uma conjuntura ainda marcada pelo autoritarismo, preocupações com a "segurança nacional" e com o "risco de constituição de um novo ABC" também parecem ter levado o governo federal a desestimular uma concentração operária. Mais recentemente, porém, com a instalação de uma grande unidade da Ford nesse município, com trabalhadores que recebem salários bem mais reduzidos que seus antecessores da petroquímica e um estímulo à sua fixação residencial nas proximidades das fábricas, isso começa a se modificar.
  • 5
    O Bairro da Paz se conformou a partir da denominada "Invasão das Malvinas", efetuada na década de 1980, quando esse tipo de ocupação da terra não mais era tolerada na "área nobre" de Salvador. Após uma primeira expulsão, seus moradores voltaram e lutaram pela permanência na área, o que terminaram conseguindo, principalmente pela conjuntura política da época, marcada pela redemocratização do país. Hoje ele constitui o único enclave de população de baixa renda à beira da Avenida Paralela, com a sua área original "congelada" cercada e vigiada pelo capital imobiliário, que vem implantando o condomínio fechado Alphaville e outros grandes empreendimentos nessa região.
  • 6
    Dados publicados pela Secretaria da Fazenda do Município de Salvador. Esses números não refletem os valores reais e atuais praticados pelo mercado imobiliário, mas são indicativos das diferenças de valor do solo entre os vários espaços.
  • 7
    Informações coletadas pelo IBGE sobre a taxa média de desemprego aberto nas principais regiões metropolitanas do país evidenciam um agravamento geral desse problema a partir da década de 1990. Mas em nenhuma dessas áreas esse fenômeno foi tão acentuado quanto na RMS, onde essa taxa variou de 6,2% em 1991 até 15,7% em 2005. Com procedimentos mais elaborados, que levam em conta não apenas o desemprego aberto como o desemprego total (ou seja, a soma do desemprego aberto mais o desemprego por "bico" e por desalento), a Pesquisa de Emprego e Desemprego, efetuada pela UFBA/SEI/SEPLANTEC/SEADE/DIEESE, registra números ainda mais preocupantes. Entre 1987-1988, o desemprego total era de 15,7% em Salvador e 15,8% na Região Metropolitana. Entre 1997 e 1998, as taxas se elevaram para 21,8% e 23,2%, e, entre 2003 e 2004, chegaram, respectivamente, a 26,0% e 26,8%. Entre os que permaneceram ocupados, o percentual de trabalhadores na denominada "informalidade" passou de 37,7%, em 1987-1988, para 44,9% em 2003-2004, em Salvador e de 41,9% para 45,2% na Região Metropolitana (Almeida; Damasceno, 2005).
  • 8
    Como assinalam Carvalho e Codes (2006), o indicador da intensidade da pobreza pode ser definido em termos da renda média dos pobres. Quanto maior for a distância entre essa renda média e o valor da linha de pobreza, maior a intensidade da pobreza. Aliado a uma estimativa da proporção de pobres na sociedade, esse indicador pode informar a magnitude de recursos que deveriam ser transferidos aos pobres, para que eles estivessem, ao menos, uma renda igual à da linha de pobreza. A intensidade da indigência é um indicador análogo, de interpretação semelhante, mas que desenvolve uma análise referenciada na linha de indigência.
    Os números sobre a intensidade da pobreza e da indigência em Salvador e na sua RMS têm por fonte o
    Atlas de Desenvolvimento Humano do Brasil, conforme o Metrodata (2004).
  • 9
    Conforme informações obtidas, junto ao Sindicato, 55,6% dos trabalhadores do complexo automobilístico percebem até dois salários mínimos.
  • 10
    No Brasil e em outros países, onde a seguridade se converteu de atributo público indivisível para uma proteção individual ou de grupo ligado ao poder aquisitivo de cada um, a violência e o medo da violência têm levado à fortificação física do espaço, transformando-se em um dos princípios organizadores das cidades contemporâneas. Como assinala Amendola (2000), com a decadência dos critérios reguladores da distribuição territorial da violência e a afirmação, em seu lugar, do princípio da ubiqüidade e casualidade absoluta e a mescla da violência real com a reconstruída pela mídia e pelo imaginário, o cidadão aterrorizado busca viver em uma bolha protetora no interior da cidade, que deseja igualmente protegida, permanecendo o mais possível no interior de áreas fortificadas e blindando tanto a casa como a própria vida.
  • 11
    Analisando a estrutura urbana da metrópole parisiense em um estudo publicado mais recentemente, Préteicelle (2006) constatou que as categorias superiores são as mais segregadas, e essa segregação vem se acentuando; nas demais áreas, há uma evolução social diversificada e uma mistura social mais freqüente, e os espaços populares vêm tendo o tecido social ameaçado pela precarização e pelo desemprego.
    Resguardadas as enormes diferenças (como, por exemplo, a ausência de espaços tipicamente operários), as transformações constatadas em Salvador apresentam uma certa semelhança com essa evolução.
  • 12
    Em decorrência de problemas de comparabilidade entre os Censos de 1991 e 2000, não foi possível analisar a evolução de renda nesse período.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 2007

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2007
    • Aceito
      Ago 2007
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