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O realismo de Nietzsche e a imaginação antirrealista dos intérpretes

Nietzsche´s Realism and the Anti-Realist Imagination of the Interpreters

Resumo:

O artigo apresenta uma leitura realista de Humano, demasiado humano I. A primeira seção justifica duas teses: (i) a coisa em si possui três significados: mundo, mundo metafísico e substância material; (ii) a ciência apresenta um conhecimento aproximado da essência do mundo. A segunda seção fundamenta a seguinte asserção: o método histórico não autoriza uma conclusão sobre a incognoscibilidade da coisa em si. A última esclarece o sentido de mundo como representação e explica como a ciência pode se aproximar da essência do real. A conclusão apresenta as causas que induzem os antirrealistas ao erro: as operações da imaginação.

Palavras-chave:
coisa em si; ontologia; realismo; antirrealismo; representação

Abstract:

The paper presents a realistic reading of Human, all too human I. The first section justifies two theses: (i) the thing itself has three meanings: world, metaphysical world and material substance; (ii) science presents an approximate knowledge of the essence of the world. The second section supports the following assertion: the historical method does not authorize a conclusion about the unknowability of the thing itself. The latter clarifies the meaning of the world as representation and explains how science can approach the essence of the real. The conclusion introduces the causes that mislead anti-realists: the operations of the imagination.

Keywords:
Thing in itself; Ontology; Realism; Anti-realism; Representation

Mundo, mundo metafísico e substância material: os significados de coisa em si

A coisa em si é incognoscível para nós, seres humanos, pois podemos conhecer apenas objetos que dependem da mente (representações ou fenômenos). Nietzsche aceitou essa afirmação? Alguns intérpretes afirmaram que sim. George Stack destacou o débito de Nietzsche com Albert Lange, um neokantiano que defendeu uma renovação naturalista do fenomenismo kantiano1. Maudemarie Clark corroborou essa leitura, mas apresentou sua famosa adversativa: o fenomenismo consta apenas nas obras do período intermediário2. Beatrice Han-Pile apontou as semelhanças entre a posição de Nietzsche sobre a coisa em si e o agnosticismo ontológico que Henry Allison atribuiu a Kant3.

Nietzsche defendeu uma posição agnóstica sobre o mundo metafísico: não há como provar sua existência, nem sua inexistência. Em seguida formulou a pergunta: se existisse poderíamos conhecê-lo? Resposta categórica: não, “[...] pois do mundo metafísico nada se poderia afirmar além do seu ser-outro, um para nós inacessível, incompreensível ser outro [...]” (MA I/HH I 9, KSA 2. 29-30NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. )1 1 NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano I. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. A partir de agora indicado como PCS. . Alguns aforismos depois, Nietzsche associou o mundo metafísico à coisa em si (MA I/HH I 16, KSA 2.36-7NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. , tradução de PCS). De acordo com a leitura kantiana, o mundo metafísico é o objeto considerado em si mesmo, isto é, apartado das condições humanas de conhecimento. Nietzsche teria apresentado uma posição análoga a que Henry Allison atribuiu a Kant: fundamentou sua conclusão sobre a incognoscibilidade sem se comprometer com um juízo sobre a existência da coisa em si, pois abordou o mundo metafísico como um conceito problemático, uma abstração no espaço lógico, um termo que pode ou não corresponder a uma entidade real2 2 Henry Allison (2006, pp.50-75) argumentou que o idealismo de Kant não pressupõe compromissos ontológicos. A distinção entre coisa em si e fenômeno não é uma divisão entre classes de entidades, isto é, uma tese ontológica sobre o que existe. Kant apresentou duas abordagens: o objeto pode ser abordado tal como aparece para o homem, ou seja, de acordo com as condições de possibilidade da sensibilidade; ou como é em si mesmo (apartado dessas condições). .

Nietzsche apresentou uma crítica estrutural e abrangente à filosofia schopenhaueriana. Atacou os princípios metafísicos do sistema e suas derivações: recusou a metafísica da vontade, a estética do gênio, a tese da liberdade inteligível, a ética da compaixão e a explicação metafísica do ascetismo. De acordo com a leitura kantiana/antirrealista, a crítica à metafísica da vontade tem natureza epistemológica: trata-se de uma negação da tese segundo a qual é possível um conhecimento da coisa em si. Schopenhauer afirmou que a identidade do sujeito do conhecimento com o corpo possibilita um conhecimento imediato da Vontade, ou seja, da coisa em si3 3 cf. Schopenhauer, 2013, pp. 116-124. . Nietzsche teria recusado essa tese e se comprometido com a posição agnóstica de Kant, o mestre do seu antigo mestre. Tal retorno seria mediado pela influência de Afrikan Spir, autor que recusou a possibilidade de um conhecimento da coisa em si, pois negou a legitimidade de uma derivação do condicionado a partir do incondicionado4 4 cf. D’Iorio, 2021, pp.11-60. .

Nietzsche realmente apresentou uma crítica estrutural e abrangente à filosofia de Schopenhauer, mas a interpretação kantiana da crítica à metafísica não é correta. Nietzsche recusou a designação positiva que Schopenhauer atribuiu à coisa em si, não toda e qualquer designação positiva; criticou o acesso via intuição, mas não excluiu o acesso por outros meios. Em suma: não defendeu o antirrealismo. Falta à leitura antirrealista/kantiana uma compreensão dos diferentes significados de coisa em si e uma consideração dos pressupostos e compromissos ontológicos de Nietzsche. A coisa em si tem diferentes sentidos: se significa X é incognoscível, se Y, não.

Coisa em si (i) é o Mundo enquanto tal: a totalidade dos objetos (processos) naturais. Esse mundo existe e tem uma inteligibilidade própria: a essência real do mundo (MA I/ HH I 29, KSA 2.49-50NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. , tradução de PCS). A essência não é criada ou projetada pela mente humana. Não é incognoscível, pois o mundo enquanto tal pode ser parcialmente conhecido pelas ciências naturais, em especial pela física: o conhecimento científico apresenta a essência inferida do mundo (MA I/ HH I 10, KSA 2.30NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. , tradução de PCS). Em síntese: (i) o mundo existe; (ii) tem uma inteligibilidade própria; (iii) a ciência pode conhecer parcialmente sua inteligibilidade.

Coisa em si (ii) é mundo metafísico: uma classe de objetos que supostamente existem em si e por si mesmos. São objetos transcendentes e suprassensíveis que não pertencem à classe dos entes naturais: Deus, Vontade etc. Na medida em que a tradição caracterizou o incondicionado como substância, o sentido II abrange a substância suprassensível. A existência desse mundo não pode ser provada nem refutada; sua essência não pode ser conhecida pelas ciências: se existisse seria inacessível para nós. Nietzsche é agnóstico a respeito dos pronunciamentos ontológicos da metafísica transcendente. Seu agnosticismo não abrange ontologias da natureza.

Coisa em si (iii) é a substância material individual: objeto ontologicamente estável, cuja identidade se mantém apesar das mudanças e dos movimentos do mundo natural. A substância material é um conceito que existe apenas na mente humana, ou seja, faz parte do mundo como representação. A percepção comum da espécie, a metafísica substancialista e a ciência materialista erram porque atribuem uma existência real a essa entidade mental, inventando um mundo povoado por substâncias. A crítica à coisa em si (iii) é, portanto, uma negação de um modelo de explicação do mundo natural: o atomismo materialista e as demais ontologias substancialistas.

A ciência apresenta um conhecimento aproximado da real essência do mundo e nos liberta em pequena medida do mundo como representação (MA I/ HH I 16 e 29, KSA 2.36-7 e 49-50NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. , tradução de PCS). Ainda não sabemos com precisão os significados de “libertação em pequena medida” e “conhecimento aproximado”, mas considerando as diferenças lógicas entre total, parcial e nenhum é possível concluir que o mundo para além da representação não é um ser-outro, um para-nós-inacessível.

Duas informações relevantes são apresentadas no aforismo 29: (i) “[...] quem nos desvendasse a essência do mundo nos causaria a mais incômoda desilusão [...]”; (ii) “[...] não é o mundo como coisa em si, mas o mundo como representação (como erro) que é tão rico em significado, tão profundo, tão maravilhoso, portador de felicidade e infelicidade [...]” (MA I/ HH I 29, KSA 2. 49-50NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. , tradução de PCS). Nietzsche identificou a essência real do mundo com o mundo como coisa em si. A conexão lógica entre as afirmações é clara: o desvendamento da essência real do mundo causa desilusão porque o mundo como coisa em si não é rico em significado. Ora, se a essência do mundo como coisa em si pode ser desvendada, a leitura antirrealista é problemática, pois não faz sentido sequer cogitar um possível desvendamento de um objeto inacessível. Está claro, portanto, que no aforismo 29 a coisa em si não é sinônimo de mundo metafísico (ii). Se houvesse sinonímia os antirrealistas estariam corretos. Mas não é o caso: a coisa em si (i) existe e pode ser parcialmente conhecida5 5 Para uma interpretação semelhante do aforismo 29: cf. Mattioli, 2020, pp. 231-259. .

Por que o desvendamento da essência do mundo causaria desilusão? Nietzsche teria reproduzido o pessimismo schopenhaueriano? De modo algum: o argumento da desilusão opõe-se a Schopenhauer, na medida em que o pessimismo metafísico é parte de uma abordagem mistificadora da distinção entre fenômeno e coisa em si. Nietzsche apresentou uma secularização da abordagem, pois caracterizou a distinção entre fenômeno e coisa em si como um problema puramente científico (MA I/HH I 10, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.30, tradução de PCS). A abordagem mistificadora pode ser dividida em três partes: para cada uma Nietzsche apresentou uma contrapartida secular.

A primeira mistificação é metodológica: a crença no poder revelador das intuições. A defesa do acesso via intuição é um resquício de uma visão mítica primitiva: Schopenhauer reproduziu estruturas mentais do homem religioso, pois em sua teoria não é a ciência que domina, mas a velha e conhecida necessidade metafísica (MA I/HH I 26, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.46-7, Tradução de PCS). Nietzsche reivindicou outra via de acesso: a ciência, que imita a natureza mediante conceitos (MA I/HH I 38, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. . 2.61-2, tradução de PCS). A segunda mistificação é ontológica: a identificação do mundo enquanto tal com o mundo metafísico. Schopenhauer poluiu a investigação científica sobre a essência do real com a introdução ilegítima da tradicional doutrina dos dois mundos. Nietzsche identificou a coisa em si (mundo independente da mente) com a natureza, e assim despoluiu a abordagem ontológica.

A terceira mistificação é ética: a crença nas consequências práticas que se seguem do conhecimento da coisa em si. Para Schopenhauer, a decifração do enigma do mundo revela ensinamentos existenciais e orientações normativas. Nietzsche afirmou que esse conhecimento é irrelevante para a prática: não fundamenta nenhuma moral, não possibilita nenhuma edificação, não justifica otimismos ou pessimismos. Não há um uma continuidade lógica entre conhecimento da realidade e consequências éticas/existenciais. As consequências podem existir, mas não são deduzidas de uma teoria: variam de acordo com os temperamentos das pessoas. As consequências práticas são determinadas por respostas pessoais, não por uma metafísica abstrata (MA I/HH I 34, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.53-4, tradução de PCS).

O conhecimento gera desilusão nas pessoas que esperam encontrar na coisa em si um mundo rico em significados. A coisa em si (mundo) é a natureza desencantada da ciência moderna, caracterizada por Nietzsche com uma ontologia particular, cuja formulação paradigmática foi extraída de Roger Boscovich, o físico jesuíta: o mundo natural é um conjunto de relações processuais entre forças6 6 Para mais informações sobre a influência de Roger Boscovich nas obras de Nietzsche: cf. Gori, 2007. . O mundo como representação é criado pela cultura humana e existe apenas na mente: um mundo com télos, significados estéticos, morais e religiosos, substâncias etc. Assim, a tese segundo a qual a coisa em si está vazia de significado não é uma reprodução da conclusão kantiana sobre a incognoscibilidade. Por ser em alguma medida inteligível sabemos que o mundo enquanto tal é vazio de significado místico, metafísico, estético, moral, existencial etc.

A coisa (iii) é um erro porque “[...] o procedimento científico perseguiu a tarefa de dissolver em movimentos tudo o que tem a natureza de coisa (matéria) [...]” (MA I/HH I 19, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.40-1, tradução de PCS). Boscovich eliminou o conceito de corpúsculos sólidos e impenetráveis (matéria) e defendeu que os entes são forças em constante movimento. A ontologia dinâmica é o conhecimento parcial da essência real do mundo: a coisa é um erro porque não existe substância material na realidade. Poder-se-ia afirmar: a coisa (iii) é um erro porque não existe substância material na coisa em si (i). A afirmação é confusa, não contraditória. A coisa em si (mundo) não é uma substância individual, mas a totalidade dos processos. A atribuição de diferentes significados a um único termo causa confusão: o problema não é filosófico, mas terminológico.

A seção começou com uma apresentação da interpretação kantiana do aforismo 9. Falta aplicar a nossa interpretação ao conteúdo desse aforismo. Nietzsche afirmou: “[...] a prova científica de qualquer mundo metafísico já é tão difícil, talvez, que a humanidade não mais se livrará de alguma desconfiança em relação a ela [...]” (MA I/HH I 21, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.42-3, tradução de PCS). Este aforismo é uma continuação e um esclarecimento do 9. Mundo metafísico é sinônimo de objeto suprassensível (ii). O mundo metafísico não pode ser conhecido e não é possível definir uma posição categórica sobre sua existência fora da mente, mas podemos ao menos suspeitar da existência, pois os métodos responsáveis pela fixação de crenças religiosas e metafísicas não são confiáveis. Em linguagem simples: a ciência não pode provar a existência ou a inexistência de Deus ou da Vontade. Se esses objetos existissem não seria possível conhecê-los, pois não poderiam ser tematizados por ciências que trabalham com métodos confiáveis.

Nietzsche usou a coisa em si (ii) porque reproduziu a terminologia dos kantianos. Ele usa a crítica de Afrikan Spir a Schopenhauer para refutar a possibilidade de uma designação positiva do mundo metafísico (coisa em si II), não para defender um agnosticismo em relação aos pronunciamentos ontológicos em geral. A reprodução da terminologia e a afirmação segundo a qual o mundo metafísico é incognoscível estimulam a imaginação antirrealista dos intérpretes. Essa imaginação fixa um sentido unívoco à coisa em si e toma a parte (o sentido II) pelo todo (os três sentidos): por essa razão ignora que a coisa em si (i) não é um ser-outro, um para-nós-inacessível. Essa imaginação se vê diante de uma perplexidade quando precisa lidar com o devir: a ontologia dinâmica se apresenta como um espectro, uma ponta solta, um rastro que não pode ser articulado em um conjunto coerente. Na medida em que não diferencia os três significados, a imaginação não pode associar o devir à coisa em si, pois o devir não é uma coisa (III).

A ontologia não está proibida

A afirmação segundo a qual a coisa em si (i) é incognoscível é um juízo universal. A tese antirrealista não se aplica apenas a um método de conhecimento, a uma ciência, nem a um conjunto limitado de ciências do presente: abrange a totalidade do conhecimento possível. Não faria sentido defendê-la e aceitar as seguintes afirmações: (1) a ciência X não pode acessar a coisa em si, mas a Y sim; (2) o acesso é impossível através de intuições, mas provável mediante conceitos; (3) é possível que as ciências conheçam a coisa em si (i) em breve, mas no atual estágio do desenvolvimento científico esse conhecimento é impossível.

Nietzsche não defendeu uma tese sobre a totalidade do conhecimento possível, isto é, não estipulou os limites do conhecimento em geral. Disso se segue que não acatou uma conclusão agnóstica sobre o conhecimento da coisa em si (i). Em sua filosofia não há nenhuma proibição epistemologicamente justificada, nenhuma fronteira definitiva estabelecida após análise transcendental das estruturas do sujeito cognoscente. Ao contrário, o conhecimento está em devir e seus limites são móveis.

Os intérpretes antirrealistas reconhecem que Nietzsche seguiu a tendência intelectual inaugurada por Hermann Helmholtz e sistematizada na obra de Albert Lange. Nietzsche acatou a proposta central desse movimento neokantiano: a substituição dos métodos dedutivos da filosofia transcendental por métodos científicos7 7 cf. Stack, 1983, pp.90-91 e Clark, 1990, p.121. . Estou de acordo com a influência, mas os intérpretes antirrealistas negligenciaram uma consequência que se segue da naturalização do método, consequência extraída por Nietzsche: a epistemologia não pode abordar o conhecimento como um ente genérico, uma totalidade ou uma grandeza fixa (MA I/HH I 16, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.36-7, tradução de PCS). Nietzsche não aceita a existência de faculdades a-históricas (sensibilidade, entendimento, memória, imaginação), nem a ideia de que seja possível descrever a priori as regras fixas e imutáveis que regulam as atuações dessas faculdades. O intelecto, suas regras, seus limites e suas obras (ciências) estão em devir. Se não há o conhecimento (ente genérico), não há um juízo universal sobre seus limites. É possível observar limites abrangentes que dificilmente serão ultrapassados, mas a observação é um diagnóstico sobre a situação atual do devir das ciências, não uma consequência de uma análise transcendental das estruturas cognitivas de um sujeito a-histórico.

Kant apresentou uma descrição a priori das regras que orientam as operações das faculdades do conhecimento. O método dedutivo possibilita uma descrição do gênero: o filósofo transcendental demonstra a existência das intuições a priori da sensibilidade e dos conceitos puros do entendimento, explica como essas formas atuam em conjunto na produção do conhecimento, revela que possibilitam a inteligibilidade da experiência e prova, por fim, que delas podem se derivar juízos sintéticos a priori, isto é, ciência em sentido rigoroso8 8 Essa exposição sumária apresenta o significado das deduções metafísica e transcendental. A exposição ou dedução metafísica demonstra que certos conceitos do entendimento (as doze categorias) e intuições (tempo e espaço) são a priori. A estética transcendental revela que o espaço não é um conceito empírico extraído de experiências externas, mas uma intuição a priori que possibilita as experiências externas cf. Kant, 1985, pp.63-65. O tempo, por sua vez, é uma intuição a priori que fundamenta todas as intuições, tanto internas quanto externas (pp. 70-71) Kant recorreu à tabua dos juízos para efetuar sua dedução metafísica das categorias. Abstraídos dos seus conteúdos e considerados exclusivamente em sua forma em geral, os juízos podem ser divididos em quatro classes: quantidade, qualidade, relação e modalidade. Em cada classe três elementos. Baseado nessa classificação dos juízos, Kant expôs a sua famosa tábua das categorias: a mesma divisão em classes com a mesma quantidade de elementos em cada (pp. 104-111). A dedução ou exposição transcendental mostra que essas intuições e conceitos possibilitam juízos sintéticos a priori. A geometria apresenta juízos sintéticos a priori sobre as propriedades do espaço (p.66); o tempo, por sua vez, possibilita juízos sintéticos a priori sobre os movimentos (a teoria geral dos movimentos) (p.72). Na dedução transcendental, Kant assegura que a apercepção originária é o princípio supremo do conhecimento e mostra que sem as categorias a multiplicidade indefinida das impressões sensíveis não se constituiria como realidade objetiva, isto é, como natureza: um conjunto conectado de fenômenos sob leis (pp.129-142). É sobretudo na Analítica dos Princípios, o ápice construtivo da primeira parte da Crítica, que Kant descreve de modo sistemático a atuação conjunta das faculdades (sensibilidade, imaginação e entendimento) e apresenta os princípios a priori e sintéticos produzidos pelo entendimento puro: os axiomas, a antecipação, as analogias e os postulados. . As formas puras são condições de possibilidade dos juízos científicos, na medida em que as ciências apresentam juízos sobre a experiência e as formas antecedem a experiência e possibilitam sua inteligibilidade.

Apesar dos seus métodos e resultados particulares, os discursos científicos estão submetidos aos princípios do entendimento, pois não se pode entender algo, seja o que for, sem pressupô-los. A relação transcendental entre princípios do entendimento (condicionantes) e ciências particulares (condicionadas) possibilita uma abordagem do conhecimento como totalidade. Por totalidade não se deve entender um saber total sobre os dados empíricos, pois a dedução transcendental não proporciona um conhecimento do mundo: apenas demonstra que o entendimento pode se referir a priori aos objetos do mundo9 9 cf. Kant, 1985, p.94. . Totalidade é a articulação lógico-transcendental entre um número limitado de formas a priori (condicionantes) e um número indefinido de conhecimentos possíveis (condicionados). Essa abordagem autoriza uma conclusão sobre os limites do conhecimento humano em geral: nenhuma ciência pode conhecer o que não está dado no espaço-tempo, isto é, o que se encontra apartado das condições a priori da sensibilidade.

A epistemologia nietzschiana é naturalista, ou seja, não recorre a nenhum método a priori (dedução transcendental ou metafísica). A epistemologia ideal, isto é, consumada, é ciência: “história da gênese do pensamento” (MA I/HH I 16, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.26-7, tradução de PCS). O filósofo pode colaborar com o desenvolvimento dessa ciência apresentando especulações: basta que reproduzam o estilo de explicação das ciências e dialoguem com informações disponíveis. Nietzsche ensaiou explicações sobre o surgimento e o desenvolvimento de algumas regras que orientam o entendimento10 10 É o caso da substância: cf. MA I/HH 1 18, KSA 2.38-9, tradução de PCS. .

Albert Lange propôs uma substituição da dedução metafísica por uma análise empírico/fisiológica dos órgãos sensoriais. Aceitou a existência de estruturas a priori da experiência, mas rejeitou que devam ser descobertas por métodos a priori11 11 cf. Lange, pp.248-9, 1866. . Nietzsche seguiu a renovação naturalista de Lange, mas privilegiou os métodos históricos. Afrikan Spir se opôs à revisão metodológica de Lange e afirmou que é possível descobrir a priori, isto é, sem métodos experimentais, o único princípio a priori do entendimento: a lei do incondicionado12 12 Sobre as diferenças entre os métodos de Albert Lange e Afrikan Spir: cf. Lopes, 2008, pp. 272-298 e Mattioli, 2013, pp. 321-348. . De acordo com Nietzsche, a lei do incondicionado não é um princípio incondicionado, mas um padrão perceptivo que surgiu e se desenvolveu na história, em circunstâncias naturais que poderão ser devidamente explicadas pela história da gênese do pensamento. Os padrões cognitivos surgiram em momentos longínquos da história natural e foram transmitidos às gerações seguintes: a humanidade contemporânea herdou hábitos cognitivos dos seus ancestrais. A concepção de regras transcendentais muda significativamente nesse no novo quadro: as regras cognitivas são heranças que compõem uma mutável memória intergeracional da espécie.

O método histórico pressupõe uma asserção ontológica: o entendimento não pode ser abordado como uma grandeza fixa, na medida em que não é algo pronto e acabado. O intelecto e o mundo como representação vieram-a-ser e permanecem sujeitos à transformação (MA I/ HH 1 2 e 16, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2. 24-5 e 36-8, tradução de PCS). Disso se segue que o devir do conhecimento não pode ser articulado em uma totalidade. As regras do intelecto (um kantiano chamaria de condições transcendentais) podem ser alteradas, reformadas e/ou eliminadas, inclusive pelo desenvolvimento das ciências. Não há, portanto, uma relação de subordinação das ciências particulares às regras a priori de uma faculdade: as ciências podem ter - e mostraram que têm, na avaliação de Nietzsche -, uma independência parcial em relação às supostas leis originárias do entendimento. Assim, o devir do conhecimento não diz respeito apenas à sucessão histórica de teorias científicas, pois se refere também às transformações das regras cognitivas que orientam nossas inferências sobre a experiência.

A constatação do caráter historicamente situado das condições transcendentais justifica uma asserção sobre a contingência dos limites do conhecimento humano. Os limites não são previamente definidos por epistemologias exclusivamente filosóficas: o conhecimento dos limites é atualizado de acordo com o devir das ciências. Dessa constatação se seguem duas alternativas. A primeira procura conciliar a análise transcendental com o devir das ciências: em vez de abordar as estruturas cognoscentes de um sujeito a-histórico, essa análise se limita a revelar as condições transcendentais dos discursos científicos do presente. Essa não foi a solução de Nietzsche: suas especulações sobre o devir, as forças, o eterno retorno e a vontade de poder revelam outro projeto. Nietzsche não analisou as condições transcendentais da física dinâmica de Boscovich: usou a física como um modelo para elaboração de novas ontologias. Essa diferença é crucial. Nietzsche especulou em continuidade com as tendências científicas mais progressistas do seu tempo, justamente aquelas que iniciaram uma reconstrução da compreensão humana sobre a essência real do mundo13 13 Penso na física dinâmica como um exemplo de tendência progressista. Sobre a repercussão da física de Boscovich no século XIX e a sua importância para a história da ciência: Gori, 2007, pp.134-156. . Essa atitude revela que sua filosofia procura renovar/ampliar a nossa compreensão da essência do mundo, em vez de regular, controlar ou proibir a especulação.

Devir do conhecimento e mundo como representação

De acordo com a perspectiva antirrealista, o mundo como representação é a totalidade do cognoscível. Trata-se do mundo fenomênico, isto é, da natureza entendida como um sistema de leis. O mundo aparece para nós como uma totalidade inteligível porque o intelecto atribuiu ao mundo uma inteligibilidade. Os antirrealistas afirmam que a ciência não conhece a coisa em si, mas apresenta um conhecimento satisfatório do mundo como representação, isto é, dos fenômenos14 14 De acordo com a interpretação de Maudemarie Clark, a ciência pode revisar erros de senso comum, mas não sabemos se apresenta verdades, pois não conhecemos o mundo em si mesmo. O mundo pode ser diferente: as teorias podem ser falsas, apesar de explicarem satisfatoriamente os fenômenos. cf. Clark, 1990, pp.95-107. Kevin Hill destacou a oposição entre senso comum e ontologia científica, mas alegou que o conteúdo da física dinâmica é mind-dependent (HILL, 2003, p. 137). A minha leitura opõe ciência ao senso comum, mas destaca que a ciência pode ultrapassar o mundo como representação. . O senso comum, por sua vez, erra: a ciência é capaz de corrigir seus erros, ainda que não possa descobrir a essência do mundo.

Há diversas maneiras de classificar representações. Uma diz respeito à relação das representações com suas referências no mundo: umas se adequam aos objetos representados, outras não correspondem às suas referências. Nietzsche identificou a representação com o erro: mundo como representação (erro). Como interpretar a expressão? Uma primeira alternativa consiste em entender a representação em seu sentido mais genérico, ou seja, como sinônimo de objeto mental em geral. O erro posto entre parênteses indicaria o compromisso com um dramático pessimismo cognitivo: todas as representações são erros porque não se referem adequadamente aos objetos representados (ao mundo). Essa alternativa é insatisfatória, pois se toda representação é um erro e todo conhecimento é composto por representações, não há conhecimento correto sobre objetos representados, e sem um conhecimento correto não há parâmetro para justificar o juízo sobre a inadequação. Em última instância, nada se explica: sem um conhecimento correto sobre o mundo não há como definir se as representações correspondem ou distorcem os objetos representados.

Para Beatrice Han-Pile, Nietzsche não empregou o termo em seu sentido literal. Erro e falsificação são hipérboles, estratégias retóricas. Nietzsche pretendia contrabalançar nossa tendência programada a ser realistas ingênuos a respeito do mundo e do conhecimento. Assim, a tendência que leva o homem a admitir como óbvio o realismo de senso comum pode ser neutralizada por essa retórica hiperbólica15 15 cf. Han-Pile, 2011, 211-16. . Essa leitura talvez se adeque a determinados casos, pois Nietzsche apresenta críticas ao realismo de senso comum e usa a retórica hiperbólica com alguma frequência, mas não se sustenta em um confronto com passagens definidas. Certas representações são erros porque a realidade falseia o conteúdo da representação. A ideia de substância material é um erro porque a ciência dissolveu em movimentos tudo o que tem a natureza de coisa. (MA I/HH I 19, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.40-1, tradução de PCS). Não consigo notar nenhuma hipérbole nessa afirmação.

A solução é evitar as interpretações generalizantes. O mundo como representação não abrange as representações em geral, nem a totalidade das representações inadequadas. O conceito abarca apenas as representações inadequadas que estruturam ontologias de senso comum. São representações que organizam a inteligibilidade do mundo e estruturam a nossa experiência ordinária. O mundo como representação diz respeito, portanto, às representações que condicionam a percepção ordinária da espécie e distorcem a inteligibilidade do mundo natural. São as representações estruturais16 16 Erros particulares não desempenham a função de estruturação da percepção ordinária: “o presidente do Brasil é Albert Einstein” não assume a função de uma representação estrutural. Essa informação pode parecer trivial, mas evidencia que o “mundo como representação” não se refere a todas as representações inadequadas. .

Essas representações são erros devido ao hábito ancestral da projeção. Algumas representações não se referem a objetos reais, mas somos impelidos a acreditar que existem no mundo. A projeção promove, portanto, uma inversão: o que é exclusivamente mental é experimentado pela percepção ordinária como real. Nietzsche apresentou uma explicação protogenealógica do mecanismo da projeção: herdamos dos nossos ancestrais um grupo de representações estruturais e o hábito de projetá-las na realidade. Com o tempo a projeção assumiu a forma de uma prescrição: somos biologicamente induzidos ao erro, isto é, somos obrigados a introduzir um conceito subjetivo de natureza na natureza enquanto tal (MA I/HH I 19, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.40-1, tradução de PCS). Nas nossas interações imediatas com o mundo, antes de qualquer mediação reflexiva, projetamos e invertemos: o mundo como representação é experimentado como natureza, realidade, coisa em si.

Nietzsche enumerou diversos erros estruturais: as interpretações religiosas e fantásticas do mundo natural, a atribuição de propriedades estéticas (beleza, perfeição, harmonia) aos objetos, as crenças em agentes livres e responsáveis, em fatos morais, em um mundo constituído por objetos estáveis, a confusão entre estruturas gramaticais e ontológicas, a aceitação irrefletida dos testemunhos dos sentidos, a crença na existência do espaço euclidiano, a interpretação substancialista do movimento e da mudança etc. A aceitação espontânea desses erros, isto é, a incapacidade de reconhecê-los como tais, é o realismo de senso comum.

Os erros do realismo de senso comum podem ser revisados e superados pela ciência e por transformações históricas amplas. A perspectiva de senso comum não abrange a totalidade do conhecimento possível, pois essa totalidade não existe. A ciência pode revisar os erros estruturais (a memória intergeracional da espécie) e superar em pequena medida o mundo como representação, aproximando-se da essência real do mundo como coisa em si (i). Em alguns casos a superação envolve uma eliminação de conceitos designados a priori pela tradição kantiana: a substância, por exemplo. A ciência pode ultrapassar os limites impostos pelas representações estruturais, pois as regras do entendimento são prescrições contingentes que condicionam uma percepção de senso comum historicamente situada, não a totalidade do conhecimento possível.

Para entender o processo de superação dos erros é relevante distinguir duas perspectivas: (i) da pessoa que assume, em condições específicas, a perspectiva de pesquisadora e analisa com rigor metodológico as suas crenças; (ii) da pessoa que na perspectiva de primeira pessoa, ou seja, imersa em suas percepções cotidianas, aceita e reproduz crenças espontaneamente. A relação entre as duas perspectivas não é apenas de exclusão ou contrariedade: ambas podem coexistir (misturas, justaposições) em uma mesma circunstância. A depender do caso, a perspectiva científica se afasta mais ou menos do senso comum.

A interpretação sobrenatural do mundo natural desempenhou em algum momento da história o papel de um erro estrutural. O “homem primitivo” (sic) compreendia/experimentava a natureza como um comércio entre vontades espirituais, pois projetava nos fenômenos naturais as relações sociais da comunidade humana (MA I/ HH I 111, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.112-16, tradução de PCS). Processos históricos complexos diminuíram ou eliminaram essa perspectiva encantada, ao menos no ocidente moderno. Devido aos processos de modernização, a perspectiva de senso comum adquiriu independência considerável em relação às interpretações míticas da natureza: isso mostra que as representações estruturais estão sujeitas ao desgaste histórico. Aquela projeção religiosa perdeu sua força normativa: não é mais uma prescrição, não é mais parte constitutiva da ontologia de senso comum do europeu moderno. Por conseguinte, a perspectiva do pesquisador/observador da ciência moderna tem independência considerável, senão absoluta, em relação a esses erros, visto que a influência sobre o senso comum já se encontra reduzida. Há atavismos, acomodações, rearticulações etc. Nietzsche procura revelá-las e criticá-las: podemos e devemos eliminar esses erros e evitar sua influência, tanto na ciência quanto em nossas vidas pessoais.

Nietzsche caracterizou os sentidos recorrendo a uma analogia com as artes: nossos órgãos sensoriais são artistas, pois colaboram com a criação do mundo como representação. A obra produzida pelos órgãos sensoriais é um mundo repleto de sons, cores, significados e qualidades particulares. Schopenhauer alegou que a música oferece acesso imediato à coisa em si. Nietzsche inverteu: o que chamamos de som é parte do mundo como representação. A audição humana cria esse mundo rico, cheio de significados: na natureza existem apenas movimentos vibratórios. De modo análogo, por causa da visão e do cérebro experimentamos um mundo com formas, distinção entre interno e externo, em cima e embaixo, superior e inferior etc. (NF/FP 1877, 23[150], KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 8.458). Em nossas interações espontâneas com o mundo dificilmente conseguiremos extirpar nossa tendência a projetar na realidade as experiências qualitativas possibilitadas pelos sentidos, mas assumindo a perspectiva do observador é possível ganhar distância das antropomorfizações e explicar o mundo sem pressupor essas informações.

Nietzsche caracterizou a natureza como um sistema determinista e defendeu que as ações humanas estão submetidas às interações causais: disso se segue, na sua avaliação, que a crença em agentes livres e moralmente responsáveis é um erro. Exigências comunitárias de coordenação das ações e disposições psicológicas particulares levaram a espécie a introduzir significados morais nos eventos naturais. Avaliações morais das ações e do caráter são erros, mas “[...] não podemos viver sem avaliar e sem ter aversão [...]”, pois “[...] um impulso sem uma espécie de avaliação cognitiva sobre o valor do objeto não existe no homem [...]” (MA/HH I 32, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.52, tradução de PCS). O reconhecimento do erro e da nossa propensão natural à sua reprodução é uma das grandes desarmonias da existência, pois a afastada perspectiva da ciência revela que as avaliações são erros, mas em nossas práticas espontâneas continuamos avaliando - e errando. De todo modo, o homem está em devir: é possível superar a necessidade de avaliar moralmente. Nada impede que o conhecimento científico sobre a moral seja assimilado pela perspectiva comum dos agentes, senão pela maioria, ao menos por alguns indivíduos excepcionais; senão no presente, ao menos em um futuro; senão em todos os momentos, ao menos em alguns decisivos.

A posição de Nietzsche a respeito da substância está marcada pela influência de Afrikan Spir: uma passagem deste eminente lógico foi citada no aforismo 1817 17 Para mais detalhes sobre a citação: cf. Lopes, 2008, pp. 175-79. . Afrikan Spir afirmou que o princípio de identidade é o único elemento legitimamente a priori do sujeito cognoscente. Esse princípio não tem um sentido meramente formal: trata-se de um discriminante ontológico. É uma norma cognitiva que nos obriga a perceber os objetos como imutáveis e idênticos a si mesmos, em suma, como substâncias. A percepção comum da espécie concebe o mundo como um ambiente constituído por objetos ontologicamente autônomos e iguais a si mesmos, em suma, como uma comunidade de substâncias. Apesar de reconhecer o caráter normativo do princípio, Nietzsche não oferece à norma um estatuto a-histórico: “também essa lei, aí denominada originária, veio-a-ser” (MA I/HH I 18, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 2.36, tradução de PCS). Além de historicizar o princípio, Nietzsche o avalia epistemologicamente: a lei originária é um erro, pois no mundo não existem substâncias.

A nossa sensação de tempo é um erro porque a substância é um erro. Essa tese é uma apropriação sui generis da primeira analogia da experiência: “Em toda mudança dos fenômenos, a substância permanece e a sua quantidade não aumenta nem diminui na natureza [...]” (KANT, 1985KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001., p. 212). O tempo não pode ser percebido por si mesmo, pois a mudança só é inteligível porque pressupomos um substrato no qual ela ocorre. De acordo com Nietzsche, esse argumento procede ao menos em um sentido: a subordinação do devir à substância é um elemento constitutivo do modo como a percepção comum representa o mundo. Mas como a substância é um erro, pois na realidade enquanto tal não há coisas, apenas processos, a sensação temporal de senso comum, que Kant descreveu na analogia da experiência, é falsa.

Nietzsche estava convencido de que as ciências do seu tempo desafiavam a primeira analogia da experiência: constatou um conflito entre a ontologia de senso comum e uma ontologia científica em desenvolvimento. Quando tentamos traduzir a ontologia processual para a linguagem de senso comum nos deparamos com uma desarmonia, pois para compreender o movimento precisamos inserir um substrato nas mudanças. A visão, a gramática e as sensações de espaço-tempo dificultam a tradução: a ontologia dinâmica se apresenta demasiado especulativa, sem apoio sensível e distante do que nos é familiar. O hábito da projeção permanece e a especulação sobre a essência do mundo entra em conflito com a prescrição. Nesse caso a prescrição de senso comum pode influenciar a perspectiva do observador.

É difícil conceber um mundo sem substância, mas a ciência pode revisar e corrigir erros estruturais. A revisão do vocabulário ontológico é um processo no qual a ciência conquista graus de independência em relação aos erros. A revisão do conceito de substância e dos demais erros envolve uma reconsideração de outros elementos, pois em alguns casos as representações se relacionam entre si e formam malhas ou redes. Não basta alterar ou corrigir uma: em alguns casos a alteração envolve remodelações conjunturais. É natural, portanto, que erros estejam presentes na nova elaboração ontológica: as perspectivas de senso comum e do observador se sobrepõem, em alguns casos com conflitos, em outros com acomodações.

Nietzsche perguntou se a ontologia do devir poderia ser incorporada pela perspectiva de senso comum: até que ponto a verdade pode ser incorporada? (FW/GC 110, KSANIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. 3.471, tradução de PCS). A pergunta não é se a verdade pode ser alcançada, mas incorporada, ou seja, assimilada, transformada em algo familiar. A pergunta faz sentido, na medida em que a perspectiva de senso comum está sujeita à transformação. A ciência pode se afastar integralmente da perspectiva de senso comum? O senso comum pode incorporar a perspectiva da ciência? As respostas não devem ser dadas por uma epistemologia apriorística: apenas o devir do conhecimento poderá mostrar a extensão da independência da ciência e as possibilidades de alargamento do senso comu

A minha leitura não é uma versão do realismo negativo. De acordo com essa perspectiva, a realidade é devir e o conhecimento é incapaz de acessá-lo porque impõe identidade, substância e ordem ao fluxo. Richardson destacou o problema básico dessa leitura: se a realidade é irrepresentável, se não pode ser acessada, por que designá-la positivamente?18 18 cf. Richardson, 2006, p. 213 . Acrescento: essa perspectiva assume que devir e conhecimento são duas entidades abstratas e separadas. A realidade é devir, mas o conhecimento não. O conhecimento tem limites fixos e intransponíveis: não podemos representar o mundo sem substância, identidade etc. Apesar de reivindicar o devir da realidade, o defensor do realismo negativo atribui ao conhecimento uma essência, um limite transcendental. Ora, o entendimento é parte da realidade, por isso está em devir. Ele não pode ser abordado como uma grandeza fixa: não é possível definir a priori seus limites intransponíveis. A ciência pode ganhar distância das prescrições que herdamos dos nossos ancestrais: Nietzsche está convencido de que a revisão conceitual, em especial do conceito de substância, nos aproxima da essência do real. O devir do conhecimento possibilita um conhecimento aproximado do devir da realidade. O devir não é, portanto, irrepresentável, nem inteiramente cognoscível (ao menos nas atuais circunstâncias), pois a separação entre as perspectivas do observador e do senso comum é um processo: um afastamento parcial e gradual; com conflitos, acomodações e superações.

Conclusão

Nietzsche é realista? Tudo indica que sim. A coisa em si (i) existe e sua essência pode ser parcialmente conhecida. Resta investigar por quais motivos a interpretação antirrealista tem se mostrado atraente, apesar de não explicar com sucesso um grupo relevante de aforismos.

Uma desproporção estimula a imaginação dos leitores: há mais textos com críticas ao realismo de senso comum do que aforismos com descrições aprimoradas da realidade. Sabemos com clareza o que é o mundo como representação, mas são poucas as informações disponíveis sobre o mundo real. Nas obras publicadas, as descrições ontológicas aparecem na forma de rastros, quando aparecem. Nietzsche defendeu um realismo com uma ontologia em construção e dedicou mais tempo e energia apresentando críticas a um abrangente realismo de senso comum. A imaginação antirrealista que totaliza o abrangente encontra apoio nessa desproporção da fonte primaria.

Somadas à desproporção, as semelhanças filosóficas alimentam a imaginação. Essas semelhanças são visíveis nas escolhas terminológicas: Nietzsche usou uma linguagem kantiana e trabalhou com teses, significados e conceitos kantianos. Mas a imaginação atribui identidade ao semelhante e totaliza o que é abrangente. Na medida em que existem semelhanças, essa imaginação segue até certo ponto sem enfrentar desconfortos. A associação do mundo metafísico com a coisa em si e a afirmação de que o primeiro não pode ser conhecido; a frequente crítica ao realismo de senso comum; a ideia de que o intelecto prescreve à natureza uma inteligibilidade. Todas essas posições são genuinamente nietzschianas e se encaixam em uma leitura antirrealista globalizante. Contudo, a mesma imaginação se depara com passagens que geram perplexidade: compromissos ontológicos estranhos, a atípica caracterização da representação como erro e a afirmação segundo a qual a ciência pode nos libertar em pequena medida do mundo como representação. Procurei dar toda atenção a essas passagens e formulei uma nova interpretação do conjunto, bem como uma crítica da imaginação antirrealista: a coisa em si, se entendida como objeto suprassensível, é incognoscível; mas não é inacessível se compreendida como mundo; Nietzsche critica o realismo de senso comum, não todo o realismo; o intelecto prescreve inteligibilidade à natureza, e nossa experiência depende em larda medida dessa prescrição, mas nem toda inteligibilidade da natureza é produzida pelo intelecto.

Nietzsche sabia que se iniciava em seu tempo um processo de revisão do vocabulário ontológico das ciências. Almejava contribuir com essa tendência, mas não formulou uma imagem sistemática do mundo: apresentou experimentos especulativos em textos que não publicou. Isso não significa que a ontologia seja pouco relevante: pelo contrário, há muito o que extrair dos póstumos. Além disso, apesar das poucas ocorrências nas obras publicadas, a ontologia é com frequência pressuposta, e sem ela não compreendemos adequadamente as posições epistemológicas de Nietzsche. A desproporção é um clássico impasse hermenêutico: a totalização do abrangente e a atribuição de identidade ao semelhante não são boas formas de resolvê-lo, ainda que a reconstrução da influência dos kantianos seja uma linha de pesquisa fundamental e inevitável, pois segue esclarecendo temas espinhosos. Contudo, Nietzsche tem voz própria. Sua voz revela que a filosofia não deve se limitar a impor limites, assumindo função exclusivamente crítica; deve, ao lado das ciências, contribuir para superar limites, em vez de confirmá-los com análises transcendentais.

Referências

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  • SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e como Representação Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
  • 1
    NIETZSCHE, FNIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano I. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2000.. Humano, Demasiado Humano I. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. A partir de agora indicado como PCS.
  • 2
    Henry Allison (2006ALLISON, Henry E. Kant’s transcendental idealism. An interpretation and defense. New Haven & London: Yale University Press, 1983. , pp.50-75) argumentou que o idealismo de Kant não pressupõe compromissos ontológicos. A distinção entre coisa em si e fenômeno não é uma divisão entre classes de entidades, isto é, uma tese ontológica sobre o que existe. Kant apresentou duas abordagens: o objeto pode ser abordado tal como aparece para o homem, ou seja, de acordo com as condições de possibilidade da sensibilidade; ou como é em si mesmo (apartado dessas condições).
  • 3
    cf. Schopenhauer, 2013SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e como Representação. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Editora Unesp, 2005., pp. 116-124.
  • 4
    cf. D’Iorio, 2021D’IORIO, Paolo. Os quatro momentos da leitura nietzschiana de Afrikan Spir. In: Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 42 (2), pp.11-60, 2021. https://www.scielo.br/j/cniet/a/hPYXtpsMbxZz8tZJgzmZ68c/. Última visita: 28/10/2022.
    https://www.scielo.br/j/cniet/a/hPYXtpsM...
    , pp.11-60.
  • 5
    Para uma interpretação semelhante do aforismo 29: cf. Mattioli, 2020MATTIOLI, William. Ontologia e Ciência na crítica de Nietzsche à metafísica em Humano, Demasiado Humano. In: Kriterion, vol. 61, no. 145, pp. 231-259, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/kr/a/t4Tffyj3ChNVMfHxWj4rFts/?lang=pt . Última visita: 28/10/2022.
    https://www.scielo.br/j/kr/a/t4Tffyj3ChN...
    , pp. 231-259.
  • 6
    Para mais informações sobre a influência de Roger Boscovich nas obras de Nietzsche: cf. Gori, 2007GORI, Pietro. La Visione dinamica del mondo: Nietzsche e la filosofía naturale di Boscovich. Napoli: La città del sole, 2007..
  • 7
    cf. Stack, 1983STACK, George. Lange and Nietzsche. Berlim: de Gruyter, 1983., pp.90-91 e Clark, 1990CLARK, Maudemarie. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. , p.121.
  • 8
    Essa exposição sumária apresenta o significado das deduções metafísica e transcendental. A exposição ou dedução metafísica demonstra que certos conceitos do entendimento (as doze categorias) e intuições (tempo e espaço) são a priori. A estética transcendental revela que o espaço não é um conceito empírico extraído de experiências externas, mas uma intuição a priori que possibilita as experiências externas cf. Kant, 1985KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001., pp.63-65. O tempo, por sua vez, é uma intuição a priori que fundamenta todas as intuições, tanto internas quanto externas (pp. 70-71) Kant recorreu à tabua dos juízos para efetuar sua dedução metafísica das categorias. Abstraídos dos seus conteúdos e considerados exclusivamente em sua forma em geral, os juízos podem ser divididos em quatro classes: quantidade, qualidade, relação e modalidade. Em cada classe três elementos. Baseado nessa classificação dos juízos, Kant expôs a sua famosa tábua das categorias: a mesma divisão em classes com a mesma quantidade de elementos em cada (pp. 104-111). A dedução ou exposição transcendental mostra que essas intuições e conceitos possibilitam juízos sintéticos a priori. A geometria apresenta juízos sintéticos a priori sobre as propriedades do espaço (p.66); o tempo, por sua vez, possibilita juízos sintéticos a priori sobre os movimentos (a teoria geral dos movimentos) (p.72). Na dedução transcendental, Kant assegura que a apercepção originária é o princípio supremo do conhecimento e mostra que sem as categorias a multiplicidade indefinida das impressões sensíveis não se constituiria como realidade objetiva, isto é, como natureza: um conjunto conectado de fenômenos sob leis (pp.129-142). É sobretudo na Analítica dos Princípios, o ápice construtivo da primeira parte da Crítica, que Kant descreve de modo sistemático a atuação conjunta das faculdades (sensibilidade, imaginação e entendimento) e apresenta os princípios a priori e sintéticos produzidos pelo entendimento puro: os axiomas, a antecipação, as analogias e os postulados.
  • 9
    cf. Kant, 1985KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001., p.94.
  • 10
    É o caso da substância: cf. MA I/HH 1 18, KSA 2.38-9NIETZSCHE, Friedrich. Samtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), vols. II, III e VIII. (Organizado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari). Berlim: Walter de Gruyter, 1988. , tradução de PCS.
  • 11
    cf. Lange, pp.248-9, 1866LANGE, Friedrich Albert. Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart. Iserlohn: Baedeker,1866..
  • 12
    Sobre as diferenças entre os métodos de Albert Lange e Afrikan Spir: cf. Lopes, 2008LOPES, Rogério. Ceticismo e Vida Contemplativa em Nietzsche. Tese de doutorado. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2008. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/ARBZ-7JJJLV . Última visita: 28/10/2022.
    https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/...
    , pp. 272-298 e Mattioli, 2013MATTIOLI, William. Ontologia e Ciência na crítica de Nietzsche à metafísica em Humano, Demasiado Humano. In: Kriterion, vol. 61, no. 145, pp. 231-259, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/kr/a/t4Tffyj3ChNVMfHxWj4rFts/?lang=pt . Última visita: 28/10/2022.
    https://www.scielo.br/j/kr/a/t4Tffyj3ChN...
    , pp. 321-348.
  • 13
    Penso na física dinâmica como um exemplo de tendência progressista. Sobre a repercussão da física de Boscovich no século XIX e a sua importância para a história da ciência: Gori, 2007GORI, Pietro. La Visione dinamica del mondo: Nietzsche e la filosofía naturale di Boscovich. Napoli: La città del sole, 2007., pp.134-156.
  • 14
    De acordo com a interpretação de Maudemarie Clark, a ciência pode revisar erros de senso comum, mas não sabemos se apresenta verdades, pois não conhecemos o mundo em si mesmo. O mundo pode ser diferente: as teorias podem ser falsas, apesar de explicarem satisfatoriamente os fenômenos. cf. Clark, 1990CLARK, Maudemarie. Nietzsche on Truth and Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. , pp.95-107. Kevin Hill destacou a oposição entre senso comum e ontologia científica, mas alegou que o conteúdo da física dinâmica é mind-dependent (HILL, 2003HILL, Kevin. Nietzsche's critique: the kantian foundation of his thougtht. Oxford: Oxford University Press, 2005., p. 137). A minha leitura opõe ciência ao senso comum, mas destaca que a ciência pode ultrapassar o mundo como representação.
  • 15
    cf. Han-Pile, 2011HAN-PILE, Beatrice. Aspectos transcendentais, compromissos ontológicos e elementos naturalistas no pensamento de Nietzsche. In. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 29, pp.163-230, 2011. Disponível em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/cniet/article/view/7755 . Última visita: 28/10/2022.
    https://periodicos.unifesp.br/index.php/...
    , 211-16.
  • 16
    Erros particulares não desempenham a função de estruturação da percepção ordinária: “o presidente do Brasil é Albert Einstein” não assume a função de uma representação estrutural. Essa informação pode parecer trivial, mas evidencia que o “mundo como representação” não se refere a todas as representações inadequadas.
  • 17
    Para mais detalhes sobre a citação: cf. Lopes, 2008LOPES, Rogério. Ceticismo e Vida Contemplativa em Nietzsche. Tese de doutorado. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2008. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/ARBZ-7JJJLV . Última visita: 28/10/2022.
    https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/...
    , pp. 175-79.
  • 18
    cf. Richardson, 2006RICHARDSON, JOHN. Nietzsche on Time and Becoming. In: A Companion to Nietzsche, Oxford, Blackwell Publishing, pp.208-229, 2006., p. 213

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Out 2022
  • Aceito
    13 Fev 2023
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