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Nietzsche e Getúlio Vargas* * Publicado no jornal A Noite. Rio de Janeiro, 21 de Junho de 1939, p. 02.

Nietzsche and Getúlio Vargas

Resumo:

Texto publicado no diário carioca A Noite, em 1939. Seu autor aponta Nietzsche como mentor intelectual de Getúlio Vargas, sendo o único filósofo a escapar ao naufrágio dos ídolos, conforme o próprio Vargas. Em pleno regime do Estado Novo, considera que a feição nietzschiana perdura e domina no espírito do ditador brasileiro.

Palavras-chave:
Nietzsche; Getúlio Vargas; formação

Abstract:

Text published in the daily A Noite, in 1939, Rio de Janeiro. Its author points Nietzsche as mastermind of Getúlio Vargas, the only philosopher to escape the sinking of the idols, as Vargas. In the Estado Novo regime, believes that the Nietzschean feature persists and dominates in the spirit of Brazilian dictator.

Keywords:
Nietzsche; Getúlio Vargas; formation

"Nos poucos intervalos que me deixa a função, leio alguns escritores do momento ou releio as páginas dos mestres da minha iniciação universitária... Dentre estes, Nietzsche escapou ao naufrágio dos ídolos".

São palavras do presidente, recolhidas por Alvaro de Las Casas para "El Mercurio" do Chile, e republicadas pela A NOITE, numa cintilante entrevista em que o Sr. Getúlio Vargas definiu, porventura a primeira vez de público, as linhas mestras de sua inteligência. Lançando o olhar para o passado, para as leituras daquele jovem comedido que paradoxalmente liderava em Porto Alegre, há trinta anos, um inquieto grupo de estudantes, o Sr. Getúlio Vargas evoca, no estranho filósofo de "Zaratustra", um mentor intelectual. Do naufrágio dos ídolos, do báratro de sistema e doutrinas que a vida do homem público veio eliminando por inanes, por inadequadas à hora presente, só Nietzsche sobrenadou: Nietzsche, o bárbaro que a sua época não compreendeu, o Nietzsche, cujo espírito transcendeu a tal ponto as contingências da matéria que viveu realmente acima do espaço e do tempo, num esforço titânico para abranger todas as premissas fundamentais do universo.

Não é, de certo, por acaso que, dentre os deuses que a mocidade cultivara, apenas ao grande Solitário poupou a destruição dos anos e da experiência. Uma certa identidade no processo intelectual, uma afinidade por vezes estranha há de explicar a persistência da predileção do mais complexo político brasileiro pelo menos acessível dos filósofos. Em ambos, a mesmo invencível vontade de poder e domínio, que para Nietzsche foi uma norma abstrata de ação, e para Getúlio Vargas uma realização tenaz e constante; aquela força de penetração quase monstruosa derivando de um princípio de dúvida que chega a afligir o espectador limitado à configuração atual das questões, mas que é, realmente, a mais decisiva inspiração na pesquisa da verdade, e até uma coragem igual para, nos momentos críticos, com frieza cirúrgica que não exclui a mágoa do sentimento violento, romper os laços que as circunstâncias teceram. "A ruptura de relações individuais é dura, mas uma asa me nasce no lugar de cada uma delas", escreveu Nietzsche: onde estaria agora o deputado à Assembleia do Rio Grande se, em determinados instantes cruciais, houvesse hesitado em recuperar a sua liberdade? "Não há nada imutável. A democracia, para sobreviver, necessita de se adaptar aos novos tempos, na procura de equilíbrio dinâmico, entre as concepções políticas que a negam ou querem subvertê-la. O velho conflito entre a autoridade e a liberdade só admite a sabedoria das soluções concretas e realistas, conforme os sentimentos e as exigências de cada época. Esse oportunismo superior é a suprema inteligência do homem de Estado", declara o presidente. Também o filósofo desprezara os que amam fossilizar-se nos sistemas: "Um filósofo utiliza e consome convicções".

A própria noção da moral não difere grandemente: "Qualidades e defeitos, em casos concretos, não comporão, muitas vezes, admiráveis expressões de equilíbrio ou harmonia?" - diz o homem de Estado, que as responsabilidades do Poder não permitem ir mais longe no desenvolvimento do tema. Mas ao Rebelado era licito clamar que "o homem deveria tornar-se melhor e pior", e que as más qualidades dos fortes são tão necessárias à sociedade como as virtudes dos fracos.

O sinal da grandeza está, para Nietzsche, na capacidade de dar a direção. No Sr. Getúlio Vargas a consciência dessa faculdade é evidente: os homens que estão no poder fazem a história, deixando aos que se acham fora dele o trabalho de contá-la. Uma vez possuindo a intuição do seu futuro, cada um é senhor de realizá-lo: um dia, descobrindo-nos, sentimos a secreta relação; daí por diante somos os professores ou mestres do nosso próprio destino - lhe recolheu a afirmação o Sr. de Las Casas. Quem, percorrendo estes dois ou três lustros da crônica nacional, aprecia a segurança com que o chefe da revolução de 30 declinou e seguiu o seu caminho ("na época das grandes crises, os homens superiores conseguem imprimir a sua direção, dominando a anarquia dos parlamentos, e não sendo por estes dirigidos", palavras de 1919), não tomará essas palavras, ditadas no fastígio do poder, por uma regra otimista colhida nos manuais de felicidade, mas com a lição de uma carreira asperamente vivida - e aí está, para documentar os acidentes e as fadigas, o precioso livro de André Carrazzoni.

Como não ver, finalmente, nessa ardente aceitação de desafio e da luta (... correndo todos os riscos, em que a vida será o menor dos bens que lhe posso oferecer", do manifesto de Porto Alegre, ao deflagrar da insurreição), na ufania dos avatares belicosos dos antepassados ("enquanto os outros Estados desfrutavam os benefícios do sossego, podendo abrir os livros e estudar, arar a terra e produzir, o Rio Grande tinha que se conservar de espada na mão, para a defesa das suas fronteiras; estabelecida a independência política, sofreu ainda o contra-choque de todas as lutas desencadeadas na bacia do Prata: sofreu, também, durante dez anos, todas as penúrias de uma guerra civil, lutando contra todo o Império"), no profundo desprezo pelo conformismo ("o Rio Grande quer o respeito de sua autonomia: não pede, não implora, não suplica, mas o que quer é ser a Cordelia do Rei Liar" ...), prodigioso energia repartida entre a política e as armas (inclinação dos primeiros anos que reaparece, no entanto, sempre que se faz necessário agir como um soldado, audácia leonina com que mais de uma vez tem enfrentado a desordem e a revolta armada para defender suas prerrogativas e a sua vida (os sucesso de 35 e de 11 de maio estão ainda bem presentes), a certeza de que a engrenagem da luta está irremediavelmente em movimento (após um grande esforço físico e intelectual, a tendência será para o repouso: os tempos atuais concederão esse premio moral ao que se exonerarem da terrível responsabilidade de governar?", pergunta Getúlio Vargas; "minha fórmula de grandeza é o 'Amor Fati'... não somente saber suportar a sorte em todas as conjunturas, mas ama-la", diz o Atormentado) - como não ver nesses fatos e nesses aspectos outros tantos sinais do conceito de que o prazer da existência consiste em viver perigosamente - talvez o princípio fundamental de moral nietzschiana?

Salvo o naufrágio, o Ídolo deixou, no adorador, a marca profunda dos seus sortilégios.

Fidelidade à lição do pai do Superhomem ou coincidência de formação - apesar da diversidade de vocação, de meio de condições físicas, a feição nietzschiana perdura e domina no espírito do Sr. Getúlio Vargas. Estadista, talvez, ou incompleta, por isso mesmo que encontrou expressão, e não há ideia de que se não deforme ao contato real, sem dúvida, porém, o mais brilhante exemplo que já ilustrou uma página de Filosofia; e foi o próprio Nietzsche quem o exigia: um filósofo só merece consideração se é capaz de dar o exemplo.

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    Publicado no jornal A Noite. Rio de Janeiro, 21 de Junho de 1939, p. 02.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015
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