Open-access Os efeitos fantasmagóricos do gênero em cenário global

BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero?. São Paulo: Boitempo, 2024

Judith Butler é filósofa, pós-estruturalista e norte-americana. Atualmente, é docente titular da Escola de Pós-Graduação da Universidade da Califórnia, onde estuda temas relacionados a ética, filosofia política, relações de gênero e mulheres. Butler é reconhecida por suas publicações no campo dos estudos de gênero, com livros marcantes como Problemas de Gênero (2003), publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1990, no qual compreende o gênero, o sexo e a sexualidade como um conjunto de ações performativas, produtoras de significados culturais. Ou seja, o argumento é que a sexualidade é construída a partir de discursos, vivências e práticas com o social, onde paralelamente é construído o gênero. Buscando desconstruir a dicotomia sexo versus gênero, Butler procura desencorajar a noção de gênero conectada à identidade e ao sujeito, advogando que gênero é um efeito das relações políticas e sociais. Tais efeitos, em repetição, criam a ilusão de uma identidade estável, a qual Butler tenta desconstruir. Essa noção da construção de gênero, passou a ser alvo de ataques por grupos conservadores, e foi evidenciada em Quem tem medo do gênero? (2024), livro que se tornou uma resposta às reações que a performance do gênero causa nas experiências cotidianas. Ambos os livros colocam em xeque a força normativa do gênero como prática e construção social. Na obra publicada em 2024, a força normativa pode ser vista nas tentativas de grupos religiosos e conservadores de impor um modelo único e ideal de família, sexualidade e identidade. Enquanto Problemas de gênero constitui um texto mais denso, voltado principalmente ao campo acadêmico pós-estruturalista, Quem tem medo do gênero? possui uma abordagem mais direta e política, que inclui legislações e discursos públicos, é uma passagem da autora da crítica acadêmica filosófica para a acusação dos usos do “medo” do gênero na atividade política.

Esta foi a última obra da autora publicada no Brasil, pela Editora Boitempo, em 2024. Objeto desta resenha, é fruto de indagações de Butler após sua última visita ao Brasil. Em 2017, a autora visitava o país para participar de um seminário sobre democracia, organizado pelo Sesc Pompeia, em São Paulo, quando foi alvo de ataques de ativistas ultraconservadores. Os manifestantes carregavam objetos religiosos e cartazes que relacionavam a autora à pedofilia e à zoofilia, reproduzindo “discursos de ódio”, prática que havia sido objeto de análise de Butler, no contexto da sociedade norte-americana, em sua obra nomeada Discurso de ódio: uma política do performativo (2021). Ao som da oração do Pai Nosso, queimaram uma boneca de bruxa que representava Judith Butler – ação que remeteu à inquisição na Idade Média.

Este livro, considerado por alguns como não acadêmico,1 é indiscutivelmente relevante para pensarmos o crescimento do fascismo, a ascensão das direitas e os ataques antigênero e antifeministas em escala global. Como resultado, estas forças unem-se sobre o fantasma do gênero.

Os movimentos contra a chamada ideologia de gênero têm tomado um alcance global, tendo suas origens advindas do Vaticano, na década de 1990, e tomado outras formas2 em diferentes países, impulsionadas pelos poderes do Estado e visíveis durante as campanhas eleitorais, quando diferentes candidatos/as aglomeram medos e incitam ansiedades sobre o fantasma do gênero3. Para essas pessoas, o gênero é encarado como uma ameaça, um mal a ser combatido, um conjunto de ideias que se opõem à religião e à ciência e, até mesmo, uma obra do demônio.

Os movimentos influenciados por ordens da direita conservadora e neoliberal, que pretendem reconduzir o mundo a um tempo anterior ao gênero4, são chamados por Butler de projeto antigênero. Assim, o medo de perder o controle do poder e a dominação hegemônica-masculina-branca-cristã são aglutinados na palavra gênero, criando um efeito fantasmagórico e as condições – como a destruição climática, a precariedade econômica, as guerras, as toxinas ambientais e a violência policial (p. 16) - que realmente originam tais medos perdem seus nomes.

Ao utilizar a formulação teórica desenvolvida pelo psicanalista francês Jean Laplanche, Butler explica que o cenário fantasmático do gênero é um fenômeno psicossocial, um lugar onde medos e ansiedades se encontram socialmente para incitar paixões políticas, tornando-se uma forma de organizar o mundo, colocando o gênero como o principal causador de destruição.

Mas quais são os efeitos desse fantasma? Esse combate antigênero resulta em políticas públicas que têm como objetivo privar pessoas de seus direitos legais em nome da moralidade, da família e da religião. Tais argumentos aglutinam-se na palavra gênero e seus resultados têm implicações diretas na vida das mulheres, de pessoas LGBTIAPN+ e na eficácia de regimes autoritários por todo o globo. Outras implicações acontecem nas escolas, em currículos que pretendem retirar a palavra gênero das práticas docentes, incitando o medo de que se ensine as crianças a serem gays, lésbicas ou trans ‒ vale lembrar os ataques que a autora recebeu no Brasil. Convém destacar, ainda, como nesse livro de Butler, que durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro no Brasil (2019-2022), o gênero foi encarado como doutrinação e perseguido nos currículos escolares5, sob a argumentação de que põe em dúvida o caráter normativo da heterossexualidade.

O objetivo desse livro não é propor uma nova teoria de gênero, mas contestar algumas falsidades no processo da incitação destes medos do gênero e compreender como tais mentiras circulam de forma fantasmagórica, com argumentos que a autora desenvolve e explora muito bem no texto. Dividido em introdução, conclusão e mais dez capítulos, Butler inicia, no primeiro capítulo, recorrendo ao cenário global, uma discussão sobre diferentes países que utilizaram a influência antigênero nas eleições para o Poder Executivo. Esses fantasmas do gênero que circulam em diferentes locais surgem com propósitos diferentes, mas são todos unificados e incitados por partidos, organizações globais, redes sociais e igrejas evangélicas e católicas, o que resulta em uma coalizão transnacional do passado histórico e do presente do fascismo.

A doutrina da complementaridade que estipula os ideais de que Deus criou o homem e a mulher, e suas devidas atribuições, e, por isso, o casamento deve ser apenas heterossexual, é um dos pontos de vista do Vaticano, esboçado no capítulo dois do livro de Butler. O Vaticano tem como intenção que sua doutrina seja a única verdade autorizada. Enquanto ataca a ideologia de gênero, não considera os altos números de casos registrados de crimes sexuais cometidos por padres contra menores de idade.

Ao voltarem-se ao mandato de Donald Trump e às atribuições da Suprema Corte estadunidense, os capítulos terceiro e quarto são destinados a compreender os ataques ao gênero nos Estados Unidos. Na análise de uma série de projetos pautados no país, Butler se detém a explorar os efeitos desse fantasma na educação escolar, na qual abordar temas relacionados ao gênero e à sexualidade é considerado como uma exposição à pornografia. Nesse cenário, a heteronormatividade torna-se quase obrigatória, sendo respaldada por leis, doutrinas e enfatizada em ambientes escolares. Não obstante, é sob o mesmo guarda-chuva que criticam a teoria crítica da raça, chamando-a também de doutrinação, afinal, são os efeitos da branquitude pretendendo negar viver em um país racista.

Foi nas últimas semanas da presidência de Trump e durante as movimentações do ano eleitoral que o ex-presidente estadunidense apelou em incitar ansiedades e medos relacionados à sexualidade e ao gênero, convocando o Estado a realizar decretos legais que impuseram retrocessos à população LGBTQIAPN+6. Também nesse momento, defendeu o controle estatal sobre a educação e legislações referentes à criminalização do aborto. Ao analisar tais questões, Butler nos leva a refletir que esse referencial jurídico que vem surgindo ataca novas possibilidades de formações históricas e pretende manter a ordem patriarcal com o apoio da lei federal, mas também em diálogo com forças religiosas.

Quão dolorido é reconhecer feministas transexcludentes como colegas de trabalho? É sobre esse assunto que Butler se debruça no quinto capítulo. Essas feministas, autointituladas como críticas de gênero, valorizam e validam o fantasma de gênero esboçado pela direita. Uma vez que o cerne desse debate é a matéria do sexo, defendem a ideia de que gênero nega a materialidade do sexo. Atual e presente em estudos de gênero, esse debate colocou em risco centros de estudos sobre o tema em algumas universidades do Reino Unido. Afinal, quem tem medo do (trans)gênero? (York, 2024).

Os capítulos seis, sete e oito dedicam-se a debater sobre a materialidade do sexo, ao conceito de gênero e à construção conjunta entre natureza/cultura. Butler defende que o corpo e o sexo devem ser entendidos como categorias relacionais, envolvidas em contextos sociais que, por isso, passam por mutações. Para ela, a própria atribuição do sexo é um espaço em que é possível perceber os poderes sociais que agem sobre os corpos, o que torna necessário considerar as dimensões materiais do corpo de forma não positivista, entendendo-o como relacional e moldado nas configurações sociais e nas instituições. Não obstante, as influências da natureza também agem sobre os corpos. Ao criticar novamente as feministas transexcludentes por retornarem às ideias de fatores biológicos, sem perceber como estes interagem, a autora defende que esse é o momento de superarmos o argumento natureza/criação, pois o próprio corpo é resultado dessa interação, como lembrado por Donna Haraway (1991).

O gênero, imposto pelas forças coloniais, perpassou por condições históricas e sociais que o efetivaram. Esse é o pressuposto que Butler explora no capítulo nove. Foi a colonização que produziu o binarismo heteronormativo e a família heteronormativa, tal como as normas de branquitude em práticas sociais e linguísticas. Esses fantasmas racistas não eram apenas ideias, mas imposições forçadas que resultaram em violências racistas e coloniais que seguem presentes, sustentadas pelo efeito fantasmagórico do gênero.

Qual é a interferência da tradução? É sobre essa miríade que alguns opositores ao gênero se colocam: por ser um termo estrangeiro (gender), não pertencente à língua natal, não deve ser ensinado nas escolas, é um inimigo da nação e um migrante indesejado. Na Rússia governada por Vladimir Putin, o fato de o gênero ser um termo estrangeiro ameaça seus projetos imperialistas e frustra as tentativas de alcançar a pureza nacional. Para Butler, na esteira do que Gayatri Spivak (2010) chama de uma preparação epistemológica persistente, gênero não é uma tradução possível, nem impossível. Essa dimensão de “como coabitar um mundo quando não há equivalência conceitual” (p. 251) é uma das características dos debates feministas em contextos transnacionais, pois apenas falando a partir de uma perspectiva local é que nos inserimos no global.

Na conclusão intitulada “O medo da destruição, a luta para imaginar”, Butler disserta sobre as pessoas que se colocam como contrárias à ideologia de gênero, que são as mesmas que deslocam os medos das reais destruições que estão em curso no planeta – como desastres climáticos, racismo sistêmico, assassinatos de mulheres e pessoas trans – para apontar o medo do gênero como causador da destruição. Para enfrentarmos esse cenário, Butler sugere como possibilidade a formação de coalizões transnacionais que mobilizem todas as pessoas que a direita ultraconservadora e fascista definiu como alvo. Não é o momento de feministas, pessoas LGBTQIAPN+ dispersarem-se em pautas identitárias. As lutas devem ser coletivas, pois os ataques também o são. Esse chamado por uma aliança global é uma das contribuições de Judith Butler com esse livro. A autora nos convida a sermos solidárias com pautas que, por vezes, não acatamos e a encontrarmos paixões que movam a esquerda no combate contra forças capitalistas, racistas, patriarcais e transfóbicas.

Afinal, quem tem medo do gênero e por quê? Esse livro nos oferece uma análise detalhada dessas pessoas, movimentos políticos e organizações que solidificam e fortalecem esse fantasma. Ao percorrermos a fácil e intensa leitura, percebemos, ao longo das páginas, que se trata de quase um desabafo da autora, considerando que ela própria foi atacada e retratada como um demônio por essas mesmas pessoas. Na resposta à pergunta que abre o parágrafo, lembramo-nos que o livro foi retirado das livrarias em julho de 2024, via decisão judicial movida por uma editora ligada à Igreja Adventista do Sétimo Dia, que acusava a Boitempo de violação de direitos autorais.7 O livro voltou a circular com uma capa totalmente preta. Outro efeito do fantasma do gênero é identificado em Santa Catarina, onde, recentemente, uma importante fundação de amparo à pesquisa negou o financiamento de projetos de pós-graduação com temáticas relacionadas a gênero, sexualidades e pessoas LGBTQIAPN+.8 É identificável quem tem medo do gênero. Esse medo do gênero foi focalizado pela autora, especialmente, nas ações de poderes executivos de diferentes países. Contudo, os legislativos em âmbito local e nacional têm sido lugares onde surgem e são aprovados diversos projetos antigênero, além de serem um espaço influente onde o efeito fantasmagórico circula. Certamente, uma investigação nesse âmbito seria pertinente para os estudos de gênero em contexto global.

Referências bibliográficas

  • BRASIL. Projeto de Lei nº 4.893, de 25 de setembro de 2020. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2264281 Acesso em: 1 maio 2025.
    » https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2264281
  • BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
  • BUTLER, Judith. Discurso de ódio: uma política do performativo. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 2021.
  • BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero? São Paulo: Boitempo, 2024.
  • HARAWAY, Donna J. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. Nova Iorque: Routledge, 1991.
  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Translating in a World of Languages. Profession, 2010, p. 35-43. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41419859 Acesso em: 15 set. 2025.
    » https://www.jstor.org/stable/41419859
  • YORK, Sara Wagner. Quem tem medo do (trans)gênero?. Revista Rosa, São Paulo, n. 2, v. 9, 2024. Disponível em https://revistarosa.com/9/quem-tem-medo-do-trans-genero Acesso em: 25 set. 2024.
    » https://revistarosa.com/9/quem-tem-medo-do-trans-genero
  • 1
    Nos websites das editoras brasileiras, a descrição da obra é descrita como: “neste seu primeiro livro não acadêmico [...]”. Para saber mais, ver: https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/quem-tem-medo-do-genero-152971#:~:text=Neste%20seu%20primeiro%20livro%20n%C3%A3o,pol%C3%ADticos%20fascistas%2C%20autorit%C3%A1rios%20e%20excludentes. Acesso em: 25 set. 2024.
  • 2
    Butler (2024) afirma que o “gênero” como “ameaça” é impulsionado pelo Vaticano desde a década de 1990. Naquele cenário, o gênero representava uma ameaça à família, à autoridade bíblica, desafiava a “natureza” e a vontade de Deus. Segundo a autora, isso se manteve, mas outras formas de indicar o medo do gênero foram acionadas.
  • 3
    Como por exemplo: o partido Vox na Espanha incluía referências frequentes ao “jihadismo de gênero” e às “feminazis” em sua campanha política; na Rússia, Vladimir Putin identificou o gênero como uma construção ideológica ocidental, dizendo que confrontá-la ideologia seria “necessário para preservar a identidade espiritual e a unidade da nação russa” (p. 49).
  • 4
    A ideia de reconduzir o mundo a um tempo anterior ao “gênero” pressupõe um retorno a uma sonhada ordem patriarcal, que provavelmente nunca existiu, porém, ocupa um lugar da “história” ou da “natureza” (p. 18).
  • 5
    A perseguição à “ideologia” de gênero no Brasil foi impulsionada pelo governo bolsonarista. Em seu discurso de posse, em 2019, o ex-presidente argumentava que teria como compromisso “erradicar a ideologia de gênero das escolas”. Esse compromisso de Bolsonaro repercutiu em propostas legislativas em diferentes níveis visando coibir a “doutrinação” da “ideologia de gênero” (p. 51). E resultou, por exemplo, no PL nº 4893/2020, que visa tipificar “como crime a conduta de quem, nas dependências das instituições da rede municipal, estadual e federal de ensino, adote, divulgue, realize, ou organize política de ensino, currículo escolar, disciplina obrigatório, complementar ou facultativa, ou ainda atividades culturais que tenham como conteúdo a ideologia de gênero” (Brasil, 2020).
  • 6
    Donald Trump envolveu o Departamento de Saúde e Serviço Social dos Estados Unidos, procurando afirmar que gênero deveria ser entendido exclusivamente como “sexo”, como uma característica imutável de cada ser humano, atribuído no nascimento com base na genitália. Como resultado, as pessoas trans não poderiam argumentar com base na lei que sofreram discriminações com base no sexo (Butler, 2024).
  • 7
  • 8
    As bolsas foram negadas sob alegação de que não haveria “correlação direta entre o tema proposto pelos projetos e o desenvolvimento regional do Estado de Santa Catarina”. Para saber mais, consultar: https://ieg.ufsc.br/noticias/759. Acesso em: 25 abr. 2024.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    Out 2025

Histórico

  • Recebido
    19 Fev 2025
  • Aceito
    08 Maio 2025
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