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UMA ABORDAGEM REFLEXIVA DE ENSINO DE PRÁTICA DE TRADUÇÃO (SEMI-)AUTOMATIZADA PARA FORMAÇÃO DE TRADUTORES

A REFLECTIVE APPROACH FOR TEACHING SEMI-AUTOMATIC TRANSLATION PRACTICE IN TRANSLATOR TRAINING PROGRAMS

Resumo

A adoção de sistemas de memória tem promovido transformações definitivas no desenvolvimento e nos critérios de contratação de traduções de textos em formato eletrônico. Com o objetivo de examinar a influência do uso dessas ferramentas na produção de tradutores em formação, este trabalho apresenta um estudo que propõe uma abordagem reflexiva de análise da produção tradutória de estudantes em treinamento acadêmico. Para tanto, oito participantes do terceiro ano de um curso de graduação em Tradução foram convidados a traduzirem três contratos do inglês para o português com e sem o uso do sistema Worfast Classic (versão 6.0). Os resultados da análise da produção dos estudantes indicam que aqueles que utilizaram a ferramenta produziram traduções mais uniformes, com alto índice de semelhança entre elas, o que pode ser indicativo da influência da memória no trabalho de tradução. Considerando a escassez de pesquisas voltadas à análise da maneira como tradutores se relacionam com as ferramentas que empregam em seu trabalho e o modo como são afetados por elas, espera-se contribuir para um melhor entendimento das possíveis implicações envolvidas na associação entre o tradutor e tecnologias como os sistemas de memória no trabalho de tradução.

Palavras-chave
Sistemas de memória de tradução; Turnitin; Formação de tradutores; Tecnologia

Abstract

Translation memory systems have been promoting definitive changes in the development and contracting criteria of translations of texts in electronic format. With the purpose of examining the influence of the use of these tools in the production of translators in training, this paper presents a study proposing a reflective approach for the analysis of translations by students in academic training. For this purpose, eight participants attending the third year of an undergraduate program in Translation were invited to translate three contracts from English into Brazilian Portuguese with and without the assistance of Wordfast Classic (version 6.0)Wordfast Classic. Version 6.13. Disponível em: http://www.wordfast.net/. Acesso em: 10 jun. 2017.
http://www.wordfast.net/...
. The results of the analysis of the students’ translations suggest that those who used the tool produced more uniform translations, with high similarity index between them, which may be indicative of the influence of the memory in the translation work. In view of the scarce research focused on the analysis of the way translators interact with the tools employed in their work and how they are affected by them, this study aims to contribute to a better understanding of the possible implications involved in the association between the translator and translation memory systems in the work of translation.

Keywords
Translation memory systems; Turnitin; Translator training; Technology

1. Introdução

Recursos tecnológicos de auxílio à tradução, em particular os sistemas de memória, conquistaram espaço definitivo no trabalho do tradutor que lida com textos especializados, em formato digital e de grande extensão. A conveniência desses sistemas está em sua capacidade de armazenar trechos de traduções anteriores e recuperá-los em trabalhos seguintes, o que permite tanto a aceleração como a padronização da produção tradutória. Por serem projetados com base no princípio de “reciclagem” de textos anteriormente traduzidos (O’Brien 1998O’Brien, S. Practical Experience of Computer-Aided Translation Tools in the Software Localization Industry. In: Bowker, L.; Cronin, M.; Kenny, D.; Pearson, J. (Eds.). Unity in diversity? Current trends in translation studies. Manchester: St. Jerome Publishing, 1998. p. 115-122.), esses sistemas “alavancam” um novo trabalho (Bowker (A) 2002Bowker, L. (A) Computer-aided translation: a practical introduction. Ottawa: Ottawa University Press, 2002.), já que, idealmente dispensam o tradutor de retraduzir um mesmo fragmento de texto, seja ele uma frase ou parte dela.

A crescente incorporação dos recursos dos sistemas de memória à rotina do trabalho tradutório tem, por sua vez, promovido transformações significativas na maneira como a tradução é contratada e praticada. Tal fato se explica pela própria concepção dessas ferramentas. Para que tais sistemas funcionem de maneira eficaz, o texto a ser traduzido é apresentado ao tradutor em segmentos, divididos sem qualquer relação contextual, mas delimitados seguindo sinais de pontuação, como ponto final, ponto e vírgula e pontos de interrogação e exclamação. À medida que o tradutor traduz os trechos de texto assim apresentados, o sistema vai automaticamente armazenando os segmentos traduzidos com seus respectivos originais na memória, novamente sem qualquer relação contextual, alimentando um banco de dados fraseológicos. Concluído o trabalho, a prática vigente de agências de tradução é aquela em que o tradutor fornece a tradução segmentada e pareada com seus respectivos trechos originais, visando ao reaproveitamento futuro do trabalho pelo mesmo ou por outro tradutor que venha ser contratado.

Esse cenário descreve brevemente a prática futura de tradutores em formação que pretendem prestar serviços de tradução especializada (técnica) para agências de tradução ou localização, setor este responsável pelo considerável crescimento da demanda de tradução na última década (Dunne 2014Dunne, K. J. Localization and the (R)evolution of Translation. In: Bermann, S.; Porter, C. A Companion to Translation Studies. Sussex: Wiley-Blackwell, 2014. p. 147-162.). Atuar nessa indústria, que tem por requisito a proficiência em ferramentas de auxílio à tradução, requer capacidade de produção rápida ao menor custo possível. Envolve também estar ciente de que o trabalho final de tradução servirá também para alimentar a memória do contratante, que poderá, a partir de então, dispor dos segmentos bilíngues nela armazenados da maneira que lhe convier. Como atesta Hartley (2007)Hartley, T. Technology and Translation. In: Munday, J. The Routledge Companion to Translation Studies. London: Routledge, 2009. p.106-127., “em empresas de maior porte, o volume total de tais pares [segmentos bilíngues] pode chegar a milhões, constituindo um bem de alto custo e valor” (109).

As decisivas mudanças no mercado de trabalho de tradução especializada e o perfil almejado para o tradutor na atualidade têm incentivado cursos universitários de formação de tradutores a reformularem seus currículos para incluir o treinamento de ferramentas de auxílio à tradução, particularmente sistemas de memória. Em pesquisa realizada em 2013 com 27 cursos de graduação em tradução de universidades privadas e públicas brasileiras, constatou-se que 13 deles já incorporaram o treinamento de ferramentas em seus programas (Stupiello, 2013).

Por outro lado, conforme dados colhidos nos questionários utilizados na mesma pesquisa, a grande maioria das disciplinas criadas para introduzir tecnologias de auxílio à tradução concentra-se no treinamento dos recursos desses sistemas, o que caracteriza uma abordagem estritamente instrumental de trabalho. Rotineiramente, tem-se um ensino de caráter descritivo, focado no que os sistemas de memória são capazes de proporcionar ao futuro tradutor: economia de tempo pela recuperação de traduções anteriores e padronização terminológica. Com o foco voltado à prática, sobra pouco ou nenhum espaço para uma apreciação do que essas ferramentas representam para o trabalho do tradutor, ou de como ele pode ser afetado por elas, uma preocupação para qual Cronin (2003)Cronin, M. (A). Translation and Globalization. London: Routledge, 2003. chama a atenção ao afirmar que

a tendência em enxergar as ferramentas quase exclusivamente no domínio da nova tecnologia conduz a leituras predominantemente descritivas de seu uso (o que elas fazem) e a uma negligência subsequente das implicações mais vastas de sua presença no mundo da tradução (o que elas representam). (Cronin (A) 28Cronin, M. (A). Translation and Globalization. London: Routledge, 2003.)1 1 Esta e as demais traduções das referências em língua estrangeira neste trabalho foram feitas por mim.

Uma dessas implicações estaria no próprio relacionamento do tradutor com sua ferramenta de trabalho, no modo como ele afeta e é afetado por ela. Conforme explica Cronin, a relação entre tradutores e as novas tecnologias não seria interpretada como uma “ruptura cismática” com a tradição do ofício, mas como um desenvolvimento na relação entre o tradutor e seus recursos de trabalho (Cronin (A) 29Cronin, M. (A). Translation and Globalization. London: Routledge, 2003.). As ferramentas seriam uma extensão do trabalho do tradutor e a automação do trabalho não significaria que “a tradução se torna menos complicada como um fenômeno, mas, sobretudo, que há uma transferência no processamento cognitivo (em parte) do tradutor humano para a ferramenta” (Cronin (A) 63Cronin, M. (A). Translation and Globalization. London: Routledge, 2003.).

No caso dos sistemas de memória, essa “transferência” do conhecimento do tradutor a que Cronin (2003)Cronin, M. (A). Translation and Globalization. London: Routledge, 2003. se refere é organizada e sistematizada no banco de dados (memória) do sistema, possibilitando que o produto de um trabalho (uma tradução) se torne a ferramenta para iniciar e dar andamento a uma nova tradução, mesmo que seja com outro tradutor. Pode-se dizer que essas ferramentas possibilitam que a expertise do tradutor, suas escolhas terminológicas e seu estilo de escrita sejam facilmente integrados a outros trabalhos por diferentes tradutores em um incessante processo de reciclagem.

Quanto mais os sistemas de memória são utilizados em trabalhos de tradução, maiores as chances de a recuperação de trechos de frases ou de frases inteiras ser cada vez mais rápida e precisa. Essa prática corrente e que conquista cada vez mais adeptos (por escolha ou imposição por agências) pode ter efeitos na composição dos textos traduzidos, processados como “coleções de frases” por essas ferramentas. Conforme argumenta Cronin (2013)Cronin, M. (B). Translation in the Digital Age. London: Routledge, 2013., os usuários dessas tecnologias devem se atentar para “tendenciosidade de algumas formas de automação da tradução” que podem comprometer a “coesão textual geral” uma vez que “o aumento no uso de memórias possibilita que escolhas iniciais de tradução se tornem embutidas nos textos, sendo então replicadas infinitamente em diferentes contextos” (136).

Considerando a importância da construção de uma consciência sobre o que envolve traduzir com o auxílio de sistemas de memória, é possível afirmar que o treinamento técnico para uso eficaz da ferramenta (como oferecido em muitos cursos de graduação) é insuficiente para desenvolver um conhecimento crítico no tradutor sobre as possíveis influências em sua produção e a relevância de sua atuação durante todo o processo. Como se pretende argumentar neste trabalho, a aprendizagem de uma nova ferramenta deve buscar ir além das descrições e explicações sobre o emprego eficaz dos recursos que as compõem.

A reflexão sobre possíveis efeitos da adoção das tecnologias pelo tradutor, sobre o modo como a ferramenta pode produzir efeito na execução de um trabalho, pode significar um passo adicional na qualificação profissional do tradutor em formação, preparandolhe para negociar suas condições de trabalho com conhecimento suficiente sobre o que envolve traduzir e quais são as implicações de um trabalho parcialmente automatizado.

A fim de analisar possíveis influências da adoção de sistemas de memória para auxiliar a tradução, este trabalho apresenta dados de um estudo sobre a atuação desses sistemas na prática de tradutores em formação e propõe uma abordagem reflexiva aplicada ao ensino de sistemas de memória de tradução a fim de promover a percepção, por futuros tradutores, de como a automatização parcial de seu trabalho pode afetar suas escolhas e, especialmente, sua produção final já no momento e da maneira como o texto de origem é apresentado.

A proposta de análise divide-se em duas partes: a primeira, em que são detalhadas as condições do estudo e os recursos utilizados para seu desenvolvimento, e a segunda, em que se discutem os resultados obtidos. Por último, apresentam-se algumas considerações e sugestões de encaminhamentos.

2. Os sistemas de memória no curso de formação de tradutores: do treinamento à aquisição de um olhar crítico

Embora os estudantes universitários estejam familiarizados com processadores de textos, como o Word, por exemplo, a grande maioria (ou até a totalidade) deles nunca operou um sistema de memória de tradução. Assim sendo, é na graduação que eles são introduzidos a programas e recursos tecnológicos para auxiliar o trabalho de tradução. Esse primeiro contato é relevante, pois pode determinar a maneira que o tradutor se relacionará com a ferramenta, além de ser importante para desenvolver sua capacidade de autoaprendizado, visto que a cada dia surgem novas plataformas para sistemas de memória. É também na graduação que o tradutor em formação aprende a valorizar seu papel na tomada de decisões com a ferramenta e a se conscientizar que é responsável pela construção do sentido que o texto traduzido terá (ainda que lhe sejam providos glossários e segmentos de trabalhos recuperados pelos sistemas de memória).

No curso de Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor da Unesp de São José do Rio Preto, por exemplo, o treinamento em ferramentas de tradução ocorre no segundo ano em uma disciplina com carga horária de 30 horas e que prevê a introdução dos estudantes às tecnologias de tradução. O sistema de memória com o qual os estudantes têm maior contato é o Wordfast (em suas versões Classic, Anywhere e Professional). As três versões dessa ferramenta são utilizadas pelos estudantes para desenvolverem suas traduções e é por elas que eles são avaliados ao final da disciplina.

Durante o treinamento, os estudantes/tradutores aprendem a criar suas memórias (onde serão armazenados os segmentos de texto original e tradução) e a utilizar (ou não) as correspondências totais ou parciais que começam a ser geradas conforme a ferramenta é utilizada. Nesse contato inicial, o objetivo é familiarizá-los com os principais recursos de um sistema de memória e incentivá-los a manipular a ferramenta, oferecendo-lhes também espaço e tempo para perceberem as limitações que a tecnologia pode apresentar e, sempre que possível, alguns modos de contorná-las.

A primeira condição para aplicação de qualquer ferramenta de auxílio ao tradutor está no formato de texto de origem que, necessariamente deve ser eletrônico e editável. Ao carregar o texto na ferramenta, o tradutor o visualiza em fragmentos de frases dispostos ao lado de caixas de texto para a inserção dos segmentos de tradução. De acordo com Pym (2011)Pym, A. “What technology does to translating”. Translation and Interpreting. 3. 1 (2011):1-9., a apresentação do texto nesse formato já influencia no trabalho de tradutor na medida em que atua para interromper a linearidade da leitura, podendo afetar a interpretação e a construção da coesão textual da tradução. Conforme explica,

a primeira coisa que chama a atenção é que o texto está segmentado, fragmentado em unidades colocadas uma em cima da outra. Isto é, o texto está fragmentado de forma paradigmática; sua linearidade é repetidamente interrompida. A mente tradutória é convidada a trabalhar em um segmento após o outro, checando a consistência terminológica e fraseológica, porém deixando de verificar, nesse ambiente, a coesão sintagmática.

(Pym 3Pym, A. Translation technology and training for intercultural dialogue: What to do when your translation memory won’t talk with you. In: Dimitriu, R.; Freigang, K-H (Eds.) Translation Technology in Translation Classes. Iasi: Institutul European, 2011. p.12-27)

O material com o qual o tradutor de websites, programas de software e documentação de produtos lida, em geral, não lhe é apresentado com um começo, meio e um fim. O tradutor trabalha com conjuntos de dados linguísticos, produzindo blocos [chunks] de textos que serão quase sempre lidos de maneira fragmentada, especialmente em se tratando de informações online muitas vezes guiadas por links que conduzem o leitor a uma leitura também compartimentada. Outra questão é que, muitas vezes, o tradutor também não sabe qual o destinatário final de seu trabalho, o que impossibilita pensar a tradução em relação a seu leitor ou ao usuário final.

Especialmente em trabalhos de tradução especializada, que exigem a adoção de um sistema de memória para controle e padronização da terminologia e como forma de garantir reaproveitamento do trabalho atual em revisões futuras, o tradutor muitas vezes não é contratado para traduzir um texto completo, mas segmentos dispostos em caixas de texto por vezes de forma não sequencial. Em se tratando de uma nova versão de um texto, os segmentos contidos na versão anterior são apresentados já com suas traduções, cabendo ao tradutor o trabalho de revisão, ou não, desses trechos de texto.

Essas situações demonstram como o foco do trabalho de tradução é sempre no nível do segmento textual. Essa maneira de trabalhar o texto impõe desafios, especialmente no que se refere a índices de semelhança ou não entre trabalhos anteriores e versões atuais.

Durante o treinamento, é grande a empolgação dos estudantes/ tradutores com a possibilidade de aproveitar trechos já traduzidos em outras ocorrências. Um dos desafios no ensino dessas ferramentas está justamente na conscientização dos aprendizes sobre a falibilidade do sistema, ou seja, a aceitação da ideia de que a recuperação de um segmento é feita exclusivamente por meio de algoritmos matemáticos que calculam o índice de semelhança entre os caracteres armazenados na memória e aqueles da tradução em desenvolvimento. Para esses sistemas, as línguas nele armazenadas são tratadas como nomenclaturas sem qualquer relação com o significado das palavras que compõem o texto sendo traduzido.

No mercado de trabalho, com prazo mínimo para conclusão de uma tradução, podem ser grandes as chances de o tradutor (especialmente o novato) aceitar de imediato as opções apresentadas pelo sistema de memória sem verificar sua exatidão e a coesão e harmonia com o novo contexto do qual o segmento fará parte. Essa é uma preocupação que deve também chamar a atenção dos aprendizes durante o ensinamento desses sistemas, pois ela determinará a qualidade final do texto traduzido.

Na atualidade, os tradutores tendem cada vez menos a empregar suas próprias memórias, assim como receber arquivos pré-traduzidos cujos bancos de dados (memória) encontram-se armazenados em um endereço eletrônico. Nessa configuração, o tradutor pode ganhar produtividade ao acessar instantaneamente as memórias produzidas por outros tradutores, mas, ao mesmo tempo, ele perde a autonomia e o controle de sua produção terminológica e fraseológica, a qual é “devolvida” ao contratante juntamente com a tradução.

A maneira como o aprendiz de tradução se relaciona com os sistemas de memória com os quais começa a aprender o ofício é indispensável, especialmente se considerarmos que a relação entre o tradutor e a ferramenta pode ser um fator decisivo na construção da imagem do futuro profissional que deseja atuar na área de tradução especializada.

Esse trabalho de ensino reflexivo de tradutores em formação envolve o levantamento de possíveis problemas que o sistema de memória pode ocasionar e é desenvolvido em uma segunda etapa de treinamento de uso de sistemas de memória. No terceiro e quarto (último) anos do curso de Bacharelado em Letras com Habilitação de Tradutor da Unesp de São José do Rio Preto, nas disciplinas de Prática de Tradução II e Prática de Tradução III em Língua Inglesa, os estudantes traduzem textos específicos, de diversas especialidades, entre elas textos comerciais, técnicos, jornalísticos, jurídicos. As traduções são realizadas com e sem o auxílio de sistemas de memória, mas há sempre um incentivo para que os estudantes façam uso dessas ferramentas sempre que possível. As aulas de revisão de traduções são o ambiente propício para discussão das limitações do sistema de memória, pois nelas os estudantes apresentam suas produções, relatam suas dificuldades que, na maioria das vezes, são bastante semelhantes, e analisam os aspectos positivos e negativos do emprego do sistema de memória na tradução.

As discussões desenvolvidas em classe são amparadas por dados de uma pesquisa iniciada em 2013 com estudantes das turmas de Prática de Tradução II e III em Língua Inglesa do referido curso. O estudo é dividido em três etapas e envolve a tradução de textos comerciais (contratos), contendo aproximadamente 700 palavras, para ser realizada durante o período de uma duas horas. Na primeira etapa, propõem-se a tradução de um contrato em formato pdf sem auxílio do sistema de memória. Na segunda, os estudantes realizam a tradução de outro contrato e são orientados a criar um arquivo de memória para a tradução, ou seja, eles são responsáveis por gerar e administrar a memória criada para o trabalho. Já na terceira etapa, os estudantes recebem um texto com alguns segmentos pré-traduzidos, sendo orientados para realizar o trabalho como se tivessem sido contratados por uma agência que reaproveitou trechos de traduções anteriores no trabalho atual.

Ao final de cada atividade, os estudantes discutem as dificuldades e as vantagens de realizar um trabalho assistido ou não por um sistema de memória. Por trabalharem com o sistema Wordfast desde o segundo ano do curso, os participantes da pesquisa relatam nessas discussões que, embora tenham economizado tempo ao empregar a ferramenta, eles sentem maior liberdade para traduzir sem se preocupar com as restrições impostas pela segmentação dos sistemas de memória. Informam também que sentem que o controle do trabalho diminui à medida que eles são orientados a reaproveitar trechos de trabalhos anteriores.

Ainda que tenham sido colhidas informalmente no contexto de sala de aula, as opiniões dos tradutores em formação (e presumidamente sem experiência de trabalho) ecoam aquelas de tradutores profissionais que trabalham em agências de traduções, como reportado por LeBlanc (2013)Leblanc, M. “Translators on translation memory (TM). Results of an ethnographic study in three translation services and agencies”. Translation & Interpreting, Sidney, v.5, n.2, p. 01-13, 2013. Disponível em: <http://www.transint.org/index.php/transint/article/view/228/134>. Acesso em: 23 maio 2016.
http://www.transint.org/index.php/transi...
. De acordo com o estudo etnográfico desenvolvido pelo pesquisador, alguns profissionais entrevistados relataram que os sistemas de memória acabam “forçando os tradutores a adotar uma abordagem frase a frase”, o que “altera todo o processo mental e reduz a tradução a uma mera atividade de substituição de frases” (7). Como conclui LeBlanc, a mudança da relação do tradutor com o texto, o qual já não é mais visto com um todo, e sim como um conjunto de frases (ou segmentos), pode resultar na propagação de erros ou inadequações, especialmente por parte de tradutores que ainda estão adquirindo experiência, seja por terem ingressado recentemente na profissão ou por estarem ainda na fase de aprendizado da ferramenta.

No próximo item, apresento os resultados de uma análise de traduções feitas por participantes que se encontram justamente em fase de aquisição de conhecimento e experiência em tradução e nas ferramentas que prometem tornar seu trabalho mais eficaz.

3. Perdas e ganhos na tradução de contratos com e sem o Wordfast

O emprego de um sistema de memória na tradução de um contrato pode ser de grande utilidade. Apesar de não seguirem um único padrão, esses documentos encerram um mútuo consenso de duas ou mais pessoas (físicas ou jurídicas) sobre o mesmo objeto. Frequentemente, após a tradução do documento as partes discutem minúcias das cláusulas antes de firmar a obrigação e, nessa etapa, o documento pode sofrer alterações posteriores à tradução. Essas alterações são facilmente identificáveis quando se utiliza um sistema de memória que, ao segmentar o texto, apresenta ao tradutor os fragmentos alterados e aqueles mantidos. Assistido pelo sistema, o tradutor consegue acelerar o trabalho de revisão e tradução do documento final.

Essa explicação foi oferecida aos participantes do estudo, a fim de simular uma situação de tradução de um contrato com e sem o auxílio de um sistema de memória em um contexto de trabalho, com prazo reduzido e a possibilidade de ter que revisar o texto final. Os oito participantes do estudo traduziram três contratos com cerca de 700 palavras cada durante três semanas consecutivas. Os trabalhos foram realizados no prazo de duas horas. Os participantes,2 2 Todos os participantes do estudo assinar um Termo de Consentimento Live e Esclarecido (TCLE). O estudo encontra-se cadastrado na Plataforma Brasil. com idades entre 17 e 22 anos, são tradutores em formação no terceiro ano de graduação sem experiência com esse tipo de documento.

As traduções foram analisadas com o auxílio do Turnitin, um software disponível online originariamente projetado para identificação de plágio em trabalhos acadêmicos. Neste estudo, o Turnitin é útil na quantificação do índice de semelhança entre as traduções realizadas pelos estudantes com e sem o auxílio do sistema de memórias. Para esse fim, utilizou-se o recurso denominado OriginalityCheck, que compara a tradução de um estudante com todas as outras de seus colegas depositadas no repositório do programa. Os resultados são apresentados em índices de porcentagem e, no texto, são destacados os trechos considerados semelhantes ou idênticos pelo Turnitin.

A primeira tradução, um contrato de compra, foi desenvolvida sem o auxílio de qualquer memória de tradução. Os participantes puderam realizar pesquisas terminológicas livremente na internet, mas não utilizaram nenhuma ferramenta na tradução. Concluídos os trabalhos, os arquivos foram carregados na plataforma do Turnitin para uma primeira análise um exemplar dessas traduções, com termos e fragmentos idênticos às outras traduções marcados em vermelho, conforme apresentada na Figura 1 a seguir:

Figura 1
Tradução (inglês/português) de um contrato de compra realizada sem o auxílio de um sistema de memória.

O sistema destaca os trechos semelhantes aos das outras traduções armazenadas no repositório do Turnitin. Observa-se a marcação indicativa de alto índice de semelhança nas traduções de subtítulos e de termos e expressões comuns em contratos, como referências a Comprador e a Vendedor e expressões como “relação contratual”, “ordem de compra”, condições gerais de compra”, entre outras.

Pelo recurso Originalitycheck é possível identificar com precisão o quanto um texto se assemelha a outros armazenados no sistema, como informam os índices na Figura 2 seguinte:

Figura 2
Índice de semelhança entre traduções realizadas sem auxílio de sistema de memória.

A figura permite interpretar que a tradução com “menor semelhança” às outras armazenadas no sistema teve um índice de 12%. Já aquela com maior número de expressões correspondentes atingiu um nível de 62% de semelhança.

A próxima figura exibe as marcações dos trechos com alto índice de semelhança de um contrato de compra e venda traduzido com o auxílio do Wordfast. Nota-se que o arquivo também apresenta vários trechos identificados como altamente semelhantes pelo TurnitinTurnitin. Disponível em: www.turnitin.com.br. Acesso em 18 jan. 2017.
www.turnitin.com.br...
.

Figura 3
Tradução (inglês/português) de um contrato de compra e venda realizada com o Wordfast.

No caso das traduções feitas com o auxílio do Wordfast, o menor índice de semelhança ficou na faixa de 40%, muito superior ao menor índice das traduções feitas sem o recurso à ferramenta (12%). O índice médio de semelhança entre as traduções dos participantes atingiu a marca de 89%.

Figura 4
Índice de semelhança entre traduções assistidas pelo sistema Wordfast.

Analisar a originalidade de uma tradução por meio de índices e porcentagens é útil, pois torna possível identificar e quantificar com precisão como os sistemas de memória colaboram para tornar os textos traduzidos mais similares e, por conseguinte, com menos espaço de expressão do estilo e das escolhas do tradutor na reconstrução do texto traduzido em outra língua. A maneira como o sistema apresenta o texto ao tradutor, que o enxerga como um conjunto de segmentos a serem traduzidos de maneira consecutiva, por um lado, organiza a produção da tradução, mas, por outro, pode automatizar o trabalho de tal forma que se torna difícil considerar opções de tradução que não aquelas apresentadas pelo sistema (no caso de reaproveitamento de traduções anteriores) ou que não expressem exclusivamente o sentido do segmento encerrado pela caixa de texto.

Para avaliar a tendência do tradutor em aceitar, ou não, um segmento anteriormente traduzido, os participantes traduziram um terceiro contrato, o qual lhes foi entregue “pré-traduzido”, sendo que três segmentos da memória apresentavam erros, como ilustrado na Figura 5 a seguir:

Figura 5
Segmento de tradução recuperado da memória. Observa-se que ele contém dois erros de tradução, marcados em amarelo.

Ao abrirem os referidos segmentos com erros, dos oito participantes do estudo, cerca de três confirmaram o “não terá direito” como sendo a tradução correta de “reserves the right to” e “não será responsável” para traduzir “shall be responsible”. Em se tratando de números, em que o original informava “1% de juros” e o segmento recuperado, propositalmente, continha “10% de juros”, seis dos oito participantes aceitaram a tradução apresentada como correta para o contrato sendo traduzido.

Quando a alta produtividade passa a ter prioridade no trabalho de tradução, torna-se conveniente concentrar-se no rendimento, muitas vezes à custa da qualidade, que é alcançada especialmente com uma revisão criteriosa do trabalho, seja durante sua execução ou quando concluído. Seria como se a ferramenta que o tradutor emprega se tornasse parte do texto traduzido, influenciando sua produção. Essa visão é descrita por Cronin (2013)Cronin, M. (B). Translation in the Digital Age. London: Routledge, 2013. em referência à tecnologia, cujo emprego que a torna viável “também garante que seus efeitos se tornem imprevisíveis” (24). Para o teórico, o meio se tornaria parte da mensagem a ser produzida, afinal, como reitera em diversos pontos de sua obra Translation in the Digital Age (2013), “evoluímos ou somos definidos pelos artefatos que empregamos. As ferramentas nos moldam da mesma forma que as moldamos” (10).

4. Considerações finais

No mercado contemporâneo de produção traduções, a prioridade está em produzir mais pagando-se menos e, consequentemente, quase não há tempo para a revisão da produção tradutória assistida por memória de tradução. Os decrescentes prazos para a conclusão de um trabalho e a demasiada confiança do tradutor no conteúdo que a memória lhe apresenta, como sendo semelhante ou idêntico a um novo trecho de tradução, também interferem na qualidade do trabalho final. Ainda que a revisão possa demandar tempo e reduzir a produtividade, ela seria importante na medida em que pode não só melhorar trabalhos futuros, mas, especialmente, oferecer a oportunidade de o tradutor refletir sobre a maneira como seu trabalho é influenciado pela mesma ferramenta que lhe propicia agilidade. Para Bowker (2005)Bowker, L. (B). “Productivity vs. quality? A pilot study on the impact of translation memory systems.” Localization Focus. 4.1 (2005):13-20. Base de dados. 10/06/2015. http://www.localisation.ie/oldwebsite/resources/lfresearch/ Vol4_1Bowker.pdf.
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, “reservar tempo para verificar a adequação das sugestões do sistema de memória ajudará os tradutores a alcançar melhor equilíbrio entre produtividade e qualidade” (19). Analisar os efeitos da revisão tanto dos segmentos recuperados da memória quanto da tradução final é um dos encaminhamentos que esta pesquisa propõe. Outro, poderia envolver um exame detalhado da influência da segmentação do texto de origem nos elementos de coesão de sua tradução.

Conforme proposto neste estudo, a reflexão sobre o funcionamento de um sistema de memória, desenvolvida com base na produção de futuros tradutores durante o treinamento com essa tecnologia, pode ser definitiva para chamar a atenção para o padrão que os sistemas de memória podem acabar criando para as traduções produzidas a partir da leitura segmentada de trechos do texto de origem, os quais por vezes já acompanham uma tradução anterior.

Sendo a tecnologia, especialmente os sistemas de memória, um adjunto ao trabalho do tradutor contemporâneo, quanto mais este conhecer as implicações de seu uso na sua produção final, melhor preparado estará para lidar com esses efeitos e, em última análise, buscar e alcançar reconhecimento da importância de seu papel na criação de uma tradução.

  • 1
    Esta e as demais traduções das referências em língua estrangeira neste trabalho foram feitas por mim.
  • 2
    Todos os participantes do estudo assinar um Termo de Consentimento Live e Esclarecido (TCLE). O estudo encontra-se cadastrado na Plataforma Brasil.

Referências

  • Bowker, L. (A) Computer-aided translation: a practical introduction Ottawa: Ottawa University Press, 2002.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2018
  • Aceito
    05 Fev 2019
  • Publicado
    Maio 2019
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