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Leprince de Beamont, Jeanne-Marie, La Belle et la bête, 1756/ Bela e a Fera; tradução de Marie-Hélène Catherine Torres; Ilustrações de Laurent Cardon – 1. ed. – São Paulo: Poetisa, 2014. 55p.

Escrito originalmente no ano de 1740 pela Madame de Villeneuve – Gabrielle-Suzanne Barbot – o conto de fadas francês La Belle et la bête acabaria se tornando amplamente conhecido após mais de uma década depois, ao ser reescrito por Jeanne-Marie LePrince de Beaumont. As variantes do conto, entretanto, não param por aí; isto porque, principalmente dentro da Europa, muitas outras versões da história começaram a aparecer gradativamente. No ano de 1771 Zémire et Azor surgiria como uma das mais memoráveis destas versões; consistindo em uma ópera de quatro atos musicada pelo compositor belga André Grétry – e baseada em um texto escrito por Jean François Marmontel – a narrativa contaria uma história muito similar à do conto original; e o seu sucesso resulta em dezenas de reapresentações posteriores, contando inclusive com performances que datam desde o século XVIII até o século XX, obviamente na França, mas também na Rússia, Suécia, Inglaterra e, por último, em uma produção Alemã de 1991 (tendo o seu ápice de sucesso sido alcançado dentre as primeiras e últimas produções, no século XIX).

Foi muito antes disso, entretanto, mais especificamente no ano de 1742 (ou seja, dois anos após ter sido escrito por Barbot), que os protagonistas da ópera (as personagens Zémire e Azor) aparecem pela primeira vez. Seguindo uma linha narrativa que também remete à história da bela e da fera, o texto escrito pelo dramaturgo francês Pierre-Claude Nivelle de La Chaussée na peça intitulada Amour pour Amour, conta uma trama que se dá na Pérsia – sendo o texto responsável por dar vida aos personagens com os mesmos nomes que serviriam de inspiração para a ópera produzida por de Grétry e Marmontel após cerca de trinta anos (o que evidencia ainda mais o diálogo entre as versões). Parece estar claro, portanto, que desde que foi concebido e até a contemporaneidade o conto atravessaria gerações e alcançaria inegável aclamação popular – tendo se configurado como uma das mais relembradas histórias de princesas. Novas edições, adaptações para os mais distintos públicos e produções cinematográficas emergiriam com o passar do tempo – e a história do amor improvável entre uma fera e uma princesa ganharia novas formas permaneceria em voga; dentre estas versões – e como muito bem apontado pela editora Cynthia Costa na nota de apresentação da tradução – talvez mereçam destaque, além das versões já citadas, o filme de Jean Cocteau, de 1946 e a sempre lembrada animação da Disney, feita em 1991.

Vale ressaltar que a animação da Disney, que talvez seja atualmente a versão da história na qual mais pensemos quando nos lembramos deste título, foi extremamente premiada (tendo recebido o Oscar, Globo de Ouro e o Grammy em mais de dez categorias) e deu origem a outros frutos – dentre eles a continuação do filme, Beauty and the Beast: The Enchanted Christmas (1997), o filme Belle’s Magical World (1998), um musical homônimo ao conto (apresentado de 1994 até 2007), a série televisiva da Universal Channel Beauty & the Beast (em exibição desde 2012) e uma nova versão cinematográfica também da Disney e também no formato de musical que está sendo produzida desde 2013, com previsão de lançamento entre 2015 e 2016.

A nova versão da Disney é ainda uma acerca da qual se sabe muito pouco, já que as únicas informações divulgadas foram as de que será uma releitura mais sombria do conto (mas baseado principalmente na animação de 1991 e no musical da Broadway), de que o roteiro será escrito por Evan Sipiliotopoulos, o filme dirigido por Bill Condon e de que Emma Watson deve estrelar como Bela. Logo, pode-se perceber com essa breve contextualização que o conto se trata de um texto bastante reconhecido não só pelo público brasileiro, mas em boa parte do ocidente – tendo sido estas diversas e distintas versões fundamentais para promover a “sobrevivência do original”, seguindo a risca o caminho indicado por Walter Benjamin quando este discorre, em sua “Tarefa do Tradutor” (1923), sobre a tradução como responsável por permitir que continuem a respirar textos que desapareceriam caso não fossem traduzidos e levados para distintos contextos.

Ao vislumbrarem a ideia de montar uma editora, Cynthia Costa e Juliana Bernardino contribuem para a sobrevivência de mais alguns destes textos; além disso, conforme dito em entrevista concedida para o blog Esconderijos do Tempo1 1 http://esconderijos.com.br/editora-poetisa-traduzir-e-criar/ , ambas tinham um objetivo bem formado: traduzir e publicar livros que julgassem pertinentes para o público brasileiro, prezando pela transparência do processo de edição como um todo. A Poetisa, desse modo, chega ao mercado editorial com uma proposta declaradamente menos mercadológica devido à essa preocupação, justificado muito provavelmente pelo contato de suas representantes com as reflexões que permeiam os estudos da tradução. Bela e a Fera (2014) foi seu livro de abertura e refletiu bem, através de sua roupagem peculiar, a visão e o escopo das editoras.

Sendo assim, a proposta da editora e da tradutora de trazer novamente para os leitores este texto já tão concretamente estabelecido no sistema literário brasileiro não se estabelece, portanto, em um cenário de ineditismo – o que, por outro lado, não invalida o empreendimento que a edição leva a cabo nem dirime a sua responsabilidade nessa nova empreitada. Isto porque, apesar de consistir em uma obra canônica e de suas diversas traduções, retraduções e adaptações para outras mídias, é curioso o fato de que o livro La Belle et la Bête nunca antes havia sido traduzido na íntegra em solo brasileiro – neste sentido o ineditismo perdura, tornando essa nova tradução de 2014 ainda mais plausível e ansiada por um público que, até então, só poderia ter contato com edições condensadas do conto.

No que concerne a esta roupagem, uma das primeiras coisas que chama a atenção quando se manuseia a edição, é todo o aparato paratextual que o livro traz. Atualmente a voz dos tradutores vem sendo cada vez mais valorizada e apreciada nas edições de textos literários; através de espaços como notas de rodapé, notas dos tradutores, prefácios e posfácios, temos acesso a informações que antigamente costumavam ficar restritas a quem participava do processo de elaboração de uma obra traduzida. Na contemporaneidade, é comum que algumas edições de textos traduzidos disponibilize ao tradutor um espaço no livro para discutir suas escolhas e possivelmente sanar dúvidas acerca de suas escolhas, e com essa nova tradução da Bela e a Fera o processo não ocorre de forma diferente.

O estranhamento aparece, entretanto, por se tratar neste caso específico de uma tradução de literatura infanto-juvenil, onde a reflexão acerca do processo que levou a equipe editorial, a tradutora e o ilustrador a chegarem ao produto final poderia não ser relevante para as crianças e adolescentes que virão a ler o livro. No total a edição conta com quatro notas: A apresentação, escrita por Cynthia Costa; uma nota da tradutora Marie-Hélêne Torres; uma nota do ilustrador Laurent Cardon e outra acerca do design do livro, escrita por Carol Ohashi. É sabido que, devido aos gastos que a adição de tantos aparatos paratextuais inevitavelmente acarreta durante a diagramação do livro, dificilmente as editoras se preocupam em aceitar tais adições (principalmente quando, grosso modo, o público alvo daquela edição não está habituado a encontrar tal material, como é o caso do público infantil e infanto-juvenil). Do ponto de vista dos estudos literários, todavia, essas informações se tornam relevantes no sentido de dar suporte aos críticos e estudiosos que desejem ter um acesso mais aprofundado à obra. Vale, ainda, ressaltar que a presença dos paratextos pode também contribuir para a formação de um público leitor – desde a infância – mais crítico e informado sobre aquilo que lê.

Percebe-se, nesta edição, uma preocupação em manter um espaço dedicado ao processo tradutório e à voz do tradutor. Em entrevista concedida ao blog já mencionado, as editoras afirmam e reforçam a ideia de visibilizar o processo tradutório. Costa, que também é tradutora e pesquisadora na área de tradução, entende a necessidade de ampliar os espaços nos quais os tradutores evidenciam seu trabalho – tratando, portanto, o tradutor como um agente fundamental e, de certa forma, autônomo, no movimento de trazer para o português brasileiro as obras estrangeiras. Isso se constata desde a presença do nome da tradutora, Marie-Hélène Catherine Torres, figurando na capa do livro, até o espaço concedido a mesma para que, em nota, pudesse explicar algumas de suas principais estratégias tradutórias. É interessante notar também que a escolha de Marie-Hélène Torres para traduzir o livro não foi feita somente pelo domínio que esta tem das duas línguas envolvidas. Além de professora de literatura francesa, Marie também atua no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, orientando pesquisas de mestrado e doutorado que se inserem principalmente no âmbito de literatura francesa traduzida para o português brasileiro. Isso coloca a tradução e, por consequência, o tradutor, não somente num campo de visibilidade, mas também valoriza a tradução enquanto profissão que conta com amplos e aprofundados estudos para aperfeiçoamento tanto prático quanto teórico do profissional.

Fica claro, portanto que essa edição do conto de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont descontrói, de certa forma, o que se espera de um livro infanto-juvenil. A capa escura, as ilustrações em preto e branco e a tipografia quase ornamental fogem ao padrão colorido e alegre que se costuma ver quando se trata de clássicos voltados ao público mais jovem (e como são, por exemplo, as edições sintetizadas baseadas na adaptação fílmica da Disney). As ilustrações, feitas por Laurent Cardon – que, além de ilustrador, é também animador e storyborder2 2 Informações que podem ser encontradas na orelha da contracapa do livro. – com traçado de estilo gótico, conseguiram captar e recriar a atmosfera sombria e misteriosa que envolve essa relação entre a moça bondosa e o ser grotesco. Cardon, que também teve seu espaço em forma de nota nas primeiras páginas do livro, revela através dela que sua inspiração para ilustrar o conto veio do ilustrador francês Gustave Doré. Essa inspiração foi o que o levou a preferir imagens monocromáticas ao invés da variedade de cores comum à grande maioria dos livros infanto-juvenis, e detalhe que preza mais pelo aspecto sombrio do conto do que pelas características mais idílicas – ainda que menos significativos – da sua narrativa. Mas mesmo com essa aura obscura que os desenhos em preto e branco trazem, é nítida a mudança de tom na narrativa ilustrada a medida em que a história vai se desenrolando e rumando ao final feliz, momento em que os traços se tornam mais leves, as imagens menos sombrias e a expressão das personagens mais serena.

Como já alegado anteriormente, na nota da tradutora, Marie-Hélène Torres tem a oportunidade de discorrer sobre suas escolhas e sobre traduzir um título tão conhecido como “La Belle et la Bête”. Entre estas escolhas, talvez a que chame mais atenção esteja justamente já no título da estória, que até então vinha sendo traduzida para o português brasileiro como “A Bela e a Fera”. Na tradução, a entrada Bela perde seu artigo definido e o texto, então, é apresentado apenas como “Bela e a Fera”. Isto se dá em função de um detalhe linguístico, já que “A Bela” implica na ideia de adjetivo, efeito que talvez tenha sido mitigado pela tradutora que se preocupou com este detalhe já que a entrada “Bela” assume papel de nome próprio durante a narrativa.

Outro elemento interessante sobre esta tradução é a expressão “Il y avait une fois”, e que também é digna de atenção na nota de Torres. Segundo a tradutora, essa expressão “il y avait une fois” causa estranhamento ao leitor francês habituado ao tradicional “il était une fois”; para manter essa característica, ela sugere em sua nota a tradução da expressão por “havia uma vez”. No produto final, o conto iniciaria nem com a primeira nem com a segunda opção, mas com a expressão “havia certa vez” que não deixa de provocar um estranhamento ao leitor lusófono habituado com a expressão fixa “era uma vez” presente na maioria dos contos de fadas (2014, p. 17). As mudanças no título e na frase inicial do gênero conto de fadas já deixa bastante evidente o caráter transformador da tradução, o que a torna ainda mais idiossincrática e destaca sua despreocupação em seguir normas textuais pré-estabelecidas que, muitas vezes, fogem do caráter do texto em si.

Há, também, certa preocupação da tradutora relacionada com a manutenção do tom oral que é estabelecido na narrativa do texto de partida. Assim como ocorre na obra em francês de Jeanne-Marie LePrince de Beamont, Torres também apresenta frases curtas. Indo além de meramente traduzir as frases em francês para o texto de chegada mantendo-as tão curtas quanto fosse possível, a tradutora muitas vezes troca os sinais de ponto e vírgula por pontos finais em português, transformando duas frases em apenas uma (e consequentemente destacando ainda mais a oralidade da narrativa). Como exemplo, podemos observar a seguinte fala : “ - Je vous assure, mon père, lui dit la Belle que vous n’irez pas à ce palais sans moi; vous ne pouvez m’empêcher de vous suivre” que em português foi traduzida por “- Pode ter certeza, meu pai – disse Bela – que você não irá até o palácio sem mim. Não pode me impedir de segui-lo.” (2014 p.32). Além disso, geralmente, ao lermos um conto de fadas temos que ter em mente que apesar de escrito, o conto de fadas remonta à oralidade, portanto sua escrita oscila entre o gráfico e sonoro. Então, a utilização de vocabulário corriqueiro e o emprego de sinais gráficos para marcar as falas das personagens são elementos marcantes durante toda a diegese. Esses sinais gráficos ajudam a marcar e ritmar a leitura enquanto o vocabulário corriqueiro permite ao texto uma apresentação “simples, quase infantil,” (TORRES, 2014, p. 9) da tradicional história de Bela e a Fera.

No comentário feito pela escritora Marina Colasanti na quarta capa do livro, ela destaca que a história da bela e da fera ainda continua a seduzir os leitores como sempre seduziu até aqui. De fato, o conto sombrio e misterioso sobre a atração entre os opostos e que tanto ensina sobre o conflito entre a beleza interior e a aparência externa ainda pode seduzir leitores por muitos séculos. Podemos concluir nossa resenha destacando a importância de propostas como essa; é fundamental destacarmos propostas que se prontificam a dar nova vida a obras canonizadas – neste caso a uma obra que, imaginada pela primeira vez há quase três séculos, ainda pode ser vista por novos olhares e repensada a partir de distintas perspectivas. O texto foi escrito por Beaumont, reescrito e reinventado por tantos sujeitos para que em 2014 fosse editado pela editora Poetisa com as ilustrações de Cardon e a tradução de Torres. Disso se alimenta a literatura, de suas releituras e de ser lembrada pelos novos olhares que a circundam e esperam por uma chance de reproduzi-la. Bela e a Fera (2014) é uma história que aparenta, superficialmente, ser maniqueísta, mas que gradativamente ganha um semblante mais complexo ao problematizar as posições ocupadas pelos vilões e pelos mocinhos; além disso, a narrativa dá certo grau de autonomia e poder de decisão para a princesa que dificilmente é visto em histórias de contos de fadas. Perfeito seria, quem sabe, se a fera não virasse príncipe ao fim da narrativa – mas talvez alguns obstáculos não possam ser superados de uma só vez. O encanto que transformou o príncipe em monstro foi rompido; mas o encanto que por gerações transformou os leitores em vorazes apreciadores dessa história – se depender de projetos de tradução como este – dificilmente será.

Notas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2015
  • Aceito
    02 Out 2015
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