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ENTREVISTA COM MURILO JARDELINO

Murilo Jardelino da CostaCosta, Murilo Jardelino da. (Org.). A festa da língua - Vilém Flusser. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2010. era Mestre em Letras e Linguística pela UFPE e Bacharel em Letras Português-Alemão pela USP. Tinha pós-graduação em Comunicação Intercultural, pela Universidade Albert-Ludwig, na Alemanha, e foi docente, na área de Língua Alemã, na UFPB, e de Letras e Tradução, na Faculdade de São Bernardo. Traduziu obras acadêmicas, filosóficas e literárias de autores como Else Lasker-Schüler, Stefan Zweig, Franz Werfel, Dietrich Bonhöffer, Vilém Flusser e Rainer Guldin. Organizou ainda as coletâneas A festa da língua – Vilém Flusser (2010) e O texto em análise: escrita, oralidade e tradução (2021). Essas informações protocolares, no entanto, não seriam suficientes para introduzir a entrevista que se segue.

Meu encontro com Murilo se deu por acaso, em 2021, quando comecei a atuar como voluntária, ensinando língua portuguesa para imigrantes e refugiados, no Projeto Bitita Emancipa, de São Paulo. Murilo já fazia parte do projeto há mais tempo, como professor e auxiliar de coordenação. Nós nos conhecemos e começamos a conversar no dia das entrevistas com alunos e alunas, no início do semestre. Logo despontaram afinidades e nosso maior interesse em comum: a tradução. Aos poucos, fui entendendo que aquele Murilo com quem eu conversava era o Murilo Jardelino, um dos tradutores da biografia Freud, escrita por Stefan Zweig e publicada no Brasil no fim de 2020. Sua história não me era estranha, eu já havia lido em jornais e postagens de redes sociais o que havia lhe acontecido. A editora trocara seu nome na versão impressa do livro traduzido e, na tentativa de amenizar o problema, emitira uma nota com um pedido de desculpas e colara adesivos na quarta capa e na folha de rosto do livro, reconhecendo discretamente o erro que haviam cometido. Esse caso, na época, mobilizou muitos profissionais da tradução, quase como uma gota d’água para muita gente que já estava farta de descréditos editoriais, baixas remunerações e prazos cada vez mais impraticáveis.

Depois de ligar o nome à pessoa, e de me dar conta de que cada um de nós que está envolvido com tradução poderia somar forças para divulgar o que havia acontecido, convidei Murilo para uma entrevista, a ser realizada por e-mail, e que a princípio seria publicada em meu blog sobre estudos literários. Foi então que, em maio de 2022, recebi a primeira versão das respostas de Murilo, um longo arquivo e várias anotações sobre narrativas que ele ainda gostaria de continuar desenvolvendo. Segundo o tradutor, aquelas ainda eram respostas em elaboração, mas ele gostaria de saber minha opinião antes de continuar a desenvolvê-las. Comecei a ler e revisar a entrevista em agosto, quando enviei uma mensagem para Murilo para dizer que eu já estava mexendo na entrevista e que em breve enviaria para ele de volta com alguns comentários. Murilo me respondeu muito gentilmente, agradecendo a atenção, e me avisando que ele se encontrava em um estado complicado de saúde e que por isso eu mesma poderia fazer a edição. Em poucos dias, ele não respondeu mais. A mensagem seguinte que recebi foi escrita por suas irmãs, avisando do seu falecimento.

Murilo, como demonstra seu currículo, foi um importante profissional da tradução e professor, mas ele foi, sobretudo, uma pessoa apaixonada por tradução que nos deixou cedo demais. Diante disso, trazer a público a entrevista que guardei na minha caixa de entrada até agora me parece ser a maneira mais justa de demonstrar minha admiração por Murilo e de agradecê-lo, de alguma maneira, por toda a generosidade e a confiança em compartilhar comigo a sua trajetória. Que este registro de sua história possa estimular reflexões sobre o seu trabalho tradutório, que seguirá nos inspirando.

Cadernos de Tradução (CT): Você poderia começar nos contando um pouco sobre a sua trajetória como tradutor. Quando você começou a traduzir profissionalmente? Você tem alguma formação específica na área de tradução?

Murilo Jardelino (MJ): Comecei a traduzir profissionalmente em 2010, mas o início de minha trajetória acadêmica e profissional é bem anterior a essa data. Minha primeira graduação foi em engenharia civil na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), de 1981 a 1985. Após a conclusão da graduação me mudei para São Paulo. Em função de minha ingenuidade na época e de toda essa ideologia de “uma nação”, “uma língua”, “a cultura brasileira”, eu não sabia que estava vindo para outro país. São Paulo quase me devorou. Quem sobrevive em São Paulo deveria receber um passaporte para viver em qualquer lugar do planeta.

Nessa época, 1985, a situação social e econômica no país era tão ruim como agora, 2022. Inflação alta, alimentação e moradia caras, muito desemprego etc. Foi impossível me estabelecer como engenheiro. É desse período aquela famosa lanchonete na Av. Paulista, “O Engenheiro que Virou Suco”, que não deixa de ser uma referência ao filme de João Batista de Andrade, com José Dumont, “O Homem que Virou Suco”.

Como eu havia sido aluno de intercâmbio nos Estados Unidos e falava muito bem inglês, consegui emprego como professor de língua inglesa em empresas multinacionais. Decidi, então, fazer uma segunda graduação e fui aprovado para estudar Letras na USP em 1986. Optei por estudar Alemão e Português. Depois de minha segunda graduação, fui morar e estudar na Alemanha, em Berlim (de 1989 a 1991), para aprimorar meus conhecimentos linguísticos. E aqui quero retomar aquilo que disse acima sobre viver em São Paulo. Era muito comum que meus amigos alemães se surpreendessem como eu não sentia a mínima dificuldade para viver noutra cultura. Eles diziam que eu transitava na cidade muito melhor do que muitos alemães. São Paulo havia sido minha escola.

Quando voltei para São Paulo, enfrentei mais uma crise econômica e social, desta vez na época do governo Collor. Resolvi, então, fazer concurso para docente de Alemão na UFPB, onde trabalhei alguns anos, e durante este período cursei o mestrado em Linguística na UFPE. Fui aluno de Marcuschi e Ingedore V. Koch. Posteriormente, concorri a uma bolsa do DAAD (Departamento Alemão de Intercâmbio Acadêmico, semelhante a CAPES) e fui estudar novamente na Alemanha, dessa vez na Universidade de Freiburg. Não voltei mais para o Nordeste. Decidi mais uma vez morar em São Paulo e, aproveitando a expansão do ensino superior na rede privada, iniciei uma carreira acadêmica na área de Letras (licenciatura) e de Tradução (bacharelado). Em ambos os cursos, ministrava aulas de Linguística. No caso do curso de Letras, teorias linguísticas e linguística aplicada ao ensino-aprendizagem de línguas. No caso do bacharelado, iniciei minhas primeiras articulações entre teorias linguísticas e teorias da tradução. Portanto, posso dizer que minhas primeiras experiências com a tradução foram no âmbito da teoria.

Em 2009, minha grande amiga Raquel Abi-Sâmara, tradutora e, hoje, docente na Universidade de Macau, impossibilitada de aceitar o convite para traduzir um ensaio do filósofo Vilém Flusser, me indicou para a tarefa. Foi meu batismo na prática de tradução. Foi dificílimo. E o desafio era ainda maior, pois esse filósofo, fugindo da perseguição nazista aos judeus na Europa na primeira metade do século XX, havia emigrado e morado muitos anos no Brasil. Ele próprio traduzia seus textos. É um filósofo que desenvolveu uma teoria da tradução muito especial. Ele faleceu em 1991, em um acidente de carro na Europa. Não havia, contudo, uma versão em língua portuguesa de seu último ensaio, “A escrita: há futuro para a escrita?”. Foi assim que iniciei minha carreira como tradutor, traduzindo um ensaio de um importante filósofo da comunicação e da tradução. Foi uma experiência fascinante. Para alcançar meu objetivo, precisei entrar em contato com vários especialistas na obra do autor. O contato com esses especialistas, além de me auxiliar a encontrar soluções para os nós da tradução (aqueles trechos quase indecifráveis do ensaio), me possibilitou, posteriormente, organizar uma coletânea, editada e publicada pelo Memorial da América Latina, sobre o autor. A obra tem como título A Festa da Língua: Vilém Flusser. Para Tércio Redondo, docente de germanística na USP e tradutor, eu atuei como um tradutor agenciador. Desde então recebo convites para realizar outras traduções do alemão para o português. Depois de alguns anos de experiência com a tradução de textos filosóficos e acadêmicos, resolvi enfrentar o desafio da tradução literária. Entre autoras e autores que traduzi, estão Stefan Zweig, Franz Werfel, Else Lasker-Schüler e Franz Kafka. No caso desse último escritor, foi uma experiência como revisor de tradução e preparador de texto.

(CT): Em 2020, seu nome esteve envolvido em uma situação bastante revoltante para todo mundo que trabalha com tradução: a editora se equivocou e trocou seu nome nas informações bibliográficas da publicação. Pessoalmente, como foi para você lidar com esse caso? Na sua opinião, quanto esse acontecimento tem relação com a desvalorização da tradução no mercado editorial brasileiro?

(MJ): Exatamente, foi um erro de crédito na tradução de um perfil biográfico de Freud, elaborado por Stefan Zweig, que reacendeu esse debate antigo entre tradutoras e tradutores e que se transformou em pauta de reivindicações na indústria do livro. Mais do que um ato falho, o caso pode ser enquadrado na lei de direitos autorais, e revelou o tratamento que certas editoras têm dispensado aos profissionais envolvidos no processo de tradução.

Faço um breve relato do que aconteceu: no segundo semestre de 2020, minha colega Raquel Abi-Sâmara foi convidada para traduzir do alemão para o português a obra Freud, escrita por Stefan Zweig. Como estava assoberbada de trabalho e o prazo para fazer a tradução era exíguo, me convidou e sugeriu à editora que a tradução fosse a quatro mãos. Negociamos muito, a contragosto da editora, preço por lauda, prazo e a questão da cessão dos direitos autorais. A negociação foi muito difícil.

A versão brasileira da obra foi publicada em dezembro de 2020, e quando recebi, depois de minha solicitação, meu exemplar de cortesia em fevereiro (vale ressaltar que, embora estivesse no contrato, eles não haviam me enviado um exemplar), veio a surpresa: em vez de meu nome, ao lado do de minha colega Raquel, constava o crédito de outro tradutor no frontispício, na ficha catalográfica e na quarta capa. Fiquei perplexo, foi uma experiência terrível.

Quem já traduziu um texto sabe o trabalho que essa atividade compreende. Trata-se de um esforço intenso em que você mobiliza saberes diversos construídos ao longo de um árduo processo de formação. Traduzir, retraduzir, revisar etc. Ver o produto final, contudo, é compensador. É um momento de satisfação e alegria. Alegria quando não acontece essa violação.

Após avisar à editora, que até então não diagnosticara o erro, e solicitar a reparação, iniciamos um processo de acordo. A editora corrigiu o nome do tradutor no e-book e postou nota de retratação em suas redes sociais. Alegou fazer um grande esforço para recolher os exemplares impressos e neles inserir uma errata, ou seja, a editora se comprometeu a corrigir o nome do tradutor na contracapa, mas disse que não tinha “como alterar a folha de rosto e a ficha catalográfica devido às dificuldades de manuseio da operação”. Acenou também com a possibilidade de me contratar para futuras empreitadas. Para mim, essa proposta estava longe de representar uma solução.

No fim de fevereiro, quando compartilhei o caso em um grupo de tradutoras, tradutores, pesquisadoras e pesquisadores em tradução, organizado por docentes da USP, a reação de colegas demonstrou que o caso ia além de uma relação comercial frustrada entre um prestador de serviços e uma contratante. O erro no crédito, substituindo o nome do autor da tradução por outro, violava a lei de direitos autorais e expunha um problema antigo do mercado editorial e da relação que grande parte das editoras estabelece com quem contribui para a difusão da produção cultural e intelectual no Brasil.

Diante da história, outras pessoas relataram problemas que mostravam que as causas subjacentes poderiam ser comuns. Com o aumento dos relatos e das demonstrações de solidariedade, o grupo decidiu, por sugestão de Luciana Carvalho Fonseca, professora doutora da FFLCH da USP, elaborar uma nota de repúdio.

A nota de repúdio e o abaixo-assinado decorreram, pois, dessas numerosas manifestações durante as discussões sobre a questão no grupo Tradinfo, criado e mantido, como eu já disse, por professores da USP. Grupos como esse possibilitam que tradutoras e tradutores se organizem com o apoio de universidades e centros de pesquisa. O abaixo-assinado1 1 A nota de repúdio e o abaixo-assinado estão disponíveis para consulta em: https://docs.google.com/forms/d/1jz-jmd-756Drx6tWMUHhzq-iXEBaCPUvCdPlp CURkFI/viewform?edit_requested=true. Acesso em: 23 fev. 2023. contou com mais de 540 assinaturas, com nomes tarimbados da tradução, pesquisadores e pesquisadoras, docentes, escritores/as, estudantes de outras universidades e outros centros de pesquisa nacionais e do exterior, além de representantes de associações. Chefes de departamentos de pesquisa de universidades se mobilizaram para levar o debate desencadeado sobre direitos intelectuais e a figura do/a tradutor/a para suas instituições.

Para mim, ficou claro que não se tratava apenas do apoio a um caso particular, mas de um sintoma, apreendido pelas signatárias e signatários da nota, que traduz um mal-estar nas relações de certas editoras com os profissionais da tradução. Precisamos, portanto, trazer urgentemente essa pauta para o debate público. Há notícias de que o caso repercutiu em outros grupos de tradutores e levou, inclusive, a acordos sobre remuneração mínima e prazos que se podem aceitar pelo trabalho de tradução.

Além de relatar o erro evidente do crédito, também discuti, com os colegas no grupo, como o processo de tradução tem se tornado difícil: as editoras oferecem baixa remuneração, prazos exíguos e têm solicitado a cessão definitiva de direitos autorais, por exemplo.

Outros colegas compartilharam suas histórias. Um membro do Tradinfo contou que firmou um contrato com uma editora de Porto Alegre, entregou a tradução solicitada, vertida diretamente do grego, o que preencheria uma lacuna nos estudos dos clássicos no Brasil e, depois de alguns anos, não teve a obra publicada. Relatou que até poderia reaver os direitos de posse da tradução, desde que pagasse. O que ele teve da filial da editora em São Paulo foi a promessa de publicação. Legalmente, a editora está coberta. Os direitos contratuais são perenes ou sine die para publicação. Para ele, a história deve servir de bússola para os tradutores novatos. E a cláusula de perenidade deve ser extinta dos contratos, substituída por cláusulas temporais, de, por exemplo, cinco ou mais anos. Minha colega Raquel Abi-Sâmara considera inadmissível que ainda perdure a prática da cessão definitiva dos direitos autorais dos tradutores para as editoras. Ela atualmente só assina contratos de tradução se houver acordo e inclusão de cláusula temporal dos direitos da tradução.

Outro tópico relevante, trazido à discussão em outro grupo específico de tradutores de literatura, foi o modo como grande parte das editoras procede com relação à revisão das traduções. Para Raquel, é muito frequente os tradutores não terem acesso às alterações feitas em seu texto e, consequentemente, serem excluídos do processo de “negociações” para se chegar ao texto final. Soluções de tradução que demandam muita pesquisa e, não raro, dias de reflexão do tradutor, são alteradas por revisores que muitas vezes não têm conhecimento literário à altura das interferências que fazem nas traduções. E isso é muito frustrante para um profissional especializado em traduções literárias. Durante os debates suscitados pelo caso, Raquel alertou para a importância de os tradutores exigirem a inclusão de cláusulas, em seus contratos com as editoras, que lhes garantam a participação na negociação final do texto que traduziu.

Outro membro do grupo de discussão, que além de tradutor é advogado, destacou que a Lei do Direito Autoral é bem clara no tocante a traduções. Não só a tradução é obra intelectual devidamente protegida pelo Direito (art. 7º, XI), como a lei in concreto também estipula que “em cada exemplar da obra o editor mencionará, no caso de tradução, o título original e o nome do tradutor” (art. 53, p.u., II). Esse colega crê que isso seja sistêmico, pois outros profissionais da lista relataram casos semelhantes. Não pode afirmar se a indicação de tradutor diverso, especificamente, é sistêmica, mas errar o nome do tradutor deve ser relativamente normal. Ele mesmo já teve experiência com a grafia equivocada de seu nome.

Uma tradutora pública e intérprete comercial sugeriu que se ampliasse ainda mais o debate suscitado pelo caso. Ela sugere que os profissionais da tradução examinem com profundidade a questão dos direitos intelectuais do tradutor, que ela prefere há muito chamar de traduAutor. Para ela, a profissão tem sido desmerecida ao longo do tempo, tal como se pode observar a partir da má remuneração, do apagamento da atividade e do nome do profissional. E ainda ressaltou como muitas editoras fazem a publicidade de seus volumes, isto é, em suas páginas na internet constam até mesmo o número de páginas, o tamanho do volume e o tipo de papel usado, mas não o nome do tradutor.

Uma profissional que trabalha tanto como tradutora freelancer, quanto como coordenadora editorial, lamenta a precarização do trabalho e os baixos valores praticados pelo mercado editorial. E não só das tradutoras e tradutores. Também o trabalho dos revisores, que deveriam checar e impedir que tais erros acontecessem, tem sido cada vez mais difícil, com prazos impraticáveis e valor de lauda que chega a ser insalubre. Ressalta, no entanto, como coordenadora editorial, o quão difícil tem sido praticar preços adequados e justos sem inviabilizar o livro de ser produzido. Para ela, todavia, nada justificava o erro relatado por mim. Mesmo com o trabalho que a editora vem realizando para reparar a violação, acredita que uma indenização por infração ao contrato deveria ser paga.

Continuei buscando solução extrajudicial, mas as relações com os advogados tampouco foram bem-sucedidas. Um dos advogados deixou de responder minhas mensagens depois que descobriu que o valor do contrato que eu e Raquel havíamos assinado era inferior a R$ 4 mil. Outro cobrou de imediato R$ 8 mil para dar início a um processo junto ao juizado de causas cíveis. Uma terceira advogada me perguntou se eu não tinha receio de deixar de ser contratado pelas editoras. Para falar a verdade, senti-me violentado novamente.

Espero que meu caso sirva para suscitar melhores práticas entre editoras e mostrar para tradutoras e tradutores a necessidade de defender seus direitos nas relações que estabelecem com as editoras.

Por último, houve consenso no grupo: se fosse com o autor, esse “erro” não aconteceria ou, no mínimo, o tratamento do erro seria diferente. O grupo ainda acordou que é necessária uma campanha para que a sociedade, editoras e editores, leitoras e leitores entendam como o ofício da tradução é essencial não só para a recepção de uma obra, como também para a transmissão e circulação do conhecimento, o que elas leem não é resultado apenas do trabalho do autor, mas também do ofício das tradutoras e tradutores.

(CT): Que tipo de iniciativa você acha que poderia ser importante para aumentar o reconhecimento de tradutores e tradutoras no Brasil?

(MJ): Essa questão foi relativamente respondida por ocasião do relato que fiz na pergunta anterior. Infelizmente, é apenas quando ocorre algo semelhante que a categoria se mobiliza. Isso quando o profissional de tradução consegue publicizar os crimes que se cometem sobre ele. Nem todos seriam bem-sucedidos nesse trabalho. Vejam os relatos a que tive acesso na luta que travei pela reparação da violação que a editora cometeu. O próprio fato de tornar públicas as adversidades a que estamos submetidos pode ser um início de um reconhecimento de tradutores e tradutoras. Primeiro, percebe-se que você não foi o único a sofrer esse abuso. Segundo, cria-se consciência da categoria, o que resulta em algumas práticas concretas de mobilização. Essa entrevista, por exemplo, resulta do que ocorreu. Não que você não pudesse me entrevistar por um motivo mais nobre, mas é certo que foi o fato de a editora publicar o livro com o nome de outro tradutor que nos levou a esse encontro. E nesses encontros conheci profissionais adoráveis, que também buscaram reparação e que me apresentaram iniciativas interessantes para a valorização da tradutora e do tradutor. Um exemplo me foi oferecido por Paula Abramo, tradutora de literatura brasileira no México e poeta: as infografias concebidas e elaboradas pela AMETLI (Associação Mexicana de Tradutores Literários), como esta:


“Los traductores deberán ser nombrados”

Outro encontro deu-se com a tradutora e pesquisadora Maria Barbara Florez Valdez. Ela soube do que aconteceu comigo e entrou em contato. Ela própria já passou duas vezes por experiência semelhante. Na primeira, deixaram de colocar o último sobrenome dela nos créditos de tradução; na segunda, adicionaram um acento que não existe a esse último sobrenome. O caso também foi tema de aula do curso de ética no bacharelado em tradução da UFPEL.

Para mim, a questão do reconhecimento de tradutoras e tradutores também tem a ver com a concepção que nós, tradutores, temos de quem somos, e da concepção que os profissionais da indústria do livro e a sociedade fazem desse profissional. Nesse sentido, sou bastante pessimista. Pessimista porque, se por um lado recebi o apoio e a solidariedade de muitos colegas, por outro, cansei de ouvir, de profissionais da tradução, que eu estava fazendo tempestade em copo d’água. Ou seja, alguns profissionais da tradução sequer reconhecem nossa importância.

No caso dos profissionais da indústria do livro e da sociedade, acredito que esse público leigo em tradução ainda não reconheça a área como central na produção de conhecimento, e ainda conceba o processo de tradução como simples transmissão de informação, que prescinde de um sujeito especializado para se concretizar. Isso nos leva a refletir sobre as relações dos profissionais da tradução com as editoras. Quem são os profissionais que gerenciam essas empresas? Como eles se relacionam com os outros agentes da indústria do livro? Minha experiência com eles não é muito positiva. E aqui aproveito para sugerir uma iniciativa: é importante que as associações de tradutoras e tradutores estabeleçam uma interlocução com as associações dos profissionais de comunicação, de maneira que os editores compreendam o processo de tradução em toda a complexidade de sua natureza.

E isso nos leva à questão da invisibilidade da tradutora e do tradutor, questão central nos estudos da tradução. Isso nos leva à questão do reconhecimento de uma autoria de nossa produção. Essa conquista, a do reconhecimento de autoria de nossa produção, pode auxiliar concretamente na melhoria das relações dos profissionais da tradução com os outros agentes da indústria do livro. Por exemplo, facilitaria na elaboração de cláusulas de contrato que dizem respeito não só a casos de revisão de tradução, isto é, que a editora tenha o direito de contratar uma revisão de tradução, mas que a tradutora ou o tradutor tenha acesso a essas alterações em seu texto, mas também à inclusão de cláusula temporal dos direitos da tradução.

Por último, gostaria de contextualizar o trabalho dos profissionais da tradução no universo do trabalho no início do século XXI. Todos esses sintomas concernentes aos profissionais da tradução dizem respeito a uma mudança profunda por que passa o mundo do trabalho, pela desvalorização profunda e cruel imposta aos trabalhadores por novas formas de produção capitalista, geradas pelas novas tecnologias. Já há algumas designações para esse processo, tais como precarização das condições de trabalho, uberização das relações trabalhistas etc. É como se todos nós todos tivéssemos nos transformados em “entregadores” de algum produto ou serviço, embora parte de meus colegas não se dê conta disso, pois ainda se considera “mais privilegiada” do que a categoria de quem entrega um produto de menor valor, como uma pizza ou um hambúrguer. O fato de você entregar um produto resultante de um trabalho intelectual cria a ilusão de que você está numa melhor situação.

(CT): Qual foi o trabalho de tradução que você mais gostou de fazer e por quê?

(MJ): Se vocês observarem minha trajetória, vão perceber uma particularidade em minha prática de tradução: o trabalho cooperativo. Embora seja uma prática pouco implementada e pouco valorizada tanto pelos profissionais da tradução quanto pelas editoras, é a que me proporciona mais fascínio. Mas o que se entende por tradução cooperativa? Normalmente descobrimos o que esses novos conceitos significam por meio de uma busca e/ou revisão bibliográfica. O primeiro passo para as investigações sobre esses conceitos é iniciar as pesquisas por artigos que tratem desses objetos. Fiz isso com minha colega Clélia Barqueta. Fizemos buscas em língua portuguesa, alemã e inglesa, tais como “tradução cooperativa”, “tradução conjunta”, “TandemÜbesetzung”, “kooperativeÜbersetzung”, “partnertranslation”, e assim por diante. Encontramos raros artigos sobre o assunto. Num deles descobrimos que se trata de uma atividade extremamente útil a ser feita com alunos em cursos de tradução e que os levaria mais facilmente à autonomia profissional. Eles fornecem um protocolo das discussões entre os alunos que é interessante para estudar as estratégias feitas para encontrar soluções para trechos problemáticos. Desde então, venho desenvolvendo esse trabalho de tradução cooperativa ou conjunta. O texto que recebemos para ser traduzido é dividido intercaladamente e cada um inicia a tradução da parte que lhe coube. Em seguida, realiza-se a revisão da tradução elaborada pelo companheiro de trabalho. Nesse processo, usa-se a ferramenta “controlar alterações”, à disposição na barra de ferramentas do programa Word. Esse mecanismo deixa nas margens do texto os diálogos entre os tradutores, com comentários, sugestões de mudança, correções etc. Nessa etapa da tradução cooperativa, registram-se vários mecanismos e estratégias de tradução em comentários sobre como se pensa qual seria a melhor solução ou até mesmo solicitações para esclarecimentos de possíveis dúvidas etc. Logicamente, em trechos mais problemáticos, intensifica-se a troca de mensagens. Assim, temos todo o processo de tradução registrado e documentado.

Mas voltemos à pergunta. Todas as traduções me proporcionaram muito prazer, prazer por conhecer um autor, uma área do saber. Nenhuma delas foi uma tradução indiferente. Talvez isso seja um privilégio de quem não tenha a tradução como principal atividade profissional, de quem não tenha de fazer tradução de textos indesejados. Há, contudo, uma tradução que exigiu um esforço sobrenatural para finalizá-la, do teólogo Dietrich Bohnhoeffer, do livro Discipulado. Foi uma das traduções que realizei de maneira cooperativa com minha colega Clélia Barqueta.

O autor nasceu em 1906 e foi enforcado em 1945. Teólogo, pastor luterano e membro da resistência alemã antinazista. Um dos fundadores da igreja confessional, ala da igreja evangélica contrária à política nazista. Para mais informações sobre o autor, sugiro a leitura da biografia publicada pela Editora Mundo Cristão, traduzida na década de 1980 por Ilson Kayser, revisada por Geraldo Korndörfer e Luís M. Sander, e publicada pela Editora Sinodal.

A encomenda que recebemos, portanto, foi para traduzir novamente e integralmente um texto já traduzido em língua portuguesa, ou seja, fazer uma retradução, originada por exigências de natureza editoriais, comerciais e linguístico-culturais. Da editora, recebemos a mensagem: “Nossa ideia é produzir um texto mais acessível, preservando, é claro, toda a densidade teológica.” Volto, assim, a explicar por que a tradução exigiu um esforço sobrenatural para ser feita. E quando você não sente qualquer identificação com o tema do texto a ser traduzido? Fica aqui a reflexão para meus colegas tradutores: o que significa um ateu traduzir um tratado teológico? Um texto com o qual não há qualquer possibilidade de identificação com o tema? E não estou falando de um assunto em que você não é especializado, mas da relação com aquilo que se traduz.

Reflexão semelhante surgiu por ocasião da tradução do romance epistolar, Meu Coração, de Else Lasker-Schüler, que realizei com meu colega Ebal Bolacio, da UFF. O que significa dois homens traduzirem um romance tão subjetivo escrito por uma autora? Que escolhas teriam sido feitas por tradutoras mulheres? Como compreender esse universo feminino?

Encerro essa resposta sem responder exatamente o que você queria saber: o trabalho que mais gostei de fazer. As traduções que já fiz, sozinho ou com colegas, me proporcionaram muito prazer, ainda que algumas tenham me confrontado com muitos dilemas. Como já disse, nenhuma delas foi uma tradução indiferente.

(CT): Você já traduziu vários textos literários, acadêmicos, técnicos em língua alemã. Especificamente em relação às traduções literárias, quais são os aspectos que você considera mais particulares desse tipo de tradução? O que a diferencia, por exemplo, de uma tradução técnica ou acadêmica?

(MJ): Essa pergunta é dificílima para responder, pois ela pressupõe que saibamos o que faz de um texto literatura, o que é e como se produz o efeito artístico, o efeito estético, o efeito poético. E em relação a isso, os teóricos da literatura e as próprias escritoras e escritores nos legaram centenas de obras. E ainda assim não há um consenso. Ainda bem.

Em recente conversa com Marília Arnaud sobre sua obra Liturgia do Fim, a escritora definiu o fazer literário como misterioso. Ela afirmou que, quando escuta artistas da palavra tentando descrever ou explicar o processo de criação, tem a impressão de que elas e eles já estão ficcionalizando o dizer.

Por isso, não é fácil responder à pergunta. Mas podemos apontar algumas questões que orientam minha prática de tradução. Há algumas obras teóricas em língua portuguesa que buscam responder a essa pergunta. E eu já busquei respostas nelas, embora elas não consigam abarcar tudo o que significa a tradução literária. Elas apontam para soluções práticas. Paulo Henriques Brito, por exemplo, afirma que a tradução literária é a que visa recriar em outro idioma um texto literário de tal modo que sua literariedade seja, na medida do possível, preservada. O autor, contudo, não responde o que é a literariedade de um texto. De maneira muito prática, até por ser um excelente tradutor, diz que uma vez que um texto numa língua não pode ser recriado com exatidão noutra, o tradutor literário pode identificar quais as características mais importantes do texto que deve tentar recriar e quais as características que podem ser recriadas no texto de chegada.

Eu também recorro a minha formação em Letras e Linguística, pois ela me oferece uma boa fundamentação para compreender questões de linguagem essenciais do processo de tradução, embora não possamos restringir a tradução a uma operação meramente linguística, especialmente a tradução literária. Entre outros fundamentos, estão a diferença entre língua e gramática, a distinção entre língua e texto, entre texto e discurso etc. Ademais, sabemos que não traduzimos de uma língua para outra língua, mas que a tradução é um processo de retextualização, isto é, a partir de um texto em uma língua, cria-se um novo em nova língua. E sabe-se que esses textos pertencem a gêneros textuais, que manifestam práticas sociais de comunicação, cada um com suas particularidades em termos de conteúdo proposicional, forma composicional e estilo. Sabe-se também que esses gêneros textuais pertencem a, ou até mesmo constituem, uma esfera discursiva, e que esses domínios discursivos impõem algumas restrições ao uso da língua. Em suma, em cada esfera, a linguagem se manifesta e se organiza em gêneros e possui suas especificidades.

Se vou traduzir um texto acadêmico, vou levar em consideração quais são, portanto, as especificidades da linguagem acadêmica. O discurso acadêmico-científico é a forma de apresentação da linguagem que circula na comunidade científica. Sua formulação depende de uma pesquisa detalhada e efetiva sobre algum objeto. Esse objeto deve ser metodologicamente analisado à luz de uma teoria. A apresentação do que foi analisado é expresso em um gênero textual para divulgação dos resultados da pesquisa. Comprova-se ou refuta-se o que foi escrito por meio da aceitabilidade do público que compõe a comunidade discursiva de cada área do saber. Que significa tudo isso? A linguagem acadêmica, também chamada de técnico-científica, se caracteriza por seu objetivo de informar dados obtidos em pesquisa, resultados de estudos e análises. E essa linguagem se opõe à natureza da linguagem utilizada no conhecimento do senso comum. A linguagem no senso comum contém termos e conceitos vagos, que não delimitam a classe de coisas, ideias ou eventos designados e não designados por eles, ou o que é incluído ou excluído na sua significação. Ou seja, trata-se de uma linguagem sem os atributos necessários à comunicação de ciência. E que atributos são esses? Impessoalidade, objetividade, clareza, precisão, coerência, concisão, simplicidade.

Por outro lado, se vou traduzir um texto literário, vou levar em consideração quais são, portanto, as especificidades da linguagem literária. Embora a esfera literária possa incorporar manisfestações linguísticas de todas as outras esferas, inclusive da ciência e da filosofia, e o romance é o gênero polifônico por natureza, podemos dizer que ela se define por oposição a essas características, ou seja, é a esfera que permite ao autor o exercício pleno da experimentação, é a esfera que se privilegia a polissemia, a ambiguidade, a indeterminação do dizer, a possibilidade dos múltiplos sentidos. E nisso reside muitas vezes a dificuldade da tradução literária.

(CT): Qual livro você gostaria de traduzir e que ainda não foi traduzido para o português brasileiro?

(MJ): Mais uma vez, vou responder tangencialmente à pergunta. Mais do que traduzir uma obra específica, é importante que as tradutoras e os tradutores de outras línguas busquem não só o reconhecimento e a valorização de sua atividade profissional, mas encampem também essa luta por um mercado de tradução mais plural, mais democrático e mais humano, sem a hegemonia de um imperialismo linguístico e tradutório.

Referências

  • Costa, Murilo Jardelino da. (Org.). A festa da língua - Vilém Flusser São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    22 Fev 2023
  • Publicado
    Mar 2023
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