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ENTREVISTA COM FELIPE JOSÉ LINDOSO

Felipe José Lindoso é jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e a leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, juntamente com Maria José Silveira e Márcio Souza, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores?: Política para a cultura/Política para o livro, pela Summus Editorial. Tem publicadas as traduções Revelação, em 2011 (Revelation, de C. J. SansomSansom, Christopher John. Revelação. Tradução de Felipe José Lindoso. Rio de Janeiro: Record, 2011.), pela editora Record, e A Escolha de Yasmeena, em 2015 (Yasmeena’s Choice, de Jean SassonSasson, Jean. A escolha de Yasmeena. Tradução de Felipe José Lindoso. Rio de Janeiro: Best-Seller, 2015.), pela editora Best-Seller. Mantém o blog O Xis do Problema (www.oxisdoproblema.com.br) e uma coluna no sítio de notícias editorias Publishnews (www.publishnews.com.br). Tanto no blog quanto em sua coluna, Lindoso traz reflexões sobre as peculiaridades e dificuldades da vida editorial no Brasil.

Esta entrevista está situada em um contexto de reconhecimento e apreciação da literatura canadense em língua inglesa traduzida no Brasil exemplificado nos trabalhos de Carneiro (2017aCarneiro, Raphael Marco Oliveira. “Shields, Carol. Bondade. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 271p.” Cadernos de Tradução 37.2 (2017a): 304-317. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n2p304/34083.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
, 2017bCarneiro, Raphael Marco Oliveira. “The High Mountains of Portugal, or Gazing at Iberian Rhinoceros Roaming in the Wild.” Interfaces Brasil/Canadá 17.2 (2017b): 149-154., 2018Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “The Heart Goes Last; or, Taking the Piss While Being Drop-Dead Earnest.” Interfaces Brasil/Canadá 18.1 (2018): 143-151., 2019aCarneiro, Raphael Marco Oliveira. “In Which a Devout Irish Girl Decides to Fast, and a Sceptic English Nurse Is Called to Watch over Her; or, The Wonder.” Interfaces Brasil/Canadá 19.1 (2019a): 143-148., 2019bCarneiro, Raphael Marco Oliveira. “The Good, the Bad, and the Ugly Sides of Revenge in Hag-Seed.” Interfaces Brasil/Canadá 19.2 (2019b): 136-140., no prelo)Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “Initial survey of English Canadian literature translated in Brazil: a historiographic perspective.” Expressões e impressões da diferença. Ed. Maria Angélica Deângeli e Érika Nogueira de Andrade Stupiello. São José do Rio Preto: UNESP (no prelo).. Pretende ser uma contribuição para o entendimento de questões relacionadas aos processos e contextos socioculturais de produção e recepção de traduções literárias, bem como de políticas relacionadas a esses processos no Brasil, com base no entendimento de que conhecer mais sobre traduções, tradutores e tradutoras, editores e editoras, e as diversas relações estabelecidas entre esses agentes podem contribuir para o traçado de eventos, rotas e percursos de trocas culturais que compõem a história da tradução literária em contexto brasileiro. Em última instância, essas questões repercutem em políticas públicas para o livro e a leitura em nosso país.

Assim, a proposta desta entrevista com Felipe LindosoLindoso, Felipe. O Brasil pode ser um país de leitores?: política para a cultura/política para o livro. São Paulo: Summus Editorial, 2004. foi discutir aspectos relativos à atuação dele como editor, tradutor e consultor de políticas públicas para o livro. Em especial, abordamos questões relacionadas às traduções da escritora canadense Margaret Atwood pelo fato, comentado pelo próprio Lindoso, de a editora Marco Zero, fundada por ele com outros dois colaboradores, ter sido a primeira editora a adquirir direitos de tradução das obras de Atwood, fazendo do português brasileiro o primeiro idioma em que se traduziu uma obra da referida autora. Desse modo, a editora Marco Zero e todos os agentes envolvidos na tradução e edição das obras de Atwood (única autora canadense publicada pela editora) constituem peças relevantes para a construção de um período da história da literatura canadense traduzida no Brasil, particularmente em relação às traduções brasileiras das obras de Margaret Atwood.

Sem mais delongas, esperamos que o diálogo entabulado nas páginas seguintes seja tão elucidativo e instigante para os leitores da revista Cadernos de Tradução quanto o foi para nós entrevistadores.

Cadernos de Tradução (CT): Conte-nos sobre sua trajetória pessoal e profissional quanto a sua formação acadêmica, atuação profissional e aspectos biográficos pertinentes, por favor, e sobre quais projetos e atividades o senhor tem se dedicado atualmente.

Felipe José Lindoso (FJL): Sou formado em Antropologia Social pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, Peru. Estava lá como exilado político por combater a ditadura militar, depois de passar dois anos preso. Antes, ainda no Brasil, trabalhei como jornalista, e o mesmo fiz no Peru, o que permitiu viajar muito pelo país. Na universidade participei de uma ampla pesquisa em Puquio, na Província de Lucanas, Departamento de Ayacucho, sob a coordenação do prof. Rodrigo Montoya. Como resultado desse trabalho publiquei, juntamente com o prof. Montoya e Maria José Silveira, com quem já estava casado desde o Brasil, o livro Producción Parcelaria y Universo Ideológico – El Caso de Puquio (Lima, Mosca Azul Editores, 1979). Em 1976 voltei ao Brasil, com mulher e filho, e ingressei, no ano seguinte, no PPGAS – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, no Museu Nacional – UFRJ, recebendo o grau de Mestre em Antropologia Social. Durante esses anos continuei trabalhando como jornalista. Em 1980, Maria José Silveira resolveu realizar um de seus sonhos, e fundamos a Marco Zero. A editora durou, sob nossa responsabilidade (Maria José Silveira, Felipe Lindoso e o escritor Márcio Souza), aproximadamente 19 anos. Em 1999, os sócios (Grupo Nobel) que já haviam adquirido uma participação majoritária na empresa, resolveram forçar a aquisição do resto da sociedade e fomos obrigados a nos desfazer da nossa participação. Ainda na Marco Zero comecei a me interessar pelas questões relacionadas com as políticas públicas de livro e leitura, participando da Câmara Brasileira do Livro, inicialmente como diretor estatutário e posteriormente contratado como Diretor de Relações Institucionais, com o encargo de coordenar as ações da CBL junto aos poderes públicos e outras atividades. Além do relacionamento com os órgãos pertinentes (MEC, MinC, Câmara, Senado etc.), participei da coordenação da presença brasileira na Feira Internacional do Livro de Frankfurt, em 1994. Posteriormente exerci papel semelhante nas feiras de Bogotá, Guadalajara e Paris. Em 2002 saí da CBL, por incompatibilidade com a diretoria que assumiu a entidade naquele ano. Desde então desenvolvo atividades de consultoria e projetos. Fui Consultor do CERLALC – Centro Regional Para a América Latina e Caribe, órgão da UNESCO, na elaboração do programa Fome de Livro e na elaboração do primeiro Plano Nacional do Livro e Leitura. Posteriormente desenvolvi projetos de implantação de bibliotecas, várias instaladas em equipamentos semelhantes a bancas de jornais, instalados em locais públicos. Desde 2008 sou um dos curadores do programa Conexões Itaú Cultural – Mapeamento Internacional da Literatura Brasileira, que busca formar um banco de dados com informações sobre professores, pesquisadores e tradutores de literatura brasileira no exterior. Os dados do projeto podem ser consultados em www.conexoesitaucultural.org.br.

CT: Qual a importância de se traduzir e publicar traduções de textos literários?

FJL: Minhas justificativas favoritas para destacar a importância das traduções literárias:

  1. A humanidade é uma, mas a história dos povos é infinitamente múltipla. Temas universais (nascimento, morte, amor, ódio, natureza etc., sem falar nas crenças) que se expressam em forma literária enriquecem a nossa própria visão do mundo, ampliam as perspectivas dos leitores;

  2. Essa ampliação das perspectivas é essencial para que o conhecimento recíproco dos povos se amplie, e com isso a tolerância, o respeito e a admiração das diferenças. Minha formação acadêmica é de antropologia, e foi feita no Peru, na universidade mais antiga das Américas, San Marcos. No entanto, para além dos livros e das pesquisas, a leitura de Yawar Fiesta, do José Maria Arguedas, é um componente essencial da minha compreensão do Peru.

CT: Qual a história da editora Marco Zero? Em que ano ela foi fundada e extinta? Qual foi o objetivo inicial e os princípios que levaram à criação da editora? Qual a motivação para a escolha da logomarca e do nome da editora? Houve uma mudança na logomarca da editora ao longo dos anos. Qual a motivação para essa mudança? Quem eram os editores(as)? E os tradutores(as)? Haveria como informar quantos e quais tradutores atuaram durante o período de funcionamento da editora? Quantas e quais obras traduzidas ao português brasileiro foram publicadas?

FJL: A Marco Zero nasceu em 1980, como uma iniciativa da minha mulher, Maria José Silveira, que tinha dois sonhos: ser escritora e editora. Escritora agora é, e com bastante sucesso, com vários romances para adultos e jovens publicados, inclusive no exterior (EUA, Itália, França). Editora, começou a ser em 1980, convocando a mim para participar do sonho, ao qual se reuniu logo nos primeiros meses nosso amigo escritor Márcio Souza. Nós três fomos os editores durante o tempo em que controlamos a Marco Zero, que terminou em 1999. O nome foi homenagem a um escritor da nossa admiração, Oswald de Andrade, cujo romance mais politizado tem precisamente o título de Marco Zero. Depois de alguns anos conseguimos que os herdeiros da Tarsila do Amaral nos autorizassem a usar um dos estudos para o quadro “A Negra Contadora de Histórias”, como nosso logotipo. Esse logo definitivo aposentou o original, que era de uma obviedade total, um simples zero estilizado. No último levantamento que fiz, a pedido da Denise Bottmann, registrei quase cem títulos traduzidos (não só de literatura, mas principalmente títulos literários). A lista dos tradutores é grande e variada. Para citar alguns: Lya Luft, José J. Veiga, Reinaldo Guarany, Wladir Dupont, Herbert Daniel, Márcia Serra, Estela Santos Abreu, Domingos Demasi, e a Maria José Silveira, que traduziu vários dos romances da Margaret Atwood, e muitos outros.

CT: Como os eventos políticos, econômicos e sociais no Brasil impactaram as atividades da editora Marco Zero durante o seu período de funcionamento?

FJL: A Marco Zero nasceu pequena, mas com a intenção de crescer. Nosso programa era editar livros de qualidade no campo literário, tanto de autores brasileiros como internacionais, assim como ensaios e coleções voltadas para a discussão dos problemas brasileiros, desde uma perspectiva de esquerda. Nascida nos estertores da ditadura civil-militar, enfrentamos ainda algumas das consequências da situação política. Dois exemplos: 1) Publicamos o importante romance do autor português António Lobo Antunes, intitulado Os Cus de Judas, sobre a guerra colonial em Angola. Depois o JB publicou uma resenha elogiosa do livro... mas mudou o título para Os Cafundós de Judas. Cus não era palavra que pudesse aparecer na grande e respeitável imprensa; 2) Convidado para participar em reunião de editores em Cuba para que os cubanos aprendessem como era essa história de direitos internacionais (haviam recém assinado a Convenção de Berna), tive que viajar via Buenos Aires e Lima, sem que o visto constasse do passaporte... Enfim, passamos pela bonança do primeiro momento do Plano Cruzado e pelas dificuldades posteriores; testemunhamos – e fomos vítimas – da precariedade da distribuição de livros e da ausência de uma política de bibliotecas públicas. Tentamos encaminhar essas questões nos associando com um grupo maior, o que terminou fazendo-nos perder a editora.

CT: Como se dava o processo de negociação para a publicação das traduções? Quais os agentes envolvidos nesse processo?

FJL: Como se dá até hoje: através de agentes literários internacionais. Uma vez tendo informações sobre determinado livro – seja pela leitura de publicações e catálogos, seja pelo fato de os agentes enviarem cópias de livros que achassem que seriam do nosso interesse e, principalmente, pela “garimpagem” na Feira de Frankfurt – as negociações eram entabuladas e, eventualmente, os contratos assinados. Algumas vezes esse processo era resultado de intercâmbios pessoais. No caso, o exemplo mais significativo para nós foi o Márcio Souza haver sido convidado para o festival do Harbourfront, em Toronto, onde conheceu a Margaret Atwood. Daí...

CT: As traduções publicadas pela editora Marco Zero contavam com alguma forma de financiamento ou apoio de alguma instituição para o fomento das traduções no Brasil?

FJL: O Brasil só teve programas de incentivo às traduções a partir de 1994, com o Márcio Souza no Departamento Nacional do Livro da Biblioteca Nacional, presidida então por Affonso Romano de Sant’Anna. Por razões éticas, nunca solicitamos apoio desse programa enquanto o Márcio estava na BN. Depois o programa de apoio às traduções se tornou muito irregular, só voltando a ser significativo já em 2002.

CT: O senhor diria que a editora Marco Zero operava segundo algum posicionamento político e ideológico na escolha de obras e autores a serem introduzidos no sistema literário brasileiro? Quais eram os critérios para a escolha das obras, dos autores a serem traduzidos, e dos tradutores para a tradução de certos autores ou títulos? A editora aceitava que tradutores propusessem obras a serem traduzidas, ou essa era uma decisão apenas dos editores?

FJL: Como disse antes, os editores tinham posições claramente de esquerda. Entretanto esse não era o critério para escolha de títulos de literatura. Os critérios, resumidamente, eram dois: qualidade literária reconhecida e admirada por nós e termos gostado do original. Houve sugestões de amigos e alguns tradutores, que passavam por essa avaliação, mas a decisão era sempre do trio de editores.

CT: Como o senhor avalia o mercado editorial brasileiro em geral e particularmente no que concerne à publicação de traduções literárias? Como o senhor avalia a indústria do livro hoje e no período de funcionamento da editora Marco Zero?

FJL: Especificamente em relação às traduções, houve uma “inflação” para além da normal (compramos os direitos de vários livros por US$ 500,00 de adiantamento, coisa simplesmente impensável hoje), principalmente depois que os autores mais conhecidos no mercado internacional foram sendo objeto de leilões com valores cada vez mais astronômicos (e que certamente nem sempre foram recuperados...). Então vemos hoje, de certa forma, uma diminuição proporcional do número de autores internacionais jovens, recém-estreados, e que ainda não têm repercussão internacional, assim como de autores de alta qualidade e pouco apelo comercial. Publicar autores como Brautigan, Gass, Yann Andréa, René Depestre, John Barth, Miguel Barnet, Peter Schneider, Milorad Pavic (para mencionar alguns dos que publicamos) é cada vez mais difícil e raro. O que se publica – merecidamente, aliás – são os grandes nomes. O resto são os best-sellers da maior vulgaridade, autoajuda, misticismo pseudo-religioso e baboseiras do gênero. Gosto de ressaltar também que alguns dos principais agentes da chamada bibliodiversidade são as editoras pequenas e médias. Como não dispõem de acesso aos grandes nomes, têm a preocupação de lançar autores jovens ou pouco conhecidos, sejam estes brasileiros ou internacionais. Foi o caso da Marco Zero, que investiu muito em traduções de autores de enorme prestígio literário, mas ainda pouca repercussão comercial. Em alguns casos, tivemos sorte de publicar alguns títulos que tiveram enorme sucesso, e cito dois exemplos. O primeiro foi A Cor Púrpura, da Alice Walker, que Maria José detectou em Frankfurt, leu (e depois traduziu, em colaboração com duas amigas) e fizemos uma oferta de US$ 500,00. A agente nem sabia que o livro não apenas havia sido adquirido pelo Spielberg como já estava sendo filmado. O resultado foi uma venda muito significativa aqui no Brasil. O segundo exemplo é o do Dicionário Kazar, do então iugoslavo Milorad Pavic, que a Maria José também descobriu em Frankfurt, no estande da Iugoslávia. Compramos os direitos mundiais para o português também por um preço compatível com nossos recursos. Tivemos muitas dificuldades para traduzir do original sérvio. Um ano depois o livro estourou, com aquisição dos direitos mundiais (menos para o português), pela Knopf. Os portugueses tiveram que comprar os direitos da nossa tradução. Foi outro livro de grande sucesso da editora.

CT: Pela editora Marco Zero foram publicados seis romances da autora canadense Margaret Atwood, Madame Oráculo (1984, Domingos Demasi), A vida antes do homem (1986, Théa Fonseca), A história da aia (1987, Márcia Serra), Olho de gato (1990, Maria José Silveira), A noiva ladra (1995, Maria José Silveira), e Vulgo, Grace (1997, Maria José Silveira). Qual foi a motivação para a publicação das obras de Atwood? Os seis romances de Atwood mencionados apresentam elementos paratextuais, principalmente a arte da capa, notadamente distintos no projeto gráfico. Como se deram as escolhas no processo de produção das capas e quais informações deveriam constar nas capas e quarta-capas?

FJL: Já mencionei o contado pessoal do Márcio Souza com a Margaret Atwood. Aliás, um dos orgulhos que temos é de termos sido a editora que primeiro publicou uma tradução da Margaret Atwood. Ela já era escritora editada e criticamente reconhecida no Canadá, EUA e Reino Unido, mas sua primeira tradução para qualquer idioma foi o Madame Oráculo que publicamos, traduzido por Domingos Demasi. Sempre buscamos os melhores capistas possíveis, dentro de nossas limitações financeiras, e tivemos capas e projetos gráficos de excelente qualidade. Acreditávamos que o reconhecimento do autor (a) se daria principalmente pela qualidade do texto e pelas capas que expressassem o conteúdo – muitas vezes oniricamente – de cada um dos romances, e não por uma uniformidade do projeto gráfico.

CT: Os romances The Edible Woman (1969), Surfacing (1972) e Bodily Harm (1981) não foram traduzidos pela Marco Zero, apesar de terem sido obras de Atwood publicadas antes de Madame Oráculo. Houve alguma razão para essas três obras específicas não terem sido traduzidas?

FJL: Publicamos primeiro Madame Oráculo por termos ficado fascinados com o romance. Depois, fomos publicando os seguintes. A não publicação dos títulos anteriores não foi deliberada, como foi o caso da não publicação de poemas e ensaios.

CT: A editora Marco Zero publicou traduções de outros autores canadenses? Quais? As traduções de obras canadenses, como as de Atwood, contaram com algum tipo de apoio, financeiro ou outro, de alguma instituição do Canadá ou do Brasil?

FJL: Infelizmente não chegamos a publicar outros autores canadenses, embora tivéssemos cogitado editar Alice Munro. Em um ou dois dos títulos tivemos apoio do Canada Council para a tradução, e em uma ocasião fui convidado para visitar a feira de Montréal e visitar também Toronto.

CT: Os seis romances de Atwood publicados pela editora Marco Zero nas décadas de 1980 e 1990 foram retraduzidos e publicados pela editora Rocco no início deste século XXI, dando sequência na publicação de traduções das obras de Atwood. Como o senhor avalia essa questão e demais aspectos envolvidos em retraduções literárias?

FJL: Tenho um post publicado em meu blog O Xis do problema (www.oxisdoproblema.com.br) que fala como as traduções e o trabalho editorial são importantes para a consolidação dos autores nesse imenso diálogo que compõe a República Mundial das Letras. As edições sucessivas supõem um trabalho que nem sempre é reconhecido, que inclui revisões ortográficas, aparato de notas, prefácios e informações que se tornam cada vez mais importantes com o passar do tempo. Experimente ler uma versão da reprodução original do Quixote, como a primeira página publicada na edição comemorativa dos 400 anos da Alfaguara, é muito difícil, quase impossível. Ler as mesmas palavras em uma edição contemporânea, entretanto, é outra coisa. São quatro séculos de intervenção editorial. O mesmo com as traduções. As sucessivas traduções para o português revelam em primeiro lugar que as primeiras leituras do Cervantes, pela elite portuguesa, foram feitas em castelhano. As elites letradas dos dois países dominavam o castelhano e a primeira tradução levou quase 150 anos para ser feita. E a famosa tradução “dos viscondes” – a que o Monteiro Lobato goza no “Quixote para Crianças” é extremamente rebuscada. Fiel, mas rebuscada. As traduções mais modernas continuam sendo fiéis, mas com um vocabulário atualizado que torna mais fácil a leitura. No entanto, essas retraduções dos romances da Margaret Atwood, na verdade, só podem ser explicadas por interesses comerciais da Rocco, que optou por não comprar os direitos das traduções que fizemos e preferiu produzir novas. Não sei se teve o apoio do Canadá para isso. Mas tenho certeza que as traduções da Marco Zero não exigiam nova tradução, posto que todas são de excelente qualidade.

CT: Qual era o leitorado que a editora Marco Zero tinha em mente para as traduções das obras de Atwood em termos de escolaridade, faixa-etária, gênero etc.? Havia algum projeto editorial no sentido de que fossem produzidas traduções domesticadoras ou estrangeirizadoras das obras de Atwood?

FJL: A editora não tinha a sofisticação nem os recursos financeiros para fazer marketing tão direcionado. E as nossas traduções sempre se pautaram pela busca da qualidade na expressão da forma e do conteúdo do original, sem nenhuma preocupação nem de “domesticar” nem de manter qualquer sabor “estrangeirizador” de traduções. Aliás, se não for claramente uma adaptação – o que pode ser legítimo – essas tentativas, para mim, apenas disfarçam traduções malfeitas, mal editadas.

CT: Em relação à revisão das traduções publicadas pela editora Marco Zero, eram feitas interferências por parte dos editores nos textos produzidos pelos tradutores?

FJL: O processo editorial implica, certamente, não apenas verificação da fidelidade ao original como correção de eventuais erros ou deslizes léxicos ou sintáticos. Mas isso vale para todas as edições. Isso de publicar um texto tal como vem do autor é algo, se não improvável, muito raro. Quem escreve seriamente e trabalha no ramo editorial sabe o quanto as revisões e o trabalho editorial são importantes.

CT: Enquanto tradutor, como o senhor avalia a tradução em relação a questões de estilo do texto de partida e do texto de chegada? Como o senhor se posiciona em relação à tradução de marcas que caracterizariam o estilo, seja do autor, seja do texto em si? Enquanto tradutor, o senhor considera que possui um estilo próprio, que poderia perpassar o conjunto das obras ou de algumas das obras já traduzidas?

FJL: Essas são discussões eternas entre correntes de tradução. O bom tradutor, no meu entender, tem que a) respeitar as idiossincrasias textuais do autor; b) fazer o mínimo de intervenção textual para permitir uma compreensão de contexto para o leitor brasileiro. Isso pode ser feito com discretas interpolações ou, no limite, com notas de pé de página. Tradutor não pode ter estilo, o estilo é o do autor, tal como se expressa em cada título.

CT: Como o senhor avalia as práticas de leitura, particularmente a leitura de textos literários traduzidos, em nosso país? Após 15 anos desde a publicação de seu livro, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro (Lindoso), como o senhor avalia a situação atual em relação às políticas públicas para o livro no Brasil? Qual o lugar da literatura traduzida nessas políticas? Quais mudanças, em caso de elas terem ocorrido nesses 15 anos, o senhor observa nesse cenário? Em sua opinião, que tipo de políticas públicas para o livro e a leitura ainda são necessárias ou desejáveis para o Brasil?

FJL: Isso exigiria outro livro. Muitos desses temas abordo no blog já citado. A maioria desses posts foi publicada no Publish News, mas muitos não o foram.

CT: No perfil de sua coluna do Publishnews, o senhor afirma analisar “[...] razões que impedem belos e substanciosos livros de chegarem às mãos dos leitores brasileiros na quantidade e preço que merecem.” O senhor poderia sintetizar essas razões? Em face de tudo isso, o Brasil pode ser um país de leitores?

FJL: Em síntese: falta de bibliotecas públicas (acesso) e deficiências no sistema educacional, que dá pouca ênfase à leitura literária, enfatizando muito mais as “regras” que a fruição, restringindo a escolha dos jovens a um universo muito restrito (os livros indicados). E acredito que está piorando, apesar de vários e meritórios esforços tanto de escolas quanto de iniciativas de desenvolvimento de bibliotecas. Cito um exemplo. Em Guarulhos, o prefeito Elói Pietá conduziu sua reforma administrativa partindo das bibliotecas do município (isso lá pelo ano 2000). A repercussão foi tão boa que contribuiu significativamente para sua reeleição. Só que o programa de fortalecimento do sistema de bibliotecas foi, posteriormente, abandonado. Ou seja, projetos, às vezes excelentes, de melhoria tanto da educação como do acesso aos livros não têm continuidade.

Como dizem os versos do Caetano (1993)Veloso, Caetano. “Haiti”. Tropicália 2, Caetano Veloso e Gilberto Gil, PolyGram, 1993.:

O Haiti é aqui O Haiti não é aqui E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado Diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer Plano de educação que pareça fácil Que pareça fácil e rápido E vá representar uma ameaça de democratização Do ensino de primeiro grau E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital ...

O Haiti é aqui, cada vez mais, infelizmente.

Agradecimentos

Agradecemos a Felipe Lindoso pela disponibilidade em conceder esta entrevista e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Referências

  • Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “Initial survey of English Canadian literature translated in Brazil: a historiographic perspective.” Expressões e impressões da diferença Ed. Maria Angélica Deângeli e Érika Nogueira de Andrade Stupiello. São José do Rio Preto: UNESP (no prelo).
  • Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “In Which a Devout Irish Girl Decides to Fast, and a Sceptic English Nurse Is Called to Watch over Her; or, The Wonder.” Interfaces Brasil/Canadá 19.1 (2019a): 143-148.
  • Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “The Good, the Bad, and the Ugly Sides of Revenge in Hag-Seed.” Interfaces Brasil/Canadá 19.2 (2019b): 136-140.
  • Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “The Heart Goes Last; or, Taking the Piss While Being Drop-Dead Earnest.” Interfaces Brasil/Canadá 18.1 (2018): 143-151.
  • Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “Shields, Carol. Bondade. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 271p.” Cadernos de Tradução 37.2 (2017a): 304-317. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n2p304/34083
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n2p304/34083
  • Carneiro, Raphael Marco Oliveira. “The High Mountains of Portugal, or Gazing at Iberian Rhinoceros Roaming in the Wild.” Interfaces Brasil/Canadá 17.2 (2017b): 149-154.
  • Lindoso, Felipe. O Brasil pode ser um país de leitores?: política para a cultura/política para o livro. São Paulo: Summus Editorial, 2004.
  • Sansom, Christopher John. Revelação Tradução de Felipe José Lindoso. Rio de Janeiro: Record, 2011.
  • Sasson, Jean. A escolha de Yasmeena Tradução de Felipe José Lindoso. Rio de Janeiro: Best-Seller, 2015.
  • Veloso, Caetano. “Haiti”. Tropicália 2, Caetano Veloso e Gilberto Gil, PolyGram, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2019
  • Aceito
    01 Nov 2019
  • Publicado
    Jan 2020
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