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A APROXIMAÇÃO A PIERRE MENARD: TRADUÇÃO NO PRIMEIRO BORGES (1925-36)

THE APPROACH TO PIERRE MENARD: TRANSLATION IN EARLY BORGES (1925-36)

Resumo

Muito debate nos estudos de tradução tem sua origem na obra de Jorge Luis Borges, sendo que geralmente o ponto inicial da discussão é a ficção Pierre Menard, autor do Quixote (1939) e a produção que se seguiu. No entanto, ele já se ocupara intensamente com questões de tradução em seus escritos iniciais, nos quinze anos anteriores àquele grande divisor de águas da sua obra. Entre 1925 e 1936, Borges escreveu um pequeno grupo de ensaios diretamente relacionado à tradução, em grande parte baseados em empreitadas pessoais (uma versão em espanhol da última página do Ulisses, de Joyce) ou traduções de clássicos feitas por terceiros (nomeadamente, as obras de Homero e As mil e uma noites). Este artigo passa em revista esses ensaios iniciais de Borges e esquematiza as principais questões tradutológicas abordadas neles. Busca-se demonstrar que, direta ou indiretamente, as reflexões e contribuições posteriores de Borges sobre questões de tradução já estavam contidas em gérmen na sua primeira produção ensaística.

Palavras-chave
Jorge Luis Borges; Ensaios; Tradução

Abstract

Much debate in translation studies has been spurred by Jorge Luis Borges’s work, with discussions chiefly beginning with his fiction Pierre Menard, Author of the Quixote (1939) and the production that followed. Nonetheless, he had already dealt intensively with translation issues in previous writings from the fifteen years preceding that great watershed in his oeuvre. Between 1925 and 1936, Borges wrote a small set of essays directly concerning translation, largely based on either personal endeavors (a Spanish rendition of the last page of Joyce’s Ulysses) or third-party translations of classics (namely, the works of Homer and the Arabian Nights). The present paper reviews these early essays by Borges and outlines the major translation-critical concerns addressed by them. A case is made that Borges’s later reflections on and contributions to translation issues were directly or indirectly contained in nuce in his early essayistic output.

Keywords
Jorge Luis Borges; Essays; Translation

1. Prelúdio

Não só o ofício da tradução acompanhou Jorge Luis Borges intermitentemente durante três quartos de século – a primeira publicação da sua vida foi a versão de um conto de Oscar Wilde, feita aos nove anos, e ele completou sua última tradução, as Fábulas de Robert Louis Stevenson, aos 84 anos – como o escritor tratou da questão em si em diversas obras, ficcionais ou não. O papel da tradução como uma das manifestações mais conspícuas das ideias de Borges sobre texto, literariedade e autoria, quando não sobre a própria linguagem2 2 Rosemary Arrojo, em seu opúsculo introdutório Oficina de tradução: a teoria na prática, vai além e atribui tal afinidade à própria mentalidade do escritor: “O exercício tradutório de Borges é parte estrutural de sua personalidade” (88). , é tópico já consagrado na pesquisa em Estudos de Tradução. Uma porção esmagadora das elucubrações sobre uma suposta “tradutologia borgeana” é apoiada em um dos seus escritos mais famosos, o conto Pierre Menard, autor del Quijote. Esse relato instigante ocupa lugar de honra em qualquer investigação séria sobre a tradução. Basta que citemos a seguinte passagem da obra-prima de George Steiner sobre o tema, After Babel:

“Pierre Menard, autor do Quixote” (1939) possivelmente seja o comentário mais agudo, mais concentrado que alguém já ofereceu sobre o mister da tradução. Qualquer estudo sobre tradução que exista, incluindo este livro, poderia, ao estilo de Borges, ser qualificado de um comentário desse comentário

(Steiner 72, tradução nossaSteiner, G. After Babel: Aspects of Language & Translation. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 1998.).

E, de fato, a literatura especializada sobre tradução é pródiga em exegeses desse híbrido de ensaio, especulação filosófica e conto de ficção sob a forma inesperada de um necrológio bibliográfico. Tampouco são negligenciados outros contos de Borges que implicam indiretamente a tradução (digamos, Funes el memorioso) ou que a tematizam frontalmente como a fascinante aporia que ela é (La busca de Averroes). No entanto, cumpre reparar que o pioneiro Pierre Menard foi o pontapé inicial da segunda fase criadora de Borges. Escrito imediatamente após o acidente quase fatal com o postigo de janela recém-pintado (cf. a Autobiographical Essay redigida por Borges diretamente em inglês no início dos anos 70), ele deu início à série de ficciones que mais tarde celebrizariam mundialmente seu autor. Publicado primeiramente na revista Sur3, o conto foi acolhido em El jardín de los senderos que se bifurcan, em 1941, e logo integrou a expansão desse livro, Ficciones, de 1944. Nessa época, Borges já era um experiente escritor de ensaios, gênero que praticou assiduamente nas suas duas primeiras décadas produtivas (concomitantemente ao surto poético inicial) e no qual continuaria trazendo contribuições brilhantes até o fim da carreira. Nossa leitura dessa ensaística inicial revela que, mais que um estalo ou insight, Pierre Menard, autor del Quijote é a desembocadura e reelaboração de reflexões anteriores sobre o tema, uma verdadeira summa de percepções iluminadoras que, conforme pretendemos demonstrar, já ocupavam o escritor durante os 14 ou 15 anos anteriores. Nesse período, Borges redigiu uma porção de pequenas obras que, se lidas em perspectiva integradora e progressiva, acusam a ocupação recorrente do autor com certos tópicos tradutológicos (alguns transplantes literais entre os ensaios são apenas a prova mais evidente disso). Esbocemos, portanto, uma cartografia comentada dos textos de J. L. Borges que abordaram a tradução nas décadas de 20 e 30, antes do grande marco e limiar que representou Pierre Menard, autor del Quijote4 4 Além do próprio conto, é claro, recomendamos a leitura do Capítulo 2 (A questão do texto original) de Arrojo e do seu artigo, Borges e a maldição de Babel: escritura, interpretação e conflito, recolhido em Schwartz (149-63). .

2. Ensaios

2.1 El “Ulises” de Joyce (1925)

El “Ulises” de Joyce5 5 Publicado em Proa, Buenos Aires, n. 6, janeiro de 1925; recolhido em Inquisiciones, 1925 (Borges (A) 22-28). , de 1925, não trata conceitualmente de tradução, porém está umbilicalmente relacionado a uma importante produção de Borges: a versão ao espanhol da última página do Ulisses (1922), de James Joyce6 6 La última hoja de Ulises ([Proa, segunda época, Buenos Aires, ano 2, n. 6, janeiro de 1925]; reimpresso em Borges (E) 244-46). Jorge Schwartz (349-66) oferece um excelente comentário desse trabalho (comparando-o com a versão integral para o espanhol de Salas Subirat e efetuando um paralelo com a tradução do fim de Ulisses por Haroldo de Campos e a integral de Antonio Houaiss) em Borges e Joyce (via Salas Subirat, Antonio Houaiss e Haroldo de Campos). Incluem-se transcrições da última página do original inglês e das quatro traduções. , dada a público na mesma revista e número. Importante sublinhar que Borges, segundo sua própria declaração e em consonância com a maior morosidade da circulação cultural na época, foi “o primeiro aventureiro hispânico que arribou ao livro de Joyce” (Borges (A)Borges, J. L. (A). Inquisiciones. 1. ed. Madri: Alianza Editorial, 2008. 22, tradução nossa). Singular ocorrência: um dos leitores mais perspicazes de todo o século não só foi um dos primeiros a oferecer uma tradução – parcialíssima, caso – do complexo roman fleuve (perdendo em pioneirismo apenas para fragmentos franceses publicados já em 1924 – cf. Schwartz 351Schwartz, Jorge (Org.). Borges babilônico: uma enciclopédia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), mas muito possivelmente foi o primeiro latino-americano a ter qualquer contato com esse fenômeno literário. A notória dificuldade de transpor Joyce para outro idioma, mormente os que não dispõem dos processos de composição lexical próprios do inglês ou do alemão, seria sublinhada por Borges em um texto dos anos 407 7 Nota sobre el Ulises en español, publicado em Los Anales de Buenos Aires, Buenos Aires, ano 1, n. 1, janeiro de 1946 (reimpresso em Borges (F) 229-30). , e talvez esse aspecto tecnicamente desafiador tenha sido o que desencadeou a sua associação nada casual entre o problema da tradução e o autor irlandês – (cujo nome é inclusive mencionado na última frase de Pierre Menard, autor del Quijote).

O que mais surpreende nesse primeiro ensaio que examinamos é a confissão franca e desassombrada de que Borges não leu o Ulisses inteiro, apenas frequentou-o a trechos. Curiosamente (ou tipicamente, para quem conhece o Borges posterior, aquele que afirmava não se lembrar de ter lido qualquer romance até o fim...), não se percebe no texto nenhum sinal de que isso lhe tiraria a autoridade como apreciador, crítico e tradutor da obra. Como ele argumenta, não conhecer cada rua e viela de uma cidade não nos invalida como conhecedores dessa cidade. Já temos aí um primeiro traço de originalidade borgeana, em franca oposição à noção estabelecida de que o conhecimento integral de uma obra literária é condição sine qua non para sua apreciação estética e para a emissão de juízos críticos a seu respeito. Mais importante ainda, o jovem Borges não vê contradição entre ler um livro a retalhos e então se propor traduzir um trecho dele.

2.2 Las dos maneras de traducir (1926)

Um ano depois, no mais elaborado Las dos maneras de traducir8 8 Publicado em La Prensa, Buenos Aires, 1º de agosto de 1926 (reimpresso em Borges (E) 313-17). , Borges abre os trabalhos comentando que a suposição universalmente aceita é que todo original é incorrigível. (Esse dogma simples será matizado posteriormente – em Las versiones homéricas, mais abaixo –, em uma das contribuições mais importantes de Borges à translatologia: a da secundariedade ou precariedade do original.) Uma segunda declaração generalizadora desse ensaio é quando o escritor observa que, na sua opinião, tudo que é literário é traduzível, incluindo aí a poesia – disposição que viria a revogar bem mais tarde, em Introducción a la literatura inglesa (1965), escrito em parceria com María Esther Vázquez. Justamente na seção desse manual dedicada a James Joyce, sentencia-se: “Os livros que enumeramos [Ulisses e Finnegans Wake] são intraduzíveis (...)” (Borges (C)Borges, J. L. (B). Obras completas (1923-1949). Edición crítica. Comentado por Rolando Costa Picazo e Irma Zangara. 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2009. 854).

Após apontar que a perda é inevitável na tradução, em termos da conotação cultural que as palavras trazem consigo, Borges sublinha que tal perda não é privilégio da tradução. O original também acarreta esse efeito colateral em cada leitura, e não apenas em virtude da evolução interna do idioma na diacronia. Diferentes leitores contemporâneos, seja em razão das suas experiências diversas ou de um contexto linguístico diferente (dá-se como exemplo dois leitores vindos de dois países dentro da hispanofonia), lerão de forma distinta por causa da carga associativa distinta que cada cultura nacional lhes impõe. Desnecessário acrescentar que um mesmo indivíduo também fará leituras radicalmente variadas do mesmo livro em momentos distintos (especialmente no caso dos clássicos, sujeitos a revisitações mais frequentes, como exposto mais tarde em Las versiones homéricas). É importante frisar como Borges postula já nos anos 20 ideias que ganhariam circulação mais ampla várias décadas depois, quando se falaria de tradução e, antes de tudo, de leitura como um processo de natureza interpretativa, e não meramente decodificadora, relativizando-se a noção de um significado estável do signo. Isso ganha mais relevo nos trechos seguintes, onde Borges afirma que, na poesia, é o lado conotativo da linguagem que é o principal em jogo. Daí, pode-se inferir que, se poesia tem um cerne semântico (denotativo) variável, mas pode sempre ser traduzida, as vertentes desconstrutivistas de tradução têm sua legitimidade ao propor versões extremamente livres, descoladas da visão essencialista de que existem núcleos semânticos inertes passíveis de transferência entre os códigos linguísticos.

Em seguida, Borges delineia uma distinção esquemática entre as duas principais maneiras de traduzir. São elas: a romântica e a clássica. Os tradutores ditos clássicos buscam a perfeição formal e estilística, e sua ênfase interpretativa recai sobre a obra original em si, e não sobre o artista que a compôs. Por estarem preocupados com o bom acabamento e a naturalidade do texto de chegada (modernamente, tradução target-oriented), eles desdenham localismos, matizes linguísticos e outras contingências do texto-fonte, atendo-se à sua significação essencial e então revestindo-a da roupagem idiomática mais cômoda e usual na língua de chegada. Por exemplo, em poesia, os tradutores clássicos dariam preferência às metáforas mais habituais em sua língua, em detrimento de transplantar tal qual as imagens empregadas no idioma original. É o que a conceituação de Schleiermacher, em seu ensaio arquiclássico (Sobre os diferentes métodos de traduzir, 1813; cf. Schleiermacher), entenderia como tradução domesticadora.

Por outro lado, a tradução chamada romântica confere valor máximo ao homem, e não à obra. Para eles, cada autor é um indivíduo distinto, cujo eu merece sempre respeito e até reverência. Logo, os tradutores românticos resistem a torcer-lhe as palavras na boca e de bom grado acolhem o que há de forasteiro e, consequentemente (para eles), belo na sua escrita. A literalidade, portanto, goza de grande favor nesta espécie de tradução. Em termos schleiermacherianos, temos aí o viés estrangeirizador. No entanto, para Borges, a tradução romântica acaba malogrando por exagero e falsificação da cor local: o pitoresco hiperenfatizado se converte em mentira e afetação.

O ensaio então se debruça passageiramente sobre o próprio fato da retradução dos clássicos (exatamente o fenômeno cultural que instigaria Borges a dois ensaios seminais, Las versiones homéricas e Los traductores de las Mil y una Noches, analisados abaixo). Essa insistência dos tradutores em verter um mesmo livro diversas vezes talvez seja apenas um sintoma do gosto pelas variantes. Tal “mania” não precisa ser exclusiva da tradução: a reiteração transformativa pode ser praticada já dentro de uma mesma literatura, e de fato o foi em diversos períodos literários (basta recordar os múltiplos tratamentos de temas mitológicos idênticos na Renascença ou o convencionalismo clichê que caracterizou a poesia árcade).

O argentino conclui esse ensaio com um dos seus típicos chistes a sério, metade punchline, metade mise en abyme: se um mesmo verso fosse sujeito a diversas variações/reescrituras no mesmo idioma (em termos linguísticos, tradução intralingual), o resultado poderia ser que a versão original parecesse uma pobríssima tradução literal. A ligação com o empreendimento menardiano é clara, pois o Dom Quixote de Menard não é concebido como uma transcrição servil do original cervantino, mas uma reescritura do mesmo em espanhol.

2.3 Las versiones homéricas (1932)

Após um hiato de seis anos, Borges dá ao prelo um dos seus ensaios mais apreciados, Las versiones homéricas9 9 Datado de 1932; publicado em La Prensa, Buenos Aires, 8 de maio de 1932; recolhido em Discusión, 1932 (Borges (B) 413-16). . Como indicado no trecho que tomamos por epígrafe, Borges inicia postulando a tradução como um lugar privilegiado para ilustrar a discussão estético-literária. As traduções de um livro – preferencialmente as dos clássicos, que as têm em fartura – acabam nos brindando com um desfile das vicissitudes por que passa uma obra no decorrer dos séculos.

Diz-se que ler um clássico é já relê-lo – conhecemo-lo antes da primeira página, pelo menos em seus traços fundamentais de personagens, ambientação e trama. Inversamente, reler um clássico é sempre lê-lo pela primeira vez, porque a pletora de leituras possíveis que ele permite faz dele um livro novo a cada vez que o revisitamos. Borges, é claro, traz a esses lugares-comuns o seu toque irreverente e genial: o clássico é sempre visto pelo leitor como um objeto sacrossanto, irretocável; porém, do outro lado do balcão literário, o mesmo livro poderia muito bem ter sido escrito de maneira diferente pelo autor10 10 O próprio Pierre Menard adverte ao seu missivista que “[m]eu complacente precursor [Cervantes] não recusou a colaboração do acaso: ia compondo a obra imortal um pouco à la diable, levado por inércias da linguagem e da invenção. Eu contraí o misterioso dever de reconstruir literalmente sua obra espontânea” (Borges (B) 845, tradução nossa). , o que entra em choque com o “dogma da infalibilidade” do original, aquele mesmo referido na abertura de Las dos maneras de traducir. A reverência cega pelo texto original é, no fim das contas, unilateral; o leitor a prática, o autor não. Em oposição, o livro em idioma que desconhecemos é uma biblioteca virtual de infinitas traduções complementares, entre possíveis e reais11 11 Na formulação exemplar e pré-Biblioteca de Babel de Schleiermacher (43-44, tradução nossa): “[…] se puderem existir paralelamente diferentes traduções da mesma obra, vazadas a partir de diferentes pontos de vista, e das quais não se possa mesmo dizer que uma, em sua totalidade, seja mais perfeita ou deixe a desejar, com apenas algumas partes de uma sendo mais acertadas, e outras de outras; aí, com todas elas reunidas e relacionadas entre si no sentido de que cada uma dá valor especial a uma distinta aproximação à língua original ou à conservação da própria, elas esgotarão integralmente a tarefa; porém, cada uma por si só terá apenas um valor relativo e subjetivo”. .

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Abrimos aqui um interlúdio essencial. É fácil esquecer que os dois ensaios seminais de Borges sobre tradução, Las versiones homéricas e Los traductores de las Mil y una Noches, versam sobre obras em grego e árabe, idiomas que ele notoriamente ignorava. Não deixa de ser inovadora essa modalidade de crítica de tradução toda baseada em traduções: a secundariedade do original12 12 Rosemary Arrojo expande a noção, qualificando-a como uma “teoria borgeana, das mais revolucionárias para efeitos de tradução, a da ausência do texto original” (192). é pressuposta sem nenhum pejo intelectual. Igualmente, as traduções consultadas e esmiuçadas nesses dois ensaios são sempre em inglês, francês ou alemão, jamais em espanhol. Certo, Borges era bilíngue em inglês, mas estava escrevendo seus textos em castelhano para um público hispanófono. Inclusive, quando cita passagens no estilo “o original diz etc.” a propósito do clássico árabe, ele na verdade está traduzindo ao espanhol partindo de uma das traduções que ele julga a mais literal, sem ter um esteio em árabe a atestar tal fidelidade. O axioma subjacente é que o original é dispensável em toda a operação de avaliação e crítica de traduções. Um dizer conciso de Borges (ainda que off the record e relatado indiretamente) resume elegantemente essa noção: “As muitas traduções (e a suficiente cultura para ter bom critério) permitem talvez prescindir dos originais” (Bioy Casares 430Bioy Casares, A. Borges. Barcelona: Destino, 2006., tradução nossa; anotação de 24 de abril de 1958). Não espanta que a conversa onde se encontra essa observação, 26 anos depois de publicado Las versiones homéricas, fosse precisamente sobre traduções de Homero…

* * *

Mais adiante no mesmo texto de 1932, a oposição clássicos/românticos já trazida à tona em Las dos maneras de traducir é ilustrada através da querela (circa 1860) entre os eruditos ingleses Matthew Newman e Francis William Arnold a respeito de traduções de Homero. Newman defendia a posição categorizada por Borges como romântica, isto é, zelosa de preservar as singularidades da língua original. Do outro lado, Arnold preferia se ater ao essencial do sentido e fazer uso dos recursos estilísticos convencionais da língua-alvo – era, portanto, um tradutor clássico.

O bon mot final deste ensaio é que as versões homéricas mais “fiéis” às intenções de Homero seriam justamente as mais livres. Isso porque as mais literais se valem demasiadamente do contraste do conteúdo da obra com a realidade dos nossos dias (por exemplo, as sangrentas batalhas campais da Ilíada não eram uma situação tão extravagante na época homérica quanto hoje). Logo, em perspectiva diacrônica, esse exotismo malgré elles das versões literais distancia os efeitos de sentido da tradução daqueles do original.

O texto mais apaziguado e normalizado à linguagem e realidade atuais acaba tendo sobre o leitor um efeito mais conforme ao que o original teria à época de sua produção e circulação original.

2.4 Los traductores de las Mil y una Noches (1934-36)

Em uma demonstração da continuidade e coerência do pensamento borgeano sobre as questões aqui abordadas, o extenso Los traductores de las Mil y una Noches13 13 Versões parciais: El puntual Mardrus (futura seção 2. El doctor Mardrus), publicada em Crítica, Buenos Aires, n. 26, 3 de fevereiro de 1934; Las 1001 Noches (futura seção 1. El capitán Burton), publicada em Crítica, Buenos Aires, n. 31, 10 de março de 1934. A versão completa, que soma e reordena as duas parciais (com alterações menores) e ajunta a seção 3. Enno Littmann, é datada de 1935; publicada em Historia de la eternidad, 1936 (Borges (B) 730-44). (1934-36) retoma tal qual o trecho sobre a desavença Arnold/Newman de Las versiones homéricas. Nesta recapitulação, entretanto, Borges tempera a sua posição observando que, na prática real da tradução, ambas as metas (romântica ou clássica) são concretamente irrealizáveis: importante mesmo para a contextura das traduções são os tradutores em si, suas personalidades e seus hábitos literários (principalmente no caso do polimorfo Sir Richard Burton). Na apresentação que Borges faz dos autores das primeiras traduções que analisa (Galland, Lane e Burton), cada um é o êmulo do anterior – a cadeia de retraduções é algo como a conflituada sucessão de uma estirpe. Isso importa um débito duplo ao tradutor: para com o original e depois entre cada nova versão e as que a precederam. Da maneira como Borges as expõe, essas relações recíprocas de influência, rivalidade e superação são pouco menos que edipianas.

Uma área muito característica da poética borgeana, a da apocrifia e manipulação radical de fontes, vem à tona no caso das obscenidades salpicadas por todas as Mil e uma noites. Borges comenta que a postura pudica de escamoteá-las em tradução pode, contrario sensu, ser interpretada como uma restituição legítima do teor que esses contos tinham no tempo pré-islâmico, antes da intervenção editorial dos compiladores anônimos das Mil e uma noites. Segundo o argentino, tratava-se originalmente de histórias de amor frustrado, narradas ao estilo popular e sem intenção chocante ou pornográfica. Por conseguinte, a omissão ou atenuação do tradutor tem o potencial de ser mais historicamente legítima do que o original literário, quiçá adulterado, que lhe chegou às mãos. Mais grave que um tradutor “canetear” episódios picantes é quando ele instaura no mundo oriental das histórias um clima mágico adventício, que não corresponde ao que os árabes ou persas da época percebiam em seu entorno, para eles prosaico e quotidiano. (Borges mais tarde deixaria claro que Pierre Menard passa nesse teste, ao resistir à caricaturização da Espanha antiga em seu livro de cavalaria andante.) Temos aqui o reverso da medalha das batalhas cruentas que, em eras homéricas, não causavam o choque que experimentamos hoje ao lê-las em tradução literal. Se neste caso o tradutor fiel, para Borges, é o que ameniza o exótico, no caso d’As mil e uma noites é infiel quem o magnifica.

Não que Borges associe a fidelidade de uma tradução à sua felicidade14 14 Leah Leone escreve que, como tradutor, Borges “jamais foi mero emissor das ideias recebidas da metrópole cultural. Como crítico astuto, suas traduções tomaram forma de intervenção crítica no original, notavelmente em mudanças de estilo, omissão de texto ‘irrelevante’ e em sutis confrontações ideológicas” (Schwartz 489; verbete “Tradução”). . Inclusive, justifica que a tradução livre do francês Mardrus é a mais legível por sua “infidelidade criadora e feliz” (Borges (B)Borges, J. L. (C). Obras completas en colaboración. 7. impr. Buenos Aires: Emecé, 1997. 741, tradução nossa). Já a alemã de Littmann é a mais exata de todas – e a mais aborrecida de ler, por medíocre e servil. É a única sem cortes ou acréscimos, sendo um decalque preciso do original até em suas fórmulas tradicionais de narrativa oral ou na repetição invariável dos verbi dicendi. Em suma, as transcriações de Galland, Burton e Mardrus pressupõem toda uma literatura (aí entendida amplamente como cultura, representações de mundo, convenções de escrita etc.) atrás de si, como fica claro pelos comentários enciclopédicos de Burton à sua própria versão. Para Borges, a de Littmann é autossuficiente, meramente sóbria, mortalmente chata. Esta tradução é censurada por sequer fazer uso – logo nesse livro, que tanto se prestaria a tal – da notável potencialidade de Unheimlichkeit (aquele estranhamento inquietante, ominoso, investigado por Freud em um texto famoso) da língua alemã, que, afinal, produziu a grande literatura do fantástico. Enno Littmann incide em um erro crasso ao desacatar aquele apotegma de Novalis referido em Pierre Menard: “Eu só mostro que compreendi um escritor quando consigo agir em seu espírito; quando consigo traduzi-lo e transformá-lo multiplamente sem depreciar sua individualidade” (Novalis 329Novalis. Werke. Editado e comentado por Gerhard Schulz. 2. ed. Munique: C., tradução nossa)15 15 Referido por Borges em Pierre Menard, autor del Quijote, como o fragmento 2005 da “edição de Dresden” (identificamos sua fonte como: Novalis. Fragmente. Editado por Ernst Kamnitzer. Dresden, 1929. p. 644).

3. Poslúdio

Encerramos nossa panorâmica reforçando o quanto Borges foi pioneiro na revitalização do pensamento sobre a tradução, esse ato que é, ao mesmo tempo, reescritura de uma obra e concorrência com ela. Jean Pierre Bernès, que teve intenso contato com Borges em seus últimos meses de vida, afirma que, segundo o mestre, “de maneira evidentemente paradoxal, (...) os tradutores rematavam, fixando-as, as obras dos autores, cujas versões originais eram assim reduzidas ao estado de rascunhos preliminares” (Borges (D)Borges, J. L. (D). Œuvres complètes. 2 v. Editado por Jean-Pierre Bernès. 2. ed. Vários tradutores. Paris: Gallimard, 2010. xix, tradução nossa). A desnaturação do original, a invasão interpretativa do leitor-tradutor, a universalidade apenas relativa da linguagem e a laboriosa ação do tempo sobre as obras literárias são alguns dos elementos-chave dos novos paradigmas que Borges sutilmente preparou. O bibliotecário cego, como demonstramos, substituiu “O Texto” por “textos”, correspondência por equivalências, cânone por esboços. Afinal,

pressupor que toda recombinação de elementos é necessariamente inferior a um arranjo prévio é pressupor que o rascunho 9 é necessariamente inferior ao rascunho H, já que só pode haver rascunhos. O conceito de texto definitivo corresponde apenas à superstição ou ao cansaço

(Borges (E)Borges, J. L. (E). Textos recobrados (1919-1929). 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2007. 229, tradução nossa).
  • 1
    Borges (B)Borges, J. L. (B). Obras completas (1923-1949). Edición crítica. Comentado por Rolando Costa Picazo e Irma Zangara. 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2009. 413, tradução nossa.
  • 2
    Rosemary Arrojo, em seu opúsculo introdutório Oficina de tradução: a teoria na prática, vai além e atribui tal afinidade à própria mentalidade do escritor: “O exercício tradutório de Borges é parte estrutural de sua personalidade” (88).
  • 3
    Sur, Buenos Aires, n. 56, maio de 1939.
  • 4
    Além do próprio conto, é claro, recomendamos a leitura do Capítulo 2 (A questão do texto original) de Arrojo e do seu artigo, Borges e a maldição de Babel: escritura, interpretação e conflito, recolhido em Schwartz (149-63).
  • 5
    Publicado em Proa, Buenos Aires, n. 6, janeiro de 1925; recolhido em Inquisiciones, 1925 (Borges (A) 22-28Borges, J. L. (A). Inquisiciones. 1. ed. Madri: Alianza Editorial, 2008.).
  • 6
    La última hoja de Ulises ([Proa, segunda época, Buenos Aires, ano 2, n. 6, janeiro de 1925]; reimpresso em Borges (E)Borges, J. L. (E). Textos recobrados (1919-1929). 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2007. 244-46). Jorge Schwartz (349-66) oferece um excelente comentário desse trabalho (comparando-o com a versão integral para o espanhol de Salas Subirat e efetuando um paralelo com a tradução do fim de Ulisses por Haroldo de Campos e a integral de Antonio Houaiss) em Borges e Joyce (via Salas Subirat, Antonio Houaiss e Haroldo de Campos). Incluem-se transcrições da última página do original inglês e das quatro traduções.
  • 7
    Nota sobre el Ulises en español, publicado em Los Anales de Buenos Aires, Buenos Aires, ano 1, n. 1, janeiro de 1946 (reimpresso em Borges (F)Borges, J. L. (F). Textos recobrados (1931-1955). 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2007. 229-30).
  • 8
    Publicado em La Prensa, Buenos Aires, 1º de agosto de 1926 (reimpresso em Borges (E)Borges, J. L. (E). Textos recobrados (1919-1929). 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2007. 313-17).
  • 9
    Datado de 1932; publicado em La Prensa, Buenos Aires, 8 de maio de 1932; recolhido em Discusión, 1932 (Borges (B)Borges, J. L. (B). Obras completas (1923-1949). Edición crítica. Comentado por Rolando Costa Picazo e Irma Zangara. 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2009. 413-16).
  • 10
    O próprio Pierre Menard adverte ao seu missivista que “[m]eu complacente precursor [Cervantes] não recusou a colaboração do acaso: ia compondo a obra imortal um pouco à la diable, levado por inércias da linguagem e da invenção. Eu contraí o misterioso dever de reconstruir literalmente sua obra espontânea” (Borges (B)Borges, J. L. (B). Obras completas (1923-1949). Edición crítica. Comentado por Rolando Costa Picazo e Irma Zangara. 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2009. 845, tradução nossa).
  • 11
    Na formulação exemplar e pré-Biblioteca de Babel de Schleiermacher (43-44, tradução nossa): “[…] se puderem existir paralelamente diferentes traduções da mesma obra, vazadas a partir de diferentes pontos de vista, e das quais não se possa mesmo dizer que uma, em sua totalidade, seja mais perfeita ou deixe a desejar, com apenas algumas partes de uma sendo mais acertadas, e outras de outras; aí, com todas elas reunidas e relacionadas entre si no sentido de que cada uma dá valor especial a uma distinta aproximação à língua original ou à conservação da própria, elas esgotarão integralmente a tarefa; porém, cada uma por si só terá apenas um valor relativo e subjetivo”.
  • 12
    Rosemary Arrojo expande a noção, qualificando-a como uma “teoria borgeana, das mais revolucionárias para efeitos de tradução, a da ausência do texto original” (192).
  • 13
    Versões parciais: El puntual Mardrus (futura seção 2. El doctor Mardrus), publicada em Crítica, Buenos Aires, n. 26, 3 de fevereiro de 1934; Las 1001 Noches (futura seção 1. El capitán Burton), publicada em Crítica, Buenos Aires, n. 31, 10 de março de 1934. A versão completa, que soma e reordena as duas parciais (com alterações menores) e ajunta a seção 3. Enno Littmann, é datada de 1935; publicada em Historia de la eternidad, 1936 (Borges (B)Borges, J. L. (B). Obras completas (1923-1949). Edición crítica. Comentado por Rolando Costa Picazo e Irma Zangara. 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2009. 730-44).
  • 14
    Leah Leone escreve que, como tradutor, Borges “jamais foi mero emissor das ideias recebidas da metrópole cultural. Como crítico astuto, suas traduções tomaram forma de intervenção crítica no original, notavelmente em mudanças de estilo, omissão de texto ‘irrelevante’ e em sutis confrontações ideológicas” (Schwartz 489Schwartz, Jorge (Org.). Borges no Brasil. 1. ed. São Paulo: Editora Unesp– Imprensa Oficial do Estado, 2001.; verbete “Tradução”).
  • 15
    Referido por Borges em Pierre Menard, autor del Quijote, como o fragmento 2005 da “edição de Dresden” (identificamos sua fonte como: Novalis. Fragmente. Editado por Ernst Kamnitzer. Dresden, 1929. p. 644).

Referências

  • Arrojo, R. Oficina de tradução: a teoria na prática 5. ed. São Paulo: Ática, 2007.
  • Bioy Casares, A. Borges Barcelona: Destino, 2006.
  • Borges, J. L. (A). Inquisiciones 1. ed. Madri: Alianza Editorial, 2008.
  • Borges, J. L. (B). Obras completas (1923-1949). Edición crítica Comentado por Rolando Costa Picazo e Irma Zangara. 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2009.
  • Borges, J. L. (C). Obras completas en colaboración 7. impr. Buenos Aires: Emecé, 1997.
  • Borges, J. L. (D). Œuvres complètes 2 v. Editado por Jean-Pierre Bernès. 2. ed. Vários tradutores. Paris: Gallimard, 2010.
  • Borges, J. L. (E). Textos recobrados (1919-1929) 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2007.
  • Borges, J. L. (F). Textos recobrados (1931-1955) 1. ed. Buenos Aires: Emecé, 2007.
  • Novalis. Werke Editado e comentado por Gerhard Schulz. 2. ed. Munique: C.
  • H. Beck, 1981.
  • Schleiermacher, F. “Über die verschiedenen Methoden des Übersetzens”. Scientia Traductionis 9 (2011): 3-70.
  • Steiner, G. After Babel: Aspects of Language & Translation 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 1998.
  • Schwartz, Jorge (Org.). Borges babilônico: uma enciclopédia 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • Schwartz, Jorge (Org.). Borges no Brasil 1. ed. São Paulo: Editora Unesp– Imprensa Oficial do Estado, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2018
  • Aceito
    15 Mar 2019
  • Publicado
    Maio 2019
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