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TRADUÇÃO DE TEATRO PARA LÍNGUAS DE SINAIS: ENSAIO SOBRE CORPO E (IN)VISIBILIDADE

THEATER TRANSLATION INTO SIGN LANGUAGES: AN ESSAY ON THE BODY AND (IN)VISIBILITY

Resumo

A discussão proposta neste artigo parte de uma inquietação, a de que uma parte da população, a comunidade surda, não tem acesso (ou pouco possui, mas sem vinculação as preocupações estéticas) ao teatro produzido pela comunidade majoritária, os ouvintes. Das diferentes questões envolvidas nessa situação, propomos discutir a da (in)visibilidade da tradução e a do corpo visível porque presente (ou presente porque visível) do tradutor intérprete de LS (Língua de Sinais) em cena (ou à margem). Essas questões, claro, se relacionam porque se implicam, mas elas nos permitem um olhar particular sobre um tema caro aos estudos da tradução, a saber a da (in)visibilidade do processo tradutório. Assim, busca-se, a partir de uma concepção poética do traduzir, uma experiência estética (espetáculo teatral) mais do que somente uma tradução que “comunique a mensagem”. O sentido aqui não é descoberto, mas criado, construído, inventado (dirigido). A tradução de teatro para LS, concebida como ato de linguagem, visual e espacial, deve ser configurada a partir das especificidades do espetáculo teatral. Logo, nosso objetivo é propor um traduzir-interpretar teatro para LS em interlocução com a direção do espetáculo.

Palavras-chave
Línguas de Sinais; (In)visibilidade; Tradução de Teatro; Corpo

Abstract

In the present essay, we propose a discussion based on a concern that part of the population, the deaf community, does not have access (or very little and in a non-aesthetical way) to the theatrical plays produced by the majority community, the listeners. Amongst the different questions involved in this situation, we propose a discussion about the (in)visibility of translation and the Sign Languages (SL) translator/interpreter’s visible body – visible because it is present (or present because it is visible) – in the scene (or on its fringe). Of course these questions are related, as they are implicated in one another, but they allow us to see in a particular way a theme that is very dear to Translation Studies: the translation process (in)visibility. Therefore, we seek an aesthetical experience (the theatrical play), based on a po-ethic approach to translation, rather than just prioritizing a translation that “communicates the message”. The meaning here is not discovered, but created, built, invented. The theatre translation into SLs is conceived here as a visual, spatial and linguistic act, and it must be designed according to the play specificities. Thus, our goal is proposing a theater translation/interpreting process into SLs, in dialogue with the stage direction.

Keywords
Sign Languages; (In)visibility; Theatre Translation; Body

1. Introdução

“Pour moi, traduction et mise-en-scène, c’est le même travail, c’est l’art du choix dans la hierarchie des signes.” 1 1 [Para mim, tradução e mise-en-scène, é o mesmo trabalho, é a arte da escolha na hierarquia dos signos] – Tradução Nossa. Antoine Vitez (1989)2 2 Meschonnic, Henri, “Traduire, c’est mettre-en-scène, comme Antoine Vitez dans La Mouette de Tchékhov”. In: Deprats, Jean-Michel (ed.) Antoine Vitez, le devoir de Traduire. Paris: Editions Climats & Maison Antoine Vitez, 1996.

Desde a antiguidade, o teatro acompanha e participa das produções humanas, das questões mais íntimas às de âmbito mais amplo e sociais. Tais problematizações tem trazido luz para as nossas formas de ver, pensar e agir sobre-com o mundo. O teatro é uma das expressões culturais mais complexas que traz as discussões de um povo em um contexto histórico, social e político.

Entretanto, grupos significativos da população não têm acesso a essa produção, no nosso caso, a comunidade surda. Vale lembrar, que a comunidade surda tem escrito, dirigido e produzido os seus próprios espetáculos, com atores surdos e belíssimas montagens. Todavia, um número expressivo de produções apresentadas pela comunidade majoritária ouvinte, com diversas questões e enunciações, as quais a comunidade surda, até bem pouco tempo, não tinha acesso. Em resposta, a legislação3 3 Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), o capítulo IX sobre o Direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer diz “Art. 42. A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso: I - a bens culturais em formato acessível; II - a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível; e III - a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos”. BRASIL. Decreto-Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015 – Capítulo IX, Art. 42, Brasília, 2015. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso: 18/06/2019. tem sido modificada com o intuito de garantir o acesso da comunidade. No entanto, ao sanar uma questão de equação, outras tantas se apresentam. Uma delas é a formação dos Tradutores Intérpretes de Línguas de Sinais (TILS) para realizar essa função, uma vez que os cursos de tradutores e intérpretes ou de Letras-Libras não contemplem a especificidade dessa expressão cultural4 4 Cf. Silva-Neto, Virgílio Soares da. A Formação de Tradutores de Teatro para Libras: Questões e Propostas. Dissertação de mestrado. Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 2017. . Pesquisas são desenvolvidas nesse sentido, mas ainda em números tímidos.

A discussão que propomos aqui, a partir dessa falta, levanta questões pertinentes a tradução de teatro e à (in)visualidade do TILS. Entendendo as especificidades das linguagens, a tradução de teatro, deve buscar um projeto que permite a experiência estética do surdo. Pensar, então, uma tradução poética, em vez de priorizar apenas a “comunicação da mensagem”. O sentido aqui não é descoberto, mas criado, construído, inventado; um acontecer-linguagem que multiplica as enunciações, polifônico e potencializador. Um acontecer que produz sentires-sentidos. O sentido aqui passa pelos atravessamentos dos afetos (que podem, ou não, produzir entendimentos em função do grau de consciência desses). Trata-se, então, de pensar o traduzir-interpretar em relação com o ator e com a direção. A abordagem comunicativa, tanto na tradução como nas artes, reduz a obra a uma mensagem, um “mero informacionismo” como diria Meschonnic (17)Meschonnic, Henri. Poétique du traduire. Paris: Verdier, 1999., ou lembrando Walter Benjamin:

O que ‘diz’ uma obra poética? O que comunica? Muito pouco para quem a compreende. O que lhe é essencial não é a comunicação, não é o enunciado. E, no entanto, a tradução que pretendesse comunicar algo não poderia comunicar nada que não fosse comunicação, portanto, algo inessencial

(Benjamin 69Benjamin, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor" . In: Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Tradução de Susana Kampff Lages. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.).

Pensar a tradução de teatro para LS é antes perceber essa mediação como ato visual e espacial, e configurá-la a partir das especificidades do teatro e sua respectiva direção. Assim, o aspecto que mais nos chama atenção aqui, vem do caráter visual das LS, e diz respeito às questões de (in)visibilidade da tradução e por extensão do tradutor, e por conseguinte, as questões ligadas ao corpo visível porque presente (ou presente porque visível) do TILS em cena.

Não é o propósito aqui descrever e elencar as pesquisas já desenvolvidas, sobretudo em Linguística, sobre as LS. No entanto, nas diferentes descrições analíticas e classificatórias, seja nas perspectivas estruturalistas, fenomenológicas, seja nas discursivas e poéticas, as LS são qualificadas pelos seus aspectos visual, espacial e gestual. Segundo Ana Regina Campello:

Os Surdos usam a língua de sinais brasileira envolvendo o corpo todo, no ato da comunicação. Sua comunicação é viso-gestual e produz inúmeras formas de apreensão, interpretação e narração do mundo a partir de uma cultura visual.

(Campello 91Campello, Ana Regina. Aspectos da visualidade na educação de surdos. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2008. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/91182. Acesso em: 20/03/2019.
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).

O problema que nos mobiliza aqui é justamente esse caráter visual das LS e da cultura dos surdos5 5 “A cultura visual vem da “experiência visual” (Perlin, 1998), que na teoria cultural e de Estudos Surdos, a língua de sinais vem construída e absorvida visualmente juntamente com a cultura do sem som. As percepções visuais e suas experiências visuais, no dia a dia, com seus “próprios significados não-sonoro” transportam aquilo o que foi vivenciado por meio da língua de sinais, e acabam selecionando o — final “da história para dar ao — ponto de partida no começo da fragmentação da experiência visual.” (Campello 91). na tradução de teatro, vale destacar, também visual, espacial e gestual.

É importante lembrar, que a tradução para LS, reveste um caráter nacional que ainda, infelizmente, é visto por muitos como assistencialismo, enquanto a tradução para outras línguas (inglês, francês, espanhol, por exemplo) é vista como internacionalização (logo, mais-valia). Ronda, então, em toda discussão sobre a tradução para LS uma questão moral-cívica que não pode ser ignorada, mas debatida publicamente. Mesmo não sendo o foco aqui, essas questões permeiam decisões e projetos de tradução para LS no teatro (até a decisão pragmática de optar pela acessibilidade para obter mais pontos na competição dos editais de cultura) e perpassam as discussões éticas-deontológicas do TILS e da acessibilidade.

Outra questão, igualmente relevante e urgente, diz respeito à formação dos tradutores que já atuam ou vão atuar na tradução de produções artístico-culturais. Tanto a comunidade surda quanto a comunidade artística vêm se queixando com a atuação da tradução de teatro que não proporciona uma experiência estética para o espectador surdo e ainda “estraga” a estética montada pela direção pela (in)visibilidade marginalizada.

2. Tradução de espetáculo teatral

Para começar nossa discussão sobre o contexto do TILS em uma atmosfera particular que é a cênica, nos parece importante, para nós dos Estudos da Tradução, apresentar uma discussão sobre o teatro, ou seja, pensar o que confere especificidade a linguagem teatral. Para pesquisadores e profissionais das artes do espetáculo, essa parte pode parecer clássica ou mesmo primária, no entanto, para os tradutores, se familiarizar com a linguagem que vão traduzir é decisivo nas escolhas e estratégias do processo tradutório. Por isso, defendemos um trabalho conjunto do tradutor com a companhia de teatro durante todo processo de montagem e direção, de maneira a garantir a elaboração de um projeto condizente com os espetáculos e as expectativas. Na maioria dos casos, o tradutor é chamado no último momento esperando-se dele uma tradução comunicativa e nem sequer, por vez, se pensou o lugar dele. No seu Dicionário do teatro (2011), Patrice Pavis, define o teatro como o espaço onde os espectadores observam uma ação apresentada a eles de outro lugar, ou seja, é um “ângulo de visão” ou “um olhar” (Pavis 372Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2011.). A palavra teatro nos chega do grego théatron, que queria dizer “lugar onde se assiste a um espetáculo, espectadores, o próprio espetáculo”, noção em que a relação de ângulo/olhar é definidora. O autor corrobora sua concepção com Barthes, que vê como denominador comum do que a civilização ocidental denomina teatro o seguinte:

de um ponto de vista estático, um espaço de atuação (palco) e um espaço onde se pode olhar (sala), um ator (gestual, voz) no palco e espectadores na sala. De um ponto de vista dinâmico, a constituição de um mundo ‘real’ no palco em oposição ao mundo ‘real’ da sala e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma corrente de ‘comunicação’ entre o ator e o espectador

(Barthes apudPavis 373Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2011.).

Roland Barthes ainda afirma que, sem o conceito de teatralidade, a compreensão deste universo fica prejudicada, pois as “espessuras de signos e sensações” estabelecidas na cena em virtude do argumento escrito assemelham-se a uma “espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior” (Barthes apudPavis 372Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Desta forma, a teatralidade está relacionada à expressividade, ao espaço, ao visual e à especificidade da enunciação teatral, ou seja, ao espetáculo. Ele também propõe uma distinção entre teatralizar e dramatizar: “teatralizar um acontecimento ou um texto é interpretar cenicamente usando cenas e atores para construir a situação. O elemento visual da cena e a colocação dos discursos são as marcas da teatralização”. (Barthes apudPavis 372Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Já a dramatização remete a manutenção do foco exclusivamente na estrutura textual: inserção em diálogos, criação de uma tensão dramática e de conflitos entre as personagens, dinâmica da ação (dramática ou épica).

Essa distinção pode, no entanto, ser questionada à luz de um teatro não submisso ao texto, ou até pela ausência dele. Se desde a Antiguidade a “palavra” foi o centro do pensamento lógico e esteve no centro de toda e qualquer produção, incluindo a artística, e neste sentido, por muito tempo toda a encenação ocorria com o propósito de explicitar ou reelaborar o que o texto já enunciava, essa forma de compreender teatro vem sendo modificada. Percebe-se que as imagens, a música e outros elementos teatrais trabalham no âmbito do inconsciente e concorrem para favorecer a estética teatral de forma não submissa ao texto. Assim, fica cada vez mais difícil definir o texto dramático, uma vez que, na atualidade, os elementos cênicos não se limitam aos diálogos ou descrições de cenas, mas podem chegar a extremos, como à ausência de qualquer texto. Aqui pensamos, em particular, nos conceitos de teatro pós-dramático de Hans-Thies Lehman (2013)Lehmann, Hans-Thies, “Teatro Pós-dramático, doze anos depois”. Rev. Bras. Estud. Presença. 3.3(2013). Porto Alegre: UFRGS, 2013. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/presenca. Acesso em: 20/03/2019.
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e de teatro performativo de Josette Feral (2015)Féral, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. Tradução de J. Guinsburg et al. São Paulo: Perspectiva, 2015..

Todavia, nesse ensaio, mantemos essa distinção (dramatização e teatralização), por questões práticas. Nos permite diferenciar o processo de tradução de textos dramáticos (que tem suas especificidades) do processo tradutório de um espetáculo teatral (e suas questões espaciais e visuais).

Ferreira, sobre a tradução de texto dramático, elenca alguns elementos fundamentais para a elaboração de um projeto de tradução. Segundo ela, além das questões discursivas e literárias que todo texto comporta,

[...] o texto teatral traz (também) questões formais e discursivas que lhe são próprias, como por exemplo o fato de ser construído como um longo diálogo, constituído de réplicas trocadas entre os personagens [...] além de ser escrito para ser encenado.

(Ferreira 76Ferreira, Alice Maria de Araújo. “Traduzir À Petites Pierres de Gustave Akakpo: a escrita heterogênea e a questão dos provérbios”. Cadernos de Tradução. n. 3 v.37. Florianópolis: UFSC, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n3p71. Acesso em: 11/03/2019.
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)

Esses elementos específicos do texto dramático devem ser analisados nas suas funções poéticas pelo tradutor na elaboração de seu projeto. A composição da significância do texto é fundamental na tradução do ritmo e da intensidade dramática do texto quando de sua encenação.

Nossa reflexão nesse artigo trata da tradução de teatro enquanto espetáculo e não na tradução de textos dramáticos para uma companhia de teatro que quer propor uma encenação (que é, como vimos, outro trabalho de tradução). Essa, mesmo com as especificidades do texto dramático, ainda trataria da tradução de textos de uma língua para outra, ou seja, de uma mise-en-langue. A tradução de teatro que nos interessa aqui é a tradução de uma encenação, por conseguinte, pensar a presença do TILS no ato da encenação, uma tradução que não substitui sua anterioridade, mas coexiste com ela.

Retomando a epígrafe de Antoine Vitez “Pour moi, traduction et mise-en-scène, c’est le même travail, c’est l’art du choix dans la hiérarchie des signes.”6 6 [Para mim, tradução e mise-en-scène, é o mesmo trabalho, é a arte da escolha na hierarquia dos signos – Tradução Nossa] Essa nos leva a uma concepção de tradução ampla e metafísica em que todo processo de linguagem, logo de artes, é visto como processo tradutório, de passagem, ou melhor de encontro e relação. Assim, na tradução de uma mise-en-scène vários processos de tradução estão envolvidos, e essa se apresenta como a tradução de uma tradução. Isso fica claro, como veremos mais adiante, quando o TILS traduz não diretamente o personagem, mas sim a tradução que o ator fez da personagem. Além disso, traduzir teatro remete a diferentes instâncias de encontro, entre as quais destacamos: a do texto (ou projeto) com o espaço cênico (mise-en-scène), a do texto (ou projeto) com o corpo-ator (mise-en-corps/mise-en-voix) e a das línguas envolvidas na tradução (mise-en-langue).

A tradução de um espetáculo envolve questões visuais, espaciais e corporais que devem compor o projeto tradutório e por isso o TILS deve participar dos ensaios e das discussões com a direção. Ou seja, o TILS deverá levar em consideração todos os elementos que convergem para a construção do espetáculo (concepção e composição) que vão desde a iluminação, o cenário, os figurinos, até a música e as imagens (visuais e sonoras) criadas no processo de montagem da peça. A composição desses elementos confere teatralidade, não só à peça, mas à tradução poeticamente construída para uma experiência estética do espectador surdo. Das questões que mais nos chamaram atenção nesse processo de tradução de espetáculo teatral são: o corpo-tradutor em cena e sua (in)visibilidade.

3. Do TILS ao tradu(a)tor: a tradução e a sombra

Ao chamar esse profissional de Tradutor Intérprete de Língua de Sinais (TILS), lhe é atribuída uma dupla função, ambas num corpo visível e/porque presente. Enquanto intérprete, sua presença reorganiza a interação, cada lado da mediação o observa e/ou o ouve, o que cria uma triangulação do diálogo. Enquanto tradutor, sua visibilidade é questionada à luz do caráter secundário da tradução que visa, nas abordagens platônicas e/ou substancialistas, seu apagamento; isto é, a busca pela originalidade-naturalidade na chegada (com o mínimo de triangulação). Assumir a visibilidade e a presença do TILS, além de ser em si, ou por si, uma atitude política (logo epistemológica) e ética (logo estética), é, também, um projeto crítico-criativo (logo, poético). Estratégias são elaboradas para negociar essa presença em direção à (in)visibilidade em diferentes projetos tradutórios (seja pela sua composição-incorporação, seja pela sua justaposição).

A presença do tradutor em cena (mesmo marginalizado) nos leva a aproximá-lo do ator, pois como este, ele desempenha um papel em cena (o de tradutor) e encarna uma ou várias personagens, no entanto não se situa no cerne do acontecimento teatral, lugar do ator. Essa relação nos leva a pensá-lo como tradu(a)tor, um ator entre parênteses, por ser, e ao mesmo tempo, não ser ator, um tradu(a)tor (ser e não ser, o paradoxo da tradução ou sua crise ontológica).

A primeira a juntar esses dois radicais, tradutor e ator em tradu-ator, foi Thatiane do Prado Barros na sua dissertação “Experiência de tradução poética de português/libras: três poemas de Drummond” (2015). Nela, o tradu-ator seria o tradutor que encena sua tradução, pois, segundo ela: “O tradu-ator transpõe o poema performaticamente. O ícone invade o corpo” (Barros 125Barros, Thatiane do Prado. Experiência de tradução poética de português/libras: três poemas de Drummond. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução), Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 2015. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/19313. Acesso em: 20/03/2019.
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). Diferentemente, o tradu(a)tor, encena sua tradução na relação que cria com o trabalho do ator. Assim, a tradu(a)tuação é uma atividade que não só mescla as competências do fazer tradutório com as da atuação, mas põe em relação o tradutor e o ator que coexistem em cena. Esse caráter cênico está vinculado, e, por conseguinte, dependente da encenação do ator. Este após estudar o roteiro e pôr a sua intencionalidade ao enuncia-lo, gera uma atmosfera emocional que, ao ser captada pelo tradutor, é reenunciada, a partir de aproximações formais da estrutura interpretativa do ator a fim de proporcionar à plateia de surdos uma experiência próxima da semelhante a dos ouvintes. Assim, a atividade do tradu(a)tor, no que diz respeito a sua encenação, existe a partir do trabalho do ator. O tradu(a)tor, assim como o ator, enuncia o texto, “é habitado” por uma personagem (ou melhor, várias) e, de certa forma, se faz passar por ela; sem ser ela, ou seja, sem ocupar o lugar do ator que desempenha esse papel. É uma presença em cena que se liga ao(s) ator(es) como uma sombra, um sombreamento da atuação, sem nunca apagar seu original (o ator).

A metáfora da sombra para a tradução foi questionada por Márcio Seligmann-Silva no seu artigo “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução” (Seligmann-Silva 24Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
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). Nele, Márcio Seligmann-Silva nos lembra que a princípio essa metáfora situa a tradução sempre como secundária, uma derivação do original, e por isso sempre desvalorizada em relação ao original. No entanto, temos que situá-la numa complexa relação de diferentes elementos, já que a sombra implica uma fonte de luz e um obstáculo. Este obstáculo que provoca o sombreamento do original é a diferença das línguas e, de modo mais concreto, nos diz Seligmann-Silva, o tradutor. Nessa visão tradicional da tradução, o tradutor, ao invés de ser agente de circulação, de meio de reflexão e de desdobramento da obra, ele é visto como “o muro que impede o original de brilhar”. Mas, se pensarmos a figura do tradutor como skiagrapho, como nos propõe Seligman-Silva, ou seja, como um pintor da sombra, podemos entender a tradução “tanto como uma tentativa de se criar a ilusão da cor pela utilização do sombreado, quanto como uma tentativa de se introduzir a perspectiva na pintura” (Seligmann-Silva 15). Numa reflexão crítico-histórica da tradução, observamos com o autor que:

nem toda época tradutória ou todo aquele que reflete sobre a tradução, de dentro da enorme e vastamente predominante tradição platônica que marca esse tipo de reflexão e de prática, repito, nem todos assumem esse ‘ser sombra’ do trabalho do tradutor. Isso porque assumir esse estatuto inferior implicaria reconhecer também um certo fracasso da tradução.

(Seligmann-Silva 24Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
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)

A valorização do trabalho do tradutor vai se dar sobretudo no romantismo alemã se contrapondo às Belles-infidèles. Seligmann-Silva lembra que “Nessa época, deu-se também a vertiginosa criação do indivíduo moderno, composto [...] por uma interioridade e pela visão terrível da temporalidade como um problema” (Seligmann-Silva 25Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
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). Um sujeito cindido entre um eu externo e o seu íntimo “vê a história, ou seja, a diferença temporal, como um problema e percebe as culturas como sendo um conjunto de mônadas insondáveis” (Seligmann-Silva 25Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
). A tradução não pode mais ser vista como equivalência, pois as línguas ganham um novo estatuto e passam a ser vista como construtoras de mundos. A tradução passa a abarcar a noção de intraduzibilidade (impossível, mas necessário, outra crise ontológica). Assim, a partir dessa sensação vertiginosa do romantismo da temporalidade e das diferenças culturais, a obra traduzida passa a ser uma modalidade de sobrevivência do original, e o tradutor uma espécie de figura da modernidade, ou seja, “alguém que enfrenta e tenta lidar com a morte e a questão da sobrevivência a ela” (Seligmann-Silva 26Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
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). A possibilidade de valorização da tradução, esse elogio à sombra, aponta para a “fundação do novo homem como alguém que porta dentro de si as suas sombras” (Seligman-Silva 26Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
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) como o original porta dentro de si, suas (im)possíveis traduções. A internalização da tradução aponta para outra escrita tradutória, outra relação original-tradução, uma relação de co-presença.

Reencontramos esse pensamento em Walter Benjamin (citado por Seligmann-Silva) onde a tradução é definida tendo como fim, a exposição “da relação mais interior das línguas entre si” (Benjamin 54Benjamin, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor" . In: Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Tradução de Susana Kampff Lages. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.). Essa relação é uma convergência entre as línguas que deve ser buscada não no sentido comunicado, mas na complementaridade das diversas línguas, ou seja, nos dizer de Benjamin “na língua pura” [Reine Sprache]. Ao invés de substituição, Benjamin fala de complementação em relação aos diversos modos de dizer. Assim, retomando Seligmann-Silva, “esse tradutor, ao invés de muro, torna-se, pois, a arcada, o mediador da diferença”. Se a sombra não existe sem a presença do corpo, como a tradução sem a presença do original, “sabemos muito bem”, como diz Seligmann-Silva, “em que medida somos assombrados por sombras – com o perdão do pleonasmo proposital”. (Seligmann-Silva 23Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
). A tradução passa a ser incorporada como meio de confecção do homem moderno, e podemos falar, com Seligmann-Silva de “uma verdadeira volta do recalcado: se a sombra sempre teve um papel secundário e foi reprimida e jogada em um limbo, agora ela pode finalmente entrar em cena” (Seligmann-Silva 26Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
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). É pensando na “internalização da tradução” e seu “entrar em cena” que propomos discutir as questões do corpo e da sua visibilidade.

4. O corpo e sua visibilidade

O ator é, antes de mais nada, uma presença física em cena, mantendo verdadeiras relações de “corpo a corpo” com o público, o qual é convidado a sentir o lado imediatamente palpável e carnal, mas também efêmero e impalpável de sua aparição (Pavis 30Pavis, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Assim, por um lado, mesmo desempenhando papeis diferentes (um é ator, outro é tradutor), a visibilidade (presença em cena) do tradu(a)tor o situa num processo de atuação. Por outro lado, poderíamos dizer que o ator, no seu trabalho de criação da personagem, situa-se num processo tradutório de mise-en-corps. O ator é como que “habitado” e metamorfoseado por uma outra pessoa; não é mais ele mesmo, e sim uma força que o leva a agir sob os traços de um outro (o personagem). O outro metamorfoseado no corpo do tradu(a)tor é sua própria função se tornando personagem no palco; os espectadores nunca o confundem com o ator e o percebem como tradutor.

O tradu(a)tor, agora (em cena) com essa incumbência de também atuar, se relaciona com o ator. A visibilidade dele, se deve ao caráter simultâneo da tradução de teatro e ao aspecto viso-gestual das LS. Assim, nos parece ilusão fingir sua invisibilidade ou desejar seu apagamento. Logo, a visibilidade do tradu(a)tor nos leva a pensá-lo, não só no lugar “entre” que ocupa enquanto tradutor, mas em termos de corpo cênico, presente e visível (palpável), que ocupa enquanto intérprete.

As crescentes pesquisas sobre o corpo do TILS têm-se limitado a elencar e registrar as enfermidades causadas por esforços repetitivos, acúmulo de trabalho e atuação, e apontam para a necessidade de um aquecimento com exercícios. Contudo, o que trazemos aqui é a necessidade de se refletir sobre o corpo desse profissional a partir de um certo olhar cênico. Tomamos emprestado, ainda que de forma inicial, olhares que examinem a cena de forma mais abrangente, mesmo sabendo que as demandas de trabalho do corpo do tradutor podem, em determinados momentos, se aproximar das dos atores, e, em outros, se distanciar. No entanto, no caso de tradução para LS, o corpo deve, sem dúvida, ser discutido, já que seu aspecto viso-gestual é caracterizador.

Alice Stefânia Curi, no seu livro Traços e devires de um corpo cênico (2013), nos lembra que:

O pensamento ocidental –marcado pelo platonismo, pela tradição judaica-cristã, pelo cartesianismo- legou-nos uma ideia compartimentada do ser humano. Este seria constituído por um organismo físico, foco de prazeres e mazelas – conhecido como corpo, e por uma organização metafísica responsável por faculdades tidas como nobres e superiores em grande parte das escolas filosóficas ocidentais. Razão, linguagem, transcendência são atribuídas a esta última instância, chamada mente, espírito, consciência

(Curi 95).

Essa cisão do ser humano levou a filosofia ocidental a longos debates, entre o idealismo e o materialismo, que podem ser resumidos, segundo Curi, da maneira seguinte: “O corpo é visto, ao longo da tradição ocidental, ora como possibilidade de satisfação e realização, ora como empecilho à evolução do espírito e da mente” (Curi 95Curi, Alice Stefânia, “Estudos de atuação: concepção e composição na cena “professora”. Repertório. Salvador: 21.30 (2018): 388-416. Portal de Periódicos da UFBA. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/25853/17260. Acesso em: 11/03/2019.
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). Na história do pensamento sobre a tradução essa cisão se manifesta no debate ocidental entre traduzir o espírito ou a letra, o conteúdo ou a forma, ou ainda, servir ao leitor ou ao autor.

A noção de corpo passa a se ressignificar em torno da subjetividade, sobretudo em Maurice Merleau-Ponty, como aponta Curi:

O autor [Merleau-Ponty] sugere ainda que a alma pensaria segundo o corpo, e que este seria para a alma o seu espaço natal e a matriz de qualquer outro espaço existente. Complementa que deveríamos então conceber o pensamento como corporal.

(Curi 98Curi, Alice Stefânia. Traços e devires de um corpo cênico. Brasília: Dulcina Editora, 2013.)

O corpo deveria ser concebido “como campo complexo em que se articulam todas as instâncias do ser.” (Curi 98Curi, Alice Stefânia, “Estudos de atuação: concepção e composição na cena “professora”. Repertório. Salvador: 21.30 (2018): 388-416. Portal de Periódicos da UFBA. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/25853/17260. Acesso em: 11/03/2019.
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). Essa subjetividade constituinte de um ser parte em busca da identidade-ser. Com rizoma de Deleuze e Guattari (1995)Deleuze, G. & Guattari, F. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Vol 1. Tradução de Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. a subjetividade é movimento (afetada e afetante), uma identidade rizomática. Assim, os autores deslocam a noção de corpo-indivíduo para corpo-subjetividade. Eles veem o corpo para além de sua concretude e palpabilidade, e segundo Curi: “propõem a ideia de corpo como zona de intensidades, afetos, dilatando a ideia de corporeidade, antes restrita ao aparato bio e fisiológico” (Curi 99Curi, Alice Stefânia. Traços e devires de um corpo cênico. Brasília: Dulcina Editora, 2013.). Assim, a experiência passa a ter um novo lugar nos processos cognitivos: “O entendimento se dá no corpo, pela via da experiência” (Curi 101Curi, Alice Stefânia. Traços e devires de um corpo cênico. Brasília: Dulcina Editora, 2013.).

Com essas ressignificações da noção de corpo, chega-se, para Curi:

Em um corpo psicofísico, lugar de imanência e transcendência, mapa e cartógrafo de memórias, afetos, sensações, experiências. Corpo que afeta e é afetado em uma relação coevolutiva com seu meio, e nessa interação experimenta autonomia de reinventar-se.

(Curi 101Curi, Alice Stefânia, “Estudos de atuação: concepção e composição na cena “professora”. Repertório. Salvador: 21.30 (2018): 388-416. Portal de Periódicos da UFBA. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/25853/17260. Acesso em: 11/03/2019.
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)

E acrescenta: “É com essa natureza de corporeidade que as artes da cena têm operado” (Curi 101Curi, Alice Stefânia, “Estudos de atuação: concepção e composição na cena “professora”. Repertório. Salvador: 21.30 (2018): 388-416. Portal de Periódicos da UFBA. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/25853/17260. Acesso em: 11/03/2019.
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). É esse corpo, que se reinventa pela/na experiência, afetado e afetante, que é preciso trabalhar no tradu(a)tor. Assim, como na tradução de texto em que a língua traduzida é transformada pela língua que a traduz, e que esta última se transforma à medida que acolha o outro, na mise-en-corps (pensada como tradução) o sujeito-personagem é provocado pelo sujeito-corpo que o recebe, ao mesmo tempo em que esse sujeito-corpo é transformado pelo sujeito-personagem que o penetra, numa interação criativa. Em termos linguísticos, e não deixamos de falar de língua quando falamos de LS, as línguas são corpos afetados e afetantes que transformam nossas subjetividades-corpo por internalização, criando e/ou potencializando suas possíveis traduções-corpo (múltiplas identidades).

O trabalho do corpo, tanto do ator quanto do tradu(a)tor de LS em diferentes propostas teatrais, opera-se num corpo-sujeito, lugar de forças e tensões, afetado e afetante, atravessado por experiências que o configuram. Assumimos, então, com Curi, “[...] o sentido de corpo como amálgama entre forma-força, carne-ressonância, zona e agente de experiências; [...]. Esse horizonte conceitual emoldura a noção de corpo cênico” (Curi 104Curi, Alice Stefânia, “Estudos de atuação: concepção e composição na cena “professora”. Repertório. Salvador: 21.30 (2018): 388-416. Portal de Periódicos da UFBA. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/25853/17260. Acesso em: 11/03/2019.
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).

O caráter visual do TILS, sua presença em cena nos leva a pensá-lo como corpo cênico pela sua própria visibilidade. Dessa forma, o tradu(a)tor deve estar presente no pensamento da configuração espacial da direção. Acompanhar os ensaios para pensar um projeto de tradução específico para cada peça garante uma tradução menos visível porque integrada. O tradu(a)tor ensaia e trabalha a caracterização de cada personagem, seu lugar no palco e seus movimentos, a iluminação, seu figurino etc.

Apesar das aproximações possíveis dos corpos em cena, a tradução traz questões específicas. Assim, além das questões apontadas acima, a concepção de um projeto de tradução considera também, a posição e o ângulo em relação ao personagem traduzido, a passagem da tradução de um personagem para outro, número de tradutores em relação ao número de personagens, os aspectos sociolinguísticos das falas, a tradução da sonoplastia etc.

Entre as especificidades do corpo tradu(a)tor, a mais notável é o fato dele traduzir diferentes personagens, ou ser tradutor de atores. Lembramos que a tradução de teatro não é substitutiva já que o jogo dos atores está acontecendo em cena. Nesse sentido, o tradutor não pode se afastar muito das personagens que traduz para não atrair os olhares dos surdos espectadores na direção contrária (o que acontece muitas vezes com o tradutor marginalizado). Sua posição deve permanecer no campo de visão do surdo sem desvia-lo do locus da cena. Ao traduzir vários personagens, o tradu(a)tor, apreende cada um deles nas traduções operadas pelos atores e pensar a passagem de uma para outra. É pelo/no corpo do tradu(a)tor de LS que esses elementos são trabalhados, deixando os movimentos abertos e a possibilidade de transformação. A tradução na presença do original trabalha, na falta que lhe é inerente, uma escrita tradutória em relação.

Assim, reiteramos o fato que a tradução para LS deva estar atenta ao projeto geral de mise-en-scène, além de uma relação de sombreamento (perspectiva e colorido) com os atores. Quanto mais incorporado ao jogo, mais invisível se tornará. Sua presença à margem da cena com foco de luz, atrai o olhar de toda plateia (surdos e ouvintes) e o torna mais-que-visível.

5. Considerações finais

Discutimos nesse artigo a importância de se pensar um projeto de tradução específico para cada peça, e que esse projeto seja elaborado junto com a direção e a companhia durante os ensaios, ou seja, um trabalho participativo-colaborativo porque relacional.

Essas questões se colocam como problemas tanto nos Estudos da tradução quanto nas pesquisas sobre as LS, como também para as artes cênicas, porque até hoje a tradução, sobretudo no que diz respeito às produções culturais, é vista como “uma sombra que impede o original de brilhar” (Seligmann-Silva 24Seligmann-Silva, Márcio. “Um tradutor é um escritor da sombra? Variações sobre a ontologia da tradução”. Cadernos de Tradução. n. 2.v. 28 (2011). Portal de Periódicos da UFSC. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2011v2n28p11. Acesso em: 11/03/2019.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
). No teatro, a tradução para LS é percebida como uma mancha, um apêndice (para não dizer apendicite), que não só impede a comunidade surda de ter acesso “direto” ao original, mas que atrapalha o ouvinte na fruição do espetáculo pela sua visibilidade marcada. O corpo do tradutor na cena ou ao lado “gesticulando” atrai os olhares dos espectadores (ouvintes) e “estraga” o projeto criativo da direção, sobretudo por não fazer parte dele. O apagamento da tradução, neste caso mais ainda, passa pelo desejo de apagamento do corpo tradutor. Uma visibilidade que não é nem sombra que dá colorido e perspectiva, nem iluminação (ângulo) que dá profundidade e composição, mas um obstáculo à experiência estética de todo espectador (ouvinte e surdo). Como ser indiferente a esse corpo presente?

Como vimos a tradução de teatro para uma LS (e até para qualquer outra língua quando temos legendagem) não é uma tradução substituição, mas co-existe com seu original. A questão crítica que emerge dessa co-existência é da ordem da relação entre o original e a tradução, entre o ator e o tradu(a)tor que se instaura em cena. A tradução deve jogar justamente com essa co-existência e fazer da falta que lhe é inerente uma poética, uma poética da relação.

  • 1
    [Para mim, tradução e mise-en-scène, é o mesmo trabalho, é a arte da escolha na hierarquia dos signos] – Tradução Nossa.
  • 2
    Meschonnic, Henri, “Traduire, c’est mettre-en-scène, comme Antoine Vitez dans La Mouette de Tchékhov”. In: Deprats, Jean-Michel (ed.) Antoine Vitez, le devoir de Traduire. Paris: Editions Climats & Maison Antoine Vitez, 1996.
  • 3
    Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), o capítulo IX sobre o Direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer diz “Art. 42. A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso:
    I - a bens culturais em formato acessível;
    II - a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível; e
    III - a monumentos e locais de importância cultural e a espaços que ofereçam serviços ou eventos culturais e esportivos”. BRASIL. Decreto-Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015 – Capítulo IX, Art. 42, Brasília, 2015. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso: 18/06/2019.
  • 4
    Cf. Silva-Neto, Virgílio Soares daSilva-Neto, Virgílio Soares da. A Formação de Tradutores de Teatro para Libras: Questões e Propostas. Dissertação de mestrado. Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 2017. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/31266. Acesso em: 20/03/2019.
    http://repositorio.unb.br/handle/10482/3...
    . A Formação de Tradutores de Teatro para Libras: Questões e Propostas. Dissertação de mestrado. Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 2017.
  • 5
    “A cultura visual vem da “experiência visual” (Perlin, 1998), que na teoria cultural e de Estudos Surdos, a língua de sinais vem construída e absorvida visualmente juntamente com a cultura do sem som. As percepções visuais e suas experiências visuais, no dia a dia, com seus “próprios significados não-sonoro” transportam aquilo o que foi vivenciado por meio da língua de sinais, e acabam selecionando o — final “da história para dar ao — ponto de partida no começo da fragmentação da experiência visual.” (Campello 91Campello, Ana Regina. Aspectos da visualidade na educação de surdos. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2008. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/91182. Acesso em: 20/03/2019.
    https://repositorio.ufsc.br/handle/12345...
    ).
  • 6
    [Para mim, tradução e mise-en-scène, é o mesmo trabalho, é a arte da escolha na hierarquia dos signos – Tradução Nossa]

Referências

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    » http://repositorio.unb.br/handle/10482/19313
  • Benjamin, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor" . In: Branco, Lucia Castello (Org.). A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Tradução de Susana Kampff Lages. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.
  • Campello, Ana Regina. Aspectos da visualidade na educação de surdos Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2008. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/91182 Acesso em: 20/03/2019.
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  • Curi, Alice Stefânia, “Estudos de atuação: concepção e composição na cena “professora”. Repertório Salvador: 21.30 (2018): 388-416. Portal de Periódicos da UFBA. Disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revteatro/article/viewFile/25853/17260 Acesso em: 11/03/2019.
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  • Curi, Alice Stefânia. Traços e devires de um corpo cênico Brasília: Dulcina Editora, 2013.
  • Deleuze, G. & Guattari, F. Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia Vol 1. Tradução de Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
  • Féral, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro Tradução de J. Guinsburg et al São Paulo: Perspectiva, 2015.
  • Ferreira, Alice Maria de Araújo. “Traduzir À Petites Pierres de Gustave Akakpo: a escrita heterogênea e a questão dos provérbios”. Cadernos de Tradução n. 3 v.37. Florianópolis: UFSC, 2017. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n3p71 Acesso em: 11/03/2019.
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  • Lehmann, Hans-Thies, “Teatro Pós-dramático, doze anos depois”. Rev. Bras. Estud. Presença 3.3(2013). Porto Alegre: UFRGS, 2013. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/presenca Acesso em: 20/03/2019.
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  • Meschonnic, Henri. Poétique du traduire Paris: Verdier, 1999.
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  • Silva-Neto, Virgílio Soares da. A Formação de Tradutores de Teatro para Libras: Questões e Propostas Dissertação de mestrado. Brasília: Universidade de Brasília (UnB), 2017. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/31266 Acesso em: 20/03/2019.
    » http://repositorio.unb.br/handle/10482/31266

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2019
  • Aceito
    28 Nov 2019
  • Publicado
    Jan 2020
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
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