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Alfabetização no Programa de Educação Fundamental da Unesco

Resumo

Este artigo tem por objetivo central discutir e analisar a temática da alfabetização no bojo do Programa de Educação Fundamental (1946-1958) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Toma como referencial teórico contribuições de Mikhail Bakhtin por entender que a sua concepção de enunciado colabora para orientar as análises. Adota a pesquisa documental e, desse modo, detém-se na análise de documentos produzidos pelos sujeitos que dirigiram a Unesco e, também, por especialistas contratados para a realização de estudos para esse organismo. Problematiza o lugar da alfabetização no programa e, nesse sentido, analisa as controvérsias em torno da definição dos princípios que poderiam ser adotados pela Unesco, assim como sua visão de educação; o conceito de educação fundamental, problematizando como a alfabetização é situada no interior do programa; e o conceito apontado como apropriado para orientar as ações educacionais da Unesco em nível internacional. Conclui que a incorporação das campanhas de alfabetização ao projeto educacional da Unesco ocorreu em função de mudança no conceito de alfabetização, o qual tem caráter instrumental, o que indica a necessidade de os educadores continuarem a lutar por uma alfabetização para crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, que rejeite o caráter mecânico e funcional que lhe foi conferido.

Palavras-chave
Programa de educação fundamental; Unesco; Alfabetização funcional; Políticas internacionais

Abstract

This article examines and discusses the topic of literacy within the Basic Education Program (1946-1958) of the United Nations Educational, Scientific, and Cultural Organization (UNESCO). Drawing from Mikhail Bakhtin’s theories, the theoretical analysis centers on his conception of utterance as a guiding framework. Employing documentary research, the focus lies on analyzing documents authored by UNESCO’s directors-general and specialists commissioned for organizational studies. It challenges the position of literacy within the program, delving into controversies surrounding the formulation of guiding principles to be followed by UNESCO, its educational viewpoint, the idea of fundamental education, and the positioning of literacy within this framework while scrutinizing the so-called ideal concept behind UNESCO’s global educational initiatives. The conclusion highlights that the integration of literacy campaigns into UNESCO’s educational agenda stemmed from a shift in its perception, emphasizing its instrumental nature and the ongoing need for educators to advocate for literacy across diverse age groups, resisting its reduction to a merely mechanistic and purely functional aspect.

Keywords
Fundamental Education Program; UNESCO; Functional literacy; International policies

Introdução

Este artigo, recorte de uma pesquisa documental financiada pelo CNPq, cuja finalidade foi estudar políticas internacionais de alfabetização e seus desdobramentos nos rumos das políticas nacionais no período de 1946 a 1961, tem por objetivo central analisar a alfabetização no bojo do Programa de Educação Fundamental (1946-1958) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Para tal, tratamos, inicialmente, das controvérsias em torno da definição dos princípios que poderiam ser adotados pela Unesco, assim como sua visão de educação. Em seguida, discutimos o conceito de educação fundamental, problematizando como a alfabetização é situada no interior do programa e, finalmente, versamos sobre o conceito apontado como apropriado para orientar as ações educacionais da Unesco em nível internacional.

É importante notar que, até o momento em que este artigo foi elaborado, não encontramos, no Brasil, artigos, teses ou dissertações que analisassem, especificamente, a alfabetização nesse programa da Unesco. Em uma busca sobre a produção internacional referente ao tema, principalmente de artigos em língua inglesa e espanhola, encontramos o artigo denominado UNESCO’s Fundamental Education Program, 1946–1958: vision, actions and impact, de Jens Boel (2016)BOEL, Jens. UNESCO’s Fundamental Education Program, 1946-1958: vision, actions and impact. In: DUEDAHL, Poul. A history of Unesco: global actions and impacts. New York: Palgrave Macmillan, 2016. p. 153-167., publicado no livro A history of Unesco: global actions and impacts. Como demonstra o título, seu objetivo é analisar a visão de educação fundamental, as ações do programa e seus impactos. Desse modo, esse objetivo se diferencia da nossa pretensão, que consiste em analisar a alfabetização e o Programa de Educação Fundamental.

Tomamos como referencial teórico contribuições de Mikhail Bakhtin por entendermos que a sua concepção de enunciado pode colaborar para orientar nossas problematizações. Para Bakhtin ( 2003BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 371), não há enunciado, produção de discurso, isolado, porque “[...] sempre pressupõe enunciados que o antecedem e sucedem. Nenhum enunciado pode ser o primeiro e o último. Ele é apenas um elo na cadeia e fora dessa cadeia não pode ser estudado”.

Dessa forma, o enunciado (oral, escrito, visual etc.) é sempre uma resposta, pois sua produção resulta do diálogo que se realiza no presente com as produções discursivas do passado e pressupõe respostas a possíveis enunciados que possam sucedê-lo. Por isso mesmo, Bakhtin (2003)BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. define o enunciado como elo de uma corrente. O elo de uma corrente vincula-se ao anterior e, também, ao que o sucede. Pensado como elo, o enunciado liga-se a uma corrente discursiva mais ampla e fora dessa corrente não pode ser compreendido como enunciado, mas como unidade sem sentido, portanto abstraído do contexto dialógico que o produziu. Adotamos a metodologia de pesquisa denominada documental, porque foram analisados documentos que comportam enunciados produzidos pelos sujeitos que dirigiram a Unesco nos primeiros anos de sua criação, assim como por pesquisadores contratados para realizar estudos de interesse desse organismo.

Os enunciados elaborados pela Unesco que subsidiaram o Programa de Educação Fundamental respondem aos produzidos em nível mundial quanto à necessidade e reivindicação de oferta de educação para todos os cidadãos. As respostas, no entanto, não são destituídas dos interesses e das visões de educação, de ser humano e de sociedade de quem as produzem e, consequentemente, são permeadas de intencionalidades. Os enunciados produzidos pelos sujeitos que integravam a Unesco no momento da elaboração e consecução do Programa de Educação Fundamental, compreendidos como respostas, precisavam, em um contexto em que havia conflitos e intenções diversas, convencer os seus destinatários, no caso, os países-membros, mas também a todos os países do mundo, de que as respostas dadas pelo programa à situação mundial após a Segunda Guerra Mundial eram as mais apropriadas para proporcionar a compreensão entre os povos, a paz e a segurança internacional.

Adotamos, como metodologia de pesquisa, a documental e, dessa forma, dialogamos com documentos/enunciados encontrados no site da Unesco Digital Library (UNESDOC) produzidos por sujeitos que dirigiram esse organismo e, também, por especialistas contratados pela Unesco para a realização de estudos.

É necessário salientar que a Unesco, como braço da Organização das Nações Unidas ( ONUUNESCO BRASILIA OFFICE. Constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Tradutor John Stephen Morris. Brasília, DF: Unesco Brasilia Office, 2002.), foi criada na décima sessão plenária da conferência de Londres, ocorrida no dia 16 de novembro de 1945, sob a presidência de Ellen Wilkinson. Nessa conferência também foi assinada formalmente a Constituição da Unesco. De acordo com o seu Preâmbulo, que permanece nesse texto até a atualidade, a

[...] difusão da cultura e da educação da humanidade para a justiça, para a liberdade e para a paz são indispensáveis para a dignidade do homem, constituindo um dever sagrado, que todas as nações devem observar, em espírito de assistência e preocupação mútuas.

( UNESCO, 2015UNESCO. De ideias a ações: 70 anos da Unesco. Santos: Editora Brasileira de Arte e Cultura, 2015., p. 20).

Nesse sentido, a Unesco seria responsável por auxiliar no combate à ignorância no mundo, pois a principal causa dos problemas enfrentados pela humanidade estava ligada aos baixos níveis de educação mundiais.

Controvérsias em torno dos princípios e da visão de educação da Unesco

Os enunciados possuem autoria, ou seja, autores ou autor. Nesse sentido, expressam os posicionamentos axiológicos de quem os produz, em face dos diversos posicionamentos que coexistem no mundo. Isto é, os autores, diante de um mundo repleto de valores, buscam aqueles que dão sustentação ou acabamento aos seus, reordenando, portanto, o conjunto de valores circundantes para que possam dar sentido às suas ideias. Desse modo, o enunciado “corresponde à posição que um locutor ocupa em um campo de discussão, aos valores que ele defende [...] e que caracterizam reciprocamente sua identidade social e ideológica” ( Charaudeau; Maingueneau, 2004CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004., p. 393).

Julian Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., primeiro diretor-geral da Unesco 2 2- Ele foi também Secretário Executivo da Comissão Preparatória da Unesco, tendo influenciado a visão original da organização. , no texto intitulado Unesco its purpose and its philosophy, apontou a necessidade de definição da filosofia que poderia orientar a abordagem dos problemas educacionais e as ações da Unesco. É importante notar que o Corrier, em 1976, publicou fragmentos desse texto com o título A philosophy for UNESCO: selections from a forgotten historic document 3 3- Segundo Huxley (1976), esse texto foi elaborado para organizar suas próprias ideias quando, em virtude de problemas referentes à saúde de Alfred Zimmern, assumiu a Secretaria da Comissão Preparatória da Unesco. . Segundo escrito pelo redator da publicação, o texto completo, publicado um pouco antes da fundação da Unesco, suscitou controvérsias por conter uma suposta tendência antirreligiosa. Por isso mesmo, a Comissão Preparatória e a Primeira Conferência Geral da Unesco se negaram a aprová-lo. Isso, no entanto, não impediu que os posicionamentos de Huxley, como primeiro diretor-geral desse organismo, influenciassem as orientações e o modus operandi assumidos pela Unesco nos seus primeiros anos de atuação.

Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., no texto mencionado, expressou os posicionamentos filosóficos que poderiam ser adotados pela Unesco, assinalando, em primeiro lugar, o que “ não” deveria constituir os princípios e a filosofia desse organismo. Assim, pela via da negação, buscou separar o que a Unesco “ não deveria ser”, reconhecendo a existência de diversas correntes religiosas, político-econômicas, científicas etc., muitas vezes, conflitantes, complementares ou em disputa que coexistiam no mundo.

De acordo com o diretor-geral, posicionamentos religiosos (islamismo, catolicismo romano, cristianismo protestante, budismo etc.) e doutrinas político-econômicas (versões da livre iniciativa capitalista, do comunismo marxista, do planejamento semissocialista etc.) não poderiam fundamentar o pensamento da Unesco, porque a sua aderência a um ou uma delas implicaria tomar partido, o que contrariava sua essência como organismo de atuação internacional e, em termos práticos, significaria perda da sua influência e da cooperação de muitos países para o desenvolvimento de seus projetos.

Por razões semelhantes, de acordo com Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., a Unesco não poderia ter posicionamento filosófico ancorado em correntes como o existencialismo, o vitalismo, o racionalismo, o espiritualismo etc. Tendo em vista a ênfase do organismo na democracia, em princípios da dignidade humana e do respeito mútuo, a Unesco também não poderia adotar a visão de que os interesses do Estado se sobrepõem aos dos indivíduos, tampouco a ideia de que há raças, grupos étnicos ou nações superiores ou inferiores.

Diante da impossibilidade de assumir princípios religiosos, político-econômicos e filosóficos existentes, Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. admitiu que:

Its main concern is with peace and security and with human welfare, in so far as they can be subserved by the educational and scientific and cultural relations of the peoples of the world. Accordingly, its outlook must, it seems, be based on some form of humanism.

( Huxley, 1946HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., p. 7) 4 4- Huxley era um humanista, cientista (biólogo) e um pensador. Seu texto não foi aprovado, segundo o próprio Huxley (1976), porque a atitude humanista nele explicitada fez com que os delegados pensassem, de forma equivocada, que era antirreligioso e que seu liberalismo tivesse caráter comunista. .

O humanismo da Unesco, conforme o diretor-geral, deveria ser global, no sentido de incluir todos os povos do mundo e, também, tratá-los, assim como os indivíduos, como iguais. O humanismo da Unesco deveria ser, ainda, científico, pois a ciência fornece a base material para a cultura, havendo necessidade de sua integração à vida prática. Finalmente, o humanismo da Unesco, na perspectiva de Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., deveria ser evolucionário em oposição a um humanismo estático e ideal. Tal humanismo,

[…] it not only shows us man’s place in nature and his relations to the rest of the phenomenal universe, not only gives us a description of the various types of evolution and the various trends and directions within them, but allows us to distinguish desirable and undesirable trends, and to demonstrate the existence of progress in the cosmos. And finally it shows us man as now the sole trustee of further evolutionary progress, and gives us important guidance as to the courses he should avoid and those he should pursue if he is to achieve that progress.

( Huxley, 1946HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., p. 8).

Gestado na Idade Média, o humanismo se tornou a base das culturas modernas. Nesse sentido, a escolha do diretor-geral é, de certo modo, contactante, ou seja, permite o diálogo com grande parte das posições filosóficas e científicas, assim como com as doutrinas político-econômicas, que reconheciam o lugar central dos seres humanos na natureza. Abbagnano (1995)ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1995. destaca duas acepções de humanismo:

I) movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda metade do séc. XIV, difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo-se a origem da cultura moderna; II) qualquer movimento filosófico que toma como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do homem.

( Abbagnano, 1995ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1995., p. 518).

Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. manifesta o valor dos seres humanos e a disposição de entendê-los, em seu mundo natural e histórico, demonstrando que a Unesco deveria explorar temas que efetivamente estivessem ligados aos seres humanos e, consequentemente, melhorassem suas condições de vida. Essa visão ecoa na forma como a educação foi concebida por Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., pois era pensada como elemento central para a formação de um novo ser humano e de uma nova sociedade. Desse modo, a educação, em sua forma desenvolvida, era vista pelo diretor-geral como uma atividade específica dos humanos. É ainda:

[...] the process by means of which knowledge, skill, technique, understanding, ideas, emotional and spiritual attitudes, are transmitted from individual to individual and from generation to generation. It is also a major part of the process by which the latent potentialities of the individual are actualized and developed to their fullest extent.

( Huxley, 1946HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., p. 30).

A visão de educação de Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. inclui, em sentido amplo, a educação de adultos e o autodidatismo e, em sentido restrito, a escolarização e o treinamento. A primeira, ou seja, a educação em sentido amplo, tornou-se mais apropriada para subsidiar a construção do conceito de educação fundamental que orientou o programa da Unesco.

Para Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., a educação, ainda, era um campo de conhecimento com métodos próprios, uma arte que estava em vias de se constituir sobre bases científicas. Apesar de ter bases científicas desenvolvidas, na sua perspectiva, estas não haviam sido suficientemente exploradas, conhecidas e aplicadas à educação. Na visão humanista de Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., as disciplinas que formam os seres humanos deveriam ser meios para a “formação de uma consciência realmente humana, aberta em todas as direções, por meio da consciência histórico-crítica da condição cultural” ( Abbagnano, 1995ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1995., p. 519).

A abordagem da Unesco com relação a esse tema precisaria, na visão de Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., levar em conta princípios gerais no que se refere à formação do ser humano, mas também princípios complementares que faltavam aos sistemas educacionais existentes, tais como: a ideia de que educação é um processo permanente e contínuo e, por isso, deveria ser destinada também aos jovens e adultos; a educação tem função social e individual, pois é o meio pelo qual a sociedade pode se tornar consciente de suas tradições e definir seus próprios destinos; é científica, pois a pesquisa é essencial para o desenvolvimento da educação, devendo, portanto, a Unesco incentivá-la e divulgar os seus resultados. Com fundamento nesses princípios, a Unesco teria um papel relevante no processo de reconstrução da educação em nível internacional e, portanto, na formação humana.

No que se refere aos problemas que deveriam ser contemplados em um programa educacional da Unesco, Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. mencionou que o primeiro seria o “ataque ao analfabetismo”. A alfabetização, em sua opinião, era um requisito para o avanço do conhecimento científico e técnico e para a aplicação apropriada desses conhecimentos na melhoria da saúde, agricultura, indústria, bem como para o pleno desenvolvimento da consciência intelectual e mental.

Desse modo, Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. acreditava que campanhas de alfabetização para aqueles e aquelas que estivessem na idade escolar própria deveriam ser associadas ao sistema geral de educação. Para os analfabetos acima da idade escolar, no entanto, deveriam estar vinculadas não ao sistema educativo, mas à educação social geral, e sua ênfase deveria ser na saúde, nos métodos modernos de cultivo e na formação para a cidadania. Dessa perspectiva, propõe um sistema diferenciado de educação para indivíduos que não frequentaram a escola na idade adequada com a finalidade de solucionar problemas práticos.

Nesse sistema, a alfabetização teria lugar secundário ou poderia até mesmo não ter lugar e, por isso, naquele momento, segundo Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., a Unesco havia fundido as campanhas de alfabetização em um projeto mais amplo denominado Educação Fundamental, pois somente a alfabetização não levaria à democracia e, mesmo que alcançasse tal objetivo, não produziria um desenvolvimento adequado da sociedade, pois, conforme sublinhado, a

Nazi Germany demonstrated all too clearly the way in which one of the most literate and most thoroughly educated peoples of the world could be led into false ways and anti-democratic developments; and in democratic countries the manipulation of the press and the debasement of literature and the cinema for financial or political ends is all too possible.

( HUXLEY, 1946HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., p. 31).

Tampouco somente a alfabetização ajudaria a alcançar a consciência e a compreensão internacionais. As ideias “humanistas” e liberais de Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. não foram aprovadas, mas, como veremos, a sua visão de educação e da impossibilidade de as campanhas de alfabetização sozinhas produzirem mudanças almejadas se tornou a base para o desenvolvimento do Programa de Educação Fundamental da Unesco.

Com fundamento nessas ideias, a Unesco, conforme assinalado por Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., deveria, em um primeiro momento, auxiliar na elaboração de métodos que ajudassem a determinar as aptidões individuais e a medir a inteligência. Mais tarde, poderia, então, contribuir com o desenvolvimento de sistemas educacionais de ensino superior que se ajustassem aos níveis de inteligência e aptidões individuais. Com base nessa perspectiva, a Unesco deveria investir, primeiramente, no Programa de Educação Fundamental que foi adotado na Conferência Geral do organismo realizada em Paris, de 19 de novembro a 10 de dezembro de 1946.

Conceito de educação fundamental

A definição do conceito de educação fundamental e sobre a abrangência do Programa de Educação Fundamental esteve presente nas discussões realizadas pela Comissão Preparatória que debatia o que deveria ou viria a ser a Unesco e, também, no trabalho da Seção de Educação desse organismo. As primeiras discussões estiveram centradas na ideia de que o mencionado programa estaria ligado à “erradicação” do analfabetismo no mundo. Nesse sentido, como assinalado por Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., as campanhas de alfabetização foram incorporadas a esse programa.

O Report of a Special Committee to the Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization ( UNESCO, 1947UNESCO. Fundamental education common ground for all peoples. Paris: Unesco, 1947. Report of a Special Committee to the Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation.), conforme Prefácio elaborado por Huxley (1947)HUXLEY, Julian. Foreword. In: UNESCO. Fundamental education common ground for all peoples. Paris: Unesco, 1947. Report of a Special Committee to the Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. p. 7., tinha por finalidade explicar o programa proposto, tendo sido fruto do trabalho da Seção de Educação da Comissão Preparatória que o organizou para a Primeira Sessão da Conferência Geral da Unesco realizada em novembro e dezembro de 1946. Para Huxley (1947)HUXLEY, Julian. Foreword. In: UNESCO. Fundamental education common ground for all peoples. Paris: Unesco, 1947. Report of a Special Committee to the Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. p. 7., apesar da tentativa de apresentação do relatório na conferência, houve problemas de impressão que impediram a divulgação do texto completo e por isso foram emitidos apenas o primeiro e último capítulo no formato de panfleto e um folheto cobrindo todo o conteúdo.

O relatório focou, segundo o prefácio de Huxley (1947)HUXLEY, Julian. Foreword. In: UNESCO. Fundamental education common ground for all peoples. Paris: Unesco, 1947. Report of a Special Committee to the Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation. p. 7., o movimento mundial sobre o qual a Unesco poderia orientar suas ações, mostrando que havia um número significativo de pessoas que não possuíam os meios para participar da vida moderna, o que representava uma ameaça para a paz e a segurança mundial. Sendo assim, a Unesco teria motivos para assumir a educação fundamental como uma das suas principais áreas de atuação e interesse.

De acordo com a perspectiva inicial da Unesco escrita na Introdução do relatório, era necessária uma atuação que não se restringisse ao ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. Uma das razões para que o programa não se limitasse à alfabetização, naquele momento, seriam as dificuldades de definir as taxas de analfabetismo mundiais, em decorrência de os países conceituarem de modos diferenciados a alfabetização. Segundo o relatório, em New York, por exemplo, era considerada alfabetizada a pessoa que escrevia o seu nome. Em outros lugares, eram consideradas alfabetizadas as pessoas que conseguiam ler sentenças escritas ou cartas. Apesar da dificuldade de precisar as taxas de analfabetismo, o relatório mencionou que, em diversos países, na década de 1940, dentre eles países da América Latina, os índices eram altos: a Guiana Britânica e o Chile tinham 50% de analfabetos, o Brasil 70%, Cuba 50%, Porto Rico 55% e o México 72%.

Diante dos obstáculos para realizar uma medição adequada do número de analfabetos no mundo, nas discussões ocorridas em 1946 e nas que se seguiram, prevaleceu a ideia de uma abordagem ampla: de educação fundamental. Assim, o relatório publicado, com versão atualizada em 1949, manteve esse termo, pois compreendia aspectos que não se restringiam à alfabetização. Nesse sentido, o Programa de Educação Fundamental deveria ter conteúdo que atendesse às necessidades reais das populações mundiais com vistas à melhoria da vida em sociedade. A partir desse pressuposto, a educação fundamental teria valor social e contribuiria para o progresso e evolução dos países cujas populações analfabetas eram a maioria, mas não teriam a alfabetização como finalidade central.

John Bowers (1948)BOWERS, Jonh. Educación fundamental. El correo de la Unesco, Paris: Unesco, v. 1, n. 1, p. 4, fev. 1948., executor-geral do programa, em um artigo publicado no El Correo, retomou a questão do uso do termo educação fundamental pela Unesco e salientou que a primeira vez que a expressão foi cunhada houve aqueles que pensaram que se tratava de uma campanha contra o analfabetismo. Porém, no programa, a aprendizagem da leitura e da escrita seria apenas um meio para o alcance de sua finalidade mais ampla. Assim, segundo Bowers (1948)BOWERS, Jonh. Educación fundamental. El correo de la Unesco, Paris: Unesco, v. 1, n. 1, p. 4, fev. 1948., o objetivo da educação fundamental, recém-definida, era: “ajudar homens e mulheres a viver uma vida mais plena e feliz, de acordo com seu meio ambiente, a desenvolver os melhores elementos de sua cultura e a conseguir o progresso econômico e social que lhes permitisse ocupar seu lugar no mundo moderno” ( Bowers, 1948BOWERS, Jonh. Educación fundamental. El correo de la Unesco, Paris: Unesco, v. 1, n. 1, p. 4, fev. 1948., p. 4, tradução nossa).

Reiterado nos documentos analisados, o programa não se restringia à alfabetização e, como salientado por Bowers (1948)BOWERS, Jonh. Educación fundamental. El correo de la Unesco, Paris: Unesco, v. 1, n. 1, p. 4, fev. 1948., nem era sua finalidade mais imediata, pois objetivava ajudar as populações mais pobres a encontrar soluções para problemas práticos, como os econômicos e os de saúde vivenciados pela coletividade no seu cotidiano com vistas a uma vida melhor. Para ilustrar os propósitos do programa, Bowers (1948)BOWERS, Jonh. Educación fundamental. El correo de la Unesco, Paris: Unesco, v. 1, n. 1, p. 4, fev. 1948. citou o trabalho das Missões Culturais Mexicanas que, com as atividades de “educadores fundamentais”, estavam modificando a vida das pessoas, ensinando-lhes a evitar enfermidades, obter melhores colheitas, a tecer, a cozer etc., sem ensiná-las a ler e a escrever.

Com relação às Missões Culturais Mexicanas, segundo Berrueta (1993)BERRUETA, Jorge Tinagero. Misiones culturales mexicanas. 70 años de historia. Revista Interamericana de Educación de Adultos, Pátzcuaro, 1993. Disponível em: https://biblat.unam.mx/pt/revista/revista-interamericana-de-educacion-de-adultos/articulo/misiones-culturales-mexicanas-70-anos-de-historia. Acesso em: 20 dez. 2022.
https://biblat.unam.mx/pt/revista/revist...
, findada a Revolução Armada iniciada em 1910, no ano de 1921, o primeiro secretário de Educação Pública do México (José Vasconcellos) criou uma campanha contra o analfabetismo, instalou escolas rurais e nomeou os primeiros missionários. Ainda na opinião de Barrueta (1993)BERRUETA, Jorge Tinagero. Misiones culturales mexicanas. 70 años de historia. Revista Interamericana de Educación de Adultos, Pátzcuaro, 1993. Disponível em: https://biblat.unam.mx/pt/revista/revista-interamericana-de-educacion-de-adultos/articulo/misiones-culturales-mexicanas-70-anos-de-historia. Acesso em: 20 dez. 2022.
https://biblat.unam.mx/pt/revista/revist...
, as missões culturais nesse país estiveram ligadas à história da escola rural, o que é confirmado por Alfonso Rangel Guerra (2006)GUERRA, Alfonso Rangel. La educación rural mexicana y la educación fundamental en el inicio del Crefal. Revista Interamericana de Educación de Adultos, Pátzcuaro, v. 28, n. 2, p. 169-176, 2006., ao assinalar que Rafael Ramírez, um dos mais importantes professores em nível nacional, nos anos de 1920, começou a desenvolver as ideias sobre a educação rural.

Ainda de acordo com Alfonso Rangel Guerra (2006)GUERRA, Alfonso Rangel. La educación rural mexicana y la educación fundamental en el inicio del Crefal. Revista Interamericana de Educación de Adultos, Pátzcuaro, v. 28, n. 2, p. 169-176, 2006., as Missões Culturais foram criadas pelo professor Roberto Medellín, funcionário do Ministério da Educação Pública do México que, em 1923, chefiou a primeira missão acompanhado pelo professor Rafael Ramírez e cinco outros professores: de sabonete e perfumaria, curtume, agricultura, coro e cantos populares, educação física e enfermagem. Desse modo, a missão foi constituída por pessoas que ensinariam os camponeses e indígenas a cuidar da saúde mediante adoção de hábitos de higiene adequados, de técnicas de cultivo e cuidados com os animais.

A partir de 1942, após terem sido suspensas em 1938 pelo presidente Cárdenas, conforme salienta Berrueta (1993)BERRUETA, Jorge Tinagero. Misiones culturales mexicanas. 70 años de historia. Revista Interamericana de Educación de Adultos, Pátzcuaro, 1993. Disponível em: https://biblat.unam.mx/pt/revista/revista-interamericana-de-educacion-de-adultos/articulo/misiones-culturales-mexicanas-70-anos-de-historia. Acesso em: 20 dez. 2022.
https://biblat.unam.mx/pt/revista/revist...
, as Missões passaram a constituir um programa extraescolar e de extensão. Assim, foram formados diferentes grupos missionários com finalidades distintas: missões culturais rurais, missões especiais para trabalhadores e missões de formação de professores. Segundo o autor, as atividades realizadas pelas Missões foram reorganizadas e sua ação educativa foi direcionada para “melhoria integral da comunidade e para a formação de professores em serviço” ( Berrueta, 1993BERRUETA, Jorge Tinagero. Misiones culturales mexicanas. 70 años de historia. Revista Interamericana de Educación de Adultos, Pátzcuaro, 1993. Disponível em: https://biblat.unam.mx/pt/revista/revista-interamericana-de-educacion-de-adultos/articulo/misiones-culturales-mexicanas-70-anos-de-historia. Acesso em: 20 dez. 2022.
https://biblat.unam.mx/pt/revista/revist...
, p. 117, tradução livre).

Entre 1942 e 1947, como aponta Berrueta (1993)BERRUETA, Jorge Tinagero. Misiones culturales mexicanas. 70 años de historia. Revista Interamericana de Educación de Adultos, Pátzcuaro, 1993. Disponível em: https://biblat.unam.mx/pt/revista/revista-interamericana-de-educacion-de-adultos/articulo/misiones-culturales-mexicanas-70-anos-de-historia. Acesso em: 20 dez. 2022.
https://biblat.unam.mx/pt/revista/revist...
, o trabalho das Missões foi deixado para missionários sem o devido preparo em função dos baixos salários que recebiam e das precárias condições das comunidades. Além disso, conforme o autor, o tempo de duração das Missões não permitia a consolidação dos objetivos e a falta de orçamento e de pessoas qualificadas afetou negativamente as suas ações. Em 1944, o trabalho das Missões foi vinculado a uma campanha contra o analfabetismo.

Apesar das dificuldades de realização das Missões no México, Bowers (1948)BOWERS, Jonh. Educación fundamental. El correo de la Unesco, Paris: Unesco, v. 1, n. 1, p. 4, fev. 1948. compreendia que eram um bom exemplo prático do que pretendia a Unesco, salientando que o Programa de Educação Fundamental da Unesco ocorreria em regiões rurais e industrializadas. O foco da ação, na primeira região, era o combate à doença e à miséria, problemas centrais do meio rural. Nas regiões industrializadas, seriam desenvolvidos projetos pilotos, com o apoio da Oficina Internacional do Trabalho.

De acordo com Huxley (1976)HUXLEY, Julian. A philosophy for UNESCO: selections from a forgotten historic document. Corrier, Paris, p. 4-7, Mar.1976., o Programa de Educação Fundamental trouxe resultados satisfatórios, pois contribuiu para levar noções de higiene e proporcionou o aperfeiçoamento dos métodos utilizados na agricultura e no meio ambiente. Contudo, mais tarde, esse termo foi abandonado e, a partir de então, foi possível

[...] establecer contactos entre sí distribuyéndose las investigaciones en función de las necesidades de la región, al mismo tiempo que se mantenían en comunicación con la ciencia en el mundo gracias a la información educación fundamental y se elaboraron por separado proyectos de sanidad, conjuntamente con la Organización Mundial de la Salud, y de educación general, de enseñanza de las ciencias, de control de la población, de intercambio de personas y de conservación de la naturaliza.

( Huxley, 1976HUXLEY, Julian. A philosophy for UNESCO: selections from a forgotten historic document. Corrier, Paris, p. 4-7, Mar.1976., p. 5, destaque no original).

O texto de Huxley (1976)HUXLEY, Julian. A philosophy for UNESCO: selections from a forgotten historic document. Corrier, Paris, p. 4-7, Mar.1976. não mostra, no entanto, que as controvérsias em torno do programa o acompanharam até o seu término, em 1958. Uma das razões para isso foi o lugar atribuído à alfabetização. Se ensinar hábitos de higiene, cuidar da terra e do meio ambiente eram essenciais para o desenvolvimento social e comunitário, a alfabetização era, na perspectiva de muitos, primordial para o desenvolvimento industrial que requeria mão de obra com o mínimo de conhecimento sobre leitura e escrita e, por isso, era uma constante demanda dos países-membros.

Alfabetização funcional

Como mencionamos, a alfabetização não foi o objetivo central do Programa de Educação Fundamental, pois as finalidades desse programa eram alegadamente mais amplas, não devendo, portanto, ser confundido com campanhas de alfabetização ou contra o analfabetismo. Contudo, havia controvérsias em torno dessa visão em decorrência do fato de o analfabetismo ser um desafio comum aos governantes da maioria dos países do mundo e, particularmente, dos países subdesenvolvidos.

Conforme preâmbulo do Informe intitulado Educación fundamental, educación de adultos, alfabetización y educación de la comunidad en región del Caribe, escrito por Howes et al., (1955)HOWES, Henry Willian. et al. Educación fundamental, educación de adultos, alfabetización y educación de la comunidad en la región del Caribe. Paris: Unesco, 1955., a Conferência das Antilhas, realizada em 1952, encarregou a Comissão do Caribe a realizar esse estudo que abordou, dentre outros assuntos relativos à educação caribenha, a educação fundamental e de adultos, a alfabetização e a educação comunitária. Assim, esse documento expressa posições com relação à alfabetização e à educação fundamental. No que tange a esta última, assinala que:

[...] es la instrucción mínima y general que tiene por objeto ayudar a los niños y a los adultos privados de las ventajas que ofrece la instrucción oficial a comprender los problemas que se plantean en su medio ambiente inmediato, así como sus derechos y deberes en calidad de ciudadanos e individuos, y a participar de un modo más eficaz en el progreso social y económico de su comunidade.

( Howes et al., 1955 HOWES, Henry Willian. et al. Educación fundamental, educación de adultos, alfabetización y educación de la comunidad en la región del Caribe. Paris: Unesco, 1955., p. 11).

Esse conceito evidencia uma ligação pretendida, desde o início do programa, entre educação fundamental e desenvolvimento social e econômico. Nesse sentido, de acordo com o acrescentado no Informe, ela era fundamental, porque propiciava o mínimo de conhecimentos teórico e prático que permitiria às pessoas melhorar suas condições de vida. Sendo assim, constituía um requisito para garantir a eficácia do trabalho sanitário, agrícola etc.

Conforme Howes et al. (1955)HOWES, Henry Willian. et al. Educación fundamental, educación de adultos, alfabetización y educación de la comunidad en la región del Caribe. Paris: Unesco, 1955., o programa usava métodos ativos centrados nos interesses dos educandos e nos problemas práticos enfrentados pelas comunidades. Como indicado no conceito descrito acima, era destinado também às crianças que não se beneficiavam de um sistema escolar adequado e aos adultos que não tiveram possibilidades educativas, dirigindo-se, portanto, às comunidades cujos índices de analfabetismo eram muito altos.

Assim, na década de 1950, a alfabetização era vista como um dos vários meios empregados para proporcionar a educação fundamental às comunidades e aos indivíduos, mas, como mencionado, não era uma finalidade central do programa. No que se refere à necessidade de se fazer algo para combater o analfabetismo, o Informe salienta:

[...] no nos lleva muy lejos y los gritos de victoria, proclamando que gracias a la campaña realizada el número de analfabetos se puede contar por centenares en vez de millares, resultan ridículos. En tales casos los objetivos son casi siempre muy limitados.

( Howes et al., 1955 HOWES, Henry Willian. et al. Educación fundamental, educación de adultos, alfabetización y educación de la comunidad en la región del Caribe. Paris: Unesco, 1955., p. 15).

Os autores, no entanto, admitem que, nas áreas subdesenvolvidas, há uma estreita relação entre analfabetismo, doença e pobreza e por isso a redução do analfabetismo seria importante para a organização da capacidade produtiva dos países e contribuiria para a redução da pobreza, ou seja, a aprendizagem da leitura e da escrita “[...] puede ayudar a una persona a adaptarse más fácilmente a la rápida evolución de la sociedad a vivir una vida más plena y más dichosa como individuo y como miembro de una comunidad” ( Howes et al., 1955 HOWES, Henry Willian. et al. Educación fundamental, educación de adultos, alfabetización y educación de la comunidad en la región del Caribe. Paris: Unesco, 1955., p. 15).

Apesar de mencionar a importância da alfabetização em países subdesenvolvidos e desenvolvidos, o Informe refuta, por exemplo, o argumento sobre a necessidade da alfabetização para a aprendizagem de atividades práticas, assinalando que essa não seria mais tão necessária, porque, para o ensino de atividades práticas, naquele momento, era possível utilizar materiais audiovisuais que substituiriam a palavra escrita. Além disso, como dito, as campanhas de alfabetização de adultos realizadas em diversos países não tinham resultados satisfatórios. Nesse sentido, a alfabetização continuava a ser vista apenas como um meio, ou seja, figura como uma parte importante para elevar os níveis de vida de um povo, mas não produziria sozinha os resultados imediatos desejados pelo programa da Unesco.

Podemos inferir que havia duas razões para que a Unesco apostasse no Programa de Educação Fundamental: a primeira, estava relacionada com o que foi salientado por Huxley (1946)HUXLEY, Julian. Unesco: its purpose and philosophy. Paris: Unesco 1946. Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation., quanto ao fato de países com índices de alfabetização elevados terem participado das guerras mundiais; a segunda era associada ao fato de a alfabetização, como pensada e conceituada, não ter valor prático, ou seja, estava reduzida à aprendizagem do código escrito. Sendo assim, para que as campanhas de alfabetização passassem a integrar as ações da Unesco, o conceito de alfabetização precisaria ser modificado, ou seja, adequado aos propósitos do Programa de Educação Fundamental.

Frank Charles Laubach 5 5- Frank Charles Laubach foi uma espécie de missionário religioso que desenvolveu um método de alfabetização de adultos conhecido como método Laubach. Seu método e suas ações missionárias são muito citados nos textos da Unesco. (2013)LAUBACH, Frank Charles. Teaching the world to read: a handbook for literacy campaigns. New York: Friendship Press, 2013., na obra intitulada Teaching the world read, publicada, pela primeira vez, em 1947, acreditava que o analfabetismo era um sério entrave para o desenvolvimento econômico e social. Por isso, para que houvesse condições econômicas mais justas e equitativas no planeta, seria necessário extirpar o analfabetismo no mundo. Em sua opinião, se apenas uma pequena parte do mundo permanecesse em um plano econômico bastante elevado, enquanto a maioria da raça humana continuasse a viver na pobreza, as áreas onde viviam esses povos seriam sempre centros de agitação e de revolta. Alfabetizá-los ajudaria a melhorar suas condições de vida e, ao mesmo tempo, fortaleceria as grandes potências mundiais.

De acordo com a sua perspectiva, no mundo pós-guerra, nenhum país estaria seguro enquanto houvesse povos desprivilegiados. Por isso Laubach (2013)LAUBACH, Frank Charles. Teaching the world to read: a handbook for literacy campaigns. New York: Friendship Press, 2013. assinalou que os Estados Unidos poderiam seguir dois caminhos: investir fortunas na defesa e no policiamento do mundo ou seguir, conforme denominado pelo autor, um impulso cristão, contribuindo para que todos os países fossem elevados ao mesmo patamar econômico existente nos Estados Unidos. O segundo caminho seria, de acordo com o seu ponto de vista, o mais apropriado, pois, desse modo, aqueles que recebessem ajuda seriam gratos, amariam esse país e, consequentemente, suas ações cristãs seriam exemplo para outras nações, difundindo, assim, um espírito de cooperação e ajuda. O autor ainda sublinha:

People are happy when they are in the process of improvement. They are in sullen despair when their efforts to improve are frustrated. In spite of our national debt, therefore, the United States must help the underprivileged countries of the world, as well as the underprivileged in our own country. And we must avoid appearing to be the world’s big bully.

( Laubach, 2013LAUBACH, Frank Charles. Teaching the world to read: a handbook for literacy campaigns. New York: Friendship Press, 2013., p. 3).

Laubach (2013)LAUBACH, Frank Charles. Teaching the world to read: a handbook for literacy campaigns. New York: Friendship Press, 2013. também acreditava que a única forma de solucionar o problema da fome no mundo era mostrar às populações como cultivar seus próprios alimentos. Entretanto, criar materiais instrucionais para esse fim não seria suficiente, pois a maioria não sabia ler. A distribuição de maquinaria também não ajudaria, porque requeria mão de obra qualificada inexistente em função do analfabetismo. Sendo assim, a única forma de atuação eficaz seria, em sua concepção, elevar o nível da educação mundial, devendo esse processo começar pelas campanhas de alfabetização.

Os objetivos dos programas de educação deveriam, portanto, contemplar o ataque ao analfabetismo. Contudo, tal projeto de alfabetização não poderia se espelhar no sistema educacional estadunidense, porque era bastante caro. Dessa forma, era preciso descobrir um caminho menos dispendioso, métodos mais rápidos e baratos para atingir a finalidade de acabar com o analfabetismo, principalmente nos países pobres. Por esse ângulo, os métodos a serem utilizados não deveriam depender de materiais sofisticados e alta qualificação docente.

Como podemos concluir, na visão do autor, para os países pobres, seria necessário arquitetar uma educação com qualidade inferior, de baixo custo e com base na ação voluntária. De certo modo, Laubach (2013)LAUBACH, Frank Charles. Teaching the world to read: a handbook for literacy campaigns. New York: Friendship Press, 2013. 6 6- É necessário lembrar que, na época, Laubach era sempre mencionado nos textos da Unesco pelo seu trabalho missionário a favor da alfabetização. acenou para caminhos que poderiam ser trilhados pela Unesco para responder ao clamor da comunidade internacional que percebia a necessidade de investimento desse organismo em programas de alfabetização, isto é, as campanhas de alfabetização poderiam ser adequadas aos interesses das grandes potências e despertar o sentimento de gratidão que, na maioria dos casos, viria acompanhado da submissão aos interesses desses países.

Com o propósito de iniciar projetos voltados para a alfabetização, conforme demandado por países cujos índices de analfabetismo eram muito altos, um estudo minucioso dos programas de alfabetização e dos métodos de ensino foi amplamente estimulado e aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), em 2 de dezembro de 1949. Assim, esse organismo também solicitou à Unesco estudo de medidas a serem adotadas para “suprimir o analfabetismo”. Em resposta a essa demanda, a Unesco encomendou uma pesquisa sobre os métodos de ensino com a finalidade de identificar, analisar e descrever os utilizados no ensino da leitura e da escrita para crianças e adultos, assim como coletar dados sobre a eficácia dos métodos empregados na alfabetização de adultos.

Esse estudo foi realizado por William Gray 7 7- Williams S. Gray, autor desse estudo, era professor de Educação na Universidade de Chicago. e, em 1953, a Unesco publicou o Preliminary survey on methods of teaching Reading and writing: part I survey of theories and practices. Segundo descrito na Introdução, para organização do relatório, foi feito um levantamento preliminar dos materiais arquivados no centro de documentação Clearing House da Unesco, na biblioteca do Bureau International d’Éducation (BIE), e uma pesquisa sobre nomes e autores de materiais usados para ensinar adultos a ler e a escrever. Para obtenção dos dados sobre os materiais utilizados, foi enviada uma carta aos países-membros com essa solicitação, além dos títulos das obras e de cópias das publicações usadas. Também foram endereçadas cartas a mais de trinta pessoas que trabalhavam no campo que sabiam ensinar a leitura e a escrita sobre os materiais usados.

A partir desse levantamento, conforme indicado na Introdução do relatório, foram recebidas muitas respostas que ajudaram nas análises pretendidas pela Unesco. Em 1956, foi publicada a versão definitiva do relatório, com o título The teaching of reading and writing, dedicado ao trabalho de alfabetização de adultos no interior do Programa de Educação Fundamental. Vamos nos deter a este último por ser a versão definitiva e por apontar caminhos seguidos pela Unesco no que se refere, principalmente, ao conceito de alfabetização adaptado aos objetivos do programa.

Segundo Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956., os objetivos gerais estabelecidos nos últimos relatórios da Unesco sobre o Programa de Educação Fundamental, quais sejam, ajudar homens e mulheres a viver mais e plenamente, a se adaptarem a um ambiente de mudanças, a desenvolver sua cultura e a usufruir dos avanços econômicos e sociais; bem como os específicos, contribuir para que as pessoas compreendessem seus problemas cotidianos, encontrando meios para resolvê-los, isto é, ajudando cada indivíduo e grupo a melhorar suas formas de vida, sua saúde, produtividade, condição social e econômica, seriam tomados para pensar os programas de leitura para crianças e adultos que não se beneficiavam de uma educação formal.

Como vimos, integrantes da Unesco responsáveis pelo Programa de Educação Fundamental, no seu início, questionavam a importância do aprendizado da leitura e da escrita no processo de melhoria das condições de vida das pessoas. Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956., no entanto, considerava que uma pessoa alfabetizada teria mais condições de obter informações e solucionar problemas do cotidiano de modo mais eficiente do que aquelas que não possuíam esse aprendizado. Nesse sentido, argumentou que a questão central que precisaria ser respondida se relacionava com a definição do nível de alfabetização apropriado para alcance dos objetivos da educação fundamental. Para Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956. ainda havia, naquele momento, diversos níveis de alfabetização esperados que variavam desde a mera habilidade de ler uma simples frase e escrever o nome até um alto nível de maturidade em leitura, que incluía a aquisição do hábito de ler.

Para reduzir o analfabetismo, inicialmente, segundo Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956., foram adotadas políticas que visavam a proporcionar aos indivíduos padrões mínimos de alfabetização, ou seja, desenvolvimento de habilidades rudimentares de leitura e escrita e, portanto, não suficientes para atingir os objetivos mais amplos definidos no Programa de Educação Fundamental. Os treinamentos consistiam em uma série de cerca de vinte e cinco aulas baseadas nos materiais de uma ou mais cartilhas. O ensino estava voltado para o reconhecimento das palavras e dos elementos básicos da escrita e, por isso, as habilidades de leitura e escrita eram medidas em termos da capacidade de ler uma passagem fácil e escrever o nome ou uma mensagem simples.

Essa política de alfabetização, na percepção de Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956., era mantida em muitos lugares do mundo porque satisfazia o desejo dos adultos de aprender a ler um texto simples para responder às demandas práticas e permitir o exercício de direitos da cidadania. Apesar de falhos, os programas curtos de ensino se tornavam atrativos para adultos, pois a maioria não se matriculava em programas muito longos ou, quando o faziam, não concluíam os cursos.

Além disso, muitos gestores públicos argumentavam, de acordo com Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956., que, devido à falta de professores e de recursos financeiros, a instrução dos adultos deveria ser reduzida ao mínimo, ou seja, limitar-se à capacidade de decifrar palavras escritas em uma passagem, pois isso seria o bastante para que pessoas motivadas a aprender e mentalmente capazes pudessem compreender significados escritos mediante seu próprio esforço. No entanto, essa política, como argumentava Gray (1953)GRAY, William. Preliminary survey on methods of teaching reading and writing. Part I. Paris: Unesco, 1953., propiciava que os concluintes dos cursos ou programas, quando alcançados os padrões mínimos esperados, usassem a leitura e a escrita somente para finalidades mais elementares e, muitas vezes, as habilidades adquiridas eram esquecidas ao longo do tempo pela falta de uso.

Paralelamente a essas políticas que visavam à aquisição de habilidades mínimas de leitura e de escrita, o autor apontou a existência de esforços no sentido de desenvolver padrões mais elevados de alfabetização, principalmente tomando como referência o conceito de alfabetização funcional que, em sua perspectiva, vinha evoluindo nas últimas três décadas. Nesse caso, na promoção de métodos de ensino decorrentes desse conceito, eram observados dois princípios: adaptação da natureza e da duração do treinamento ministrado às necessidades dos grupos atendidos; e adaptação do treinamento a motivos que pudessem convencer os adultos da importância do aprendizado da leitura e da escrita.

De acordo com Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956., as demandas por alfabetização variavam desde a resolução de atividades simples e práticas cotidianas até aquelas que contribuiriam para que os indivíduos conseguissem desempenhar um papel importante na reconstrução da sociedade. As expectativas da comunidade ajudavam a definir a natureza e a duração dos programas de alfabetização. Em sua opinião, esses programas não deveriam apenas levar à aquisição de capacidades para responder às demandas sociais, econômicas e políticas, mas também enriquecer as experiências dos indivíduos e abrir caminhos que proporcionassem prazer e inspiração por meio da leitura.

A despeito dessa visão, Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956. defendeu a alfabetização funcional por entender que a adoção de padrões mínimos era inadequada aos propósitos do Programa de Educação Fundamental. Nessa direção, acreditava que os materiais utilizados precisariam estar diretamente relacionados com os motivos que levariam os grupos a querer aprender a ler e a escrever e, também, a duração da formação e o nível de alfabetização deveriam ser ajustados às necessidades dos grupos e à sua cultura. Os motivos para aprender a ler e a escrever tinham origens principalmente nas necessidades urgentes e práticas de um grupo visando à melhoria da vida da comunidade, por isso o ensino deveria ter caráter funcional. Uma pessoa funcionalmente alfabetizada é aquela que adquiriu conhecimentos e habilidades de leitura e de escrita que a capacitem a engajar-se efetivamente em todas as atividades da sua cultura ou do seu grupo nas quais a alfabetização seja necessária ( Gray, 1956GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956.).

Nesse sentido, podemos inferir, com base no estudo realizado por Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956., que a adoção do conceito de alfabetização funcional contribuiu para recuperar o lugar da alfabetização nas políticas internacionais de educação da Unesco, porque não perdia de vista seu objetivo mais amplo. Mais tarde, a Unesco passou a adotar somente o conceito de alfabetização funcional que permanece até a atualidade e, nesse sentido, foi concretizado em ações incentivadas, financiadas e adotadas por esse organismo.

Considerações finais

Em síntese, mostramos que a alfabetização da população mundial, notadamente nos países pobres, não era a finalidade principal do Programa de Educação Fundamental da Unesco. Contribuía para essa decisão, por exemplo, o fato de os países com índices altos de alfabetismo terem participado da Segunda Guerra Mundial, produzindo enorme destruição em diversos países. Em meio aos debates em torno da necessidade de melhorar os índices de alfabetismo, Gray (1956)GRAY, William. The teaching of reading and writing. Illinois: Unesco: Scott: Foresman, 1956. apontou que a alfabetização funcional seria a mais apropriada para proporcionar que povos, comunidades e indivíduos encontrassem soluções para problemas práticos do cotidiano e se tornassem capazes de desempenhar o papel que lhes cabiam na reconstrução da sociedade. Esse conceito é acolhido pela Unesco por estar em consonância com os seus propósitos e com os do Programa de Educação Fundamental.

Tomando como referência as reflexões de Giroux (1986)GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis: Vozes, 1986., podemos dizer que a alfabetização, então, foi definida em termos mecânicos e funcionais, fazendo com que ficasse, por um lado, “reduzida ao domínio de habilidades fundamentais” e, por outro, se tornasse

[...] completamente submersa na lógica e nas necessidades do capital, e seu valor é definido e medido em termos da demanda pelas habilidades de leitura e escrita necessárias para o setor crescente do processo de trabalho envolvido na ’produção de massa de informação, comunicação e finanças.

( Giroux, 1986GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis: Vozes, 1986., p. 270).

Desse modo, nos projetos da Unesco, a alfabetização deixou de ser concebida “como forma de política cultural” ( Macedo, 2000MACEDO, Donaldo. Alfabetização, linguagem e ideologia. Educação & Sociedade, Cidade, v. 21, n. 73, p. 84-99, dez. 2000., p. 84), tendo sido adotado um conceito, de acordo com Giroux (1986)GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis: Vozes, 1986., apoiado na ideologia instrumental, ou seja, construído dentro de um quadro teórico cujo objetivo central é a adaptação dos indivíduos e dos povos à ordem econômica. Assim, o conceito de alfabetização funcional, conforme tratado neste texto, permitiu pensar uma alfabetização adequada às especificidades de grupos e povos, não na perspectiva de promover mudanças sociais, econômicas e políticas, mas no sentido de melhor adaptação às mudanças globais orquestradas pelas grandes potências mundiais.

Esse conceito sofreu modificações no curso da história da Unesco, mas manteve sempre um caráter instrumental, o que indica a necessidade de os educadores continuarem a lutar por uma alfabetização para crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, que rejeite o caráter mecânico e funcional que lhe foi conferido. Nesse sentido, na contramão dessa visão, é necessário buscar, nos processos de alfabetização e escolarização, uma formação que contribua para a constituição, em todos os sujeitos aprendentes, de “valores tais como solidariedade, responsabilidade social, criatividade, disciplina a serviço do bem comum, vigilância e espírito crítico” ( Macedo, 2000MACEDO, Donaldo. Alfabetização, linguagem e ideologia. Educação & Sociedade, Cidade, v. 21, n. 73, p. 84-99, dez. 2000., p. 96), ao invés de subserviência. O Brasil, ao longo de sua história, por exemplo, distanciou-se desse projeto emancipador, criando condições para, atualmente, termos um projeto moralizante e conservador em andamento.

Na Introdução da obra de autoria de Paulo Freire e Donaldo Macedo (1990)FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990., Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra, Giroux ( 1990, p. 2GIROUX, Henry. Introdução: alfabetização e a pedagogia do empowerment político. In: FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 1-28.) assinala que, excetuando Paulo Freire, é muito difícil a identificação de “posições teóricas ou movimentos sociais de maior importância que afirmem e ampliem a tradição de uma alfabetização crítica desenvolvida à maneira de teóricos radicais como Gramsci, Mikhail Bakhtin e outros”. Giroux (1990)GIROUX, Henry. Introdução: alfabetização e a pedagogia do empowerment político. In: FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 1-28. salienta, ainda, que a ideia de uma alfabetização crítica está presente, em meados do século XX, nos pensamentos do teórico italiano Antônio Gramsci que politizou a noção de alfabetização e a dotou de “um significado ideológico que sugere que ela pode ter menos a ver a tarefa de ensinar pessoas a ler e a escrever do que com a produção e a legitimação de relações sociais opressivas e exploradoras” ( Giroux, 1990GIROUX, Henry. Introdução: alfabetização e a pedagogia do empowerment político. In: FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 1-28., p. 1).

Nesse sentido, de acordo com o autor, Gramsci também nos ensinou que o conceito de alfabetização precisa estar alicerçado em um projeto ético e político que dignifique e amplie “as possibilidades de vida e liberdade humanas” ( Giroux, 1990GIROUX, Henry. Introdução: alfabetização e a pedagogia do empowerment político. In: FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 1-28., p. 1). Paulo Freire conseguiu construir uma perspectiva crítica de alfabetização, porque está sedimentada no pressuposto de que as pessoas são agentes, sujeitos dos processos de mudanças que levam à existência efetiva de uma sociedade justa e democrática. Contudo, essa perspectiva não encontrou lugar no modelo de alfabetização adotado pela Unesco, pois a alfabetização funcional, diferentemente da alfabetização crítica, visa a adaptar os seres humanos à sociedade.

Não podemos finalizar este texto sem deixar de mencionar que o projeto de alfabetização funcional para o mundo, fundado nas diferentes necessidades e aptidões dos sujeitos e nações, continuou a produzir desigualdades. Somos contemporâneos de diversas formas de desigualdades e, conforme aponta Geraldi ( 2010GERALDI, João Wanderley. A diferença identifica. A desigualdade deforma. Percursos bakhtinianos de construção da ética através da estética. In: GERALDI, João Wanderley. Ancoragens: estudos bakhtinianos. São Carlos: Pedro & João, 2010. p. 103-122., p. 114), “desigualdades são recusa de partilha”, de conhecimentos, de bens materiais, de poderes etc. Sendo assim, desigualdades também são resultados de políticas de alfabetização que esquecem, conforme a nossa perspectiva, que ler e produzir textos são passos fundamentais para a destruição das estruturas de exclusão que estão na base do capitalismo, pois torna as pessoas mais exigentes, críticas, participativas, reivindicantes de seus direitos, responsáveis e, portanto, comprometidas com deveres que promovam o bem comum.

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  • UNESCO. Fundamental education common ground for all peoples. Paris: Unesco, 1947. Report of a Special Committee to the Preparatory Commission of the United Nations Educational, Scientific and Cultural Organisation.
  • UNESCO BRASILIA OFFICE. Constituição da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Tradutor John Stephen Morris. Brasília, DF: Unesco Brasilia Office, 2002.
  • 2-
    Ele foi também Secretário Executivo da Comissão Preparatória da Unesco, tendo influenciado a visão original da organização.
  • 3-
    Segundo Huxley (1976)HUXLEY, Julian. A philosophy for UNESCO: selections from a forgotten historic document. Corrier, Paris, p. 4-7, Mar.1976., esse texto foi elaborado para organizar suas próprias ideias quando, em virtude de problemas referentes à saúde de Alfred Zimmern, assumiu a Secretaria da Comissão Preparatória da Unesco.
  • 4-
    Huxley era um humanista, cientista (biólogo) e um pensador. Seu texto não foi aprovado, segundo o próprio Huxley (1976)HUXLEY, Julian. A philosophy for UNESCO: selections from a forgotten historic document. Corrier, Paris, p. 4-7, Mar.1976., porque a atitude humanista nele explicitada fez com que os delegados pensassem, de forma equivocada, que era antirreligioso e que seu liberalismo tivesse caráter comunista.
  • 5-
    Frank Charles Laubach foi uma espécie de missionário religioso que desenvolveu um método de alfabetização de adultos conhecido como método Laubach. Seu método e suas ações missionárias são muito citados nos textos da Unesco.
  • 6-
    É necessário lembrar que, na época, Laubach era sempre mencionado nos textos da Unesco pelo seu trabalho missionário a favor da alfabetização.
  • 7-
    Williams S. Gray, autor desse estudo, era professor de Educação na Universidade de Chicago.

Editado por

Editor: Prof. Dr. Fernando Luiz Cássio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2022
  • Aceito
    13 Mar 2023
  • Revisado
    03 Mar 2023
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