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Apropriação de práticas de numeramento na EJA: valores e discursos em disputa

Resumos

Este artigo contempla questões da apropriação de práticas de numeramento no contexto escolar por estudantes jovens e adultos da educação básica. Consideramos essas práticas sociais que envolvem ideias, critérios e representações matemáticas como práticas de letramento, constituídas por modos de uso da língua escrita e informadas pelas relações que estabelecem com valores e conhecimentos relativos à cultura letrada. No âmbito do estudo aqui apresentado, analisamos as posições discursivas assumidas pelos sujeitos em interações em sala de aula ocorridas durante a correção de uma atividade de matemática em que se solicitava que os alunos indicassem a ordem de grandeza de alguns objetos e a expressão das medidas aproximadas no sistema métrico decimal. Enquanto a proposta escolar requeria a produção de estimativas em detrimento da referência em situações específicas, os estudantes produziram respostas que se apoiam em situações contextuais e buscam a precisão. A análise sugere que os processos de apropriação das práticas de numeramento escolares não se restringem a uma dimensão técnica, estando relacionados às maneiras de os sujeitos se apropriarem dos valores a elas vinculados. No jogo discursivo escolar, alunos e alunas assumem posições diversas, que ora se solidarizam com os modos de conhecer escolares, ora os questionam, colocando-se como sujeitos de aprendizagem, nos diversos modos de conhecer e se relacionar com o mundo.

Numeramento; Letramento; Apropriação; Educação de pessoas jovens e adultas


This article discusses issues concerning the appropriation of numeracy practices by young and adult students of primary and secondary schools. We consider these social practices that involve mathematical ideas, criteria and representations to be literacy practices, constituted by ways of using written language and informed by the relations that they establish with the values and knowledge of written culture. We analyze the discursive positions taken by subjects in classroom interactions during the correction of a mathematics activity in which students were requested to indicate the order of magnitude of some objects and the expression of their approximate measurements using the decimal metric system. While the school proposal required the production of estimates at the expense of reference in specific situations, students produced responses referenced in contextual situations and tried to be precise. Our analysis suggests that the learning processes of school numeracy practices are not restricted to a technical dimension, and are related to the ways subjects learn the values linked to them. In the educational discursive interplay, students take various positions, which sometimes sympathize with the school's ways of knowing, and sometimes question them. Thus, students act as subjects of learning in several ways of knowing and relating to the world.

Numeracy; Literacy; Appropriation; Learning; Youth and adult education


ARTIGOS

Apropriação de práticas de numeramento na EJA: valores e discursos em disputa1 1 - A pesquisa que subsidia este artigo conta com o apoio do CNPq.

Maria da Conceição Ferreira Reis FonsecaI; Fernanda Maurício SimõesII

IUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.Contato: mcfrfon@gmail.com

IIPrefeitura Municipal de Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG, Brasil.Contato: simoesamaral@gmail.com

RESUMO

Este artigo contempla questões da apropriação de práticas de numeramento no contexto escolar por estudantes jovens e adultos da educação básica. Consideramos essas práticas sociais que envolvem ideias, critérios e representações matemáticas como práticas de letramento, constituídas por modos de uso da língua escrita e informadas pelas relações que estabelecem com valores e conhecimentos relativos à cultura letrada. No âmbito do estudo aqui apresentado, analisamos as posições discursivas assumidas pelos sujeitos em interações em sala de aula ocorridas durante a correção de uma atividade de matemática em que se solicitava que os alunos indicassem a ordem de grandeza de alguns objetos e a expressão das medidas aproximadas no sistema métrico decimal. Enquanto a proposta escolar requeria a produção de estimativas em detrimento da referência em situações específicas, os estudantes produziram respostas que se apoiam em situações contextuais e buscam a precisão. A análise sugere que os processos de apropriação das práticas de numeramento escolares não se restringem a uma dimensão técnica, estando relacionados às maneiras de os sujeitos se apropriarem dos valores a elas vinculados. No jogo discursivo escolar, alunos e alunas assumem posições diversas, que ora se solidarizam com os modos de conhecer escolares, ora os questionam, colocando-se como sujeitos de aprendizagem, nos diversos modos de conhecer e se relacionar com o mundo.

Palavras-chave: Numeramento - Letramento - Apropriação - Educação de pessoas jovens e adultas.

Proposição do problema e metodologia

Situações sociais de uso da leitura e da escrita que ocorrem em uma sociedade grafocêntrica demandam uma diversidade cada vez maior de conhecimentos. Dentre eles, destacam-se conhecimentos matemáticos, os quais dão suporte a grande parte das relações sociais que se estabelecem nessa sociedade, tão apegada aos argumentos quantitativos quanto à expressão escrita. Assim, práticas sociais envolvendo quantificação, medição, orientação no espaço, ordenação e classificação - que aqui chamamos práticas de numeramento - compõem os modos de usar a língua escrita e são por eles constituídas. Nesse sentido, a apropriação de práticas escolares de numeramento também foi contemplada na investigação que desenvolvemos sobre apropriação de práticas escolares de letramento por alunas e alunos jovens e adultos da educação básica. Isso porque consideramos que a apropriação da cultura escrita não pode prescindir da constituição e/ou da mobilização de certas práticas de numeramento,

não só porque representações matemáticas aparecem nos textos escritos, mas porque a própria cultura escrita que permeia e constitui tais práticas é também permeada por princípios calcados numa mesma racionalidade que forja ou parametriza as práticas ditas numeradas e que é por elas reforçada. (FONSECA, 2009, p. 55)

Cabe observar, porém, que uma análise que relaciona práticas de numeramento à cultura escrita não desconsidera as práticas orais de numeramento, pois, mesmo que não se utilizem da tecnologia escrita, tais práticas se inserem em sociedades grafocêntricas, sendo possível identificar nelas as marcas da cultura escrita

como idealização a alcançar, como acessório que se utiliza ou se dispensa, como intimidação à qual se resigna ou a que se resiste; como validação a que se submete ou que se questiona, que se respeita ou que se burla, que se venera ou da qual se desdenha. (p.55)

Nesse sentido, para a análise da apropriação de práticas de numeramento que contemplamos neste artigo, pudemos valer-nos de estudos dos processos de apropriação de práticas de letramento, especialmente de alguns deles que refletem sobre os conhecimentos, os valores e as habilidades envolvidas na configuração das práticas de leitura e de escrita vivenciadas por jovens e adultos pouco escolarizados. É o caso de investigações como as de Marinho (1992), Ribeiro (1999), Galvão (2002), Kalman (2004), Lúcio (2007) e Souza (2008), que reiteram que esses sujeitos, quando decidem iniciar ou retornar sua trajetória escolar, já construíram, mesmo que não alfabetizados, modos de se relacionar com as demandas sociais de leitura e de escrita, aprendidos nas diversas instâncias da vida cultural em que se inserem. A perspectiva que adotamos nos permite considerar que o mesmo se poderia dizer em relação às demandas por quantificação, mensuração, ordenação, organização, orientação no espaço e outras associadas a ideias matemáticas que permeiam as diversas atividades da vida pessoal e social de alunas e alunos da Educação de Pessoas Jovens e Adultas (EJA). Da mesma maneira, identificamos, em outras tantas questões da análise das práticas de numeramento, a possibilidade de referenciar-nos em estudos de e sobre letramento, especialmente os que se identificam como New Literacy Studies (STREET, 2003), que têm fornecido contribuições relevantes para a discussão das questões postas pelo uso do conceito de práticas de numeramento como ferramenta analítica, oferecendo, "além de novos princípios e pressupostos teóricos, alguns instrumentais para a análise do fenômeno do letramento" (SOARES, 2004, p. 104).

A fundamentação teórica de nossa pesquisa foi, pois, construída a partir do confronto que estabelecemos entre as possibilidades analíticas do material empírico produzido e os estudos no campo do letramento, do numeramento e da EJA, em especial os de Soares (2003, 2006), Street (2003, 1984), Rojo (2009), Kleiman (1995), Fonseca (2009), Souza (2008), Oliveira (2001) e Ribeiro (1999). Também recorremos a estudos que se voltam para a reflexão sobre os processos de apropriação, dialogando com a perspectiva vigotskyana desenvolvida por Smolka (2000) e com o enfoque bakhtiniano contemplado por Kalman (2009).

O material empírico do qual extraímos as interações que apresentamos neste artigo foi produzido numa pesquisa realizada em uma escola pública, cujo projeto pedagógico explicitava a intenção de oportunizar aos estudantes jovens e adultos experiências significativas de leitura e escrita. A turma que acompanhamos cursava o nível intermediário do ensino fundamental, o que nos permitiria contemplar as práticas de letramento e numeramento escolares vivenciadas por estudantes que, tendo já certo domínio tanto da tecnologia da leitura e da escrita quanto de certas habilidades básicas de matemática, seriam convidados a desenvolver atividades que visassem à abordagem de algumas habilidades mais complexas de alfabetismo (ROJO, 2009), com vistas à apropriação de práticas de letramento e numeramento socialmente valorizadas.

Durante um semestre letivo, estivemos todas as noites na sala de aula, participando da dinâmica de suas atividades, registrando-a em áudio e fazendo anotações relativas a essa dinâmica, aos diálogos estabelecidos entre os estudantes e a professora, e mesmo às situações em que os alunos e as alunas solicitavam o auxílio da pesquisadora para a realização das atividades. Em todo o trabalho, esforçamo-nos por "integrar a cultura dos sujeitos observados e 'ver' o 'mundo' por intermédio de sua perspectiva" (VIANNA, 2003, p. 26).

A partir da escuta das gravações e da leitura do diário de campo, foram construídas narrativas de situações de ensino e aprendizagem envolvendo práticas de letramento (entre elas, as de numeramento) perante as quais os estudantes se posicionavam discursivamente. Neste artigo, apresentamos uma análise elaborada a partir das reflexões suscitadas pelas interações que ocorreram numa das aulas que assistimos. Tais interações foram aqui destacadas porque vimos, nos jogos interlocutivos que nelas se estabeleceram, estudantes demarcarem diferentes modos pelos quais significam e se relacionam com práticas de numeramento escolares, mobilizando valores e assumindo discursos, ora em adesão ora em confronto com aqueles que subsidiam as práticas escolares.

Alfabetização, alfabetismo, letramento e numeramento escolares: domínio de habilidades e apropriação de práticas

A mobilização dos conceitos de práticas de letramento e de numeramento nos estudos da EJA responde à necessidade de se estudar a apropriação da leitura e da escrita para além da análise das capacidades individuais das pessoas em relação ao seu uso (ROJO, 2009). Em vez de aferir o grau de proficiência dos sujeitos em relação a certas habilidades letradas ou numeradas, esses construtos teóricos buscam compreender os usos da leitura, da escrita e das relações matemáticas em sua dimensão sociocultural, marcada pelas contingências contextuais e pelas relações de poder. Considerando que buscamos perceber como estudantes participam de práticas sociais - neste caso, as atividades escolares - que envolvem o uso da língua escrita e da matemática, mobilizamos o conceito de práticas de letramento - entre as quais incluímos as de numeramento - como sendo práticas de leitura e de escrita plurais, social e culturalmente determinadas, cujos significados específicos que assumem para um grupo social dependem dos contextos e das instituições em que se forjam (KLEIMAN, 1995).

Cabe lembrar que essa perspectiva analítica é chamada por Street (1984) de modelo ideológico de letramento e que, segundo o autor, contrapõe-se ao modelo autônomo de letramento, que postula um único tipo de uso da leitura e da escrita (e nós acrescentaríamos, da matemática) como sendo universal, desconsiderando seu contexto de produção. De acordo com Kleiman (1995, p. 28), nesse modelo,

a prática de letramento focalizada é aquela que leva à produção do texto tipo ensaio (isto é, o texto expositivo e /ou argumentativo), justamente aquele texto que mais se diferencia da oralidade, particularmente se o padrão da oralidade é o diálogo.

Entre os problemas decorrentes da adoção dessa perspectiva teórica estão a relação de dicotomia estabelecida entre a oralidade (considerada atrelada ao contexto comunicacional e de caráter informal e pouco planejado) e a escrita (que seria, em si mesma, planejada, formal e autônoma em relação à situação social e ao seu mundo de referência), e a consideração de uma vinculação direta entre a aquisição da escrita (e da matemática escolar) e o desenvolvimento do pensamento abstrato e lógico. Em contraposição, investigações que se orientam pelo modelo ideológico indicam que as relações entre as duas modalidades de uso da língua (oral e escrita) dependerão do contexto social em que se forjam. Ademais, esses estudos postulam que as consequências do uso da escrita que o modelo autônomo supõe universais e, via de regra, benéficas seriam decorrentes, antes, de um tipo de letramento (o escolar), o qual privilegia o trabalho com o texto escrito, independentemente de contextos sociais particulares, e valoriza não só o saber, mas igualmente o saber dizer (OLIVEIRA, 2001).

Dada a natureza e os princípios de nossa investigação, pouco nos auxiliariam conceitos de letramento e de numeramento restritos a um conjunto de habilidades que devem ser mobilizadas para atender às demandas apresentadas pelas diversas situações sociais, conceitos esses que nos induzem a vincular diretamente a aquisição dessas habilidades a consequências positivas, como "desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade social, progresso profissional, cidadania" (SOARES, 2006, p. 75). Marcuschi (2001, p. 40) adverte que discutir o letramento apenas em termos de habilidades obscurece importantes aspectos das relações com a cultura escrita, como

os modos pelos quais a escrita é usada para medir a adequação da comunicação do indivíduo (se padrão ou desviante), os papéis particulares associados aos que reivindicam o direito de nomear o padrão e julgar os desviantes e os modos pelos quais os escreventes se apropriam das formas padrão para comunicar uma mensagem de forma persuasiva.

Cumpre-nos, pois, compreender as práticas letradas como geradas por processos sociais mais amplos que podem "reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais" (SOARES, 2006, p.76).

Com efeito, estudos sobre os usos sociais da leitura, da escrita e de matemática por jovens e adultos pouco escolarizados nos permitem conhecer os alunos e as alunas da EJA como sujeitos de (outras) culturas e de (outros) conhecimentos. Isso é importante tanto para qualificar o desenvolvimento de análises sobre os impactos da escolarização em relação às práticas de letramento e numeramento desses sujeitos, quanto para subsidiar as investigações que buscam compreender as estratégias utilizadas por esses estudantes para se apropriarem das práticas escolares de leitura, de escrita e de matemática que vivenciam (RIBEIRO, 1999; FONSECA, 2001; CABRAL, 2007; FARIA, 2007).

Por isso, para entender as características das práticas de leitura e de escrita com que os estudantes se deparam no contexto da escola, foi preciso estabelecer conceitos de letramento escolar, de alfabetização e de alfabetismo que, favorecendo a compreensão das perspectivas assumidas pelos sujeitos, mostrassem-se mais férteis para a operacionalização da análise do material empírico, já que esses termos podem ser definidos de diversas formas e com diferentes intenções por pesquisadores do campo da leitura e da escrita, bem como por educadores, por gestores, pela mídia etc.

Os estudos que temos empreendido nos levam, pois, a assumir que as práticas de letramento ocorridas no contexto escolar são específicas desse espaço e caracterizadas por serem planejadas, instituídas e selecionadas por critérios pedagógicos, com objetivos predeterminados (SOARES, 2003). Identificam-se, assim, práticas de letramento escolares que, tendo a leitura e a escrita como objetos de aprendizagem, visam a possibilitar aos alunos a apropriação de certas habilidades letradas, em geral valorizadas socialmente. Essas práticas se configuram em atividades de leitura e de escrita que ora objetivam o ensino de conceitos e procedimentos relativos ao registro escrito da língua materna e da matemática - alfabetização -, ora objetivam promover o aprendizado de habilidades mais complexas de leitura, de escrita e de matemática: alfabetismo (ROJO, 2009).

Nosso interesse em compreender os comportamentos assumidos pelos alunos e pelas alunas e "as concepções sociais e culturais que os configuram, determinam sua interpretação e dão sentido aos usos da leitura e/ou da escrita naquela particular situação" (SOARES, 2006, p.105) ultrapassa, pois, a preocupação em apenas identificar as habilidades envolvidas nas atividades escolares ou avaliar se os estudantes as dominam quando logram sucesso nessas tarefas. Por isso, neste trabalho, buscamos focalizar a dimensão sociocultural das situações de apropriação de práticas de leitura e escrita oportunizadas pelo contexto escolar, dispostas a perceber os sentidos que os estudantes atribuem a tais práticas. Considerando as práticas de leitura e de escrita como atividades sociais, queremos, assim, investigar algo das formas pelas quais os sujeitos se apropriam delas: as particularidades dos usos que delas fazem nos diversos contextos; os propósitos de quem as usa e os efeitos esperados e logrados; a posição que leitores ou escritores assumem perante outros leitores; e as ideias e os significados que norteiam a participação de cada um, bem como as concepções que as pessoas ali manifestam sobre si mesmas (KALMAN, 2009).

Para tanto, entendemos o termo apropriação segundo a perspectiva teórica de autores como Bakhtin (1997, 2000), Smolka (2000) e Kalman (2009), que partem da premissa comum de que, se, por um lado, as relações nas quais os indivíduos estão envolvidos constituem fatores importantes na explicação dos seus modos de ser, de relacionar e de conhecer, por outro, esses sujeitos desempenham um papel ativo em seus processos de compreensão do mundo. A apropriação é, assim, entendida como uma resposta ativa do sujeito à interação social e não como uma reprodução mecânica (SMOLKA, 2000). Ela está relacionada, portanto, ao problema da significação e das formas mobilizadas pelos indivíduos para interpretar uma situação social, ou seja, para aprender. Por isso assumimos, como o faz Bakhtin (1997), que a aprendizagem implica a apropriação de discursos, processo em que os sujeitos convertem as palavras alheias em próprias, opondo à palavra do locutor uma contrapalavra.

Nesse sentido, ao analisarmos as formas pelas quais os alunos e as alunas da EJA se apropriam das práticas de numeramento escolares, consideramos, como Smolka (2000, p. 13), que "tornar próprio, tornar seu não significa exatamente, e nem sempre coincide com tornar adequado às expectativas sociais". Assim, não nos interessa aqui julgar em que medida a apropriação que alunos e alunas da EJA fazem das práticas de numeramento escolares os leva a exibir comportamentos esperados e socialmente valorizados. Voltamo-nos para aspectos de sua relação com a cultura escrita e com a matemática escolar, de suas expectativas diante da escolarização, de suas demandas, suas críticas, seus desejos e suas propostas para a ação pedagógica que repercutem e se forjam nos modos de apropriação de práticas de numeramento que esses sujeitos assumem.

Ô Márcia, depende da porta

O episódio que apresentamos a seguir e a partir do qual proporemos a reflexão que queremos contemplar neste artigo ocorreu na noite de 4 de maio de 2009. Ante o resultado insatisfatório de uma prova sobre o sistema de medidas, a professora Márcia2 2 - Utilizamos aqui os nomes reais dos sujeitos, que autorizaram (e mesmo reivindicaram) sua divulgação. aplica uma atividade cujo objetivo é trabalhar a ideia de ordem de grandeza para criar referências que contribuiriam na compreensão e na produção de registros no sistema métrico decimal. Propõe aos estudantes, então, o desafio de escreverem no caderno a medida aproximada de alguns objetos:

Professora: Bom, então vamos fazer a correção, né? O negócio é o seguinte: antes de fazer a correção, eu queria que vocês abrissem o caderno e colocassem aí: letra a. Na frente da letra a, vocês vão escrever pra mim assim: uma porta de casa. Ela tem a largura de...?

Aluna: O quê? Uma porta de casa?

Elizangela: Ô Márcia, depende da porta.

Professora: Não... é o tamanho padrão. Agora... a abelha mede aproximadamente... O comprimento de uma garagem é aproximadamente...

Clarice: Todos os tamanhos são padrões, né? Porque tem gente que tem um carro, dois carros.

Silvia: Que tamanho de carro você quer?

Professora: Não... É um carro pequeno, não é caminhão, também não é caminhonete. Um carro de professora.

Silvia: Largura ou tamanho?

Professora: Não... O comprimento... O que você está chamando de tamanho é o comprimento, tá?

Professora: Uma criança de 10 anos mede aproximadamente... de altura.

Elizângela: Vai ver que a criança é baixa... Vai ver que a criança é alta.

Professora: Não... É uma criança de altura média, gente. Não são os mais altos e nem os mais baixos. Uma moça magrinha, estatura média, pesa aproximadamente quanto?

Neuza: Essa é fácil.

Professora: É claro, né? Você é a moça magrinha que eu estou falando. Bom, gente, essas coisas servem pra gente ter a dimensão, né?

Neuza [para o colega]: Você acha que acertou muito ou errou muito? A maioria.

Professora: Vamos ver agora. Uma porta, gente, a largura média.

Milton: Da casa é 70, do banheiro é 60.

Professora: Então, esse negócio aqui tem um centímetro, não é? É mais ou menos o tamanho de uma abelha? Então podemos falar que a abelha é mais ou menos um centímetro. Então, no caso da porta...

Clarice: Ô Márcia... Essa abelha de um centímetro está muito pequena.

Neuza: Está mesmo, Márcia.

Clarice: Essa é abelha de bananeira. Agora a abelha do mel são três centímetros.

Professora: Credo.

Clarice: É...

Milton: Três centímetros?

Professora: Essa aí está muito grande, não está não?

Adriana: Vamos ter que medir a abelha, então.

Neuza: Essa abelha da Márcia está muito pequena.

Clarice: Vou matar a abelha e vou trazer.

Professora: A laranja, a gente partiria a laranja... Cada laranja aqui, vocês concordam que seria o tamanho médio de uma laranja. Então, vai ser isso aqui. Eu cortei ela... [desenha no quadro]

Neuza: Ô Márcia, tem laranja bem grande.

Professora: Quanto vai dar... Aproximadamente sete, oito centímetros.

Aluna: Dez.

Professora: Eu falei uma laranja tamanho médio. Dez está meio grande. Dez é se for aquela laranja-bahia.

Neuza: Tem laranja pêra-rio também.

Silvia: Tem laranja bem grandona, é... Bem grande. Pêra-rio tem umas grandonas.

Nessa interação, a professora propõe aos estudantes o exercício de pensarem sobre a ordem de grandeza de alguns objetos e expressarem as medidas aproximadas no sistema métrico decimal: "uma porta de casa. Ela tem a largura de...?". Todavia, os alunos, convocados a responder perguntas sobre comprimentos em um contexto de "atividade escolar de matemática", demandam maiores especificações nas questões para que lhes seja possível produzir "a resposta certa": "Ô, Márcia, depende da porta."; "Que tamanho de carro você quer?". A cada questionamento levantado pelos estudantes, a professora demarca que a atividade visa a estimar a medida aproximada dos objetos e não acusar quanto medem em contextos determinados: "Não..., é o tamanho padrão."; "Agora..., a abelha mede aproximadamente..."; "O comprimento de uma garagem é aproximadamente...".

A proposição da atividade para trabalhar com ordem de grandeza supõe dispensáveis as especificações, em favor das estimativas, pois o objetivo ali era proporcionar aos alunos a intimidade com certas unidades de medida e criar referências que pudessem ser mobilizadas em situações de resolução de problemas. Nesse sentido, a referenciação em situações do cotidiano dos estudantes está, naquele contexto, a serviço de (e submetida a) uma prática de numeramento escolar, informada por um valor que a permeia e, de uma maneira geral, permeia o conhecimento matemático que se veicula na escola: a generalização. É a generalização que permite e demanda a constituição de conceitos, aplicáveis a situações específicas, mas descoláveis delas.

A conceitualização operacionaliza, pois, o pensamento abstrato (VIGOSTSKY, 2005). Se isso é verdade para a ciência moderna de maneira geral, na matemática acadêmica, encontramos um modelo prototípico de edifício de conhecimento construído a partir de abstrações. Esse modo de compreender a matemática permeia de maneira decisiva o discurso da matemática escolar. Bishop (1994, p. 66, tradução nossa) observa que

estamos muito convencidos de que a matemática se ocupa das abstrações e, assim, em nível escolar, dedica-se um enorme esforço para desenvolver o que se costuma denominar "pensamento abstrato".

3 3 - "We are well aware [...] that mathematics is concerned with abstractions and at school level there is a great deal of effort put into "abstract thought" as it is often called.

Essa disposição de trabalhar na perspectiva da generalização, porém, não foi acordada a priori entre a professora e os estudantes, talvez porque suposta tacitamente pela professora. Entretanto, esses estudantes, alheios a tal intenção, apoiam-se na especificidade, não só por sua importância nas situações práticas, mas também por sua relevância na produção de resposta única (e certa), considerada por eles como um valor da matemática escolar pelo qual devem zelar: "Da casa é setenta, do banheiro é sessenta".

Ao longo da interação, os alunos e as alunas não só assumem posições críticas em relação à proposta da professora, mas igualmente fazem emergir os paradoxos e as contradições que permeiam o processo de ensino e aprendizagem escolar. Por um lado, a mobilização de diversas práticas cotidianas de medir, diante do enunciado de cada item da atividade, sugere-nos um desconforto dos estudantes em relação ao fato de a proposição da tarefa não se preocupar em considerar a variabilidade das possibilidades apresentadas pelas situações de medida com as quais parecem ter mais intimidade: quando a professora pergunta "Uma criança de 10 anos, mede aproximadamente... de altura", Elizângela replica "Vai ver que a criança é baixa... Vai ver que a criança é alta". Por outro lado, a enunciação das especificidades envolvidas em outras experiências sociais de medir não parece ser movida pelo desejo de contestação da prática escolar. Se considerarmos que esses sujeitos não compreenderam a intenção da proposta didática de trabalhar com ordem de grandeza, podemos admitir que as posições que assumem indicam, entretanto, a busca pelo estabelecimento das condições de produção de um resultado exato, em detrimento da apresentação de uma resposta aproximada. Com efeito, a produção de resposta "única e exata é uma prática valorizada em muitas atividades escolares de matemática, e os alunos parecem, nesse momento, aderir a esse valor.

O discurso de que o sucesso em matemática é garantido tão somente pela produção de respostas únicas e exatas é o que nos parece ecoar também em outro evento de numeramento por nós observado, quando a professora corrigia com os alunos operações de divisão que eles haviam efetuado na lousa. Nesse episódio, o aluno Emílio, em nome da precisão matemática, desconsidera por completo a resposta aproximada a que chegara ao dividir 402 por 3, a despeito da avaliação positiva feita pela professora em relação ao seu desempenho:

Professora: Aí, põe o resto aqui. Então tudo certinho, né? Emílio, quer dizer que você sabe dividir, sim, mas por que foi que você empacou aqui, então?

Ana: É um quebra-cabeça.

Emílio: Eu não sei explicar.

Professora: Ô Emílio, você falou que deu 132, não foi? Mas deixa eu te falar uma coisa, 132 e 134 não estão muito pertinho?

Emílio: É, mas se eu errei, não tem perdão, não.

Professora: Ai, Emílio. Pelo amor de Deus, deixa de ser dramático.

Emílio: Se eu for fazer uma prova, eles não vão me perdoar. Por que eu vou ter que me perdoar?

Assim como a avaliação de Emílio sobre a resposta que produzira para a divisão de 402 por 3, os julgamentos proferidos por suas colegas e por seu colega Milton sobre as respostas que poderiam apresentar às questões sobre as medidas propostas na primeira interação que focalizamos parecem contemplar não a generalização, mas outros valores, também particularmente privilegiados na educação matemática: a precisão e a certeza. Mesmo quando se referem a situações não escolares, os enunciados proferidos por esses estudantes da EJA parecem ser atravessados por discursos fundamentados em uma concepção de ensino e aprendizagem da matemática segundo a qual o sucesso ocorre quando o estudante encontra a resposta exata dos problemas apresentados. Nesse modelo, a dinâmica das aulas deve prever o enfrentamento de várias séries de exercícios que, frequentemente, reportam-se a situações artificiais - denominadas por Skovsmose (2007, p. 82) de realidade virtual - que devem ser resolvidas partindo de pressupostos segundo os quais

todos os dados relevantes para resolver o problema estão apresentados com exatidão; as informações não relevantes para a solução do problema são deixadas de lado; é possível resolver o problema por meio de técnicas matemáticas já apresentadas e bem definidas; e há uma e apenas uma solução correta. (SKOVSMOSE, 2007, p.83)

Dessa forma, os próprios estudantes apontam a fragilidade de um tratamento dicotômico em relação às finalidades e aos valores referentes aos conhecimentos escolares e cotidianos. Ao que tudo indica, na convocação das experiências cotidianas, buscam ser fiéis à ideologia da certeza, que, além de ser típica do discurso escolar, constitui um terreno mais conhecido por eles do que o campo da generalização e, por isso, um caminho possível de ser trilhado para a conquista da inclusão no jogo discursivo promovido pela escola. Ao se valerem da validação empírica como um procedimento que atestará a exatidão da resposta ("Vamos ter que medir a abelha, então.", "Vou matar a abelha e vou trazer."), Adriana e Clarice, por exemplo, parecem ter a intenção de mostrar à sua interlocutora principal - a professora - que estão cientes do lugar privilegiado que o resultado único ocupa no espaço escolar e sabem como encontrá-lo. Do mesmo modo, Milton se engaja na discussão sobre a medida das portas de uma casa, estabelecendo que tal medida não admite um resultado aproximado, generalizável para todas as portas da casa (o tamanho padrão), mas demanda a produção de uma resposta específica e exata: "Da casa é 70, do banheiro é 60". Ao assumirem tais posições, os estudantes visam a garantir - e obtêm sucesso nisso - a participação qualificada naquela situação de ensino e aprendizagem, como sujeitos de conhecimento que mobilizam experiências e julgamentos na cena educativa.

Além disso, a tarefa de generalização parece ser difícil de ser justificada para estudantes que, tendo construído certa expertise em relação à medição em situações cotidianas e contextuais, não veem por que dela abrir mão na negociação de sentidos que se instaura nessa interação. Enquanto a professora se ancora em uma leitura escolar do enunciado ("O comprimento de uma garagem é aproximadamente..."), que prevê para a questão uma resposta geral, independente de contextos particulares, os alunos leem essa mesma consigna baseados em outras experiências sociais, que admitem e demandam uma medida específica para cada situação: "Que tamanho de carro você quer?". Esses sujeitos, além de questionarem a ingenuidade da prática didática em presumir que a experiência cotidiana poderia se enquadrar à intenção pedagógica da questão, levam-nos a colocar sob suspeição a crença escolar de que "os dados apresentados de maneira explícita e a colocação da(s) pergunta(s) sejam suficientes para a interpretação - única - do texto do problema" (MENDES, 2001, p. 142). Com efeito, a professora confiou na eficiência do enunciado da questão para dirigir a pergunta ao ponto que lhe interessava contemplar (ordem de grandeza e a expressão de medidas no sistema decimal). Entretanto, podemos dizer, parafraseando Smolka (2000), que a necessidade da explicitação dessa intenção em vários momentos da interação ("Não... é o tamanho padrão."; "Não... é uma criança de altura média, gente."; "Eu falei uma laranja tamanho médio.") mostra que os estudantes foram afetados pela atividade de forma diferente daquela presumida quando de sua proposição e construíram maneiras de participação específicas, informadas por valores que, naquele empreendimento, segundo as intenções dessa proposição, não seriam relevantes.

Faria (2007), em sua pesquisa sobre as relações entre práticas de numeramento mobilizadas e constituídas nas interações entre os sujeitos da EJA, também flagra situações em que os estudantes oscilam entre proceder no sentido de aderir às intenções pedagógicas de uma atividade ou buscar referenciar seu posicionamento nas práticas cotidianas não formatadas pelo script escolar. A análise da autora sobre os comentários dos alunos diante de um problema escolar4 4 - Enunciado do problema: "O medicamento Tropinal é vendido em caixas contendo vinte comprimidos. Com a prescrição de dois comprimidos, três vezes ao dia, por sete dias, quantas caixas serão necessárias?" (FARIA, 2007, p. 182). que os havia remetido a uma prática cotidiana - aquisição de medicamento para atender à dosagem prescrita pelo médico - mostra que a diversidade de possibilidades oferecidas pelos recursos efetivamente mobilizados na vida social - pegar o remédio no posto de saúde, comprar picado, deixar de tomar a última dose etc. - fragiliza a perspectiva da solução geral prevista pela atividade escolar.

O questionamento expresso no redirecionamento que os alunos parecem querer dar à intenção da atividade nos ajuda, portanto, a refletir sobre o ensino e a aprendizagem da matemática na escola e sobre a importância de identificar os valores que os envolvem. Ao analisar o processo pedagógico de um curso de magistério para trabalhadores rurais do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em que também atuava como docente, Gelsa Knijnik (2006) relata-nos um evento em que os alunos e as alunas confrontam os métodos de cubação da terra utilizados no assentamento com o modo de calcular a área de um terreno apresentado pela matemática dos livros. A autora, em vez de conferir a essa questão um tratamento restrito à análise dos aspectos técnicos que informam o conhecimento popular e o acadêmico, proporciona aos estudantes uma reflexão sobre os valores, as estratégias e as concepções envolvidas em cada saber:

Os métodos populares de cubação da terra precisavam ser analisados no contexto onde eram produzidos, no qual tinham seu significado. Não havia lugar para uma matemática asséptica, neutra, desvinculada de como as pessoas a usam. (KNIJNIK, 2006, p. 76)

Ao final do curso, muitos alunos concluíram que, se, por um lado, o saber aprendido na comunidade era mais prático e, em se tratando de superfícies quadradas ou quase quadradas, produzia resultados muito próximos aos da matemática dos livros, por outro, os métodos da matemática acadêmica também deveriam "ser ensinados para as crianças e pessoas adultas, pela precisão que produzem, quando as terras são mais compridas" (KNIJNIK, 2006, p. 94).

Apesar de, na interação analisada em nossa pesquisa, os valores em confronto serem outros - a generalização e a precisão -, interessa-nos destacar que, ao mobilizar uma estratégia política e pedagógica que procura explicitar a marca sociocultural dos diferentes modos de matematicar, Knijnik possibilita aos estudantes negociarem significados e compreenderem que tanto a matemática acadêmica como a matemática popular são maneiras culturais de conhecer matematicamente o mundo e lidar com ele, e conformam não só procedimentos e estratégias distintas, mas também valores diversos - precisão e pragmatismo, nesse caso, que subsidiam tomadas de decisão diferentes sobre o procedimento a ser adotado para cubar a terra e sobre a avaliação dos resultados.

A referência à análise empreendida por Knijnik e seus alunos reforça nosso argumento em defesa da potencialidade do conceito de práticas de numeramento também no campo pedagógico, quando se objetiva compreender os conhecimentos que os estudantes mobilizam para significarem as práticas letradas escolares: esse construto teórico nos permite reconhecer e levar em conta a dimensão sociocultural do fazer matemático, o qual deixa de ser

concebido como um conjunto de comportamentos observáveis em decorrência do domínio de certas habilidades e passa a ser analisado como prática social, marcada pelas contingências contextuais e por relações de poder. (FONSECA, 2009, p.53)

Voltando àquele primeiro episódio que expusemos para análise, cabe ainda nos determos na discussão gerada pelo último item do exercício proposto pela professora Márcia, que se referia ao perímetro da Terra, desconhecido pela maioria dos alunos. Na correção da atividade, a professora lhes pede que tentem pensar quantos quilômetros gastariam para completar uma volta ao redor da Terra. Ao contrário do que ocorreu nos outros itens, os estudantes se negaram a arriscar; e a professora, por sua vez, reconheceu a diferença da tarefa que propunha aos alunos em relação às tarefas anteriores:

Professora: Agora o negócio da Terra, que é difícil, né, gente? Porque nenhum de nós tem essa vivência. Porque tudo que sai da vivência fica muito complicado. Agora dá pra a gente imaginar... Bom, aí quais foram os números que vocês colocaram?

Neuza: 400 quilômetros.

Clarice: Eu não coloquei nada porque eu não faço ideia.

Professora: Quem colocou outra coisa? A Terra, para viajar em volta da Terra?

Clarice: Ô Márcia, eu imagino que sejam milhões de quilômetros, mas eu não tenho ideia nenhuma, nenhuma.

Professora: Ela acha que é milhões de quilômetros.

Luzia: Eu coloquei quatro.

Professora: Quatro o quê?

Luzia: Milhões.

Professora: Ô Silvia, o que você colocou?

Silvia: Eu não coloquei nada.

Professora: Ô gente, por que vocês têm medo de arriscar? Que bobagem! Não vai acontecer nada não.

Clarice: Não vai nem doer.

Professora: Você não colocou nada também? Ô Milton, você é um exemplo que eu dou.

Silvia: Você devia dar uns exemplos também, né?

Alunos: [Risos]

Professora: E você?

Aluno: Eu não coloquei nada.

Aluna: Eu não fiz nada

Professora: Tá vendo, gente. O negócio fica difícil demais de a gente imaginar, fica complicado, né?

Apesar de a consigna do item ter a mesma estrutura que a dos itens anteriores, a professora reconhece e confessa que, dessa vez, não seria possível referenciar a ordem de grandeza na experiência dos alunos: "Agora o negócio da Terra, que é difícil, né gente? Porque nenhum de nós tem essa vivência. Porque tudo que sai da vivência fica muito complicado". Se, nas situações anteriores, o conhecimento dos objetos a serem medidos sustentou a posição de questionamento assumida pelos estudantes, quando a tarefa demandou uma resposta para cuja produção eles não poderiam referendar-se na experiência, a maioria preferiu ter mais cautela em arriscar uma hipótese: "Eu não coloquei nada porque eu não faço ideia".

Ao que parece, se todos os itens da atividade remetessem a situações não familiares, talvez a intenção de identificar as ordens de grandezas ficasse mais explícita, pois seria um caminho bastante plausível para a resolução da tarefa a produção de respostas gerais, como atestam as soluções propostas pelos alunos: "Eu imagino que sejam milhões de quilômetros". Todavia, uma proposta didática que se valesse de situações e práticas não conhecidas pelos estudantes poderia inibir sua participação, como de fato ocorreu no último item da tarefa: "Eu não coloquei nada porque eu não faço ideia". Nesse item, a situação escolar conformada por indagações que ainda não se lhes tinham apresentado não favoreceu a constituição de redes de significação (CHARLOT, 2000) a partir de questões que aquelas alunas e aqueles alunos adultos já pudessem ter se colocado em relação às práticas de medir.

Também essa interação nos indica as múltiplas pressões que conformam as situações de ensino e aprendizagem da matemática - e de outros conhecimentos na escola - e reafirmam a complexidade das relações entre os conhecimentos escolares e cotidianos. Nem a consideração, a priori, de que os conhecimentos escolares são constituídos por valores que se opõem aos saberes cotidianos, e nem a de que esses últimos constituem pré-requisitos ao desenvolvimento das práticas escolares e, por isso, sempre auxiliarão em seu aprendizado são confirmadas no episódio analisado. O que esse e vários outros episódios que testemunhamos no trabalho de campo, que vivenciamos como educadoras ou que vimos narrados na literatura ou na crônica escolar parecem indicar é que os modos pelos quais tais conhecimentos irão se configurar e se relacionar são condicionados pelo diálogo que os sujeitos estabelecem entre si - confrontando conhecimentos, intenções e valores, considerando a compreensão da situação escolar vivenciada, os significados construídos em outras experiências sociais e as posições que pretendem ou podem assumir na interação.

Considerações finais

O episódio analisado aqui e outros sobre os quais nos debruçamos ao longo de nossa investigação nos sugerem que os processos de apropriação de práticas de numeramento escolar não se restringem a uma dimensão técnica, mas estão relacionados também às maneiras de os sujeitos se apropriarem dos valores a elas vinculados. Bishop (1994), em seu estudo sobre as matemáticas em diferentes culturas, ressalta os valores como aspecto determinante nos modos de os sujeitos se relacionarem com o mundo e demarca que o ensino dos conteúdos escolares lida, fundamentalmente, com os diversos valores associados ao conhecimento. Bishop cita Kroeber e Kluckhohn (1952), para quem

os valores proporcionam a única base para uma compreensão totalmente inteligível da cultura, porque a verdadeira organização de todas as culturas se dá, fundamentalmente, em função de seus valores.

4

(p.340 apud BISHOP, 1994, p. 61, tradução nossa)

É essa compreensão do quanto a apropriação de valores define a apropriação das práticas de uma cultura que leva Bishop (1994) a conclamar educadores a procurar "conhecer a fundo os valores das matemáticas" para o cumprimento de seu papel de "enculturadores". O autor nos adverte quanto aos riscos de

deixar-se absorver totalmente pelos aspectos simbólicos e de manipulação da matemática através do currículo dirigido ao ensino de técnicas, ignorando, assim, os valores por completo.

5

(BISHOP, 1994, p.61, tradução nossa)

Com efeito, ainda que negligenciemos uma reflexão sobre os valores que se veiculam quando propomos a adoção de procedimentos, conceitos e representações matemáticas, "certamente, os ensinamos, de maneira inconsciente e implícita e - o que é mais preocupante para a educação - nada crítica"6 (BISHOP, 1994, p.61, tradução nossa).

Entretanto, se, por um lado, é fundamental a percepção de que os valores são constituintes das práticas de numeramento mobilizadas tanto pela professora, na proposição e no "desenvolvimento das atividades de matemática, quanto pelos estudantes, quando buscam construir sentidos para as práticas de letramento escolares, por outro lado, é igualmente importante ressaltar que esses valores estão em disputa no jogo discursivo escolar e que os sujeitos não se assumem, em todas as circunstâncias, como partidários de uma mesma posição.

O que tentamos destacar nas interações que analisamos foi que os enunciados assumidos por aquelas mulheres e aqueles homens, estudantes e professora da EJA, "refletem experiências de diversos tipos, tanto pelo seu conteúdo como pela sua interdependência dialógica com outros enunciados que o precedem" (RAMÍREZ; WERTSCH, 1998, p. 208). Desse modo, por meio da mediação decisiva da instituição escolar, alunos e alunas da EJA alternam pragmaticamente os argumentos que mobilizam e as posições que assumem: ora se solidarizam com o modo de conhecer proposto pela escola - colocando-se como sujeitos que desejam dominar esse modo de usar a matemática escolar e os valores a ele associados -, ora questionam a abordagem escolar - e se posicionam como sujeitos que construíram outro modo de usar matemática, composto por outros valores, outras concepções e outra relação com o mundo. Essa atividade discursiva que ecoa discursos já proferidos e cultiva propósitos futuros organiza e justifica a ação presente: não só estabelece os modos de apropriação das práticas de letramento (entre elas, as de numeramento) que ali circulam e se reconstituem, mas define aquelas mulheres e aqueles homens como sujeitos de aprendizagem.

Recebido em: 13.04.2013

Aprovado em: 14.08.2013

Maria da Conceição Ferreira Reis Fonseca é licenciada em Matemática, mestre em Educação Matemática, doutora em Educação, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora do Programa de Educação Básica de Jovens e Adultos daquela universidade.

Fernanda Maurício Simões é licenciada em Pedagogia, mestre em Educação e professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte.

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  • 1
    - A pesquisa que subsidia este artigo conta com o apoio do CNPq.
  • 2
    - Utilizamos aqui os nomes reais dos sujeitos, que autorizaram (e mesmo reivindicaram) sua divulgação.
  • 3
    - "We are well aware [...] that mathematics is concerned with abstractions and at school level there is a great deal of effort put into "abstract thought" as it is often called.
  • 4
    - Enunciado do problema: "O medicamento Tropinal é vendido em caixas contendo vinte comprimidos. Com a prescrição de dois comprimidos, três vezes ao dia, por sete dias, quantas caixas serão necessárias?" (FARIA, 2007, p. 182).
  • 5
    - "Values provide the only basis for the fully intelligible comprehension of culture, because the actual organization of all culture is primarily in terms of their values."
  • 6
    - "[...] to become totally engrossed in the symbolic and manipulative aspects of mathematics through the technique curriculum, and thereby ignore values entirely."
  • 7
    - "[...] we do teach them, unconsciously, implicitly and, of greater concern for education, uncritically.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      Jun 2014

    Histórico

    • Aceito
      14 Ago 2013
    • Recebido
      13 Abr 2013
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