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O Ato, a performance e a formação: tempos e processos de si na docência

The Act, the performance and the formation: times and processes of self in teaching

RESUMO

O presente artigo trata da análise e discussão de processo artístico cênico denominado Ato Híbrido. Essa prática foi elaborada e desenvolvida no âmbito do Curso de Formação de Professores de Teatro na Universidade e publicada em forma de artigo nos Anais do Congresso da Abrace de 2017. Discute-se a relação do Ato como formação e as aproximações deste com a Performance e com a Educação. Destaca-se o caráter de invenção do processo formativo e o conceito de cuidado de si como dispositivo de reflexão no campo da formação de docentes. Autores como Kastrup, Icle, Guattari & Rolnik, são referências teóricas utilizadas como aporte para as discussões.

Palavras-chave:
Formação; Performance; Ato; Invenção; Cuidado de si.

ABSTRACT

This article is about the analysis and discussion of the scenic artistic process called the Hybrid Act. This practice was elaborated and developed as part of the Theater Teacher Training Course at the University and published as an article in the Annals of the Abrace Congress of 2017. It discusses the relation between the Act as a formation and its approximation with Performance and with Education. Emphasis is placed on the inventive character of the training process and the concept of self care as a reflection device in the field of teacher training. Authors such as Kastrup, Icle, Guattari & Rolnik, are theoretical references used as support for the discussions.

Keywords:
Formation; Performance; Act; Invention; Self care.

Introdução

Traçar os objetivos deste artigo me parece tarefa extremamente árdua. Eu me surpreendo entre margens fluidas e arrisco apresentar ao leitor o terreno movediço em que me lanço. Se por um lado, o diálogo com a teoria impulsiona reflexões e me obriga a encarar constantes desconfortos, provocando outros olhares para a prática docente na universidade, por outro lado, o caráter privado do fenômeno no qual me debruço, como ponto de partida para tecer esta trama, apresenta armadilhas em cada encruzilhada. A imagem dos cruzamentos nas vias me favorece, no sentido em que são espaços de atenção. Em tais espaços, há sempre um perigo iminente que se apresenta em potencial, no entanto, só se concretiza na atualização de seu ato. Em outras palavras, há sempre a possibilidade de, ao destacar aspectos extremamente íntimos como fonte de argumentação, que seja desconsiderado o rigor científico necessário para analisar as implicações da pessoa envolvida em tal processo. Principalmente quando tal fenômeno se refere a vivências da própria autora que o discute. Considerando tais desafios, ressalto como ponto principal, mas não exclusivo, de discussão, o registro de meu processo de criação e apresentação de um Ato Espetacular realizado como parte de uma atividade de ensino no âmbito do curso de teatro na universidade.

Este artigo se desdobra da seguinte maneira: a princípio, destaco inquietações suscitadas em pesquisas anteriores (LOBO, 2010LOBO, A. M. F. Experiência e Formação: o fazer teatral nas trajetórias docentes. 2010. Tese (Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2010.) e retomadas num diálogo com outros autores (TARDIF, 2002TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 7. ed. Petrópolis: Vozes , 2002.; REICH, 1995REICH, W. A peste emocional. In: REICH, W. Análise do caráter. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 461-491.; ROLNIK, 2005ROLNIK, S. Toxicômanos de Identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, D. (Org.). Cultura e Subjetividade: saberes nômades. 4. ed. Campinas: Papirus, 2005. p. 19-24.). Em outro momento, discuto aspectos elencados do texto: Atos Híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade. Esse texto se encontra publicado nos Anais da ABRACE de 2017 (LOBO, 2016LOBO, A. M. F. Atos híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade. In: MEMÓRIA ABRACE XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 9., Uberlândia (MG) UFU, 2016. Anais... Uberlândia, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE >. Acesso em: 10 set. 2017.
https://www.even3.com.br/anais/IXCongres...
, p. 1832).1 1 Este texto diz respeito ao artigo/comunicação da autora, intitulado: Atos Híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade, publicado nos Anais do IX Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, ABRACE. Realizado em 2016 na cidade de Uberlândia/ MG. As referências completas constam das referências bibliográficas ao final deste artigo.

Cabe registrar o risco que corro na irreverência de esfacelar o referido texto. Não se trata, contudo, de uma autopsia realizada num corpo morto, disposto diante dos olhares de uma arqueologia forense que procura pistas para atualizar o fato. Até porque, me permito desconsiderar o que não serve para a construção de minhas reflexões, deixando passar o que se destaca em primeiro plano e valorizando os “restos”, o que se encaixa para a montagem de formas de pensamento que me permita um deslocamento de um certo lugar de conforto. O esfacelamento que procuro é a potência dos pedaços que se desdobram em outros pedaços, sobras que se reconstroem em outras faces, provocam outras visualidades, outras esculturas.

Dessa forma, destaco apenas a descrição do primeiro ato como fonte de análise. O registro desse ato se apresenta como objeto estético combustível também para a invenção de outros pensamentos da docência nos cursos de teatro. Olhares desconfiados para os espaços de sala de aula, para o “ensinar a ensinar teatro”, para os procedimentos e avaliações, lugares instituídos para aquele que é “mestre” e para aquele que “ignora”. Numa outra face, discuto sobre a formação e o ato híbrido como discursos que se inscrevem em contextos institucionais e problematizo aproximações entre a Educação e a performance (ICLE, 2010aICLE, G. Para apresentar a performance à educação. Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 11-21, 2010a.).

Por fim, tomo como referência as reflexões sobre os cuidados de si para pensar a respeito do trabalho docente na universidade e evidencio a possibilidade inventiva dos processos de formação em teatro, (KASTRUP, 2007KASTRUP, V. Introdução. In: KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. (Educação: Experiência e Sentido).; ICLE, 2010bICLE, G. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Hucitec, 2010b. (Pedagogia do Teatro 8).).

Trata-se, portanto, de um esforço em desenhar espaços do pensar, inventando pontos de atenção nesses cruzamentos, em que, o tempo e a distância do fato são dispositivos de produção de saber. Tempo que me atravessa e acarreta o apaziguamento dos processos que me afetam como pessoa, como artista e como docente.

Não oculto a possibilidade da presença de colisões neste exercício reflexivo, pelo contrário, procuro desnudá-las, numa exposição constante, não de minhas certezas, mas de minhas questões, do meu desejo de saber o mundo e de revelar aquilo que também me constitui, tanto em fragilidades como em resistências, em seus diversos devires; seja como mulher, atriz, pesquisadora e docente, no campo escorregadio da formação de professores e professoras de teatro na universidade.

Deslocamentos do feminino

No ano de 2010, realizei pesquisa de doutorado sobre as trajetórias de professoras que ensinavam arte na escola e sua experiência com o teatro. A discussão girava em torno da formação. Destacava-se a experiência com o teatro no contexto familiar, escolar e acadêmico e as repercussões dessa experiência nas aulas de arte ministradas nas escolas (LOBO, 2010LOBO, A. M. F. Experiência e Formação: o fazer teatral nas trajetórias docentes. 2010. Tese (Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2010.).

Muitas das inquietações que me impulsionaram durante a realização desse trabalho não se encerraram ao seu final. Estudos nesse campo problematizam os saberes docentes para além da formação exclusiva na escola ou na universidade (TARDIF, 2002TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 7. ed. Petrópolis: Vozes , 2002.; TARDIF, LESSARD, 2007TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. 3. ed. Petrópolis: Vozes , 2007.). A perspectiva de como a docência se constrói no decorrer do tempo e do espaço, não se limitando exclusivamente aos campos escolarizados e nem entre o tempo de início e de término da formação universitária, tem sido amplamente debatida nas últimas décadas. No entanto, tal debate não aponta, logicamente, para resoluções simples e receitas mágicas de como tornar a formação de professores e professoras na universidade, tarefa menos complexa.

Tal aspecto toma um caráter muito singular quando se trata daquele que tem a incumbência de formar professores de teatro em uma instituição universitária. Em outras palavras, trata-se do artista, do docente e do pesquisador de teatro no campo acadêmico. A própria ordem dos termos parece provocar intensas reflexões sobre quais os critérios de importância devem determinar quem vem primeiro, isto é, seria o docente? O artista? O pesquisador? Qual a relevância da separação dos “papéis”? Ou melhor, é possível tal separação? É concebível despir-se de uma multiplicidade de roupas e depositá-las em cabides antes de entrar nas diversas salas de trabalho? O que aproxima essas múltiplas caracterizações? Como “ajeitar” os afetos, os desejos que transbordam nos processos de formação do outro? Onde esconder o “resto”, o que “sobra”, o que não agrada e não cabe nos espaços escolarizados/acadêmicos? Quais os impactos dos processos de institucionalização do teatro na universidade e por quais caminhos permito-me traçar essas práticas, num universo em que, a peste emocional parece andar à espreita”?

A expressão “peste emocional” não é depreciativa. Não tem uma conotação de má-vontade consciente, degeneração moral ou biológica, imoralidade etc. Um organismo cuja mobilidade natural foi continuamente dificultada, desde o berço, desenvolve formas artificiais de movimento. Coxeia ou anda de muletas. Do mesmo modo, um homem atravessa a vida com as muletas da peste emocional quando as expressões autorreguladoras naturais da vida são suprimidas desde o nascimento.[...] De vez em quando, ela se transforma em epidemia, como qualquer outra doença contagiosa, como a peste bubônica ou a cólera. Explosões epidêmicas da peste emocional manifestam-se em irrupções violentas e disseminadas de sadismo e criminalidade, em pequena e grande escala. A Inquisição católica da Idade Média foi uma dessas explosões epidêmicas; o fascismo internacional do século XX é outra. (REICH, 1995REICH, W. A peste emocional. In: REICH, W. Análise do caráter. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 461-491., p. 461).

Neste ponto, permito-me mais uma irreverência e tomo a liberdade de convidar o leitor para utilizar o conceito reichiano de peste emocional como catalizador de ideias, não só sobre os perigos que assombram os espaços institucionalizados de formação, mas também como mote para pensar a atual conjuntura política e cultural do Brasil. No entanto, ao mesmo tempo percebo que, tal esforço, extremamente necessário, diga-se de passagem, se torna missão por demais ambiciosa para este artigo.

Volto então para a despretensiosa, porém não menos complexa tarefa de rascunhar os movimentos que compõem a temática geral sobre a formação no campo acadêmico, considerando, contudo, a premência de chegar às delimitações necessárias para o desenvolvimento de minhas reflexões.

Assim, nesses deslocamentos de tempo e de lugar, em que, de um olhar para as professoras da educação básica me movo na direção dos processos de minha própria prática como docente na universidade, não abandono a familiaridade que nos aproxima, eu e as professoras. Aproximações no ato da docência, em nossa condição também de mulher, de filha, de mãe, de atriz. E são nos cruzamentos desses devires que engendro práticas de resistência e “residência” momentânea nos campos ruidosos da formação.

Os entroncamentos políticos, artísticos e institucionais me impelem a produções outras que, de certa maneira, permitem afirmar a vida pulsante como projeto estético, político e ético; como prática de formação e elemento de transformação. Tais atravessamentos processam as diversas formas de existir, constituem também saberes coletivos, que instigam e inquietam o conforto transitório dos que julgam pertencer a uma categoria identitária “estável”, consolidada nos muros de pedra do saber profissional. Saber que quer se afirmar ilusoriamente identitário, isto é, do “mestre” que sabe e do “discípulo” que ignora.

Nesse sentido, produzem-se efeitos de distinção que se traduzem como engessamentos de práticas e aprisionamento de conceitos. Definem-se os espaços legítimos em que cada um deve atuar, regulando os comportamentos aceitáveis no campo acadêmico, seja para o artista, para o pesquisador, para o docente ou para o discente. A normatização se camufla em discursos que emergem nos contextos em que os processos de singularização encontram ampla resistência. Sueli Rolnik, em seu texto Toxicômanos de Identidade: subjetividade em tempo de globalização, discute sobre os perigos de se prender às referências identitárias como forma de demarcar espaços políticos de resistência. Esses movimentos podem produzir outros efeitos, camuflando resistências à transformação do que está instituído como verdade, ou seja, verdades sobre a mulher; o negro; o homossexual; o professor; o ator, etc. Argumenta Rolnik:

O que se coloca para as subjetividades hoje não é a defesa de identidades locais contra identidades globais, nem tampouco da identidade em geral contra a pulverização; é a própria referência identitária que deve ser combatida, não em nome da pulverização (o fascínio niilista pelo caos), mas para dar lugar aos processos de singularização, de criação existencial, movidos pelo vento dos acontecimentos. Recolocado o problema nesses termos, reivindicar identidade pode ter o sentido conservador de resistência a embarcar em tais processos. (ROLNIK, 2005ROLNIK, S. Toxicômanos de Identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, D. (Org.). Cultura e Subjetividade: saberes nômades. 4. ed. Campinas: Papirus, 2005. p. 19-24., p. 23)

Infere-se que, se por um lado as reivindicações desses movimentos são necessárias e legítimas, por outro lado, considerar o apego às formas de existência que nos identifiquem de modo fixo a determinados territórios, não se configura como solução eficaz para a transformação de tais realidades. Para Rolnik, o problema encontra-se no campo das subjetividades e a invocação de identidade, dificulta, dessa forma, a emergência dos processos de singularização (ROLNIK, 2005ROLNIK, S. Toxicômanos de Identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, D. (Org.). Cultura e Subjetividade: saberes nômades. 4. ed. Campinas: Papirus, 2005. p. 19-24., p. 24).

A imprevisibilidade como processo de formação

Etimologicamente, singularizar significa fazer exceção, em parte essa referência auxilia na compreensão dos processos de singularização. Trata-se a princípio, da possibilidade de se produzir algo diferente, singular, excêntrico do que é engendrado pelos sistemas homogeneizantes. No entanto, não significa a produção de uma relação social caótica, mas sim de uma outra relação que fuja a esses processos que funcionam como reguladores e fabricantes de “verdades” sobre a maneira das pessoas existirem no mundo. Os sistemas homogeneizantes são materializados em discursos constituídos nas instâncias visíveis da sociedade, nas dimensões instituídas, naturalizam-se como processos orgânicos que atravessam as práticas sociais dos indivíduos, tais como: a maneira correta de “ensinar” teatro; os procedimentos legitimados pedagogicamente no campo acadêmico; as distinções de identidade no âmbito profissional, etc.

Nessa perspectiva, não se trata simplesmente da exceção ou do singular como inovação, mas de movimentos que se insinuam nas brechas, nos espaços da contramão a uma determinada lógica instituída. Tais deslocamentos geram incômodo, resistências iniciais, estranhamentos e emergem em espaços com mobilidade, espaços fluidos, em nível micropolítico. Esse processo de fuga, em que não só os indivíduos, mas também os grupos sociais escapam às produções serializantes, são chamados de “processos de singularização” (GUATTARI; ROLNIK, 1999GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Subjetividade e história. In: GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 17).

Aquilo que eu chamo de processos de singularização- poder simplesmente viver, sobreviver num determinado lugar, num determinado momento, ser a gente mesmo - não tem nada a ver com identidade (coisas do tipo: meu nome é Félix Guattari e estou aqui). Tem a ver, sim, com a maneira como, em princípio todos os elementos que constituem o ego funcionam e se articulam; ou seja, - a maneira como a gente sente, como a gente respira, como a gente tem ou não vontade de falar, de estar aqui ou de ir embora... (GUATTARI; ROLNIK, 1999GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Subjetividade e história. In: GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 69).

Dessa forma, em certas condições e contextos institucionais, a vida resiste e teima em esparramar suas marcas, as identidades “supostamente coladas” se desprendem revelando o humano e, portanto, o múltiplo. Percebe-se, a inexorável demanda do ambiente e nesse contato constroem-se atitudes, invenções de si ao mesmo tempo em que se inventam também mundos, maneiras de existir nos espaços. Foi na emergência de outras formas de se “estar” docente que se constituiu o gesto, um ato, o ato híbrido.

A criação do Ato surgiu a partir das instabilidades e medos desta pesquisadora docente frente à possibilidade da morte de seu pai. Tais sentimentos se materializaram na elaboração de uma cena que foi compartilhada entre os discentes e docentes do Curso de Licenciatura em Teatro, espaço de atuação da pesquisadora que, na ocasião, lecionava sobre performance e espetacularidade, em um componente curricular teórico. (LOBO, 2016LOBO, A. M. F. Atos híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade. In: MEMÓRIA ABRACE XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 9., Uberlândia (MG) UFU, 2016. Anais... Uberlândia, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE >. Acesso em: 10 set. 2017.
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, p. 1834).

Destaca-se o elemento gerador para o processo de criação do ato, o medo da morte do outro e, por conseguinte, também, o medo do próprio aniquilamento, um aniquilamento simbólico, luto de uma parte de si, tendo em vista a relação parental existente.

Num outro ponto do texto descrevem-se as ações apartadas do tempo e do lugar da apresentação do ato como espetáculo, lugar de realização e culminância do processo. Essas ações fazem parte do processo de elaboração do ato, porém, não se caracterizam como ensaios, no sentido de repetição de gestos, experimentos que poderiam ser desenvolvidos e apresentados num tempo futuro. Mesmo assim, considera-se essa etapa como exercício, como alimento para a construção do ato.

Na primeira etapa do exercício/pesquisa de si, realizou-se a troca de afetos sobre o medo da morte, por meio de encontros com pessoas que pertenciam ao quadro da universidade e que haviam passado por situações similares, ou seja, a perda de um ente próximo ou a vivência de situações em que a vida estivesse em risco. Essa prática oportunizou, mesmo de forma imediata, outro tipo de contato entre as pessoas na Instituição. (LOBO, 2016, p. 1834LOBO, A. M. F. Atos híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade. In: MEMÓRIA ABRACE XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 9., Uberlândia (MG) UFU, 2016. Anais... Uberlândia, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE >. Acesso em: 10 set. 2017.
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).

Amplia-se o contato entre as pessoas por meio de uma ação cotidiana: contar uma determinada situação pessoal. Percebe-se a resposta imediata daqueles que mantêm alguma ligação com o fato apresentado, com a temática em questão, isto é, com a morte de uma figura parental ou com o temor da morte. O próprio tema democratiza as relações e facilita aproximações diferentes no âmbito institucional. A familiaridade com o fato narrado aproxima e remete a um tempo que se atualiza no compartilhamento de palavras/afetos; palavras/corpo. Aquela que descreve a situação vivenciada convida o outro a uma comunhão de recordações, memórias que se tornam coletivas. Essa troca se processa num campo em que ocorrem fluxos e afetos, a elaboração do fato vivido se torna possível por meio do gesto de repetição da história. Em cada encontro, o medo da perda dilui-se na atitude de se contar a mesma situação. Remete-se a um campo entre a realidade e a ficção, um lugar de trânsito.

Os distanciamentos acontecem nas diferenças; entre as histórias daqueles que aceitam o convite e escutam e daquele que conta. Em outras palavras, aceita-se por meio da escuta uma história que não lhe pertence, a história do outro. As aproximações ocorrem nos entrelaçamentos que promovem aprendizagens, ou seja, a história de si que se compartilha com o outro transforma-se em comunhão. O contato desconstrói relações instituídas no território do cotidiano acadêmico e provoca um reajuste na maneira de lidar com o fato inevitável da morte.

O caráter privado como fonte de criação do objeto artístico transforma-se, revelando, aos poucos, as condições de emergência da apresentação pública do objeto cênico. Mas do que se trata o ato afinal? Quais de seus contornos esbarram nas definições da performance? Qual o caráter híbrido dessa prática?

Seleciono para a problematização do Ato o diálogo como conceito de “acontecimento” descrito por Patrice Pavis em sua obra Dicionário de teatro. O autor argumenta que o acontecimento se caracteriza por considerar o aspecto da “troca entre o ator e o espectador” em sua dimensão da realidade da “prática artística”. Nesse sentido, o “aspecto ficcional” no que tange à fábula, não é considerado como destaque (PAVIS, 2001PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001., p. 6).

A perspectiva do acontecimento dispõe o ato na prática do encontro, na relação direta entre o ator como elemento fundamental da prática artística e aquele que se apresenta como o outro da escuta, o espectador. A categoria tempo também é fundamental nesse entendimento, tendo em vista que, o processo ocorre no aqui e agora, no tempo presente mediado pelos corpos que se apresentam. São participantes de uma espécie de jogo. O jogo estabelece-se não só na cena em si, mas como diz Grotowski, citado por Pavis, o jogo do encontro: "A essência do teatro não se acha nem na narração de um acontecimento, nem na representação da vida cotidiana, nem mesmo numa visão [...] O teatro é um ato realizado aqui e agora no organismo dos atores, diante de outros homens.” (GROTOWSKI apud PAVIS, 2001PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001., p. 7).

Utilizo o conceito de “acontecimento” para discorrer não só sobre os aspectos que permeiam a apresentação do ato como espetáculo, mas também como dispositivo de reflexão sobre as ações que antecederam ao ato, tais como os encontros em que se compartilharam histórias. Nesse sentido, tais encontros também são considerados acontecimentos. Assim, o processo anterior à apresentação do ato, não se confunde com o objeto artístico apresentado na forma de “espetáculo”, porém se acopla a ele de maneira peculiar.

Para esclarecer esse mecanismo, reporto a imagem de um fio que se desenrola em várias direções, capturando-se em ganchos por onde passa, num desenho semelhante a uma teia de fluxos e de afetos que converge para um só ponto, para o ponto do momento da apresentação.

Dessa maneira, o ato não se restringe unicamente à situação de sua apresentação. O processo iniciado por meio do contato anterior, como preparação, remete à ideia de redes que se infiltram no tempo, ou seja, acontecimentos que se inscrevem entre o cotidiano e a ficção. A história é atualizada artisticamente, de outra maneira, num outro tempo e lugar. Ao mesmo tempo em que a ação possui uma dimensão cotidiana, ela também se constitui como parte do processo de criação.

Não posso deixar de considerar o contexto em que se move a prática do ato, um contexto pedagógico. Nesse sentido, tal manifestação encontra-se ligada a outros fios, que tecidos na trama de um componente curricular dialogam numa zona de trânsito entre o teatro e a formação de professores e professoras.

Assim, considera-se esse ato espetacular como um espaço de trânsito entre um ato artístico e uma prática educativa. Tais situações e saberes se constroem num campo de formação em que, os limites entre o que é e o que não é, quem somos e quem não somos, tornam-se extremamente efêmeros. As porosidades são flexíveis e permeáveis, assim como as possibilidades de apropriação dessa experiência estética/educativa, seja por parte de quem vê, seja por parte de quem é visto. Mas, até essa relação é discutível, pois, a ação é partilhada na medida em que, cada um se permite aceitar o convite, o risco. Nesse convite, na permuta das situações produzidas, as categorias de representação, realidade/ficção, estético/pedagógico, são repensadas, possibilitando problematizações necessárias, reinvenções urgentes. (LOBO, 2016LOBO, A. M. F. Atos híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade. In: MEMÓRIA ABRACE XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 9., Uberlândia (MG) UFU, 2016. Anais... Uberlândia, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE >. Acesso em: 10 set. 2017.
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, p. 1836).

Não pretendo localizar o ato híbrido num espaço fixo, julgando-o como um objeto distinto que se revela no enquadramento de determinadas manifestações artísticas ou pedagógicas. Portanto, não se trata de prendê-lo a conceitos fechados de teatro, aula espetáculo ou mesmo da Performance. De forma nenhuma, meu esforço dirige-se para esse fim. Contudo, não me privo do exercício intelectual de discutir as aproximações entre o ato híbrido e a Performance, construindo possibilidades de pensar também sua dimensão pedagógica. Dessa maneira, as reflexões teóricas de Gilberto Icle apresentando “a Performance à Educação”, me parecem promissoras para a continuidade das problematizações elaboradas neste artigo (ICLE, 2010aICLE, G. Para apresentar a performance à educação. Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 11-21, 2010a., p. 11).

O autor argumenta de forma esclarecedora a diversidade de práticas não só artísticas, mas principalmente humanas, que podem se enquadrar na ideia de performance. Nesse entendimento, ele amplia a concepção de performance acreditando nas contribuições valorosas que o estudo de suas manifestações pode oferecer para o campo da Educação. (ICLE, 2010aICLE, G. Para apresentar a performance à educação. Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 11-21, 2010a., p. 12).

O debate em torno da performance no campo da Educação, remete à compreensão da performance como “linguagem artística híbrida”, isto é, não pertencente apenas a uma forma artística específica em detrimento de outra.

A dimensão híbrida apontada por Icle diz respeito à fragilidade das fronteiras entre as diversas formas artísticas presentes na Performance, tais como: a dança, a música, as artes visuais, etc. “De todas as suas acepções, a Performance como linguagem artística híbrida, confluída nas fronteiras entre teatro, dança, música, artes visuais, ritual, experimento, acontecimento e, sobretudo, intervenção, parece aduzir a face mais reconhecível do que chamamos de Performance” (ICLE, 2010, p. 13). Tal “face mais reconhecível” inscreve-se no plano das visibilidades. Talvez, nesse referencial, o ato híbrido realmente se aproxime de forma mais restrita ao que o autor denomina “Performance”, tendo em vista que, a apresentação do ato como objeto estético revela diferentes formas de expressão artística:

[...] o Ato se constituiu na montagem da instalação no espaço institucional, o pátio interno do curso de teatro. O cenário organizou-se da seguinte maneira: os sete volumes dos livros de história, foram encapsulados individualmente em bolsas de plástico transparente com água e pendurados aleatoriamente com barbante, nas estruturas do teto do pátio. O piso foi forrado com plásticos, também transparentes, em toda a extensão em que ocorreu a ação. Ocupando o centro da cena, um pequeno banco de cor branca, sobre ele acomodou-se um vaso de cristal transparente, ao lado do vaso, na beirada do banco, espremido entre a ponta do vaso e a borda do pequeno móvel, postou-se um peso de papel de vidro, redondo em tom verde. [...], de pé diante do público, uma discente/atriz trajava um figurino branco e cantava à capela, um trecho do réquiem de Mozart. [...], por detrás da porta da sala de aula, surgiu em passos lentos e numa espécie de torpor, também vestindo um figurino branco, a atriz/ performer/pesquisadora que caminhou lenta e cuidadosamente sobre o piso, como se lhe faltasse o equilíbrio necessário para a finalização de seu pequeno deslocamento. [...] Após a leitura, o papel, rasgado em pequenos pedaços, se transformou em conteúdo do vaso de cristal. Em seguida, a atriz colocou um pequeno pedaço de papel na boca e o mastigou, digerindo as palavras. Ao final da apresentação, os pequenos papéis, que estavam dentro do jarro, foram distribuídos a todos os espectadores. (LOBO, 2016LOBO, A. M. F. Atos híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade. In: MEMÓRIA ABRACE XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 9., Uberlândia (MG) UFU, 2016. Anais... Uberlândia, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE >. Acesso em: 10 set. 2017.
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, p. 1837).

Nesse contexto, desenham-se trajetórias e estabelecem-se encontros com o campo educativo, com a formação. Não no sentido de atividades de ensino compreendidas estritamente como “aulas ilustrativas”. Em outras palavras, não se trata da exemplificação da teoria, atualizada na prática artística para o esclarecimento do estudante. Essas trajetórias se inscrevem em territórios das imprevisibilidades humanas, em suas mais diversas manifestações existenciais.

Temáticas aparentemente pertencentes ao âmbito privado se revelam mobilizadoras e se instalam provisoriamente no coletivo de processos artísticos e educativos, promovendo possibilidades de transformação de si e do outro.

Dessa forma, determinar um conceito único para explicar o ato híbrido e seus processos constitutivos, me parece menos relevante do que considerar as questões que se desenrolam ao seu redor. Questões que dizem respeito a seres humanos, seus encontros e desencontros, trafegando nas vias em que a arte e a vida se manifestam ricas em possibilidades de aprendizagem.

A compreensão do híbrido também é ampliada para a discussão das fragilidades das fronteiras em que se inscreve. Navega num campo conceitual considerando a junção de uma ou mais características de um objeto ou fenômeno. Distancia-se de referências puras, busca encontros com miscigenações, transgressões da pureza e da forma.

Não entendo o ato híbrido exclusivamente como um sinônimo de performance, mesmo a performance trazendo também uma perspectiva híbrida. Considero justamente na configuração do ato suas sobras, o que “transborda” para além de conceitos e procedimentos. Sua potência emerge tanto na impossibilidade de sua reprodução, quanto na possibilidade da promoção de práticas formativas pautadas nas condições de existência de seus participantes.

Assim, não se trata de considerar essa ou aquela manifestação artística como Performance, aula, aula-espetáculo ou mesmo teatro, mas talvez sejam justamente esses conceitos que não englobem mais as possíveis manifestações que ocorrem ou podem vir a ocorrer nos espaços de formação do professor e da professora de teatro na universidade.

Vale destacar a argumentação de Icle a respeito de Nicolas Evreinoff (em obra publicada nas primeiras décadas do século XX) sobre a diferenciação que, esse autor e teórico do teatro russo faz entre teatro e teatralidade:

Evreinoff diferencia o teatro da teatralidade, mostrando que, embora separados, espetáculo e vida ordinária constituem casos de teatralidade. Ele se ocupa em discutir com riqueza de exemplos essa teatralidade na vida dos animais e localiza certo instinto teatral na vontade de transformação do ser humano.

Na mesma direção, ele lembra a teatralização na brincadeira infantil e o caráter teatral da literatura, além de aproximar o crime e a transgressão à norma de sua respectiva teatralidade. Ao descrever toda a vida como teatral, Evreinoff sustenta a tese de que o cotidiano nada mais é do que um grau de teatralidade do qual o espetáculo teatral é seu extremo. (ICLE, 2010aICLE, G. Para apresentar a performance à educação. Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 11-21, 2010a., p. 13).

E o autor continua inferindo sobre as contribuições dessas ideias para a reflexão sobre o surgimento da performance anos depois:

Eis a inauguração de uma possibilidade potente. A performance poderá se insinuar nessa tese de Evreinoff algumas décadas mais tarde, quando outros campos associados estão também preparados a aceitar e, sobretudo, a poder formular o espaço no qual a Performance vai se circunscrever. Por isso, a emergência da performance como linguagem, da Arte da performance, não é solitária, tampouco um caso isolado do mundo das artes. (ICLE, 2010aICLE, G. Para apresentar a performance à educação. Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 11-21, 2010a., p. 13).

Descortina-se no texto de Icle os contornos em que o cenário da emergência da Performance vai se configurar, confirmando a potência de suas manifestações que, ainda hoje fazem parte das práticas artísticas de nosso tempo.

Inventar o mundo e cuidar de si

A partir da discussão que Virgínia Kastrup propõe em sua obra: A Invenção de Si e do Mundo, fruto de sua tese de doutorado, destaco alguns aspectos desse estudo como provocadores de outros olhares para a questão da formação. Trata-se de recortes teóricos que me impulsionam a lançar mão do que Kastrup vai nomear como “invenção” (KASTRUP, 2007KASTRUP, V. Introdução. In: KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. (Educação: Experiência e Sentido)., p. 17).

Esclareço que não pretendo estudar exaustivamente as problemáticas apontadas pela autora no campo da psicologia e dos estudos da criatividade, porém me atrevo a embarcar no convite de Deleuze “[...] Não há nenhuma questão de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades que convêm a você ou não, que passam ou não passam. [...]”, (DELEUZE apud GUATTARI; ROLNIK, 1999GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Subjetividade e história. In: GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999., p. 7). Nessa perspectiva, me aproprio das reflexões de Kastrup sobre a problemática da “cognição como invenção” na tentativa de deslocar determinados olhares sobre o território da formação (KASTRUP, 2007KASTRUP, V. Introdução. In: KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. (Educação: Experiência e Sentido)., p. 18).

A autora ressalta que, a perspectiva da psicologia em relação aos estudos da criatividade, posiciona a temática numa perspectiva técnica ou como ela mesmo descreve, “psicométrica”, isto é, a criatividade como efeito a ser medido em relação a capacidade do indivíduo em resolver problemas, situações, responder perguntas ou criar soluções inovadoras para a mesma questão (KASTRUP, 2007KASTRUP, V. Introdução. In: KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. (Educação: Experiência e Sentido)., p. 19).

A perspectiva de Kastrup nos remete a algo diferente e inquietante, porém vivo. Trata-se de apontarmos o olhar para a criação de perguntas que efetivamente não temos as respostas, um perguntar sobre o mundo que, nesse sentido não está “dado” e não se encontra à espera de ser “descoberto”. Trata-se de potencializar a capacidade de um saber/inventar o mundo a partir de si e das instabilidades provocadas pelo ambiente (KASTRUP, 2007KASTRUP, V. Introdução. In: KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. (Educação: Experiência e Sentido). p. 21).

Nessa perspectiva, evoco a imagem de processos de retroalimentação presentes na educação tradicional. Nessa operação, composta por entradas e saídas, a ênfase instala-se no controle das saídas, como num mecanismo em que as regulações se tornam dispositivos pedagógicos para mensurar a efetividade do processo de aprendizagem. Essa máquina do aprender gira em torno de si mesma, não permitindo a alternativa do desvio dos fluxos, das intensidades, para fora do sistema retroalimentador.

Esse sistema tem a função última de controle e remete a aparência de instrumentos de organização e administração da produtividade dos processos educativos.

A título de exemplo, cito os protocolos e procedimentos que se materializam como discursos legítimos de se aprender e de se “ensinar” o teatro. Ora, não desconsidero as significativas contribuições de procedimentos pedagógicos teatrais, exercícios cênicos e experimentos artísticos que habitam as práticas no campo da formação do professor e da professora de teatro. Não se trata da desqualificação dessas práticas, e sim da forma como tais procedimentos se instalam como discursos de verdade nos campos institucionais. Em última análise, trata-se por exemplo, de se valorizar a realização de determinados objetivos criados artificialmente por meio de exercícios de atuação em detrimento de questões que efetivamente traduzem as inquietações dos participantes.

A questão que se coloca é: como criar condições para a invenção de um ambiente em que, as instabilidades, as incertezas e os desconfortos possam ter morada como potência nos processos de formação de professores e professoras de teatro na universidade? Assim, quem sabe? Possam surgir saberes que se inscrevam na ignorância das respostas e não, na ausência das perguntas.

Num último fôlego me encaminho para a finalização temporária, mas não menos relevante, deste exercício de escrita. Nesta etapa destaco alguns aspectos das provocantes reflexões elaboradas por Gilberto Icle em sua obra: Pedagogia Teatral como Cuidado de Si.

Tal ousadia esbarra em limitações inerentes ao pouco espaço para o aprofundamento necessário à análise da obra, me impedindo, logicamente, de esgotá-la nas poucas linhas desse artigo.

Em seu livro, Icle desenvolve um produtivo diálogo entre a Pedagogia Teatral e o pensamento do filósofo francês Michel Foucault. Para tanto, evidencia as discussões produzidas por Foucault sobre o conceito de “cuidado de si” presentes na filosofia da Antiguidade. O autor utiliza o conceito discutido por Foucault para pensar de forma extremamente criativa sobre a Pedagogia Teatral. Além disso, Icle dialoga com Constantin Stanislavski e destaca as proposições éticas e estéticas do diretor russo tecendo aproximações com a problemática discutida por Foucault. (ICLE, 2010bICLE, G. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Hucitec, 2010b. (Pedagogia do Teatro 8)., p. 31).

Assim, saliento o olhar sobre o conceito de “si” tomando como referência a problematização que Icle desenvolve sobre a compreensão desse conceito, (ICLE, 2010bICLE, G. Pedagogia teatral como cuidado de si. São Paulo: Hucitec, 2010b. (Pedagogia do Teatro 8)., p. 33). Pensar em si não se refere a promoção de atitudes narcisistas e apartadas do outro. Trata-se de desenvolver táticas para lidar com o que há de humano em cada um, no encontro com o outro. Destaca-se dessa forma um ato coletivo, em que a relação se inscreve nesse cuidado de si em relação consigo, com o outro e com o ambiente.

Mas é justamente no campo da formação que o “si” se revela como potência de produção de saberes. Não de saberes narcísicos em atitudes descompromissadas com o outro, e sim, na construção de processos coletivos e solidários de saber o mundo, de aprender e produzir arte.

Considerações finais

Mas, me pergunto: o que é formar? Quais são os limites, os contornos que determinam o início e o término desse ato, o ato de formação. Quais os espaços considerados exclusivos para que dois ou mais seres humanos se identifiquem e se reconheçam numa situação em que possam construir saberes sobre si e sobre o mundo, inventando a si e ao mundo?

A família, a escola, a universidade, o trabalho, as instituições religiosas, os espaços instituídos da arte, galerias, museus, escolas livres, teatros, enfim. São instâncias sociais em que aprendemos, onde ocorrem formações. No entanto, existem espaços não tão visíveis. Tais espaços são maleáveis, atravessados por fluxos distorcidos, às vezes, fora de foco e pouco capturáveis, espaços em que o sensível, a intuição e as invenções encontram pousada, mesmo que provisória.

Esses atravessamentos produzem efeitos que modificam a existência daqueles que se permitem mergulhar no mar das incertezas, cortando de forma pungente as instituições, numa tentativa de sangrá-las, provocando o choque, a morte e o possível renascimento de outros paradigmas.

Na discussão que ousei realizar neste trabalho, revelei partes, fragmentos reconfigurados no tempo, recortados numa escrita ato e condensados em pedaços esparsos de diálogos com outros interlocutores. E, por fim, também revelei meu encantamento diante das situações de aprendizagem, não na perspectiva da solução de problemas, por meio da criação de diferentes respostas, mas sim, da reorientação dos olhares para outros tipos de perguntas, abrindo espaços para a possibilidade de se inventar outras maneiras de saber o mundo.

REFERÊNCIAS

  • GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Subjetividade e história. In: GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
  • ICLE, G. Para apresentar a performance à educação. Educação & Realidade, v. 35, n. 2, p. 11-21, 2010a.
  • ICLE, G. Pedagogia teatral como cuidado de si São Paulo: Hucitec, 2010b. (Pedagogia do Teatro 8).
  • KASTRUP, V. Introdução. In: KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo: uma introdução do tempo e do coletivo no estudo da cognição. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. (Educação: Experiência e Sentido).
  • LOBO, A. M. F. Experiência e Formação: o fazer teatral nas trajetórias docentes. 2010. Tese (Educação) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2010.
  • LOBO, A. M. F. Atos híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade. In: MEMÓRIA ABRACE XVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 9., Uberlândia (MG) UFU, 2016. Anais.. Uberlândia, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE >. Acesso em: 10 set. 2017.
    » https://www.even3.com.br/anais/IXCongressoABRACE
  • TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. 7. ed. Petrópolis: Vozes , 2002.
  • TARDIF, M.; LESSARD, C. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. 3. ed. Petrópolis: Vozes , 2007.
  • PAVIS, P. Dicionário de teatro São Paulo: Perspectiva, 2001.
  • REICH, W. A peste emocional. In: REICH, W. Análise do caráter 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 461-491.
  • ROLNIK, S. Toxicômanos de Identidade: subjetividade em tempo de globalização. In: LINS, D. (Org.). Cultura e Subjetividade: saberes nômades. 4. ed. Campinas: Papirus, 2005. p. 19-24.
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    Este texto diz respeito ao artigo/comunicação da autora, intitulado: Atos Híbridos: a invenção e o discurso de si na prática artística do docente na universidade, publicado nos Anais do IX Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, ABRACE. Realizado em 2016 na cidade de Uberlândia/ MG. As referências completas constam das referências bibliográficas ao final deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2017
  • Aceito
    31 Out 2017
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