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LISETE ARELARO: DENSIDADE ACADÊMICA E LUTA POLÍTICA PAVIMENTANDO O CAMINHO DO ESPERANÇAR

LISETE ARELARO: ACADEMIC DENSITY AND POLITICAL STRUGGLE PAVING THE WAY TO HOPE

LISETE ARELARO: DENSIDAD ACADÉMICA Y LUCHA POLÍTICA ALLANANDO EL CAMINO DE LO ESPERANZAR

RESUMO

Este artigo destaca algumas contribuições que a educadora Lisete Regina Gomes Arelaro deixa à educação brasileira em sua longa e densa trajetória em defesa da escola pública, gratuita, laica e de qualidade socialmente referenciada para todos. Reuniu, como poucos intelectuais, consistente formação acadêmica e fecunda colaboração na academia, na administração pública, no campo político e sindical. Dedicou-se à política educacional, à gestão democrática do ensino, aos conselhos populares, à formação de docentes e ao financiamento da educação, contra a destinação de recursos públicos ao setor privado. Trabalhou com Paulo Freire implementando educação emancipadora junto às classes populares. Suas ideias e suas práticas permanecem a orientar as lutas rumo às utopias igualitárias e libertárias.

Palavras-chave
Lisete Arelaro; Política educacional; Educação freireana; Educação emancipadora; Financiamento da educação

ABSTRACT

This article highlights some contributions that the educator Lisete Regina Gomes Arelaro leaves to Brazilian education in its long and dense trajectory in defense of public school, free, secular, and of socially referenced quality for all. She brought, like few intellectuals, consistent academic background and fruitful collaboration in academia, public administration, political, and trade union fields. She has dedicated herself to educational policy, democratic teaching administration, popular councils, teacher training, and education financing, against the allocation of public resources to the private sector. She worked with Paulo Freire, implementing emancipatory education with the popular classes. Her ideas and practices continue to guide the struggles towards egalitarian and libertarian utopias.

Keywords
Lisete Arelaro; Educational politics; Freirean education; Emancipating education; Education financing

RESUMEN

Este artículo destaca algunas contribuciones que la educadora Lisete Regina Gomes Arelaro deja a la educación brasileña en su larga y densa trayectoria en defensa de escuelas públicas, gratuitas, laicas y de calidad socialmente referenciadas para todos. Reunió, como pocos intelectuales, una formación académica consistente y una fructífera colaboración en la academia, en la administración pública, en el campo político y sindical. Se dedicó a la política educativa, la gestión democrática de la educación, los consejos populares, la formación docente y el financiamiento de la educación, frente a la asignación de recursos públicos al sector privado. Trabajó con Paulo Freire implementando la educación emancipatoria entre las clases populares. Sus ideas y prácticas siguen guiando las luchas hacia utopías igualitarias y libertarias.

Palabras-clave
Lisete Arelaro; Política educativa; Educación freireana; Educación emancipadora; Financiamiento de la educación

Introdução

Frases que a Professora Lisete gostava de citar:

“Contra as ideias da força, a força das ideias!”

Florestan Fernandes

“O mundo não é, está sendo.”

Paulo Freire

“Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende.”

“O real não está no início nem no fim, ele se mostra pra gente é no meio da travessia.”

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Guimarães Rosa

Não é fácil escrever sobre a produção acadêmica de Lisete Regina Gomes Arelaro (1945-2022), mas mais difícil ainda é conceber como ela conseguiu elaborar e articular construções tão essenciais, complexas e rigorosas em meio a toda a sua vida de envolvimento e participação em diferentes espaços institucionais, em movimentos e nas mais diversas lutas pela educação pública de qualidade para todos e todas em nosso país, pela condição da mulher, pela inclusão social, pela reforma agrária, pelo combate à desigualdade, pela transformação social e a emancipação do povo (como gostava de dizer...).

Lisete foi militante, líder estudantil, feminista, sindicalista, formadora de quadros (políticos, acadêmicos, sociais, culturais etc.), criadora e participante de entidades acadêmicas, sociais, sindicais e de partidos entre tantas atividades realizadas em favor das lutas populares. Em função desses envolvimentos, em diferentes momentos históricos foi perseguida política, viveu na clandestinidade, ajudou a tirar pessoas do país, foi presa na ditadura e, mais tarde, foi assessora parlamentar na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), candidata a deputada estadual (pelo PT) e a governadora (pelo PSOL).

Além disso, a professora Lisete (como sempre foi referenciada) foi docente e diretora de escola pública de educação básica; técnica de gestão pública (em Alagoas, quando trabalhou no Centro Regional de Pesquisas Educacionais-SP, e em São Paulo, em redes estaduais e municipais); além de professora universitária e pesquisadora (em diferentes instituições). Todavia, percorreu, em especial, toda a carreira acadêmica como Professora Doutora, Livre Docente, Professora Titular, Chefe do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) e Diretora da mesma instituição. Ao final, foi reconhecida por sua imensa contribuição, como Professora Emérita. Nesse percurso, foi presidente de diversas comissões na universidade, representante da Feusp no Conselho Universitário da Universidade de São Paulo (USP) e participou da diretoria de várias entidades acadêmicas nacionais. Como uma das primeiras pesquisadoras (num espaço até então dominado por homens), foi presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), presidente do Fórum Nacional de Diretores de Faculdades e Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras (Forumdir) e dirigente educacional, trabalhando na assessoria técnica da gestão de Paulo Freire e Mário Sérgio Cortela (secretários da Educação no governo de Luiza Erundina, à época no PT, de 1989 a 1992), em São Paulo, e também ocupando o cargo de Secretária da Educação do município de Diadema em duas ocasiões, nas quais foi alçada à condição de dirigente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Participou ainda, entre outras associações, da Associação Nacional de Educação (ANDE), da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e das atividades do Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES).

Sua produção acadêmica sempre teve algumas marcas indeléveis. Em primeiro lugar, sempre foi uma produção crítica e imersa nas questões de seu tempo, uma vez que a estudiosa fazia questão de se envolver na discussão, na produção e na crítica dos diferentes caminhos da política educacional brasileira. Em segundo lugar, quase sempre foi uma produção coletiva, pois ela acreditava no trabalho com seus pares (acadêmicos, políticos, educacionais, sindicais e sociais), com os quais se identificava. Em terceiro lugar, sua produção sempre foi amparada numa perspectiva marxista e gramsciana, portanto marcada por conceitos e categorias de análise, como “exploração”, “dominação”, “luta de classes”, “ideologia”, “desigualdade estrutural”, “utopia”, “emancipação”, “transformação social”, “construção de hegemonia”, “interesses econômicos”, “conflito social”, “democracia”, entre outras.

Tais marcas podem ser encontradas em seus 49 artigos completos publicados em periódicos; em quatro livros e mais de trinta capítulos de livros; em dezenas de artigos para jornais de notícias/revistas; em diversos trabalhos completos, publicados em anais de congressos educacionais; na apresentação de mais de duzentos trabalhos em eventos científicos; na orientação de dezenove mestrados, 26 doutorados, quatro supervisões de pós-doutorado e outros tantos trabalhos de conclusão de curso de graduação e de iniciação científica.

Essa imensa produção foi amparada pela realização de duas dezenas de pesquisas registradas academicamente (em geral financiadas por diferentes órgãos de fomento), fosse como coordenadora, fosse como pesquisadora. Destacam-se, entre os vários temas de investigação, a alfabetização e a educação infantil; formação, remuneração e condições de trabalho dos professores: financiamento da educação; avaliação e políticas públicas da educação básica; parcerias público-privadas, organizações não governamentais e organizações da sociedade civil de interesse público, ONG e OSCIP; educação do campo e agroecologia; municipalização do ensino; educação inclusiva; inclusão social, legislação educacional e o legado de Paulo Freire.

Em função de tamanha produção e dos temas tão variados que nortearam o trabalho acadêmico-científico da Professora Lisete Regina Gomes Arelaro, para efeito deste artigo, selecionamos temas e reflexões que consideramos mais relevantes e que expressassem suas contribuições, seus principais achados, suas dúvidas e suas mensagens esperançosas.

Nesse sentido, este artigo está organizado, além desta introdução (que apresenta minimamente a grande educadora que foi Lisete), com base na abordagem dos principais temas extraídos de sua produção sobre política educacional, entre os quais destacamos: gestão democrática; conselhos populares deliberativos; participação da comunidade escolar: formas de inclusão das classes populares no acesso à educação de qualidade; financiamento público da educação sob a impacto da municipalização do ensino e das relações público-privado redesenhadas pelas reformas ultraliberais; e a relação público-privado e a reconfiguração da educação pública.

Diante dessa ampla gama de contribuições de nossa querida Lisete, finalizamos enfatizando as principais mensagens que se originam de seus ensinamentos, recheados de boas energias, lutas e esperanças, por meio das bússolas que, direcionadas aos conselhos populares, às ações coletivas, à conscientização e à aprendizagem em comunhão, à resistência às imposições do capital e às lutas pela transformação social, às pesquisas e à ciência abertas às necessidades populares, apontam-nos o caminho em direção à utopia.

Gestão Democrática, Conselhos de Educação Deliberativos, Participação daComunidade Escolar: Formas de Inclusão das Classes Populares noAcesso à Educação de Qualidade

“A educação é a preparação para a superação permanente da alienação.”

Bogdan Suchodolski

Com extensa trajetória no campo de educação, tendo atuado em todos os seus níveis e modalidades, destacamos as várias contribuições evidenciadas na atuação singular da educadora Lisete Arelaro, presentes em seus escritos e traduzidas nas suas práticas ao longo de toda uma vida dedicada à defesa da escola pública, com qualidade social e concebida como um direito social a que todos e todas devem ter acesso.

Em sua extensa produção acadêmica, destacamos algumas temáticas mais marcantes em seu pensamento, bem como as concepções políticas e pedagógicas que sempre estiveram presentes nos diferentes momentos de sua vida acadêmica, como também quando se dedicou ao exercício de funções administrativas ou em sua militância política. Com uma coerência ímpar, Arelaro conseguia abranger nas atividades às quais se dedicava, forte empenho pela inclusão social e emancipação das classes populares em trabalhos voltados à formação humana, no âmbito da educação formal, nos espaços informais, nas associações de pesquisa, nas lutas no parlamento e junto aos movimentos populares.

A gestão democrática sempre foi um dos pilares de sua concepção de educação, que nunca se dissociou de seu projeto societário, uma vez que concebia democracia em acepção bem mais ampla do que a democracia representativa, oriunda da tradição liberal, restrita ao direito de votar e ser votado, ou à liberdade de culto e de pensamento. Para a autora, a democracia implicava poder popular, consoante a tradição socialista, em que os interesses populares prevalecem e o povo participa da tomada de decisões e do controle sobre os interesses da administração pública. Era nesse sentido que ela defendia que a gestão democrática da educação implica a consulta e a discussão com professores, alunos, pais e a comunidade escolar na tomada de decisões acerca do enfrentamento dos problemas presentes no cotidiano da escola. Coerentemente, Arelaro adotou essa concepção em todos os espaços onde atuou, por exemplo, nas duas vezes em que foi Secretária Municipal de Educação de Diadema, no estado de São Paulo, na direção da Feusp e como membro da equipe de Paulo Freire, quando esse assumiu a Secretaria Municipal de Educação em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina (1989-1992).

Para Arelaro, a gestão democrática, somada ao acesso ao conhecimento e à informação, tem papel primordial na emancipação das classes populares. Na atuação conjunta com Freire, patrono da educação brasileira, com quem a educadora compartilhava concepções políticas e pedagógicas, foi possível desenvolver um trabalho na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, valendo-se da importante categoria diálogo, pois a educação concebida como ato dialógico contrapõe-se à ideia de educação bancária, na qual o aluno é visto como um ser passivo, mero receptáculo do conhecimento do professor, Segundo a educadora, Freire questionava essa educação verticalizada, pautada por uma relação autoritária, que definia como antipedagógica e antidemocrática por não permitir o diálogo e a construção do conhecimento com base em saberes e visões divergentes e também “porque a relação vertical, que é autoritária, faz de uns, sujeitos, e de outros, objetos na construção da história” (ARELARO; CABRAL, 2019ARELARO, L. R. G.; CABRAL, M. R. M. Paulo Freire: por uma teoria e práxis transformadora. In: BOTO, C. (org.). Clássicos do pensamento pedagógico: olhares entrecruzados. Uberaba: EDUFU, 2019. p. 267-292., p. 24).

A autora destaca, na obra de Freire, a importância da “educação crítica como prática de liberdade”, além da “problematização e interdisciplinaridade no ato educativo e a noção da ciência aberta às necessidades populares”. Partindo das necessidades populares como prática de liberdade e de emancipação das pessoas, por meio do diálogo, da reflexão, da leitura do mundo e de sua problematização, da “ampliação do conhecimento que se detém sobre o mundo problematizado”, interligando os conteúdos apreendidos e compartilhando esse conhecimento, “tendo por base o processo de construção e reconstrução do conhecimento” (ARELARO; CABRAL, 2019ARELARO, L. R. G.; CABRAL, M. R. M. Paulo Freire: por uma teoria e práxis transformadora. In: BOTO, C. (org.). Clássicos do pensamento pedagógico: olhares entrecruzados. Uberaba: EDUFU, 2019. p. 267-292., p. 14), constrói-se uma educação libertadora, que propicie a reflexão e o pensamento crítico.

Ao convergir para as ideias de Freire e trabalhando com ele, Arelaro sempre se preocupou com a garantia dos direitos sociais às populações marginalizadas. Em sua concepção, a escola pública precisa se adequar ao atendimento à diversidade de seu alunado, compreendendo as diferenças e complexidades dos processos educativos na perspectiva de valorizar os conhecimentos das pessoas mais pobres e combater a educação que prevalece no mundo globalizado, voltada para o individualismo, conduzindo ao desconhecimento da realidade social. Corroborando as ideias de Freire, Arelaro enfatiza a necessidade de se contextualizar os conteúdos, valendo-se da problematização e da interdisciplinaridade como formas para se chegar a um processo de emancipação por meio do conhecimento. Ao fazer a crítica da educação burguesa, que reduz a concepção da história e da realidade, apresentando os valores e interesses da classe dominante como se fossem universais, a autora, endossando as ideias de Freire, aponta-nos o caráter desmobilizador e alienante presente na fragmentação das disciplinas, propiciadoras de visão estanque e descontextualizada do conhecimento, razão pela qual predomina a oferta de português e matemática nos currículos escolares. Ler, escrever e contar, uma aprendizagem desancorada do contexto em que se insere e despolitizada, historicamente constituem o cerne da formação ofertada às classes populares, destinada a servir aos desígnios do capital, eternizando a sua posição de subalternidade. As propostas de educação libertadora, ao contrário, conforme as práticas adotadas pela equipe de Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, têm “a interdisciplinaridade como fundamento científico e a progressão continuada como razão pedagógica” (VALENTE; ARELARO, 2002VALENTE, I.; ARELARO, L. R. G. Educação e políticas públicas. São Paulo: Xamã, 2002., p. 76).

Arelaro destaca que a escola adota a linguagem da classe dominante, negando a linguagem e a cultura popular, provocando um estranhamento nas crianças de famílias de baixa renda, que não se identificam com aquele espaço. A autora recorda que, já nos anos de 1950-1960, educadores, sociólogos e psicólogos discutiam as questões atinentes aos altos índices de reprovação escolar, debatendo aspectos da organização escolar, currículo, avaliação, materiais didáticos, levando em conta a diversidade cultual e social do alunado. A complexidade que envolve essas questões não pode ser metrificada. Há que se modificar a organização escolar, o currículo e a forma de avaliar na perspectiva democrática de universalização do acesso à educação, com bom desempenho.

Para a autora, que era radicalmente contra a reprovação escolar, para um trabalho pedagógico consistente, que não expulse as crianças das classes populares da instituição escolar, é importante que se adote a progressão continuada, a qual se articula com os ciclos e não se confunde com a promoção automática, adotada a partir da implementação das medidas neoliberais no Brasil, em meados da década de 1990. Essa última, ao extinguir a repetência, almeja apenas a melhoria de índices educacionais e a correção de fluxo, com o intuito de ampliar dados estatísticos de aprovação, visando captar recursos externos e reduzir gastos com educação. A progressão continuada, ao contrário, explicita Arelaro, objetiva enfrentar o problema da exclusão social, respeitando a diferença, operando ampla transformação na concepção político-pedagógica, reorganizando a escola, os currículos e a avaliação, buscando garantir formação de qualidade, sólida e crítica ao alunado. A democracia pressupõe que todas as crianças, bem como todos os adolescentes, jovens e adultos tenham acesso a uma escola pública de qualidade, sobretudo os mais pobres, para que possamos enfrentar a desigualdade social. Nesse sentido, afirmam Arelaro e Valente, ao abordarem o problema do aluno que não está aprendendo:

Na seriação, a solução era a reprovação; nos projetos de ciclos, um novo olhar para o processo educativo é proposto, o que exige um conjunto de medidas e condições para que se possa construir uma nova escola, onde o significado de aprender não seja “passar de ano” ou “tirar nota”, mas realmente incorporar novos conhecimentos que nos permitam ver/sentir/entender o mundo de forma mais complexa

(VALENTE; ARELARO, 2002VALENTE, I.; ARELARO, L. R. G. Educação e políticas públicas. São Paulo: Xamã, 2002., p. 83).

A educadora e Valente defendem a gestão democrática como pressuposto da qualidade social, concebendo a democratização da escola pública e implicando a garantia de acesso e permanência de todas as crianças à escola, com aprendizado efetivo, já que o conceito de qualidade social é construído e deve resultar da vontade coletiva. “Qualidade é um conceito historicizado”, cuja construção decorre da interação entre professores, pais e alunos, coletivamente.

Gestão democrática, aqui entendida como aquela que abrange a existência de instâncias como Conselhos de Educação deliberativos e cujos membros sejam eleitos diretamente pelos diversos setores da comunidade; eleição direta de dirigentes de estabelecimentos de ensino e pela incorporação real de educadores, pais e alunos na definição dos rumos da educação, incluindo aí as consideradas do “âmbito pedagógico”

(VALENTE; ARELARO, 2002VALENTE, I.; ARELARO, L. R. G. Educação e políticas públicas. São Paulo: Xamã, 2002., p. 68).

Convém destacar que Arelaro sempre defendeu os Conselhos de Educação, surgidos na década de 1960 a partir da promulgação da Lei n. 4.024 de 1961, nossa primeira LDB, em tempos de nacional-desenvolvimentismo, quando se apostava na democratização das oportunidades educacionais, implicando maior participação da sociedade nas discussões pedagógicas.

Em princípio, a composição destes conselhos deveria privilegiar a combinação: especialistas em educação e representantes de diferentes modalidades e níveis de ensino – “de notório saber e conduta ilibada” – e população usuária, com relativa autonomia em relação à estrutura institucional vigente – daí a ideia de “quarto poder

(ARELARO, 2007ARELARO, L. R. G. Formulação e implementação das políticas públicas em educação e as parcerias público-privadas: impasse democrático ou mistificação política? Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. esp. 100, p. 899-919, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300013
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200700...
, p. 906).

Assim surgiram os conselhos federal e estaduais de educação, descaracterizados pelo golpe militar de 1964, ocorrido um ano após a sua implementação, alterando os critérios de escolha de seus componentes e inviabilizando a concepção democrática que os originou. Importa-nos lembrar que, nas décadas de 1950 e 1960, o país passava por um período marcado por intensa mobilização social e política e atuação de intelectuais comprometidos com as lutas populares, com o alargamento do campo voltado às discussões sobre educação, quando ocorria a institucionalização da sociologia educacional, e fecundas pesquisas visando buscar formas de democratizar o acesso e a permanência das crianças periféricas na escola pública. Eram tempos de atuação nos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, criados durante a gestão de Anísio Teixeira no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), por sua iniciativa, destacando-se a participação de Florestan Fernandes, Antônio Cândido e Luiz Pereira, no CRPE de São Paulo, onde Arelaro também trabalhou, e a participação de Paulo Freire, ainda pouco explorada, no CRPE de Recife.

Essa proposta de participação popular por meio de conselhos, no entanto, iria inspirar, anos depois, novas iniciativas, na gestão de Paulo Freire e sua equipe na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, durante o governo da Prefeita Luiza Erundina (então filiada ao Partido dos Trabalhadores, PT), enfatizada por Arelaro e Cabral (2019)ARELARO, L. R. G.; CABRAL, M. R. M. Paulo Freire: por uma teoria e práxis transformadora. In: BOTO, C. (org.). Clássicos do pensamento pedagógico: olhares entrecruzados. Uberaba: EDUFU, 2019. p. 267-292. e Tamberlini (2022)TAMBERLINI, A. R. M. B. Entrevista: “O legado de Lisete Arelaro: presente ontem, hoje e sempre em seus enredamentos com Paulo Freire”. Trabalho Necessário, Niterói, v. 20, n. 42, maio./ago. 2022. https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.55195
https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.55195...
. No segundo ano de governo, foram instalados os Conselhos de Escola (CE) e desse processo resultou a criação dos Conselhos de Representantes de Escola (CRECE), em vigor até os momentos atuais de forma legalizada, com o intuito de viabilizar a participação de alunos, professores, funcionários, pais e mães e demais participantes da comunidade escolar nas discussões acerca das políticas educacionais, contemplando diversidades regionais de uma metrópole da dimensão de São Paulo. Em entrevista a Tamberlini, Arelaro narra:

Logo que assumimos, fizemos um videozinho muito, muito simples e muito bem-feito. Chamava-se “aceita um conselho?” E que tem sentido dúbio do Conselho que, na verdade, ele [Paulo Freire] estava propondo o conselho de escola com caráter deliberativo, que não era tão comum naqueles anos, no final dos anos de 1980, mas hoje é uma coisa comum que está desativada, mas que é bem comum nas leis, inclusive, estaduais e municipais. Mas do ponto de vista concreto, nesta proposta havia estímulos para que pais, mães, avós assumissem a coordenação dos conselhos e discutissem e sabemos que não é tão simples assim, e Paulo Freire também sabia das dificuldades de tirar dos professores e técnicos a ideia de discutir currículo, porque nossa ideia é que pai não entende nada, quem entende somos nós, só nós

(2022, p. 25).

Todavia, os resultados dessas interações que motivaram a participação e o envolvimento de pais, professores e alunos no cotidiano da escola foram bastante satisfatórios, atestando que é possível implementar uma educação outra que não aquela voltada aos interesses do capital. Intensificaram-se o interesse e a noção de pertencimento à escola por parte da comunidade, com abertura da instituição nos fins de semana e a realização de uma série de atividades culturais e esportivas, com ampla participação tanto no planejamento quanto na realização dos eventos. Ao afirmar que a democratização da escola pública para os excluídos sociais não ocorrerá como decorrência de dispositivos legais, exigindo a participação ativa daqueles aos quais as medidas se destinam, apontam-nos Arelaro e Valente:

[...] carecemos aprender que a programação educacional autêntica só pode concretizar-se pela cooperação democrática entre as comunidades, os alunos, os professores, os funcionários, as famílias dos estudantes e com a contribuição permanente do Estado. Nessa esfera, pouco virá de cima para baixo. Dentro do modelo básico: remando contra a corrente, cabe à ação coletiva dos destituídos resolver os grandes desafios da história

(FERNANDES, 1991 apud VALENTE; ARELARO, 2002VALENTE, I.; ARELARO, L. R. G. Educação e políticas públicas. São Paulo: Xamã, 2002., p. 92).

Financiamento Público da Educação Sob o Impacto da Municipalização doEnsino e das Relações Público-Privado Redesenhadas Pelas Reformas Ultraliberais

Discutir sobre as questões do financiamento da educação encontradas na produção acadêmica de Lisete Arelaro não é simples, pois são inúmeros os artigos, os capítulos, os trabalhos completos apresentados em eventos científicos, as pesquisas e as palestras, apresentações, mesas redondas, colóquios, seminários etc., em que diferentes aspectos sobre o tema foram por ela abordados.

Com visão ampliada do campo educacional, em consonância com as concepções freireanas, a autora se vale de abordagem complexa em seus textos e reflexões, por ter consciência de que os diversos temas ligados às políticas educacionais se inter-relacionam, além de reportarem a um projeto societário, pelo que necessitam ser tratados interdisciplinarmente e, nesse contexto, cabe dar centralidade à questão do financiamento, condição necessária à implementação de uma educação pública, de qualidade, extensiva a toda a população brasileira.

Considerando os termos “financiamento”, “fundos”, “municipalização” e a “relação público-privado” (para uma lista curta) como representativos dos textos em que explicitamente Arelaro tratou de aspectos diferentes da questão do financiamento público para as escolas públicas, cabe destacar que mais de um terço de sua produção acadêmica abrange esses temas.

No entanto, quem acompanhar sua intensa produção perceberá que, mesmo quando abordava temas bastante específicos, como “alfabetização”, “educação inclusiva”, “educação de jovens e adultos”, “agroecologia”, “Ensino Fundamental”, “educação infantil”, “Paulo Freire”, “avaliação”, “currículo”, “gestão democrática”, entre outros, encontram-se inúmeras menções sobre diferentes aspectos do financiamento da educação, justamente porque a autora não restringia o tema da política educacional ao âmbito das questões meramente pedagógicas.

Isso se deve à maneira peculiar de tratar as diversas questões da política educacional que Arelaro buscava realizar em seus vários textos e intervenções, pois sabia que se tratava de temáticas inter-relacionadas, complexas, difíceis, com terminologias específicas, mas que precisariam ser de conhecimento geral e, por isso, apresentadas de modo decodificado para todos os públicos (leigos ou experts nos assuntos), de forma a permitir diálogos (certamente freireanos) acerca das diferentes questões da educação nacional, em especial de seu financiamento.

Intransigente defensora da destinação de verbas públicas para as escolas públicas ­– da creche à pós-graduação –, argumentava sempre, de forma clara, contundente e simples, mesmo ao discorrer sobre assuntos complexos, buscando, por meio de acurada reflexão acadêmica, ao analisar mais profundamente os problemas educacionais, as soluções possíveis que contemplassem as suas engajadas concepções políticas, sempre levando em consideração as condições sociais e econômicas do povo brasileiro. Procurava “traduzir” os conceitos e aspectos técnicos do financiamento da educação, bem como de outras temáticas, tornando-os mais inteligíveis e articulados aos aspectos mais gerais da política educacional nacional.

Como sempre prezou por uma polêmica, mesmo na disputa de conceitos e posicionamentos com seus pares mais próximos ideológica e politicamente, Arelaro enfrentava de modo firme, didático e elegante todos aqueles que afirmavam, de acordo com o receituário neoliberal, que “os recursos financeiros para a educação são suficientes e o que se precisa no país é de uma melhor gestão (e gestores) dos investimentos destinadas à área”. Reivindicava de modo explícito que os recursos para a educação pública eram claramente insuficientes.

Qualquer texto sobre financiamento da educação no Brasil precisa, de saída, desconstruir o mito, alimentado especialmente na última década, de que “as verbas para a educação são suficientes, apenas são mal-empregadas”. Entretanto, ao contrário do que é afirmado através desse “pré-conceito”, um dos nós górdios da educação, em todos os níveis, é a insuficiência de recursos. De fato, estudos mostram que as verbas destinadas ao setor precisariam, no mínimo, ser dobradas, para que a médio prazo o país consiga sair da condição educacional em que se encontra.

Já em 1997, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, que organiza parcelas importantes da sociedade civil através de suas entidades envolvidas com educação, denunciou por meio do Plano Nacional de Educação – Proposta da Sociedade Brasileira, construído coletivamente em vários Congressos Nacionais de Educação (Coned), que não serão atingidas as metas inclusivas lá propostas sem que o financiamento da educação atinja progressivamente 10% do PIB, até que as piores deficiências sejam removidas (podendo, após, recuar a um nível mais baixo, de 7% do PIB)

(ARELARO et al., 2020ARELARO, L. R. G. et al. Passando a limpo o Financiamento da Educação Nacional: algumas considerações. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 106-124., p. 117-118).

Para apresentar a questão do financiamento público da educação pública no Brasil, Arelaro destacava inicialmente a importante discussão sobre o problema das fontes de recursos:

As discussões sobre o financiamento da educação no Brasil devem levar em conta a nossa situação socioeconômica e algumas formas específicas da arrecadação tributária realizada em nosso país. Isso ocorre porque as principais fontes de recursos para o financiamento da educação nacional são originadas da efetiva arrecadação de impostos, os quais, por sua vez, têm seus montantes afetados pelo desempenho da política econômica vigente.

Por isso, segundo as opções de cada governo, as decisões acerca das políticas econômicas, tributárias e fiscais determinam tanto a arrecadação quanto a aplicação de recursos financeiros na educação

(ARELARO, 2020ARELARO, L. R. G.; GIL, J. Política de fundos na educação: duas posições. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 125-140., p. 106).

Além dos recursos vinculados constitucionalmente, que são as principais fontes de financiamento da educação pública, destinam-se a ela, ainda, os recursos provenientes da Contribuição Social do Salário-Educação, criada em 1964, e que a partir da Emenda Constitucional n. 14 de 1996 (EC 14/96) passou a ser calculada sobre 2,5% da folha de pagamento das empresas como receita adicional destinada exclusivamente para o Ensino Fundamental obrigatório. Há ainda outras poucas fontes de recursos para a Educação, tais como empréstimos, convênios, receita de prêmios lotéricos, doações, entre outros, mas que representam muito pouco em termos de montantes e percentuais para o financiamento do setor educacional público

(ARELARO, 2020ARELARO, L. R. G. Não só de palavras se escreve a Educação Infantil, mas de lutas populares e avanços científicos. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020d. p. 249-269., p. 109).

Entre as polêmicas políticas sobre financiamento da educação se destacam as discussões sobre vinculações de recursos e de fundos para o setor. Nesse sentido, Arelaro produziu com Gil um texto que se tornou icônico para a área de financiamento da educação: “Política de Fundos na Educação: duas posições” apresentado inicialmente em 2005 na obra FUNDEB - Dilemas e Perspectivas, em que os autores apresentam posicionamentos convergentes, mas também com divergências, sempre valorizando a perspectiva de um debate franco, aberto e esclarecedor sobre a matéria, como se pode observar no seguinte trecho:

A discussão sobre o financiamento da Educação exige necessariamente que nos posicionemos pelo menos sobre três aspectos: a necessidade de mais recursos financeiros para a Educação, a política de vinculação de recursos e a política de fundos. Os autores deste artigo possuem posições convergentes acerca dos dois primeiros e absolutamente divergentes sobre o último. Assim, a intenção deste trabalho é contribuir para o debate atual relativo aos recursos financeiros afetos ao setor educacional público, em específico no que tange à necessidade ou não da existência de fundos para a sua gestão

(ARELARO; GIL, 2020ARELARO, L. R. G.; GIL, J. Política de fundos na educação: duas posições. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 125-140., p. 125).

Ainda sobre a questão dos fundos para a educação, a autora defendia que as próprias vinculações constitucionais (garantidas no art. 212 da CF/88) e suas aplicações mínimas, devem ser garantidas, pois, “de certa maneira e em certo grau, garantem a prioridade de investimentos em educação” e, ainda que existam eventuais desvios nas aplicações, estudos nos mostram “que esta vinculação tem sido positiva”, representando um avanço nos gastos sociais em educação e, portanto, deve ser mantida. Discordando de Gil, defensor da política de fundos, em especial do Fundeb que, para o autor, corrigiria imperfeições do Fundef, possibilitando a superação da disputa fratricida por recursos da mesma fonte, além de propiciar o estabelecimento do Piso Salarial Profissional Nacional, como conquista dos movimentos sociais, Arelaro apontava vícios de origem na proposta do Fundeb. Para a autora, esse fundo não direciona recursos para o nível superior, limita a autonomia de Estados e municípios, e, ao propor um custo mínimo por aluno, serviria para rebaixar expectativas de investimento. A autora defendia a reforma tributária, que exigisse maior contribuição do capital financeiro, visando a distribuição de renda e a superação das desigualdades regionais. Os dois autores convergem na defesa de novas fontes de recursos, como a criação de um Salário-Creche, da vinculação de percentuais das loterias, do Finsocial e do Imposto sobre Grandes Fortunas (até hoje não instituído), dentre outras medidas (ARELARO; GIL, 2020ARELARO, L. R. G.; GIL, J. Política de fundos na educação: duas posições. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 125-140.).

Contudo, também Arelaro foi muito crítica no tocante às proposições das políticas de “ampliação da duração do Ensino Fundamental”, que implicaram a redução do tempo de infância a ser vivido pelas crianças em seu atendimento pela educação infantil, entendendo tal redução como também um dos reflexos do processo de municipalização, iniciado como decorrência da indução, pelo antigo Fundef, que destinava recursos apenas ao Ensino Fundamental regular. Cabendo aos municípios a responsabilidade pela educação infantil e o Ensino Fundamental, a busca pelos recursos direcionados pela introdução do Fundef impulsionou os municípios a priorizarem as matrículas no Ensino Fundamental (ainda que isso representasse – mais tarde – a ampliação da obrigatoriedade de 4 a 17 anos). A prioridade atribuída a essa etapa, atendendo às proposições de órgãos multilaterais, é reforçada pelas alterações na legislação de 2005 e 2006, respectivamente Leis n. 11.114/2005 e 11.274/2006, que instituem o Ensino Fundamental de 9 anos (ARELARO; JACOMINI; KLEIN, 2020ARELARO, L. R. G. A municipalização do ensino no Estado de São Paulo: antecedentes históricos e tendências. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020a. p. 141-170.).

Segundo a autora poder-se-ia questionar essa ampliação para em seguida responder:

Um dos aspectos considerados refere-se à motivação que levou à alteração da organização escolar do Ensino Fundamental. Teriam sido aspectos pedagógicos e educacionais? Pressão da sociedade contemporânea em busca de efetivar o direito à educação? Atendimento às recomendações internacionais? Ou questões de ordem financeiro-contábil que compensassem a esfera municipal das novas responsabilidades assumidas no processo de municipalização do ensino fundamental?

(ARELARO; JACOMINI; KLEIN, 2020ARELARO, L. R. G. A quem interessa a antecipação do Ensino Fundamental? In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020c. p. 199-222., p. 224).

[...] e admitir como hipótese de trabalho que a redução da idade de matrícula no Ensino Fundamental para 6 anos passou a ser gestada após a consolidação do processo de municipalização. Assim, se as crianças matriculadas no último ano da pré-escola – ano com o maior índice de matrícula da educação infantil no país – fossem incorporadas ao primeiro ciclo do Ensino Fundamental, seria possível aos municípios conseguirem um pouco mais de recursos financeiros. Em consequência, com o mesmo número de crianças já atendidas, ainda que em etapas diferentes da educação básica, os municípios poderiam receber um pequeno acréscimo de recursos financeiros dessa mesma fonte de financiamento do ensino

(ARELARO; JACOMINI; KLEIN, 2020ARELARO, L. R. G. O Ensino Fundamental no Brasil: avanços, perplexidades e tendências. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020b. p. 171-198., p. 202).

[...] com o financiamento da educação, e seu tom é mais dramático para o futuro da educação infantil, entendida e concebida como direito das crianças de zero a 6 anos de idade. A cada ano que passa, surge uma maior pressão social para a expansão do atendimento das crianças com menor idade, e as prefeituras constatam que quanto menor a idade da criança maior é seu custo/aluno, e, portanto, maiores são as necessidades de novos aportes para o financiamento da educação infantil. É verdade que a própria Constituição Federal, ao afirmar o direito das crianças pequenas à educação, não previu, de forma objetiva, com quais recursos (nem quem os promoveria) iria ser viabilizada tão digna expansão de atendimento. Tampouco a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9394/96) o fez

(ARELARO, 2020ARELARO, L. R. G.; JACOMINI, M. A.; KLEIN, S. O Ensino Fundamental de nove anos e o direito à educação. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 223-248., p. 260).

Portanto, temos um problema real: quem e com quais recursos financeiros se viabilizará a educação infantil na faixa etária de zero a 3 anos? (ARELARO; JACOMINI; KLEIN, 2020ARELARO, L. R. G. A municipalização do ensino no Estado de São Paulo: antecedentes históricos e tendências. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020a. p. 141-170., p. 260).

Arelaro destacava que as políticas de financiamento da escola pública no Brasil eram estabelecidas pelos governos de tendência neoliberal e em clara perspectiva de “enxugamento” e precarização do direito de todos à educação. Para a autora, tal perspectiva estava claramente definida no conceito de “focalização” e era fortemente influenciada por imposição de diferentes organismos multilaterais mundiais (leia-se Banco Mundial, BM; Fundo Monetário Internacional, FMI; Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, OCDE) na forma de condicionalidades para o estabelecimento de empréstimos direcionando suas formulações para os países pobres ou em desenvolvimento:

Constata-se que, por pressão, inclusive dos órgãos internacionais de financiamento – particularmente o Banco Mundial e o BIRD –, as recomendações para os países pobres ou em desenvolvimento estimulam que esses abram mão do conceito de direito social como direito de todos e, portanto, “garantido pelo Estado”, e trabalhem com o conceito de “prioridade social”, com políticas “focalizadas” em que os mais pobres e mais vulneráveis tenham prioridade. Na prática, primeiro atende-se a estes segmentos “prioritários” e, em seguida, constata-se que só há recursos para estes quando houver. Ou seja, o conceito de universalidade começa a ser substituído pelo de equidade. O que vai valer, de ora em diante, é o atendimento aos miseráveis, aos que não tenham nenhuma condição de sobrevivência social. Os outros deverão buscar alternativas mais simples de vida e considerar seus postos de trabalhos como oportunidades únicas, usufruindo o que for possível, pois a estabilidade no emprego se coloca como um conceito superado

(SILVA; ARELARO, 2020SILVA, S.; ARELARO, L. R. G. Avaliando políticas sociais no Brasil: algumas diretrizes fundamentais. In: SILVA, S.; ARELARO, L. R. G. (orgs.). Direitos sociais, diversidade e exclusão – a sensibilidade de quem as vive. Campinas: Mercado de Letras, 2017., p. 86).

Nesse sentido, demonstra que os interesses desses mecanismos internacionais levaram à criação de uma política de fundos para o ensino no nosso país, o que acarretou um intenso processo de municipalização com inúmeras consequências. No bojo dessa discussão, está o importante debate sobre descentralização ou centralização das políticas e dos recursos para a educação, para o qual destacava a importância da participação democrática.

Não há dúvidas de que políticas de financiamento têm o poder de induzir e até definir políticas sociais. O Banco Mundial e o FMI existem para provar isto: “ou fazem do jeito que nós queremos ou não tem dinheiro”. O governo federal, por meio do Fundef, fez exatamente o mesmo: “ou você (estado e município) tem aluno de Ensino Fundamental regular em sua rede ou fica sem os recursos”. Daí a correria atrás dos alunos de 7 a 14 anos (gerando municipalização e/ouestadualização de matrículas por simples lógica financeira), daí a inclusão oportunista de crianças de 6 anos ao Ensino Fundamental em várias cidades, daí ao abandono da educação infantil, da educação de jovens e adultos, da educação especial.

Entende-se, porém, que a indução, em si, não é ruim. O problema é quem decide o caminho a ser trilhado e como o faz. Acredita-se na democracia, em especial quando esta incorpora forte participação popular na elaboração, implementação, fiscalização e avaliação de políticas. Tem-se a convicção de que as melhores alternativas não surgirão da cabeça de alguns iluminados (de direita ou de esquerda) e sim da elaboração coletiva, onde os ditos “especialistas” dialoguem, ensinem e aprendam com (!) a população

(ARELARO; GIL, 2020ARELARO, L. R. G.; GIL, J. Política de fundos na educação: duas posições. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 125-140., p.129).

No entanto, de acordo com Arelaro, ainda há muito a se esclarecer e debater sobre diferentes aspectos negativos do processo de municipalização. Nessa direção, a autora, novamente com Juca GilGIL, J.; ARELARO, L. R. G. Contra a municipalização do ensino à brasileira. In: GIL, J. (org.). Educação municipal: experiências de políticas democráticas. Ubatuba: Editor Estação Palavra, 2004. p. 15-44. em texto de 2004 (em plena vigência do Fundef), apresenta severa crítica “Contra a municipalização à brasileira”, o próprio título da interessante publicação. Destaca-se no texto o enorme esforço de análise dos autores em identificar e analisar nada menos que vinte razões contra a política de municipalização do ensino induzida pelo Fundef, nas quais abordam: a fragilidade econômica dos municípios no Brasil (com as devidas exceções) para o estabelecimento do Ensino Fundamental; a dependência financeira das transferências e dos repasses estaduais e federais; a inexperiência administrativa, curricular, pedagógica e didática para o atendimento do Ensino Fundamental; a perda da economia de escala; a “guerra” entre redes por conta de conquistar mais alunos para suas redes; a cultura autoritária que permeia a sociedade brasileira; a perspectiva de superlotação de salas de aula; a diminuição da possibilidade de luta por direitos; a manutenção das desigualdades regionais no país; a desresponsabilização das esferas estaduais e federal para com a educação básica; as questões ligadas ao gasto/aluno e custo/aluno/qualidade; a exclusão da EJA e outras modalidades e a desconstrução do conceito de educação básica; a constatação de que o processo de municipalização não era novo (fazendo menção ao Projeto Nordeste, à questão da alimentação escolar, do transporte escolar), a compra de “sistemas de ensino” apostilados (ou não) por parte de interesses de empresas em conluio com governantes municipais desavisados (ou não), entre tantas outras razões.

No entanto, no mesmo texto, após as críticas, os autores evidenciam e apresentam treze propostas alternativas para superar a questão da “municipalização à brasileira” na forma de: construção de um Sistema Nacional de Educação; elaboração democrática e coletiva de Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação; ampliação de recursos para a educação pública; necessidade de organização de dados educacionais confiáveis de todas as etapas e modalidades da educação básica e superior; estabelecer de fato um regime de colaboração da União com estados e municípios; desmontar o aparelho de coerção federal das políticas de avaliação de grande escala como os antigos Provões, o SAEB etc. e das políticas de “balcão” do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE); atendimento de todos os níveis, etapas e modalidades de educação (e não só do Ensino Fundamental); acabar com a DRU e com a Lei de Responsabilidade Fiscal, a LRF; apresentar uma proposta de financiamento para toda a educação básica e não só a focalizada; maior participação democrática e decisória em Conselhos de Educação e outros fóruns, movimentos e processos de discussão; atentar para os movimentos dos setores conservadores e neoliberais em sua intenção de privatização da educação nacional entre outras. Diríamos que se trata de uma apresentação premonitória diante das evidências que se estabeleceram no país após a publicação do texto.

No que se refere às parcerias público-privadas e seus reflexos na educação pública, matéria para a qual também se dedicou em diferentes pesquisas e publicações, e assunto a ser tratado mais adiante neste texto, a autora faz uma importante denúncia relacionada ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Sistema Único de Assistência Social sobre processos de terceirização e privatização:

Na área da saúde, por exemplo, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), mas, ao mesmo tempo e em seu interior, os brasileiros viram ampliar, intensamente, os grupos privados de atendimento, com cessão inclusive dos próprios equipamentos públicos a terceiros, sejam hospitais, unidades básicas de saúde, ou de serviços especializados, bem como o crescimento dos “planos de saúde” privados, sempre restritivos no atendimento, mas resultantes, também, dos insuficientes recursos financeiros destinados à implantação do SUS em todo o país.

Isto não significa que o SUS não tenha se constituído em importante política de atendimento à saúde, até porque Farias et. al., ao analisarem o processo de regulação do SUS, reiteram a importância do SUS no Brasil

(SILVA, ARELARO, 2020SILVA, S.; ARELARO, L. R. G. Avaliando políticas sociais no Brasil: algumas diretrizes fundamentais. In: SILVA, S.; ARELARO, L. R. G. (orgs.). Direitos sociais, diversidade e exclusão – a sensibilidade de quem as vive. Campinas: Mercado de Letras, 2017., p.84-85).

Embora em seus vinte anos de existência, o SUS tenha tido um papel importante no atendimento à saúde pública, com percentuais expressivos no que tange à internações, consultas e procedimentos ambulatoriais, intervenções cirúrgicas e disponibilidade de leitos hospitalares, cumprindo função relevante em projeto público de inclusão social, tivemos a implementação de legislações sucessivas induzindo à privatização do atendimento à saúde.

Criado o Sistema Único de Assistência Social (Lei n. 8742, de 07/12/1993-SUAS), quase quinze anos depois da promulgação da Constituição Federal, assistiu-se, a maioria dos serviços da área de assistência social – asilos, orfanatos, atendimento de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social ou em medida socioeducativa – ser transferida para responsabilidade de privados, por meio das organizações sociais civis de interesse público

(SILVA; ARELARO, 2020SILVA, S.; ARELARO, L. R. G. Avaliando políticas sociais no Brasil: algumas diretrizes fundamentais. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. p. 79-105., p. 84-85).

Enfim, na temática sobre financiamento e suas importantes consequências para as diferentes políticas educacionais (política de fundos, municipalização, redução de idade para ingresso no Ensino Fundamental, relação público-privado etc.), Arelaro se destaca como pioneira entre as maiores e principais pesquisadoras da área, com uma admirável competência em enfrentar aspectos legais, orçamentários e de sua execução para realizar suas análises e intervenções, apresentando enorme disposição para dialogar sobre temas tão complexos, com densa e adequada fundamentação, sempre tendo em vista uma real educação pública, estatal, gratuita, laica, democrática e de qualidade socialmente referenciada para todos os brasileiros e em busca da construção de uma sociedade socialista.

A Relação Público-Privado e a Reconfiguração da Educação Pública

Intelectual orgânica e consciente de que a educação se vincula a um contexto mais amplo e traduz um projeto societário, as preocupações de Arelaro transcendiam a esfera da educação, abrangendo intensa atuação na militância política, no movimento social e partidário, bem como nos sindicatos e na formação de lideranças populares. Exemplo dessa preocupação ampla está retratada também em textos sobre políticas sociais no Brasil, quando avalia o acesso aos serviços públicos ofertados à população diante do avanço das medidas ultraliberais, implementadas em nosso país a partir dos governos Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990, e intensificadas após o golpe parlamentar perpetrado em 2016 (SANTOS, 2017SANTOS, W. G. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2017.). A autora defende o acesso de toda a população aos serviços públicos de qualidade como direito e considera que os usuários devam participar da elaboração e da avaliação das políticas sociais que, na atualidade, não atendem ao disposto na Constituição Federal em seu art. 6º, que estipula os direitos sociais. No Brasil, há uma fragmentação excessiva dessas políticas, reforçada pela descentralização de recursos, que transfere para os municípios a responsabilidade sobre as políticas sociais básicas, sem que esses tenham recursos para atendê-las, já que 70% dos cerca de 5.570 municípios brasileiros são pobres –atesta-nos a autora –, dependendo do Fundo de Participação Municipal repassado pelo Governo Federal. Diante de parcos recursos e da carência de quadros para atender às políticas sociais, essas acabam por ser terceirizadas, ficando sob a responsabilidade de Organizações Não Governamentais e Organizações Sociais Civis de Interesse Público (ONG e OSCIP), com impactos negativos nas políticas sociais e, sobretudo, nas políticas educacionais.

A mudança na configuração do caráter público do Estado ocorre nos governos de Fernando Henrique Cardoso, iniciando-se com a promulgação da Emenda Constitucional 19 de 1998, que introduziu, pela primeira vez, em nossa Constituição o conceito de público não estatal, bem como o princípio de que os serviços normalmente privativos do Estado, por meio de contratos, podem ser efetuados pela iniciativa privada.

Não se trata aqui da promoção de qualquer movimento progressista de autogestão e de combate ao poder alienante do Estado. Ao contrário, o Estado usa seu poder de “mando” para legitimar o processo de mercantilização e de privatização do ensino e da educação. A fase do quase-mercado está sendo superada. Estamos na fase seguinte, de privatização sumária, em nome da eficiência, com redução significativa dos investimentos nas políticas sociais

(ARELARO, 2007ARELARO, L. R. G. Formulação e implementação das políticas públicas em educação e as parcerias público-privadas: impasse democrático ou mistificação política? Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. esp. 100, p. 899-919, out. 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300013
https://doi.org/10.1590/S0101-7330200700...
, p. 913).

A citada Emenda Constitucional 19 abriu caminho para a terceirização e privatização dos serviços públicos. Arelaro destaca:

Dentre outras, a Lei n. 9.790, de 23/03/1999, que criou e regulamentou as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), instituindo o Termo de Parceria, que permite o repasse de atividades e recursos públicos para organizações privadas, em especial as que se utilizam, na sua rotina, do “voluntariado”, para a realização de seus objetivos, dentre os quais: combate à fome, promoção gratuita da educação, da cultura, da saúde, da assistência social, do desenvolvimento ambiental, do desenvolvimento de tecnologias alternativas, dos direitos humanos, da ética, da paz (artigo 3º, da Lei)

(2017, p. 49).

Esse modelo recebe o reforço da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101, de 04 de maio de 2000), que Arelaro e Silva caracterizam como lei da irresponsabilidade social, uma vez que inviabiliza os investimentos necessários para a garantia de direitos sociais pelo poder público. A referida lei estabeleceu, além de outras medidas, o limite de, no máximo 60% do orçamento para o gasto com a folha de pagamento de pessoal para os estados e municípios.

O percentual de 60% dos orçamentos municipais e estaduais, limitado pela LRF, só seria viável em países ricos ou em países que já atendiam os direitos sociais, em número e forma estáveis, mas é inviável em países pobres ou em desenvolvimento, com defasagens históricas na oferta de serviços públicos, gratuitos e de qualidade

(SILVA; ARELARO, 2017SILVA, S.; ARELARO, L. R. G. Avaliando políticas sociais no Brasil: algumas diretrizes fundamentais. In: SILVA, S.; ARELARO, L. R. G. (orgs.). Direitos sociais, diversidade e exclusão – a sensibilidade de quem as vive. Campinas: Mercado de Letras, 2017., p. 84).

Desse modo, os municípios premidos pelos Tribunais de Contas, ao terem que respeitar o limite de gastos com pessoal para obter a aprovação de suas contas, recorrem aos “Contratos de Gestão”, uma vez que “empresas contratadas pelos órgãos públicos são as únicas que não precisam obedecer a esta limitação”, pois, partir desses contratos, recebem os recursos públicos e atuam como empresas privadas. Essas empresas acabam, de fato, assumindo o papel de secretarias: apropriam-se de recursos públicos e determinam por meio de suas ações, conteúdos e políticas destinados ao atendimento da população. As legislações citadas dão legitimidade legal às parcerias público-privadas, reconfigurando o conceito de público, em um processo que atinge a organização escolar, o currículo, os livros didáticos, a avaliação e a formação de professores.

Em consonância com as alterações legais, fundadas na visão gerencial do Estado, abandona-se o conceito de universalização de direitos pelo de “prioridade social”, alerta Arelaro, visando ao atendimento aos mais pobres ou em situação de vulnerabilidade social. Há uma redução no atendimento aos direitos humanos básicos, em nome da adoção de políticas de atendimento focalizado.

A compreensão do “todos” – condição essencial da democracia republicana – passa a ser ressignificada e o estabelecimento de critérios de ordem econômica, majoritariamente, definem e limitam os grupos e as famílias que terão direito e acesso aos serviços públicos ofertados

(SILVA; ARELARO, 2017ARELARO, L. R. G. Ousar resistir em tempos contraditórios: a disputa de projetos educacionais. In: LOMBARDI, J. C. (org.). Crise capitalista e educação brasileira. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017. p. 47-59. Disponível em: https://www.editoranavegando.com/copia-temas-em-educação-1. Acesso em: 27 set. 2022.
https://www.editoranavegando.com/copia-t...
, p. 87).

Desse modo, ressalta Arelaro, as políticas sociais têm como critério a economia e a assistência social, negligenciando cultura, educação, esporte e lazer, entre outros, não cumprindo o seu papel, já que políticas sociais são expressão da cidadania. Assim, há a restrição na ação do Estado, tanto em relação à universalização do acesso aos direitos sociais básicos quanto à concepção de quais são esses direitos.

Nesse contexto, ganha força a prática produtivista, presente na formulação e na implementação de políticas públicas, sobretudo no campo da educação, por meio das parcerias público-privadas que Arelaro denuncia em seus escritos e pesquisas. A autora nos alerta para o fato de quão disputado é o campo educacional, de primordial importância na formação de nossos jovens e espaço privilegiado para a disseminação de valores, lócus tradicionalmente utilizado para garantir a hegemonia dos interesses da classe dominante.

Esse processo de privatização do setor público, iniciado nos governos FHC, é atenuado no período que vai de 2003 a 2015, mas, com nova roupagem, ganha força após o mencionado golpe parlamentar de 2016, reverberando fortemente nas políticas educacionais.

A reforma do Ensino Médio, proposta por meio de Medida Provisória, de forma não democrática, na sequência do golpe, em consonância com o avanço das reformas ultraliberais, aliadas à reestruturação produtiva e ao neoconservadorismo, desconsidera todo um acúmulo de discussões existentes sobre o tema, tanto nos debates da academia, dos sindicatos e movimentos populares, quanto no parlamento.

Grupos de empresários, articulados aos think tanks nacionais e transnacionais, e agentes públicos de secretarias municipais e estaduais, ligados ao PSDB, unidos na defesa de interesses comuns, que traduzem seu projeto de classe, ampliam e aprofundam as suas intervenções no conteúdo das políticas educacionais. Por meio das relações público-privadas, as instituições públicas ficam subsumidas ao controle privado.

A Base Nacional Comum do Currículo (BNCC), prevista pela LDB e pelo Plano Nacional de Educação, passa por três versões e, por fim, entre outras especificações, substitui direitos de aprendizagem por “competências e habilidades”, resgatando conceitos implementados nos governos FHC. Em sua versão final, prevalecem os interesses privados de ONG, fundações ligadas ao mercado, grupos conservadores, religiosos, neoliberais e think tanks nacionais e internacionais. O Movimento pela Base Nacional Comum, patrocinado pela Fundação Lemann e várias instituições públicas e privadas, buscou “direcionar a política educacional brasileira a partir de um projeto hegemônico para a educação”. A convite da referida fundação, uma delegação brasileira participou de Seminário Internacional “Liderando Reformas Educacionais: Fortalecendo o Brasil para o Século XXI”, na Universidade de Yale, visando implementar um currículo único para a educação brasileira (PERONI; CAETANO; ARELARO, 2019PERONI, V. M. V.; CAETANO, M. R.; ARELARO, L. R. G. BNCC: disputa pela qualidade ou submissão da educação? RBPAE, Brasília, DF, v. 35, n. 1, p. 035-056, jan./abr. 2019. https://doi.org/10.21573/vol1n12019.93094
https://doi.org/10.21573/vol1n12019.9309...
).

Arelaro questiona essa concepção alertando-nos de que a proposta de currículo único visa implementar o modelo gerencial em nossas instituições escolares. “É preciso resistir a essas tentativas de redefinição do papel da escola e do professor, destacando, no caso, que nacional não significa homogêneo e comum não é sinônimo de único” (ARELARO, 2017ARELARO, L. R. G. Ousar resistir em tempos contraditórios: a disputa de projetos educacionais. In: LOMBARDI, J. C. (org.). Crise capitalista e educação brasileira. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017. p. 47-59. Disponível em: https://www.editoranavegando.com/copia-temas-em-educação-1. Acesso em: 27 set. 2022.
https://www.editoranavegando.com/copia-t...
, p. 51). A autora rechaça a padronização homogeneizadora que não permite contemplar a diversidade do alunado e suprime a autonomia intelectual do professor, transformado em mero executor de programas que não elaborou.

Os grandes grupos privados, em articulação com instituições educacionais globais, têm o propósito de promover mudanças na educação de diversos países, sobretudo no currículo, na avaliação e na formação de professores. A autora, que participou de grupos de pesquisa que investigam, entre outros, o Instituto Ayrton Senna, destaca em texto com Peroni e Caetano que esse vem atuando como think tank e, em parceria com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), recomendou o desenvolvimento e a avaliação de competências socioemocionais nas escolas públicas, orientadas para empreendedorismo, educação financeira e meritocracia, adotados na BNCC. Essas medidas, questionadas pela ANPEd e outras organizações de pesquisa, implicam a oferta de formação instrumental ao alunado, mero adestramento seguindo cânones neoliberais, que ferem o dispositivo constitucional garantidor do “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” na educação brasileira (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.).

O processo de construção da BNCC foi incorporando bandeiras do movimento empresarial e por outro, o financiamento do grande capital alinhados à OCDE. Portanto, temos instituições empresariais que atuam através de programas na Educação Básica, prestadores de todo tipo de serviço para a educação e gerentes dispostos a fazer parte deste grupo para gerenciar os processos e serviços oferecidos, direcionando a educação

(PERONI; CAETANO; ARELARO, 2019PERONI, V. M. V.; CAETANO, M. R.; ARELARO, L. R. G. BNCC: disputa pela qualidade ou submissão da educação? RBPAE, Brasília, DF, v. 35, n. 1, p. 035-056, jan./abr. 2019. https://doi.org/10.21573/vol1n12019.93094
https://doi.org/10.21573/vol1n12019.9309...
, p. 46).

Desse modo, a educação básica passa a ser vista como “um novo negócio na educação”.

Entre os grupos que atuaram disputando espaço para seus projetos na elaboração da BNCC, muitos foram financiados pela Atlas Network, uma conexão transnacional dessas entidades, “uma espécie de metathink tank”, que têm em comum a defesa do Estado mínimo, da desregulamentação dos direitos trabalhistas e da extinção de programas sociais, visando salvaguardar os privilégios das elites. Cabe enfatizar que a Atlas Network oferece programas de treinamento, frequentados por movimentos e grupos organizados de nosso país, por exemplo o Movimento Brasil Livre (MBL), Estudantes pela Liberdade, entre outros, com elevados recursos obtidos de fundações parceiras nos Estados Unidos para a formação de jovens líderes, em especial na América Latina e na Europa oriental.

A missão dessas instituições, além de influenciar e desestabilizar sistemas democráticos, especialmente na América Latina, é a formação de lideranças jovens que possam expandir sua ação nos diferentes países. Eles atuam em redes dentro de redes, possuem altos investimentos, patrocínios e utilizam as redes sociais para impor seus pensamentos conservadores e liberais

(PERONI; CAETANO; ARELARO, 2019PERONI, V. M. V.; CAETANO, M. R.; ARELARO, L. R. G. BNCC: disputa pela qualidade ou submissão da educação? RBPAE, Brasília, DF, v. 35, n. 1, p. 035-056, jan./abr. 2019. https://doi.org/10.21573/vol1n12019.93094
https://doi.org/10.21573/vol1n12019.9309...
, p. 51).

Arvoram-se em defensores de pautas conservadoras, como a exclusão das questões de gênero e de Direitos Humanos nos Planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação e do resgate de conteúdos curriculares implementados pela ditadura civil-militar na educação básica, tais como Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, incluindo disciplinas como “Projeto de Vida”, “Empreendorismo”, entre outras, para as quais não houve qualquer discussão pública anterior e que têm sua origem numa matriz mercadológica e não nacional. Supervalorizam as Tecnologias de Informação e Comunicação como se resolvessem todos os problemas da educação, distorcendo o papel da escola e buscando obscurecer as questões sociais.

Para enfrentar esse processo, que ameaça as nossas instituições científicas e acadêmicas, a formação de nossos jovens e de nossos trabalhadores e, em especial a soberania de nosso país, Arelaro nos conclama a resistir, dialogando e discutindo coletivamente os conteúdos curriculares propostos e a formação de professores, hoje majoritariamente a cargo das Instituições de Ensino Superior privadas, que detém 75% das matrículas das licenciaturas, ministrando formação domesticadora. É necessário divulgar informações e conhecimento sobre esses fatos e suas implicações e conscientizar alunos, professores e pais, na perspectiva da transformação de uma escola que reproduz a cultura da classe dominante e as iniquidades do sistema capitalista, acentuadas em um país desigual como o nosso, a partir das lutas pelo direito à educação com qualidade social e por um processo educacional que seja de “formação humana, mais solidário, mais ético, mais crítico”. Arelaro nos alerta de que a nova crise do capitalismo mundial “escancara as contradições sobre a concentração da riqueza em poucos, contra a fome de muitos. E esta é a razão pela qual a luta contra a alienação se faz necessária” (ARELARO, 2017ARELARO, L. R. G. Ousar resistir em tempos contraditórios: a disputa de projetos educacionais. In: LOMBARDI, J. C. (org.). Crise capitalista e educação brasileira. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017. p. 47-59. Disponível em: https://www.editoranavegando.com/copia-temas-em-educação-1. Acesso em: 27 set. 2022.
https://www.editoranavegando.com/copia-t...
, p. 58).

Arelaro nos alerta para a relevância das disputas presentes no campo educacional, já que a conscientização por meio do acesso ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade tem importante papel na perspectiva de articular as lutas por um outro mundo, mais igualitário, com universalização do acesso aos direitos sociais.

Considerações Finais

Buscamos neste artigo abordar as contribuições mais significativas do legado que fica da exitosa carreira acadêmica, política e administrativa da professora Lisete Arelaro que, certamente, transcende o espaço deste texto. Com uma trajetória marcada pela intensa dedicação à defesa da educação pública, laica, democrática e voltada à inclusão social e respeito à diversidade, seus escritos e seu exemplo seguem vivos nas produções acadêmicas e nas práticas políticas e pedagógicas de todos e todas que tivemos o privilégio de privar de seu convívio.

Intransigente defensora da democracia e da garantia de direitos às classes populares, deixa suas marcas compartilhadas também com os movimentos sociais, na cidade e no campo, aos quais se dedicou, bem como com os estudantes universitários que puderam tê-la como garantidora de canal de diálogo com as diversas instâncias da universidade, nas quais sempre atuou.

Nossa querida professora Lisete, como era chamada, jamais se eximiu de assumir compromisso com as causas que defendia, tanto na administração pública, como em candidaturas ao parlamento ou a cargos eletivos, quanto nas instituições de pesquisa ou sindicais.

Gestora eficaz e consistente, aliava a densa formação acadêmica, política e administrativa, coerentemente articuladas entre si, a uma personalidade ímpar e um otimismo e uma força de vontade que a todos e todas contagiavam.

Símbolo de esperança, luta e perseverança, é sempre referência na fina percepção das possibilidades de resistência que a vida pode nos trazer nos momentos mais adversos. Consciente de que as batalhas em prol da educação pública de qualidade se travam em campo muito disputado, nunca se furtou a assumir o compromisso de colocá-la ao alcance das classes populares

(MORAES; TAMBERLINI, 2020MORAES, C. S. V.; TAMBERLINI, A. R. M. B. Lisete Arelaro: esperança e utopia. In: ARELARO, L. R. G. (org.). Escritos sobre políticas públicas em educação. São Paulo: FEUSP, 2020. Disponível em: livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/622. Acesso em: 27 set. 2022., p. 16).

Para além de uma vida plena e intensa, a força das suas ideias permanece, pois, parafraseando Milton Nascimento, sonhos não envelhecem. Lisete presente!

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Editora de seção: Ivany Pino. https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2022
  • Aceito
    03 Nov 2022
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