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Entre a clausura do desatino e a "inclusão" da anormalidade: vicissitudes da loucura na obra de Michel Foucault

Between the confinement of folly and the "inclusion" of abnormality: vicissitudes of insanity in the work of Michel Foucault

Resumos

O presente estudo percorre o exercício investigativo conduzido por Michel Foucault acerca da loucura, demarcando o laço inextricável que dito estatuto mantém com uma determinada configuração cultural e apontando para seus desdobramentos na contemporaneidade; nesse sentido, segue a trajetória foucaultiana em seus momentos arqueológico e genealógico: da percepção de uma loucura errante e quase romanciada àquela que se vai configurando em função de um imperativo da razão; de uma categorização da loucura como próxima às regiões do crime e do castigo à sua aparente dispersão no amplo eixo classificatório da anormalidade descrito na cena moderna.

loucura; modernidade; moral; subjetividade


The present study thoroughly examines the investigative exercise conducted by Michel Foucault about insanity, demarcating the inextricable tie that the concept of insanity has with a specified cultural configuration and pointing to its unfoldment within the contemporary context; along these lines, it follows the path of Foucault in its archaeological and genealogical moments: from the perception of a nomadic and almost romanticized madness to one that begins to take shape under the imperative of reason; from a categorization of madness as being close to the regions of crime and punishment to its apparent dispersion in the ample classificatory axis of abnormality described in the modern scenario.

insanity; madness; modernity; moral; subjectivity


TEMÁTICAS DIVERSAS

Entre a clausura do desatino e a "inclusão" da anormalidade: vicissitudes da loucura na obra de Michel Foucault* * Trabalho realizado com o apoio financeiro do CNPq

Between the confinement of folly and the "inclusion" of abnormality: vicissitudes of insanity in the work of Michel Foucault

Daniella Coelho de Oliveira

Psicóloga. Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e especialista em Medicina Preventiva/Saúde Coletiva pela Universidade de São Paulo. Endereço: 6, Wiggie Lane - Redhill, Surrey UK RH12HJ. E-mail: c.daniella@gmail.com

RESUMO

O presente estudo percorre o exercício investigativo conduzido por Michel Foucault acerca da loucura, demarcando o laço inextricável que dito estatuto mantém com uma determinada configuração cultural e apontando para seus desdobramentos na contemporaneidade; nesse sentido, segue a trajetória foucaultiana em seus momentos arqueológico e genealógico: da percepção de uma loucura errante e quase romanciada àquela que se vai configurando em função de um imperativo da razão; de uma categorização da loucura como próxima às regiões do crime e do castigo à sua aparente dispersão no amplo eixo classificatório da anormalidade descrito na cena moderna.

Palavras-chave: loucura; modernidade; moral; subjetividade.

ABSTRACT

The present study thoroughly examines the investigative exercise conducted by Michel Foucault about insanity, demarcating the inextricable tie that the concept of insanity has with a specified cultural configuration and pointing to its unfoldment within the contemporary context; along these lines, it follows the path of Foucault in its archaeological and genealogical moments: from the perception of a nomadic and almost romanticized madness to one that begins to take shape under the imperative of reason; from a categorization of madness as being close to the regions of crime and punishment to its apparent dispersion in the ample classificatory axis of abnormality described in the modern scenario.

Keywords: insanity; madness; modernity; moral; subjectivity.

Em torno da loucura reúne-se uma diversidade de instituições sociais, que agem sobre ela para regular seus excessos, curá-la ou suprimi-la como perigo social, para sanear a cidade de seus efeitos de desordem e estranheza. É uma noção que se conecta na modernidade com um ideário de periculosidade e de doença e não sabemos até que ponto ainda nos encontramos atados a essa referência ou o quanto nos distanciamos dela.

Com Foucault entendemos que os sentidos conferidos ao louco falam de um personagem que se redefine conforme a cena cultural em que habita, que ganha e perde atributos na passagem do tempo, que pode desfazer-se em cenários outros; temos acesso a toda uma trama de saberes que se constitui para dar sentido a esse objeto quase indecifrável, a uma mecânica de poderes que se aplica sobre ele, concretizando-se no dever de regras morais e definições estritas de saúde, normalidade e bom comportamento.

A questão da loucura aparece em vários momentos da obra foucaultiana como foco principal de sua indagação ou em conexão direta ou mediata com temas como a sexualidade, os sistemas penais, o crime, a medicina; ela é o mote que incita à proposição do método arqueológico e também um problema que está presente nos momentos inaugurais da elaboração da genealogia do poder, despontando como um tema articulador entre algumas das mais importantes questões postas pelo autor no conjunto de sua produção acadêmica.

A arqueologia, inovação metodológica introduzida por Foucault nos anos 1960 que tem significação desde a pergunta sobre "como" os saberes se constituem e transformam na modernidade, ganha consistência com a interrogação sobre as origens da loucura. É essa indagação que provoca uma trajetória que aponta para o passado no sentido de recompor as malhas de uma situação própria ao presente. A História da Loucura (FOUCAULT, 1999a) representa esse passo atrás no intuito de construir uma leitura do momento em que o autor vive e compõe o texto.

Também a série de conferências, debates, intervenções e pequenos escritos (FOUCAULT, 1999b) prosseguem e multiplicam as discussões do filósofo sobre o tema, tangenciando perspectiva histórica e leitura do acontecimento. Em termos genéricos, seja sob o método arqueológico de A História da Loucura (FOUCAULT, 1999a) ou na perspectiva genealógica - metodologia que investe no "porquê" da constituição e mutação dos saberes e que vai ser construída nos anos 1970 em ditos como Os Anormais (FOUCAULT, 2001) - o debate acerca da loucura traz uma reflexão que ultrapassa o sentido do retorno no tempo como uma curiosidade filosófica e constitui propriamente uma tomada de posição sobre o fato em curso.

O caminho que Foucault percorre faz-se diante de uma indagação que se lhe apresenta nos anos 1960 e prossegue anos depois, quando investiga a expansão de uma política de medicalização que atua sobre os mínimos desvios de conduta. Portanto, é da realidade europeia do último século, quando a loucura está naturalizada como "doença mental" por uma psiquiatria que atua sob moldes claramente positivistas, que emana sua pergunta; é essa cena que confere significação ao seu retorno no tempo.

Da Idade Média à modernidade, o autor nos conduz de uma loucura que é presença estética e cotidiana a uma outra, silenciada, que assume a condição de fenômeno natural; ele nos traz de uma "loucura errante" ao seu confinamento na "doença mental". Nessa passagem, Foucault descobre em seu objeto muitas faces: desde sua análise crítica, a tradução da loucura faz-se a partir da leitura de práticas e discursos, é assinalada diante e por uma condição social: a radicalidade de sua obra está em afirmar que a loucura "só existe em uma sociedade, que ela não existe fora das normas da sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou a capturam" (FOUCAULT, 1999b, p. 150).

Ao analisar a relação que seu objeto mantém com a cultura, o pensador descobre uma separação entre o conhecimento sobre a loucura constituído em torno do dispositivo médico e as práticas que agem sobre o louco, definidas sob condições políticas, jurídicas e econômicas. São dois níveis distintos, que seguem em paralelo e que não necessariamente se cruzam. Desse modo, os contornos do referido objeto são recortados em discursos literários, teológicos, filosóficos, poéticos; é da variedade de intervenções institucionais, processos judiciários e documentos de asilos que organiza um saber sobre a loucura. Portanto, é também na periferia do discurso da ciência que Foucault encontra um acervo de pesquisa, é dessa exterioridade que se vale para constituir seu território de análise; suas teses tornam-se, mais do que aventura do saber, um aparelho crítico que retira a ciência do lugar exclusivo de acesso à verdade, constituindo uma leitura que imprime ao texto o traço de sua autoria.

Em síntese, o filósofo nos remete a uma arqueologia da loucura particularmente referida à cena moderna francesa como também permite visualizar sob um plano mais macro as operações que se processam nos domínios dos discursos e das práticas sociais em ação nessa "episteme", ou seja, esse détour retrata a busca desse suporte de conhecimentos, de um a priori histórico que dá sustentação a uma nova positividade.

Também na genealogia a condução de seu pensamento segue de uma observação localizada sobre a questão da loucura à própria tradução das estratégias disciplinares do poder, mantendo o foco ora nas formas subliminares em que o estatuto da normalização captura esse objeto, ora na dinâmica social que modeliza e aciona essa máquina. O texto foucaultiano permite observar em ato as operações subliminares do poder; percorre suas engrenagens e exibe sua aplicação ao nível das subjetividades. Na figura do louco podemos assistir a uma incansável demonstração desse dispositivo: na envergadura de seu corpo a parafernália institucional do hospital e do asilo e até mesmo na submissão às práticas terapêuticas mais contemporâneas é possível mirar as sutis estratégias de uma complexa mecânica de controle.

A fina erudição do autor unida a uma incisiva discussão sobre o tema em questão possibilitam-nos apreender o funcionamento dos aparelhos institucionais que conferem e regulamentam um determinado estatuto ao louco e que dispõem sobre uma série de temas correlatos, concedendo uma análise contundente da cena moderna e surpreendendo-nos com sua potência crítica ainda em nossos dias. Assim, via loucura, podemos entender em detalhe uma nova geografia que se desenha no horizonte da modernidade: penetrar a paisagem sombria da exclusão nos manicômios, a constituição da psiquiatria, da psicologia e da psicanálise e sua leitura/intervenção sobre o tal fenômeno. E ainda nos é possível vislumbrar suas nuances mais contemporâneas, assistir à "inclusão" do louco sob a perspectiva do controle dos corpos que se efetua por meio de uma política de medicalização; perceber, em processo, a construção de uma complexa rede de regulação das subjetividades; sentir o impacto do alcance de penetração das novas tecnologias de poder, verificando os múltiplos efeitos sociais desses acontecimentos.

Em outros termos, a loucura no texto foucaultiano desvenda um olhar para a engrenagem que a assimila à doença mental, refletindo ora uma política de exclusão operacionalizada pela internação, ora outra, mais recente, de "inclusão" e controle atualizados em um processo sutil de regulação dos corpos. Nesse ponto, talvez estejamos propriamente alcançando as vicissitudes da loucura no último século e, mais radicalmente, chegando a nos confrontar com a aparente dispersão de sua figura nos dias de hoje.

1.1 AS RELAÇÕES ENTRE LOUCURA E RAZÃO NA ARQUEOLOGIA DE MICHEL FOUCAULT

A História da Loucura (FOUCAULT, 1999a) narra a crescente sujeição da loucura à razão e as cruciais implicações desse acontecimento. Tendo acesso privilegiado ao saber das instituições, constitui uma percepção da loucura especialmente referida à Idade Clássica; no entanto, o percurso tem início na Renascença e segue até a modernidade, este o momento sobre o qual interessa ao autor ter legibilidade.

A modernidade é o tempo em que a loucura está enquadrada pelo discurso e prática psiquiátricos, quando as psicoterapias não fazem mais do que afirmar para o louco o estatuto de "doente mental" e a psicanálise age sobre ele apenas para descobrir-lhe a razão. Foucault, nesse momento de sua obra, quer encontrar o que se situa antes e fora desse saber; é nessa perspectiva que sua pesquisa alcança a Renascença. A importância desse último marco é selar o início da dominação da loucura pela razão.

Na Idade Média, a loucura habita as paisagens do mundo; é quando os loucos são presença no intervalo entre uma cidade e outra (FOUCAULT, 1999b). No Renascimento, a literatura e a iconografia retratam as naus, esses barcos que atravessam os rios levando uma carga de "insanos", numa eterna ronda sem tempo nem espaço: a imagem do louco vagando nesses territórios sem marcas descreve a situação liminar em que ele vive e figura sua condição de prisioneiro dessa zona indefinida do trânsito; é personagem que torna-se recluso ao espaço da beira, a esse interior dos exteriores, onde se faz peregrino sem escolha, o eterno viajante (FOUCAULT, 1999a). De forma dramática, o autor demonstra que o momento renascentista não apenas designa um lugar para o louco mas define um símbolo para sua condição que talvez ainda traduza, ao nível imaginário, algumas de suas mais importantes figurações na presente cultura ocidental.

A loucura traz inquietude quando revela que o humano pode ser corrompido pela insensatez, quando passa não somente a espreitar o homem desde uma exterioridade mas a se relacionar com ele como sua parte. Suas mais diversas representações na literatura e na arte causam espanto, mas também fascínio pois o "insano" é significado como aquele capaz de pronunciar um saber esotérico, de apreender os grandes mistérios do cosmos, tendo no delírio nada mais do que uma forma de encontrar com a verdade. Foucault (1999a) descobre, pois, que a Renascença faz conviver duas experiências da loucura: uma "trágica", que aproxima o onírico do real, força de revelação do mundo; outra "crítica", que corresponde aos defeitos humanos, aos erros de conduta. Esse confronto entre a apreensão de uma loucura trágica e uma consciência crítica que marca dito período histórico é o fio que conduz a argumentação do autor, que ilumina sua reflexão sobre a modernidade.

Desde o século XVI ganha cada vez mais força essa vertente que confronta o homem com sua verdade moral: o destino das imagens trágicas será sobreviverem ocultas sob o pensamento racional. A Idade Clássica se inicia marcando esse corte, afirmando a loucura como uma forma relativa à razão; nessa episteme, "loucura e razão entram numa relação eternamente reversível que faz com que toda loucura tenha sua razão que a julga e controla e toda razão sua loucura na qual ela encontra sua verdade irrisória" (FOUCAULT, 1999a, p. 30). Podemos dizer, portanto, que uma experiência cósmica, de acesso à verdade, dá lugar a uma outra moral, própria do homem. A loucura, de lugar de revelação da verdade torna-se ilusão, desregramento, fraqueza. Como consequência desse rompimento temos um saber racional que se apoia em uma moralidade e em uma loucura que perde-se de seu rosto trágico.

Cervantes e Shakespeare ainda dão testemunho de uma loucura como experiência enunciativa, conservando-lhe o poder de revelação; presentificam uma inquietação que vem da confusão entre o real e o imaginário, a comunicação entre a invenção fantástica e as fascinações do delírio, como se fizessem sobreviver essa forma de ser extemporânea, que já não encontra lugar na Idade Clássica e por isso é percebida como "desatino". Nas figuras de Quixote ou Lady Mc Beth, a razão é irrecuperável.

Lembremos, ainda, que o período clássico faz emergir também por meio do discurso filosófico de Descartes a dominação da loucura: no "cogito" é o pensamento que confere existência ao ser e que expulsa do ser a loucura; em contrapartida, o enlouquecimento é falta, vazio de pensamento. Loucura e razão já não se misturam como no período anterior, mas estão agora divididos por uma rachadura que impede toda comunicação entre uma e outra instância; na origem de todo pensamento ordenado existe uma escolha ética contra a desrazão.

Enquanto a loucura se inscreveu no eixo verdade-erro-consciência ainda podia integrar-se à natureza; todavia, a cultura clássica corrompe o seu poder de enunciar a verdade e conclui por impor-lhe a dessacralização e o silenciamento. Desde que passa a significar-se pela ordem do pensamento já não mais pode ocupar esse limite fugidio simbolizado pela navegação, por uma existência errante, mas é contida em um território muito bem demarcado do enclausuramento. O século XVII cria o Hospital Geral, estrutura semijurídica que isola a desrazão como percepção ética: a sexualidade, a desordem da alma, a libertinagem, a loucura são as figuras que vão habitar esse espaço que a tudo homogeneíza sob o crivo da moralidade. O louco confunde-se entre os miseráveis que são recolhidos ao internamento; entre prostituta, alquimista, suicida, vive sua reclusão nesse espaço fechado cuja função é excluir tudo o que se configura como estranho à norma.

Mas nos perguntamos com Foucault (1999a): que transformação na rede de saberes implica o banimento do "insensato", o que faz o mundo clássico recusar essa presença? E ,ainda, que princípios permitem reunir o louco a todos esses personagens exilados?

A política de exclusão traduz um gesto repleto de significações, permite formular uma nova sensibilidade em relação à pobreza e também um outro tipo de resposta às questões do trabalho e do ócio, à vida econômica nas cidades. No classicismo a miséria já não dispõe de uma positividade mística como a que lhe é conferida no Renascimento, não é mais a representante de Deus no mundo. Aqui, a pobreza passa a pertencer ao horizonte da moral e deve ser encerrada para receber hospitalidade e ser punida: o internamento cumpre a função de reprimir essa população, conter seus motins e explorá-la como força de trabalho.

O Grande Enclausuramento dá novo sentido à experiência do "desatino", é acontecimento que assimila o louco à população de miseráveis e assim o insere no horizonte da pobreza; mostra-lhe sua inadequação ao trabalho e ao grupo e percebe-o como problema para a cidade. Mas a repercussão mais significativa dessa invenção não pode ser resumida na transformação da loucura a partir dos valores atribuídos ao trabalho. A descoberta foucaultiana assinala que a grande consequência do internamento vem do ato de unir personagens que em nenhum outro momento da história haviam sido aproximados; é desse ato que deriva uma série de associações que irá conduzir à experiência de loucura na modernidade.

Explicando-nos, o internamento reúne quatro grandes grupamentos: os devassos, os profanadores, os libertinos e os loucos. Ele agrega os que manifestam uma liberdade sexual e desafiam as regras estabelecidas pela norma familiar - venéreos, sodomitas, prostitutas, homossexuais, pródigos. Nesse contato avizinham-se os desvios sexuais e a loucura, criando um parentesco entre o pecado da carne e as faltas cometidas contra a razão.

Compondo essa massa de miseráveis estão os que cometem interditos religiosos, que fazem uso de procedimentos mágicos, receitas de feitiçaria, adivinhação, alquimia, os suicidas; todo tipo de profanação do sagrado que agora significa desordem do coração, da alma, defeito moral ou social. Essas práticas associam-se nesse momento ao mal e à ilusão, criando um vínculo entre o profano e a insanidade.

A libertinagem é essa terceira região que constitui a população de excluídos. Corresponde aos irracionais, a quem se sujeita aos desejos do coração, os corrompidos pelos estados de paixão. Também eles se aproximam do louco, porque são marcados pelo índice negativo da desrazão: loucura e libertinagem rompem com a moral e se tocam no discurso apaixonado do desatino.

O louco integra o quarto grupamento e assim aproxima-se de todos esses personagens que se distanciaram da norma. Devemos enfatizar que nesse encontro a loucura vai adquirindo uma similitude com essas outras figuras - avizinha-se ao pecado da carne, é coagida pelo coração, testemunha a profanação. É a herança constituída no evento social do Grande Enclausuramento que irá assimilar-se à "natureza" da loucura na modernidade. Ou seja, Foucault (1999a) conclui em sua História da Loucura que o louco incorpora, do ponto de vista da psiquiatria nascente, as qualidades atribuídas a seus vizinhos de confinamento, incorporando atos-adjetivos como o pecado da carne, o gesto da profanação, a libertinagem.

Portanto, o que vemos formular-se na episteme clássica é uma concepção ética que se concretiza sob a fortaleza asilar, estabelecendo um novo estatuto para a loucura:

Esse desatino se vê ligado a todo um reajustamento ético onde o que está em jogo é o sentido da sexualidade, a divisão do amor, a profanação e os limites do sagrado, da pertinência à verdade e à moral. Todas essas experiências, de horizontes tão diversos, compõem em sua profundidade o gesto bastante simples do internamento; num certo sentido ele não passa do fenômeno superficial, de um sistema de operações subterrâneas que indicam todas a mesma orientação: suscitar no mundo ético uma divisão uniforme que até então permanecera desconhecida (FOUCAULT, 1999a, p. 106).

O classicismo, por meio de um ato de exclusão, vai compondo uma nova regulamentação que segue da transgressão sexual aos rituais da magia. Nessa geografia subterrânea vão-se aproximando estruturas aparentemente dispersas que convergem na "insanidade". Foucault (1999a) destaca que nesse movimento de vizinhança e contágio vão-se constituindo os fundamentos do que virá a ser a experiência moderna da loucura e chama a atenção para a objetividade que a desrazão efetua no classicismo, pois aí ela se realiza como lei e personifica-se em figuras humanas. No comentário de Roberto Machado (1982, p. 67), "a desrazão é um campo de experiência que objetiva o negativo da razão em tipos concretos, sociais, existentes, individualizados, é a negação da razão realizada como espaço social banido, excluído".

O século XVIII elabora, portanto, uma percepção social do louco a partir da experiência do internamento. Lembramos, contudo, que o referido texto foucaultiano afirma que ela não será a única, mas dividirá a cena com uma percepção do louco atribuída ao discurso médico.

A esse tempo, para a medicina vigente a loucura é um objeto do qual ela quer perscrutar os determinantes, a natureza. Essa é uma medicina das espécies patológicas, que funciona sob o modelo da história natural e cuja ambição é classificar seu objeto em uma ordem racional das espécies patológicas a partir de uma sintomática. Nesse ponto, alcançamos uma das principais descobertas da História da Loucura (FOUCAULT, 1999a): o fato de a loucura ser uma doença entre tantas quando está sob o crivo de uma racionalidade médica que não distingue o físico do mental. O percurso arqueológico permite desnaturalizar a loucura como doença mental, dissolvendo a continuidade necessária entre as duas estruturas conceituais, tal como veio a ser estabelecida no interior da modernidade.

Retornando a esse momento da medicina das espécies podemos prever a série de questões que lhe foram colocadas por esse estranho objeto que é a loucura, pois como definir a "insanidade" sem investigar aquilo a que não se tem acesso na mera aparência do sintoma, como organizá-la em quadros de classes e hierarquias recusando o que está oculto sob o corpo?

A loucura resiste à categorização de uma medicina clássica, remetendo-a a uma coleção de referências imaginárias. Esquadrinhar esse objeto, buscar sem encontrar nele uma ordem conferida exclusivamente pelo "visível" lança esse saber em uma classificação moral, próxima à que é concebida a partir das práticas que incidem sobre o louco no hospital geral. Portanto, o que mostra a análise foucaultiana nesse momento de sua obra é que no interior do século XVIII convivem uma percepção do louco que se constitui no internamento e um conhecimento em torno dele que se dá pela medicina: ambos seguem vias singulares e não necessariamente dependentes, mas se cruzam sob o crivo da racionalidade. Na cultura clássica, a loucura é produto social e epistemológico da razão.

A segunda metade do século XVIII aprofunda ainda mais o submetimento da loucura à razão, fazendo com que ao seu sentido sejam acrescidas as noções de "desumanização", "afastamento do homem de sua essência", tornando-a uma categoria social que deve ser solitariamente excluída por sua "periculosidade". A loucura vai-se autonomizando em relação ao "desatino" que sob o internamento tinha recaído na monotonia de dizer respeito a uma variedade de figuras humanas uniformizadas sob seu rótulo e superpõe-se à figura da "alienação".

Os marginais que dividiam as celas do hospital conquistam uma aparição singular, nesse momento, é-lhes conferido algum domínio sobre a razão. Essa é a população que Pinel e Tucke vão libertar da reclusão de um século; eles, os convocados como força de trabalho numa sociedade industrial nascente. A pobreza é reabilitada numa economia que necessita de corpos produtivos, rompendo-se o elo histórico que até então a mantivera associada à patologia; já a loucura torna-se injustiça para o outro e recebe sua condenação ao isolamento, como se o espaço do asilo sempre lhe pertencesse. Portanto, no texto foucaultiano (FOUCAULT, 1999a), a crítica política do internamento, menos do que libertar a loucura, encerra na instituição asilar os personagens que agora fazem dela o seu abrigo, fazendo confundir uma tecnologia com função eminentemente segregadora com a própria essência do "alienado".

Em síntese, o século XVIII dá lugar a uma divisão entre os loucos, o que permite a invenção do asilo, da psiquiatria. A loucura é afirmada em seus direitos, adquire propriedades mais nítidas que refazem sob outros parâmetros o seu destino de exclusão. Desse modo, tanto do âmbito de uma cultura que não mais invoca a miséria como doença, como do cerne do isolamento com a intervenção dos reformadores, a loucura passa a figurar no novo círculo do "desatino": é nessa "figura flagrante e arruinada", que desde agora não mais diz respeito à pobreza confinada, mas somente à loucura, na qual doravante vai-se alojar (FOUCAULT, 1999a).

Foucault, em crítica contumaz, atribui aos reformadores uma condição muito diferente da que foi traçada por uma história tradicional. Pinel e Tucke constroem o solo da psiquiatria positiva fazendo nascer o mito da libertação dos loucos, mas o trajeto arqueológico permite afirmar que aquele saber faz "passar por natureza aquilo que é conceito, por libertação de uma verdade o que é reconstituição de uma moral, por cura espontânea da loucura aquilo que talvez não passe de sua secreta inserção numa realidade artificiosa" (FOUCAULT, 1999a, p. 476). Ou seja, na análise do autor, os ditos libertadores da loucura nada mais fazem do que naturalizá-la como doença mental, fazendo passar por terapêutico um enclausuramento que cumpre sua função social de saneamento e proteção da cidade, batizando como cura a submissão a princípios claramente morais.

De outro modo, a análise foucaultiana permite reconsiderar o que foi atribuído como mérito à obra de Tucke. Conclui que o dito "libertador" trouxe para o âmago da loucura o medo, a responsabilidade por sua cura: ao louco, desde então, caberá tomar consciência de sua irracionalidade, assumir sua culpa por desviar-se do código, receber punição por meio do olhar e da palavra de seu guardião. Nessa concepção, o asilo será o espaço que executa a correção, no qual os valores morais do trabalho e da família e uma infinidade de virtudes devem penetrar o insensato, agir nele de modo a fazê-lo redimir-se. No hospício recém inaugurado, a moral é o dispositivo da cura.

Também o gesto de Pinel assume um outro vértice sob a citada leitura foucaultiana. É pela transformação operada na intervenção pineliana que o asilo torna-se instrumento de uniformização, instância judiciária que faz cumprir a ordem ao custo de uma punição, nem sempre sutil, administrada pelas terapêuticas.

Desse modo, o internamento no século XIX traz uma outra equação para a loucura, que passa a pertencer ao quadro das "anomalias morais". O hospício torna-se o lugar de cura das "perversidades", desses excessos que caracterizam o enlouquecimento, é onde o doente deve renunciar às suas perturbações: ao onipotente cabe curvar-se ao seu orgulho.

Mas desde a modernidade não é apenas no espaço da reclusão que essa sentença moral se realiza. Sob a figura do médico, psicanalista ou psiquiatra, a loucura perde toda a sua potência transgressora, uma vez que são esses personagens que se atribuem o conhecimento sobre ela, que podem alcançar o seu íntimo para fazer falar a razão que ela alienou.

Sob a escrita foucaultiana (FOUCAULT, 1999a), a psicanálise integra essa tradição crítica da loucura à medida que sua intervenção tem o sentido de alcançar esse resquício de razão que o "alienado" mantém; o dispositivo transferencial é um prolongamento do dispositivo moral. Nesse sentido, o psicanalista é tal qual o alienista já que seus procedimentos técnicos atuam no sentido de conduzir o louco a um confronto com o absurdo de sua onipotência, com a fragilidade de suas certezas e a irrealidade de sua crença. O psicanalista quer imprimir ao louco a "retificação pedagógica" de sua onipotência.

Do louco oráculo, reconhecido pelo acesso à verdade, alcançamos na cena moderna a sua mais profunda exclusão, essa que é operada pela psiquiatria e pelas ciências humanas, a exemplo da prática psicanalítica. Aqui, a loucura torna-se "alienação", corrupção do pensamento, a responsável por retirar do humano sua essência, sua verdade. Em uma palavra, o que estava separado no período clássico se conecta na cena moderna quando a psiquiatria e os saberes em seu torno reúnem "percepção social do louco" e "teoria da loucura".

Concluindo, podemos dizer que uma arqueologia da loucura denuncia que o momento moderno corresponde a uma radicalização da tradição crítica iniciada no Renascimento, a um domínio sem correspondente da razão sobre a desrazão, ao apagamento mais radical da positividade da loucura que segue condenada a expressar-se como produção enunciativa apenas nos limites da arte e da filosofia. Recuperando essa via argumentativa, a tese foucaultiana recai na contextualização da variedade de qualificativos assimilada à loucura, desfazendo, a golpes de mestre, as supostas naturezas que lhe foram atribuídas ao longo de séculos. Entendemos, pois, com Foucault (1999a), que o único ponto de interseção sobre toda a categorização da loucura desde o Renascimento até a modernidade é o seu crivo por um imperativo de ordem moral.

2. A DISPERSÃO DA LOUCURA NA GENEALOGIA DO PODER

A História da Loucura (FOUCAULT, 1999a) demonstra que a condenação do louco à alienação acontece par e passo à instauração de uma "era do patológico" - a constituição de um campo científico que vai nomear como doença as diferenças em relação a um padrão normativo. Nesse sentido, ao buscar decifrar a obscuridade de seu objeto, a análise foucaultiana assinala a relação que se estabelece entre discurso científico e norma social e até mesmo entre loucura e ato infracional. No íntimo do ato criminoso a ciência encontra a "insanidade".

O que o autor introduz nesses escritos ele irá complexificar em seus textos e falas sucessivos. Denunciará que a loucura em determinado momento histórico vem a ser delimitada não somente pelo discurso médico, mas também sob um domínio jurídico. Essa argumentação será desenvolvida com profundidade, especialmente em Os Anormais (FOUCAULT, 2001), série de seminários proferidos no Collège de France nos anos de 1974-1975, quando o pesquisador está concentrado em analisar as tecnologias de poder presentes nas práticas penais. É, portanto, em conexão com o crime que o filósofo retoma mais contemporaneamente o tema da loucura.

Nesse espaço de discussão o pensador demonstra como foi aberto um novo território para a loucura em termos de sua definição e seus destinos institucionais. A importância de examinar esses pronunciamentos faz-se no sentido de instrumentalizar a discussão sobre a mudança que se opera em torno desse conceito, particularmente nos séculos XIX e XX, o que pode sugerir um aparelho crítico para pensarmos sobre seus desdobramentos na atualidade.

Foucault (2001) introduz sua análise recuperando a equação que relaciona crime e loucura, buscando identificar as mudanças no eixo saber/poder ao longo da modernidade que alteram ou, mais propriamente, invertem os termos dessa relação. Como ponto de partida, o conferencista demonstra, por meio do recurso a documentos como relatos criminais e o código penal francês, a oposição absoluta entre "ato criminoso" e "estado de enlouquecimento" tal como foi prevista até a primeira década do século XIX. Ou seja, ele conduz seu ouvinte ao entendimento de que estas são categorias que se excluem mutuamente até essa data naquele contexto, de modo que a definição de loucura elimina a do crime e, reciprocamente, demarca a divisão necessária entre "ato delituoso" e "insanidade", como também entre os discursos médico e judiciário.

Objetivamente, para alcançar a questão da loucura na construção argumentativa de Foucault (2001) é importante acompanhar a constituição desse campo que vem a ser estabelecido no intervalo ou intercessão entre o crime e a loucura. Percorrendo sua discussão, identificamos que é nesse período de afirmação do projeto moderno que o autor localiza o ponto de redefinição para a categoria de "doença mental": é essa configuração social que propicia uma implosão dos territórios restritos do saber médico e jurídico, constituindo uma zona de vizinhança entre ambos e estabelecendo um certo continuum médico-judiciário que ressignifica os conceitos de "crime" e "loucura". Como principal implicação dessa descoberta podemos situar o fato de que tal recomposição dos campos teóricos vem a estruturar um território muito mais extenso para o patológico e o infracional, determinado pela figura do juiz-psiquiatra e concretizado como prática no "exame".

O exame, tal como Foucault o descreve em Os anormais (FOUCAULT, 2001), investiga a história do sujeito e ali encontra ações que contradizem um certo número de regras que podem ser de ordem fisiológica, moral, psicológica, etc., colecionando pequenos sinais, peças de uma história que, reunidas, montam o retrato do criminoso e/ou do louco. Em detalhe, essa técnica faz surgir uma série de objetos que ela incorpora ao delito. Noções como "imaturidade psicológica", "personalidade pouco estruturada", "desequilíbrio afetivo", "distúrbios emocionais", "jogo perverso" passam a compor a vida pregressa do criminoso e representam os "antecedentes" do ato infracional. Desse modo, o que vai a julgamento não é propriamente o crime, mas o que está por trás dele: são esses comportamentos que supostamente preparam sua gênese, que forjam o "fora-da-lei" ou o "insano". O que é condenado são esses fragmentos de história que constituem como que os sinais de loucura ou de uma suposta criminalidade. O exame psiquiátrico permite constituir um duplo psicológico-ético do delito, fazendo surgir por trás da infração a sua sombra.

É essa investigação minuciosa da vida pregressa que define os destinos do réu entre doença e responsabilidade penal, causalidade patológica e liberdade do sujeito jurídico, terapêutica e penalidade, hospital e prisão. Toda uma tecnologia de normalização vem a ser operacionalizada, atualizando uma forma de saber/poder própria às instituições modernas. Por meio desse dispositivo, a psiquiatria amplia a definição de infração e o poder de puni-la, constituindo o imenso campo sobre o qual se debruça entre os séculos XIX e XX, composto por uma lista infindável de tudo o que caracteriza o desvio em termos da moral, da disciplina e da regra.

Portanto, desde a modernidade, sob o crivo psiquiátrico vai estar o que antes pertencia à esfera da religião e da lei - toda indisciplina, agitação, indocilidade; o arrolamento de desordens que acometem o corpo e o espírito. O que Foucault apreende dessa análise é que o exame psiquiátrico investe sobre uma loucura/criminalidade apreciada sob o ponto de vista psicológico-moral, no qual a função dessa prática é rastrear histórias infantis que justifiquem o ato delituoso/louco como marca individual. Sob essa perspectiva, as condutas tomadas como infrações/loucura passam a romper não somente a lei, mas um nível de desenvolvimento ótimo, um determinado critério de realidade, qualificações morais e regras éticas (FOUCAULT, 2001).

É nos atos mais banais que incide a curiosidade do perito; sob termos como preguiça, orgulho, maldade e outras não menos pueris ele encontra o "perverso", estrutura que faz a ponte entre a norma e a doença, que estabelece o liame entre padrões de correção, cura e valor.

Constituindo uma linguagem comum com clara conotação moral, a reconstituição de uma narrativa histórica do indivíduo aproxima os discursos médico e jurídico e afirma a noção de "perversidade" como o núcleo teórico que sintetiza o perigo social. O que estava concentrado na figura do louco agora se dissolve nessa nova criação nosográfica que dispõe sobre o cidadão quase comum, quase normal, tomado como doente e causa pública de temor. Sob o regimento psiquiátrico, a categoria de doença mental se distende e passa a incorporar os mínimos desvios. Como ensina Foucault (2001), o exame é uma tecnologia de controle do sujeito que vai derivar em toda uma categorização da "anormalidade".

Desse modo, a lei e o tratamento vão ser guarnecidos por esse novo personagem que interpela o sujeito, que cuida para que ele se mantenha no âmbito restrito da saúde. A psiquiatria, no alvorecer do século XX, torna-se médico-judiciária. Com essa descoberta, a análise foucaultiana conduz não somente ao elo que se estabelece entre loucura e crime, mas torna patente a função social que desempenha o perito - esse psiquiatra que conduz suas práticas com o intuito de encontrar a raiz do ato criminoso e/ou da loucura, que cria a semelhança entre o sujeito e seus crimes e busca em algum momento remoto da existência individual os sinais de um comprometimento de caráter e que, mais curioso, aí não encontra a prova, mas os gestos cotidianos que supostamente flagram o ato maquiavélico.

Ao dispor-se ao estudo do crime, Foucault (2001) desvenda a própria história da constituição da psiquiatria, denunciando o compromisso social desse saber e as implicações da tecnologia que ele engendra. Doravante vai-se implementar, via discurso da ciência, toda uma autorização para perscrutar-se cada detalhe da vida do sujeito na tentativa de aí encontrar essas ilegalidades subliminares, os pequenos defeitos pessoais, as pistas de um transtorno de caráter; é a estruturação de um novo campo teórico e prático que se faz permear pelos ideais de correção, castigo e periculosidade herdados da justiça criminal. O autor ilustra, pois, a extensão dada ao crime e à loucura, a esses múltiplos efeitos de contágio que um causa sobre a outra e vice-versa, e, desde essa relação, observa a especulação que essa figura híbrida do juiz-psiquiatra vai fazer em torno da intimidade, tornando cada detalhe da existência um elemento incriminatório, signo passível de condenação. A exemplo da instituição penal e dos manicômios, todos e qualquer um passamos a suspeitos de crime ou loucura, pois guardamos histórias de vida que conforme seu recorte e interpretação podem nos designar como portadores de um germe para a "insanidade" ou para a "infração".

Também a realidade da condenação confere ao interno uma periculosidade sem precedentes. Na análise derradeira de Foucault, a internação desde o final do século XIX não mais se constitui na barreira que separa o monstro temível do indivíduo a ser protegido, mas será o fosso que assimila o sujeito que beira o comum, tornando-lhe também monstruoso diante dos que se situam para além dos muros institucionais. Em termos genéricos, as palavras do filósofo demonstram, por conseguinte, as estratégias que o poder assume na "sociedade disciplinar", a sua penetração aos recônditos da vida privada e a exacerbação de um perigo social atribuído ao louco. O incômodo dessas falas pronunciadas para os estudantes franceses (FOUCAULT, 2001) é mostrar-nos como criminosos potenciais, sujeitos sob vigília nos mais remotos gestos e, ao mesmo tempo vítimas de um perigo que ronda a partir de uma interioridade que não podemos prever e de um fora que não nos cabe controlar.

Nesse sentido, Foucault constrói sua genealogia analisando os dispositivos do discurso científico, descobrindo uma lógica de controle que alcança a generalidade dos sujeitos. Na sociedade moderna, não se trata somente de rejeitar ou de expulsar, mas de vigiar, observar constante e minuciosamente. A "sociedade disciplinar" é esse sonho de um poder exaustivo, que age pela captação das diferenças entre os sujeitos, pela percepção das singularidades, das intimidades; tecnologia que se presentifica no conjunto das instituições, da família à prisão, da escola ao manicômio, do aparelho de Estado ao cotidiano do trabalho. O século XVIII dá lugar a um sistema de disciplina-normalização, um esquema positivo de poder.

Perguntamo-nos, contudo, o porquê desse novo regimento social afetar tão sistematicamente a definição da loucura, em outros termos, inquirimos sobre o que faz com que o poder disciplinar desdobre esse estatuto, fazendo-o expandir-se ao ponto de descaracterizá-lo como sinônimo exclusivo de doença mental. Entendemos que é na própria reconfiguração dos domínios da psiquiatria que podemos perscrutar, com o autor, os caminhos para responder a essa questão.

É digno de nota que o saber psiquiátrico, até meados do século XIX, ainda não conquistara o título de especialização do saber ou de teoria médica, mas faz parte da Higiene Pública, assumindo a tarefa de proteção social, de defesa da população da doença e seus efeitos de corrupção do tecido social. Na argumentação de Foucault, a psiquiatria só ascende a um saber médico pela relação que estabelece com a loucura: é enquadrando-a simultaneamente como "doença mental" e como perigo social que alcança sua promoção, o reconhecimento como saber médico justificável. É qualificando como patológico o funcionamento do louco, fazendo-se saber da doença mental e associando-o a uma concepção de higiene pública que ela se afirma como discurso científico. De outra forma, é consolidando uma política de prevenção e uma terapêutica para sanar a dita doença e sanear a cidade que ela conquista o registro de conhecimento médico (FOUCAULT, 2001).

Entendemos, portanto, o esforço da psiquiatria em medicalizar um conjunto de comportamentos, sua interferência em condutas as mais quotidianas, cartografando um imenso campo de ações em nome da loucura. A título de assumir uma custódia do sujeito, de evitar um perigo que já não mais pertence à ordem da demência ou da alienação, ela se define como saber e constrói um terreno consideravelmente abrangente para seu exercício teórico e prático.

Há pouco mais de cem anos o psiquiatra encarna o papel de vigilante das famílias, da vizinhança, do núcleo mais íntimo do sujeito, incidindo zelosamente sobre os recantos obscuros das individualidades. Nesse sentido, paradoxalmente, a categorização da loucura amplia-se, mas também se dilui na passagem para o último século; torna-se a "loucura lúcida" de Trelat, a "loucura moral" de Prichard ou mais genericamente uma "loucura interior". O que dá consistência a esse conceito desde a arregimentação institucional da psiquiatria não é mais o sintoma do "delírio", mas sua característica de irredutibilidade, resistência, desobediência, insurreição, abuso de poder (FOUCAULT, 2001). Assim, toda a expressão da loucura no século XIX não será mais reconhecida apenas por sua assimilação a um estado de alma onde os sentidos já não mais apreendem uma suposta realidade. A loucura trará um outro perigo, muito mais extenso e liminar, porque seus mecanismos guardam um funcionamento brando, no limiar do imperceptível.

Já não se faz mais necessário para a psiquiatria referir-se a um "núcleo delirante", à "alucinação", ao que figurara propriamente o cerne da significação da loucura até então porque agora pode sintetizar a vastidão das ações humanas, interrogando todo e qualquer comportamento. À medida que a loucura passa a significar a infinidade de condutas desviantes, ela alcança sua máxima distensão e, com isso, perde sua especificidade e deixa de ser o objeto privilegiado do discurso psiquiátrico.

Além da expansão do território da loucura na sociedade, há também nesse período uma mudança em sua definição: será significada por um estado de sonho, pelo imperativo dos processos involuntários. A caracterização anterior é assimilada a uma nova ordem do saber na qual até mesmo as referidas "alucinações" e "perdas da consciência" são incorporadas ao sistema de funcionamento cerebral. De outro modo, o que passa a descrever a loucura é o "privilégio do involuntário sobre o voluntário", pois também a psiquiatria vai apropriar-se desse território do corpo, das disfunções neuronais, de noções nesse momento desenvolvidas pela neurologia. Na verdade, essas duas disciplinas - psiquiatria e neurologia - vão aproximar-se, tocar-se, influenciar-se mutuamente, constituindo também uma medicina do corpo, uma somatização da doença mental.

Nessa perspectiva, a loucura cede seu lugar central à "epilepsia", conceito que dá nexo a esse novo campo constituído pelos distúrbios funcionais e orgânicos e à variedade de comportamentos tomados como estranhos ou fora da regra: as excentricidades, as esquisitices, o pouco comum, o imperfeito, o irregular. Desse modo, as conferências foucaultianas organizadas em Os Anormais (FOUCAULT, 2001) nos permitem observar toda uma reestruturação da própria categoria de loucura que passa a assimilar uma série de figurações mais centradas em referências ao corpo, ao organismo e ao cérebro, reescrevendo toda a nosografia clássica.

Em resumo, podemos dizer que é investigando a equação que se conformou, ao longo da cena moderna, entre loucura e responsabilidade penal, que Foucault demonstra o deslocamento dos discursos médico e psiquiátrico da ideia de loucura para a de perturbação mental referidas à noção de "distúrbio", trazendo o foco para aspectos do funcionamento biológico (FOUCAULT, 2001). Mais precisamente é o momento em que uma concepção de loucura anteriormente esteada na ideia de "alienação" e "desatino" dá lugar a uma concepção muito mais abrangente de doença mental, na qual as mínimas diferenças entre os sujeitos podem prescrever sua assimilação a esse signo, podem nomeá-los portadores da patologia mental.

A importância desse discurso foucaultiano é assinalar que o mínimo distanciamento em torno de uma noção restrita de "normalidade" passa a ressignificar o domínio da "doença mental", que até então guardava uma superposição com a loucura. Desde as primeiras décadas do século XIX, uma diversidade de sintomáticas e patologias serão assimiladas a tal conceito: como refere Foucault (2001), há uma desalienação da loucura e, por conseguinte, um descentramento em torno da questão no próprio âmbito da Psiquiatria.

Enfatizando, a análise foucaultiana que ora recuperamos ilustra a transformação no eixo de saberes que incide sobre a loucura, designando toda uma reestruturação do seu campo a partir da afirmação da Psiquiatria como conhecimento científico autorizado; revela a mecânica do poder disciplinar atuante nos bastidores do discurso médico e constantemente sendo reatualizada por ele e conclui por situar a loucura no interior dessa lógica, nos fazendo acessar o funcionamento desse sistema ao nível de uma questão particular, precisa, o próprio acontecimento. Assim, somos levados a um afastamento estratégico, uma lente que se posiciona ao contrário e nos permite recompor a cena inteira: um fundo social cortado por uma rede de poderes, no qual se incluem os discursos e as práticas em torno do louco.

Retomando a nossa lente, nesse movimento entre a loucura e uma genealogia dos poderes, demarcamos uma descoberta que refaz o sentido da trajetória pelos pronunciamentos foucaultianos, revelando que, quando a loucura avança infinitamente no sentido de opor-se à norma, tornando-se apenas seu desvio, deixa de ser o objeto privilegiado da psiquiatria. Mais claramente, quando a psiquiatria busca a loucura nos mais ínfimos comportamentos acaba por encontrar aí o "anormal", uma estrutura teórica muito mais abrangente do que a "alienação", a "demência" ou a "insanidade", noção capaz de conter uma variedade de condutas. O "anormal" é o monstro empalidecido e banalizado, é esse personagem que emerge no discurso da ciência, afirmando uma potência criminosa no esconderijo de uma vida aparentemente comum.

O conjunto de aulas organizado em Os Anormais (FOUCAULT, 2001) encaminha, portanto, aos desdobramentos nas concepções/intervenções acerca da loucura no auge da modernidade, destacando a relação íntima entre a afirmação do projeto científico da psiquiatria e a definição da loucura como "doença mental" e, mais tardiamente, a diluição desse mesmo laço desde a aproximação entre os domínios médico e jurídico e a formulação do estatuto de "anormalidade".

Assim, mais do que reafirmar as descobertas do momento arqueológico, o autor assinala uma caracterização moral da loucura também constituída nessa zona de interseção entre o direito e a psiquiatria; proclama as variações de sentido atribuídas a este objeto segundo uma organização de saberes e poderes e, principalmente, apresenta-nos ao seu destino paradoxal: a dispersão, quando se torna fundo possível de toda história de vida, sua "inclusão" social diante da amplitude confusa da "anormalidade".

O percurso foucaultiano reafirma o caráter eminentemente crítico de sua obra e pontilha um caminho teórico que permite seguir decifrando as vicissitudes da loucura na história do presente.

Recebido em: dezembro de 2003

Aceito em: fevereiro de 2010

  • FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999a.
  • FOUCAULT, M. A loucura só existe em uma sociedade. In: MOTTA, M. B. (Org.). Problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999b. Coleção Ditos e Escritos I.
  • FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • MACHADO, R. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
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    Trabalho realizado com o apoio financeiro do CNPq
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2003
    • Aceito
      Fev 2010
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