Acessibilidade / Reportar erro

City branding, financeirização e a mercadificação da cidade: novas estratégias de reprodução do capital

Resumo

O presente artigo propõe estabelecer um diálogo entre o marketing territorial e a mercadificação do espaço, avaliando as estratégias de construção imagética da cidade-vitrine/cidade-espetáculo. Analisa brevemente as transformações espaciais promovidas pelo “empreendedorismo urbano”, que passam a articular cada vez mais a construção e venda da imagem da cidade como parte fundamental do processo de acumulação capitalista. Considera ainda as especificidades da financeirização urbanizadora. Então, perguntamos: as inovações de marketing estariam relacionadas ao processo de mercadificação do espaço? Como podemos pensar no marketing da cidade como parte da economia da inovação? As respostas a essa pergunta permite identificar estratégias utilizadas pelo marketing territorial nas transformações urbanas, bem como compreender os mecanismos que envolvem o city branding.

Palavras-chave:
Financeirização; City branding; Cidade vitrine; Cidade espetáculo

Abstract

This article proposes to establish a dialogue between territorial marketing and the commodification of space, evaluating the imagery construction strategies of the shop-window city / spectacle city1 1 Shop-window city and Spectacle city are free translations of expressions used by other authors (cidade vitrine and cidade espetáculo respectively), such as Gilmar Mascarenhas (2014), to name the process which many cities have gone through, that of commodification of the urban. This process will be worked on within the text, but as a first approximation it is worth saying that consumption in the city becomes - increasingly - the consumption of the city (and of space), which justifies the idea of "shop window city" and “spectacle city”. . We will analyze, albeit briefly, the spatial transformations promoted by “urban entrepreneurship”, which increasingly articulate the construction and sale of the city's image as a fundamental part of the capitalist accumulation process. It should be noted that the specificities of urbanization and financialization will also be considered. So, we ask: would marketing innovations be related to the space commodification process? How can we think of city marketing as part of the innovation economy? The answers to these questions will allow - in the course of the article - the identification of strategies used by territorial marketing in urban transformations, as well as the understanding of the mechanisms that involve city branding.

Keywords:
financialization; city branding; shop-window city; spectacle city

Resumen:

Este artículo propone establecer un diálogo entre el marketing territorial y la mercadificación del espacio, evaluando las estrategias de construcción de imaginarios de la ciudad escaparate/ciudad espectáculo. Analizaremos, aunque brevemente, las transformaciones espaciales promovidas por el “emprendimiento urbano”, que articulan cada vez más la construcción y venta de la imagen de la ciudad como parte fundamental del proceso de acumulación capitalista. Cabe señalar que también se considerarán las especificidades de la financiarización de la urbanización. Entonces, nos preguntamos: ¿las innovaciones de marketing estarían relacionadas con el proceso de mercadificación del espacio? ¿Cómo podemos pensar en el city marketing como parte de la economía de la innovación? Las respuestas a estas preguntas permitirán, en el transcurso del artículo, identificar las estrategias utilizadas por el marketing territorial en las transformaciones urbanas, así como comprender los mecanismos que involucran el city branding.

Palabras clave:
Financeirización; City branding; Ciudad escaparate; Ciudad espectáculo

Introdução

As transformações pelas quais temos passado nessas duas primeiras décadas do século XXI oferecem novos desafios àqueles que se dedicam a estudar a cidade e o urbano. E é diante desses desafios que propomos aqui articular o processo de financeirização com a geografia da inovação e a mercadificação da cidade e do urbano. Desta feita, o diálogo entre a geografia da inovação e a mercadificação da cidade nos permitirá avaliar as estratégias de construção imagética da cidade-vitrine e/ou da cidade-espetáculo, que compõem parte fundamental dos processos de reestruturação urbana previstos nos planos estratégicos.

Inicialmente, cabe destacar que nosso objeto de análise são as transformações espaciais promovidas pelo empresariamento urbano, as quais passam a articular cada vez mais a produção e a venda da imagem da cidade como parte fundamental do processo de acumulação capitalista. Mas onde entrará a geografia da inovação?

Para Rui Gama (2001GAMA, R. Notas para uma geografia da inovação: localização, conhecimento e território. In: CAETANO, L. (Org.). Território, inovação e trajectórias de desenvolvimento. Coimbra, PT: Centro de Estudos Geográficos, 2001., p. 50), “a Geografia da Inovação deve, assim, preocupar-se com os aspectos espaciais da inovação, as formas e os mecanismos utilizados pelas organizações no sentido da apropriação e valorização dos novos recursos chave (existentes ou criados)”.

Entendemos que a produção e a venda da imagem das cidades “refuncionalizadas”, “reestruturadas” etc., têm apelado cada vez mais a estratégias de marketing territorial, o que suscita as perguntas: teriam as inovações de marketing relação com o processo de mercadificação das cidades? Como podemos pensar no marketing da cidade como parte da economia de inovação?

Se em suas pesquisas Gilmar Mascarenhas (2014MASCARENHAS, G. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo, v. 14, supl. 1, p. 52-65, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php/caderno/article/download/1021/406 . Acesso em: 8 fev. 2022.
http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/ind...
) procurou evidenciar as articulações entre a difusão do modelo de cidade-espetáculo e os interesses do empresariamento urbano (em especial, a realização de grandes eventos esportivos), procuramos aqui ampliar essa articulação analisando inovações em marketing na produção e reprodução do espaço urbano, as quais também atuam “para exibir seu triunfo no contexto da sociedade do espetáculo” (Mascarenhas, 2014MASCARENHAS, G. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo, v. 14, supl. 1, p. 52-65, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php/caderno/article/download/1021/406 . Acesso em: 8 fev. 2022.
http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/ind...
, p. 55).

Assim, o presente artigo é divido em três seções, além desta introdução. Na primeira seção, falamos brevemente sobre a ascensão e o domínio do regime de acumulação financeirizado, e nossos principais interlocutores são Aalbers (2012AALBERS, M. B. (Ed.). Subprime cities: the political economy of mortgage markets. Chichester, GB: Wiley-Blackwell, 2012., 2015AALBERS, M. B. The potential for financialization. Dialogues in Human Geography, v. 5, n. 2, p. 214-219, 2015. doi: https://doi.org/10.1177%2F2043820615588158.
https://doi.org/10.1177%2F20438206155881...
), Chesnais (1998CHESNAIS, F. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998., 2002CHESNAIS, F. A teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1, p. 1-44, 2002. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643086/10638 . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
), Harvey (2008aHARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola , 2008a., 2008bHARVEY, D. Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola , 2008b., 2011HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo , 2011., 2013HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo , 2013., 2014aHARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2014a., 2014bHARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014b., 2018HARVEY, D. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.), Lencioni (1998LENCIONI, S. Reestruturação: uma noção fundamental para os estudos transformações e dinâmicas metropolitanas. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 6., 1998, Buenos Aires. Anais... Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires, 1998. p. 1-10.) e Paulani (2016PAULANI, L. M. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 36, n. 3, p. 514-535, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rep/a/58LMxGpNSp9jjK4C4dvhFcM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.scielo.br/j/rep/a/58LMxGpNSp...
). Na segunda seção, articulamos o processo de mercadificação com inovações em marketing, avaliando como essa articulação é capaz de propor novas estratégias de reprodução do capital. Trazemos aqui uma combinação de autores de diferentes áreas, desde a Geografia como Tunes (2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020.), Mascarenhas (2014MASCARENHAS, G. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo, v. 14, supl. 1, p. 52-65, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php/caderno/article/download/1021/406 . Acesso em: 8 fev. 2022.
http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/ind...
), Muñoz (2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
) e Ferreira (2013aFERREIRA, A. A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. Rio de Janeiro: Consequência , 2013a. doi: https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324.
https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324....
, 2013bFERREIRA, A. A imagem virtual transformada em paisagem e o desejo de esconder as tensões no espaço: por que falar em atores, agentes e mobilizações? In: FERREIRA, A.; RUA, J.; MARAFON, G.; SILVA, A. C. P. (Org.). Metropolização do espaço: gestão territorial e relações urbano-rurais. Rio de Janeiro: Consequência , 2013b. p. 53-74., 2019FERREIRA, A. Materialização, substrução e projeção: uma construção teórico-metodológica como contribuição para o desvelar da produção do espaço. Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 35-43, 2019., 2021FERREIRA, A. A cidade que queremos: produção do espaço e democracia. Rio de Janeiro: Consequência, 2021.), mas também da área de marketing e de inovação, como Klein (2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004.), Reis (2016REIS, P. C. Rio de Janeiro, uma cidade global? Uma reflexão sobre a construção da marca Rio. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
) e Vacca (2008VACCA, P. The instagramization of the world. Médium, 2018. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/@paulvacca_58958/the-instagramization-of-the-world-34048a258611 . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://medium.com/@paulvacca_58958/the-...
). Na última seção, tecemos algumas considerações sobre a discussão proposta no artigo.

A financeirização de tudo (ou quase tudo)

Vivemos desde a década de 1970 uma profunda transformação no modo de produção capitalista. Desde os momentos de inflexão da consolidação de um novo regime de acumulação, a produção e a reprodução do espaço estiveram - e ainda estão - no bojo de tais transformações. Por esse motivo, dedicamos algumas páginas deste artigo a resgatar características gerais dessas mudanças, na tentativa de compreender seu efeito na produção e a gestão das cidades.

Cabe antes apresentar uma definição do processo de financeirização da economia ou do regime de acumulação financeirizado. Baseando-nos em diferentes autores, como Aalbers (2012AALBERS, M. B. (Ed.). Subprime cities: the political economy of mortgage markets. Chichester, GB: Wiley-Blackwell, 2012., 2015AALBERS, M. B. The potential for financialization. Dialogues in Human Geography, v. 5, n. 2, p. 214-219, 2015. doi: https://doi.org/10.1177%2F2043820615588158.
https://doi.org/10.1177%2F20438206155881...
), Chesnais (1998CHESNAIS, F. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998., 2002CHESNAIS, F. A teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1, p. 1-44, 2002. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643086/10638 . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
), Arrighi (2006ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto/São Paulo: Ed. Unesp, 2006.), Harvey (2013HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo , 2013., 2018HARVEY, D. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.), entendemos a financeirização como um processo amplo, com abrangência tanto social quanto econômica e política, mobilizando diferentes escalas geográficas e no qual encontramos diferentes atores que sustentam suas ações numa sólida base institucional e cultural. Segundo Aalbers (2015AALBERS, M. B. The potential for financialization. Dialogues in Human Geography, v. 5, n. 2, p. 214-219, 2015. doi: https://doi.org/10.1177%2F2043820615588158.
https://doi.org/10.1177%2F20438206155881...
, p. 214), “a crescente dominância de agentes, mercados, práticas, métricas e narrativas financeiros, nas múltiplas escalas, o que tem gerado uma transformação estrutural das economias, das corporações (incluindo instituições financeiras), dos Estados e das famílias”.

Essa crescente dominância do financeiro indicada por Manuel Aalbers vem ocorrendo, como sabemos, desde as crises dos anos 1970, conduzindo a uma mudança “na configuração espacial dos processos de acumulação de capital” (Arrighi, 2006ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto/São Paulo: Ed. Unesp, 2006., p. 1), e o espaço urbano é parte fundamental dessas reconfigurações.

Ainda sobre o processo de financeirização, recordemos que os investimentos na expansão do comércio e da produção não mais atendiam aos interesses da classe financista, ao passo que as negociações puramente financeiras demonstravam maior “eficiência”. Dessa maneira, cada vez menos capital excedente passou a ser absorvido na produção, direcionando-se para a especulação de ativos. Podemos dizer, em conformidade com Harvey (2011HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo , 2011., p. 33), que “a virada para a financeirização desde 1973 surgiu como uma necessidade. Ofereceu uma forma de lidar com o problema da absorção do excedente”.

Portanto, a condição ideal para a efetivação da mundialização financeira e a consolidação do novo regime de acumulação - financeirizado - era de que o mercado financeiro deveria se sobrepor ao mercado produtivo; a renda das ações deveria substituir o valor da produção, com o setor financeiro passando a guiar a economia. Houve, portanto, aquilo que Harvey (2008HARVEY, D. Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola , 2008b., p. 41) apontou como “financialização de tudo”. Para isso, havia a demanda urgente em substituir as taxas de câmbio fixas por taxas de câmbio flexíveis, mudança essa que viabilizou o processo de financeirização. Arrighi (2006ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto/São Paulo: Ed. Unesp, 2006., p. 323) afirma que essa situação levou “a uma aceleração da tendência dos governos das nações capitalistas mais poderosas a perderem o controle sobre a produção e a regulação do dinheiro mundial”. A Figura 1 mostra uma das consequências diretas de tal processo, no qual a origem do lucro corporativo é mais lucrativa que a da produção efetiva; ou seja, as convidativas taxas de câmbio flexíveis tornavam-se cada vez mais atrativas e sustentavam os ganhos da classe financista e rentista de wall street, em detrimento da classe da main street.

Figura 1:
Ascensão do regime de acumulação financeirizado

O gráfico da Figura 1 representa muito bem o que escreveu Leda Paulani (2016PAULANI, L. M. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 36, n. 3, p. 514-535, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rep/a/58LMxGpNSp9jjK4C4dvhFcM/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.scielo.br/j/rep/a/58LMxGpNSp...
, p. 526), para quem há hoje “um fortíssimo traço rentista” no capitalismo contemporâneo e, diferentemente de outros contextos, esse traço rentista “não é um pecado contra a acumulação”, mas uma parte fundamental do regime de acumulação financeirizado. Conforme Klink e Barcellos de Souza (2017KLINK, J.; BARCELLOS DE SOUZA, M. Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39, p. 379-406, 2017. doi: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3902.
https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3...
, p. 392), há uma importante diferença entre a produção urbana com base na financeirização e aquela que foi dominante até os anos 1980. Para eles, os banqueiros não participavam da produção do urbano - ou da “criação das cidades” -, a qual estava muito mais associada a proprietários de terra, incorporadoras, Estado e habitantes.

Ainda sobre as informações do gráfico (Figura 1), devemos atentar para a inversão da origem dos lucros, que corresponde sobretudo à forma de capital que se valoriza por meio de aplicação financeira (D-D’), com rendimentos baseados em juros. A financeirização é, portanto, um claro movimento de acumulação, em que o conteúdo econômico e social é moldado pelas posições concedidas às formas muito concentradas de determinado tipo capital (aquele portador de juros, ou forma moderna de capital dinheiro). Esse mesmo capital tem forte papel de comando e grande autonomia. Chesnais (1998CHESNAIS, F. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998.) ressalta que enfatizar as finanças e o capital portador de juros não significa abandonar a formulação teórica do papel fundamental desempenhado pela extração da mais-valia na exploração da força de trabalho. Para ele, o corporate governance característico do regime de acumulação financeirizado é um dos caminhos para compreender as novas formas de extração da mais-valia, com flexibilização e precarização do trabalho, ou ainda, pela extensão da espoliação por meio da financeirização urbanizadora que amplia os processos de segregação socioespacial.

É muito interessante perceber que a virada neoliberal da década de 1970 conduziu, também, ao aprofundamento da acumulação por espoliação. Esse aprofundamento foi, e é, sustentado pela financeirização da economia mundial, a qual é “capaz de desencadear de vez em quando surtos de brandos a violentos de desvalorização e de acumulação por espoliação em certos setores ou mesmo em territórios inteiros” (Harvey, 2014aHARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2014a., p. 129). Verifica-se, portanto, que o regime de acumulação financeirizado de Chesnais é co-constitutivo da acumulação por espoliação de Harvey, o que nos indica necessariamente os limites intrínsecos à continuidade de tal regime. Podemos dizer, a partir dos escritos de Chesnais (1998CHESNAIS, F. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998.), que a ascensão do setor financeiro apresenta três condições: “autonomização da esfera financeira em relação à produção [...], fetichismo das formas de valorização do capital de natureza especificamente financeira” (Chesnais, 1998CHESNAIS, F. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998., p. 13) e a terceira ressalta a liberdade que os operadores financeiros têm sobre os fluxos de capital, liberdade essa que pode torná-los de profetas em vigaristas. Enquanto a financeirização mantiver funcionando a “roda da acumulação”, a aura de profetas será mantida. Mas Harvey (2018HARVEY, D. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 77) é enfático sobre o futuro da acumulação por espoliação baseada na financeirização e no rentismo:

A economia da expropriação e da acumulação por espoliação entra nesse quadro de maneira disruptiva, orquestrada por meio do sistema de dívida e crédito, apenas para intensificar à medida que aumentam as dificuldades dos caminhos convencionais da acumulação de capital, como tem ocorrido desde a década de 1970. Marx percebeu claramente que, de todos os futuros perigos que a reprodução do capital enfrentava, esse provavelmente se revelaria fatal. E a ironia é que a contradição central nesse caso não se dá entre o capital e o trabalho: reside na relação antagonista entre as diferentes facções de capital.

Temos, então, que as “formas insanas” da especulação e a “altura da distorção” atingida dentro do sistema de crédito estão propícias, por isso, a serem grandemente ampliadas no caso da especulação em rendas futuras. A integração da posse dentro da circulação do capital que rende juros pode abrir a terra para o fluxo livre do capital, mas também para o pleno jogo das contradições do capitalismo. O fato de ela fazer isso num contexto caracterizado pela apropriação e pelo controle do monopólio garante que o problema da especulação da terra adquira uma profunda importância na dinâmica instável geral do capitalismo (Harvey, 2013HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo , 2013., p. 450).

Ainda inspirados por David Harvey (2014bHARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014b., p. 70), devemos lembrar que “a terra, porém, não é uma mercadoria no sentido corrente do termo. É uma forma fictícia que deriva das expectativas de aluguéis futuros. Assim como o próprio capital que se apropria de parte da renda dos juros - capital fictício”. Nesse sentido, a financeirização urbanizadora leva ao extremo a contradição do regime de acumulação financeirizado. Isso significa que, com a maior participação do mercado imobiliário no PIB - resultado de uma profunda conexão entre financiamento e investimento no ambiente construído, maior é a possibilidade de eclodirem as famigeradas macrocrises sistêmicas.

O otimismo do mercado financeiro tem o poder de erguer vigas de aço, mas não pode fazer um edifício dar lucro. Outrossim, o contexto de financeirização corresponde também à transição de uma “sociedade de produtores, na qual os lucros provinham da exploração do trabalho, para uma sociedade de consumidores, na qual os lucros se fundamentam na exploração dos desejos de consumo” (Ribeiro; Diniz, 2017RIBEIRO, L. C. Q.; DINIZ, N. Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal: reflexões a partir do enfoque dos ciclos sistêmicos de acumulação e da teoria do duplo movimento. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39, p. 351-377, 2017. doi: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3901.
https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3...
, p. 370). E o papel da imagem e das representações é fundamental nessa sociedade de consumidores.

Articulando inovação e mercadificação: novas estratégias de reprodução do capital

Durante a Euro Copa de 2021, disputa de futebol entre as seleções europeias, uma notícia extragramados marcou a semana e eventualmente o futuro dos patrocinadores dos grandes eventos esportivos. Numa coletiva de imprensa, o jogador pop star Cristiano Ronaldo tirou da sua frente duas pequenas garrafas de Coca-Cola, trocando-as por uma garrafa de água mineral. Sua justificativa: a água é mais saudável! Só esse gesto foi capaz de fazer a marca Coca-Cola perder aproximadamente U$ 4 bilhões, sem nenhuma reestruturação produtiva, novos concorrentes, retração na demanda, redução nas vendas etc. (Martins, 2021MARTINS, A. Gesto de Cristiano Ronaldo faz Coca-Cola perder US$ 4 bilhões. Exame, 15 jun. 2021. Disponível em: Disponível em: https://exame.com/casual/gesto-de-cristiano-ronaldo-faz-coca-cola-perder-us-4-bilhoes/ . Acesso em: 8 fev. 2022
https://exame.com/casual/gesto-de-cristi...
).

Essa cena insólita já nos faria refletir acerca da marca e de seu impacto no nosso mundo e nosso cotidiano. Contudo, a relação da marca - ou do branding - com as diferentes dimensões de nossa vida vai muito além de um gesto praticado por um garoto-propaganda, vai muito além da perda de valor no mercado de ações. É nesse sentido que propomos, nesta seção, discutir as novas estratégias de reprodução do capital baseadas no desenvolvimento do marketing territorial e no processo de mercadificação da cidade. Comecemos, portanto, por um breve histórico de construção das marcas.

Na década de 1980, teóricos da administração desenvolveram - e difundiram - a ideia de que “as corporações de sucesso devem produzir principalmente marcas, e não produtos” (Klein, 2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 27). Ainda segundo Naomi Klein, foi na virada neoliberal dos anos 1970 para os 1980 que grandes empresas como Microsoft, Nike, Tommy Hilfiger, entre outras, “declararam audaciosamente que produzir bens era apenas um aspecto incidental de suas operações [...]. O que essas empresas produziam principalmente não eram coisas, diziam eles, mas imagens de suas marcas” (Klein, 2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 28). Assim, o verdadeiro trabalho delas era - não mais a elaboração do produto em si - mas o marketing, a construção da marca.

A pesquisadora Patrícia Cerqueira Reis (2016REIS, P. C. Rio de Janeiro, uma cidade global? Uma reflexão sobre a construção da marca Rio. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 22) dá uma definição em sintonia com o discurso do mercado: “a marca é muito mais que um logotipo. A marca, ou ainda a gestão da marca (mais conhecida pela expressão em inglês branding), é o esforço de pensar a identidade que esta representa”. E, sobre a construção da marca, reforça:

Ao pensar na definição de marca, Hankinson e Cowking (1993)6 6 HANKINSON, G.; COWKING, P. Branding in action. Londres: McGraw-Hill, 1993. afirmam que uma marca é um produto ou serviço que se define por seu posicionamento em relação à concorrência e por sua personalidade; que compreende uma combinação única de atributos funcionais e valores simbólicos; e que a chave para o sucesso é estabelecer uma relação entre a marca e o consumidor, de modo que haja uma correlação muito próxima entre as próprias necessidades físicas e psicológicas dos consumidores e os atributos funcionais da marca e seus valores simbólicos (Reis, 2016REIS, P. C. Rio de Janeiro, uma cidade global? Uma reflexão sobre a construção da marca Rio. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 101).

Desta feita, não podemos confundir uma “mera” publicidade” com a constituição da “marca”. A publicidade é como o veículo, o meio pelo qual a marca se difunde. É, portanto, apenas uma parte do processo de branding - gestão da marca de uma empresa e/ou corporação. Essa diferença ficou evidente quando, na década de 1980, a empresa Philip Morris comprou a empresa Kraft por um valor seis vezes maior do que o estipulado pelo mercado, e a enorme diferença se justificou pelo que a marca Kraft representava, pois “agregava muito mais valor a uma empresa do que seus ativos e vendas anuais totais” (Klein, 2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 31). A loucura da razão publicitária atingia, então, um nível jamais esperado: uma substancial quantia de dinheiro fora aplicada em algo abstrato e não quantificável.

Evidentemente, as mudanças no mercado de marketing e publicidade implicarão novas demandas, como já citado acima. Uma delas é a gestão não só da produção, mas sobretudo a gestão das marcas. Naomi Klein define o branding - a gestão das marcas - a partir das mudanças que ocorreram na virada dos anos 1980 para os 1990.

Segundo o velho paradigma, tudo o que o marketing vendia era um produto. De acordo com o novo modelo, contudo, o produto é sempre secundário ao verdadeiro produto, a marca, e a venda de uma marca adquire um componente adicional que só pode ser descrito como espiritual. A publicidade trata de apregoar o produto. O branding, em suas encarnações mais autênticas e avançadas, trata de transcendência corporativa (Klein, 2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 45).

É nesse sentido que Klein fala da tentativa, por parte das corporações, de se libertarem do mundo corpóreo dos produtos, detendo-se apenas na construção dos signos e símbolos que comporão determinada marca. Ou seja, “o branding não era apenas uma questão de agregar valor ao produto. Tratava-se de cobiçosamente infiltrar ideias e iconografia culturais que suas marcas podiam refletir ao projetar essas ideias e imagens na cultura como extensões de suas marcas” (Klein, 2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 52). Assim, a novidade trazida pelo branding - ou pela gestão das marcas - é que a articulação entre produtos (marcas) e experiências culturais deixa o reino das representações para compor a realidade da vida cotidiana.

Um ótimo exemplo apresentado pela autora é a rede Starbucks, a qual compreendeu que “o projeto de elaboração de uma marca ia além do logotipo esparramado em um outdoor” (Klein, 2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 44). Ela cita o então vice-presidente de marketing da rede, Scott Bedbury: “‘os consumidores não acreditam realmente que exista uma ‘grande diferença entre os produtos’ e é por isso que as marcas devem ‘estabelecer laços emocionais’ com seus consumidores através da ‘experiência Starbucks’” (Klein, 2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 44).

Outra constatação de Naomi Klein é sobre a localização e o tamanho dos logotipos das marcas de roupas. Segundo ela, aos poucos, os pequenos emblemas saíram das etiquetas internas das peças de roupa para compor o lado externo, como um atestado da exclusividade da peça. Nas palavras de Klein (2004KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004., p. 52), “esses logos tinham a mesma função social da etiqueta de preço das roupas: todo mundo sabia exatamente quanto o dono da roupa se dispôs a pagar pela distinção”. Assim, a logomarca da estadunidense Polo Ralph Lauren ou da francesa Lacoste passou a ter o status de uma peça de arte assinada por algum grande nome como Tarsila do Amaral, Cândido Portinari etc.

Imaginemos, agora, a extensão do branding às cidades e ao espaço urbano. Alguns autores já se dedicaram a essa análise, por isso, não é nosso intento apontar nenhum fenômeno novo, mas sobretudo estabelecer novas articulações, ampliando os estudos.

É no contexto da reestruturação das cidades e do espaço urbano, onde a ideia de competição por investimentos ganha força e passa a ser o leitmotiv das políticas públicas e do planejamento urbano, que o marketing territorial ganha a cena principal. Mas em que consiste esse famigerado marketing territorial ou mesmo a difusão do city branding?

As propostas de marketing territorial e de city branding ganharam maior destaque a partir dos anos 1990, na esteira do desenvolvimento do conceito de cidades globais. Nesse contexto, o marketing territorial esteve muito associado à ideia de promoção dos lugares, o que envolveria apenas a forma comunicacional sobre partes do espaço. Foi só a partir dos anos 2000 que os planos de marketing passaram a se articular com os planos de desenvolvimento, ou seja, as formas de representação da cidade passaram a demandar efetivas mudanças espaciais.

Segundo Patrícia Cerqueira Reis (2016REIS, P. C. Rio de Janeiro, uma cidade global? Uma reflexão sobre a construção da marca Rio. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 60):

O marketing territorial assumirá sua forma mais conhecida no Brasil na primeira década dos anos 2000, aplicado à indústria do turismo. Nesse campo, os trabalhos de Josep Chias são considerados referência. Além de estudioso sobre o tema, o autor foi responsável pela elaboração do Plano para as Olimpíadas de Barcelona em 1992 e do Plano Aquarela para a Embratur em 2005, que definiu a política de marketing turístico internacional do Brasil.

Portanto, o branding é parte fundante da competição entre marcas e entre lugares:

O branding é, em sua essência, um empreendimento profundamente competitivo, em que as marcas são construídas não somente contra seus rivais imediatos (Nike versus Reebok, Coca-Cola versus Pepsi, McDonald’s versus Burger King, por exemplo), mas contra todas as marcas que ocupam a paisagem urbana, incluindo os eventos e pessoas que estão patrocinando (Reis, 2016REIS, P. C. Rio de Janeiro, uma cidade global? Uma reflexão sobre a construção da marca Rio. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 60).

Assim como as políticas de planejamento estratégico impostas às cidades - estimulando a competição em escala global -, o branding também se funda nessa máxima competição. Paradoxalmente, o domínio das marcas sobre as paisagens urbanas acaba por eliminar a excepcionalidade e a singularidade que as cidades outrora ofereciam. Há, como escreveram Ferreira (2013aFERREIRA, A. A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. Rio de Janeiro: Consequência , 2013a. doi: https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324.
https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324....
) e Muñoz (2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
), uma banalização da urbanização, que também se expressa pela produção e reprodução de paisagens repetidas, comuns e estandardizadas. Para Francesc Muñoz (2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
, p. 28, tradução nossa), essa urBANALización:

[...] se refere, portanto, ao modo como a paisagem da cidade é tematizada à maneira dos parques temáticos, fragmentos de cidades são atualmente reproduzidos, replicados, clonados em outros. A paisagem da cidade, assim submetida às regras do urbano, acaba por não pertencer nem à cidade nem ao urbano, mas sim ao governo do espetáculo e a sua cadeia global de imagens.7 7 “[...] se refiere, así pues, a como el paisaje de la ciudad se tematiza, a como, a la manera de los parques temáticos, fragmentos de ciudades son actualmente reproducidos, replicados, clonados en otras. El paisaje de la ciudad, sometido así a las reglas de lo urbanal, acaba por no pertenecer ni a la ciudad ni a lo urbano, sino al gobierno del espetáculo y su cadena global de imágenes” (Muñoz, 2004, p. 28).

No entanto, cumpre ressaltar que as estratégias de marketing territorial e de city branding pouco ou nada se parecem aos modelos pretéritos de publicidade. Fundamentalmente, estes informativos sobre o produto, ou seja, o marketing se desenvolvia depois do produto, e a mesma fórmula se aplicava ao espaço produzido, onde, a partir da renovação do território, o marketing visava representar o novo cenário resultante do projeto urbano, ou seja, tratava-se de uma narrativa construída a posteriori sobre as transformações da cidade (Muñoz, 2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
). Não obstante, a mudança do marketing territorial e da cidade-marca (brand city) tem convertido a imagem da cidade em condição necessária das transformações urbanas, “a tal ponto que pode ser considerado o primeiro elemento necessário para produzir uma cidade. Isso explica por que a imagem urbana precisa ser promovida e publicada antes que um único tijolo seja colocado”8 8 “[...] hasta tal punto que se puede considerar como el primer elemento necesario para producir ciudad. Eso explica por qué la imagen urbana necesita promoverse y publicarse antes de que se coloque un solo ladrillo” (Muñoz, 2004, p. 29). (Muñoz, 2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
, p. 29, tradução nossa). Para Alvaro Ferreira (2013bFERREIRA, A. A imagem virtual transformada em paisagem e o desejo de esconder as tensões no espaço: por que falar em atores, agentes e mobilizações? In: FERREIRA, A.; RUA, J.; MARAFON, G.; SILVA, A. C. P. (Org.). Metropolização do espaço: gestão territorial e relações urbano-rurais. Rio de Janeiro: Consequência , 2013b. p. 53-74., p. 57) trata-se da imagem virtual transformada em paisagem:

A cada instante as imagens tornam-se mais próximas do mundo “real”; ganham movimento como em um filme, e cada vez mais as imagens virtuais são cuidadosamente “colocadas” na paisagem. Se a paisagem tem um caráter de algo que já existe, então essas imagens, ao serem “coladas” nela, acabam ajudando a introjetar nos agentes a sensação de que isso já está dado, já é um dado, porque se transformou em paisagem.

Como bem salientou Gilmar Mascarenhas (2014MASCARENHAS, G. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo, v. 14, supl. 1, p. 52-65, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php/caderno/article/download/1021/406 . Acesso em: 8 fev. 2022.
http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/ind...
, p. 63):

Ao falar de city marketing, estamos operando no plano simbólico. E este plano se tornou central para a acumulação capitalista, através do controle hegemônico das imagens e informações, cenário ideal para produzir lucrativas ilusões e camuflar as contradições.

Nesse sentido, a sociedade do espetáculo (Debord, 1997DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto , 1997.) alcança níveis jamais vistos, pois o espetáculo das imagens urbanas passa não só a mediar as relações sociais de produção, mas também a participar decisivamente do processo de acumulação de capital, sob o regime financeiro-patrimonialista, assim como foram fundamentais a ferrovia e o automóvel em outros regimes pretéritos de acumulação.

Um interessante exemplo que reforça as análises de Ferreira (2013aFERREIRA, A. A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. Rio de Janeiro: Consequência , 2013a. doi: https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324.
https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324....
) e Muñoz (2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
) é a proposta de criação de uma Korea Town ou Little Seul no bairro do Bom Retiro em São Paulo (Figura 2). Ainda no curto período em que foi prefeito da cidade (entre janeiro de 2017 e abril de 2018), o empresário João Dória já havia proposto renomear o tradicional bairro paulistano, como parte da famigerada estratégia de revitalização de áreas centrais. A proposta envolvia, à época, a participação de sete empresas sul-coreanas, entre as quais estavam as gigantes LG, Hyundai e Samsung. Tudo começaria pela mudança do nome, não só em alusão à presença de imigrantes coreanos, mas também uma analogia com as Korea Towns presentes em grandes cidades capitalistas. A proposta voltou à baila em meados de 2021, quando o cônsul-geral Insang Hwang apresentou nova proposta à Assembleia Legislativa para a criação de uma Korea Town. Desta feita, tanto a proposta de João Dória como aquela apresentada pelo cônsul-geral seguem a lógica em que a imagem - e o discurso - vêm antes mesmo que se tenha colocado um tijolo (Muñoz, 2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
).

Figura 2:
Mudanças propostas para o bairro do Bom Retiro - São Paulo, SP

Seguindo com o raciocínio e em concordância com Alvaro Ferreira, entendemos que a explosão da cidade-espetáculo e da cidade-vitrine compõem o processo de mercadificação das cidades, no qual o mundo da mercadoria incorpora todas as dimensões da vida. Nas palavras de Ferreira (2021FERREIRA, A. A cidade que queremos: produção do espaço e democracia. Rio de Janeiro: Consequência, 2021., p. 90-91):

Esclarecendo melhor, a alienação segue se realizando a partir de uma construção de mundo em que a imagem e as representações ganham uma dimensão cada vez maior, em que verdadeiramente não é o consumidor ou a mercadoria consumida o que importa, mas sim a representação do consumidor e do próprio ato de consumir. Tudo isso é amplificado se tivermos em conta que tanto as mercadorias quanto o ato de consumir ganham formas e sentidos de espetacularização [...]. Ao falarmos de mercadificação do espaço e mercadificação da cidade temos em conta que agora, mais do que em qualquer momento anterior, a relação entre determinado espaço e sua imagem construída é modificada, pois é o espaço - transformado em produto - que passa a representar a imagem e não o contrário.

O marketing territorial e o city branding elevaram o consumo a outros patamares, pois passamos a comprar, como ficou exposto, não só mercadorias, mas sobretudo “um estilo de vida, uma experiência cotidiana diferenciada, compramos antes o que representa ter aquilo, fazer parte daquilo” (Ferreira, 2021FERREIRA, A. A cidade que queremos: produção do espaço e democracia. Rio de Janeiro: Consequência, 2021., p. 91).

Os exemplos abaixo nos ajudam a constatar como operam as estratégias mencionadas. Comecemos com uma das marcas mais famosas do mundo, a que representa a cidade de Nova York (Figuras 3 a 5).

Figuras 3, 4 e 5:
Origem da marca associada à cidade de Nova York

Ela foi desenvolvida por Milton Glaser, por encomenda de autoridades nova-iorquinas (em especial, do Departamento de Comércio) que desejavam desconstruir a ideia de uma cidade marcada pela violência e pela insegurança dos anos 1970 e, assim, estimular o turismo na Big Apple. No caso de Nova York, a própria cidade tornou-se uma marca, um slogan. Processo semelhante vem acontecendo em diferentes cidades, bairros e regiões das grandes cidades capitalistas, onde marcas de empresas associam-se a fragmentos do espaço urbano. Um caso próximo é da estação de metrô do bairro de Botafogo, RJ, que passou a se chamar Botafogo Coca-Cola (Figuras 6 e 7).

Figuras 6 e 7:
Naming rights no metrô Rio - estação Botafogo

É importante destacar que o avanço das tecnologias de informação e da comunicação da última década têm redimensionado a forma como representamos as cidades e o espaço urbano. Desta feita, surgem novas denominações para representar essas novas cidades, como o conceito de smart cities, amplamente divulgado pela IBM a partir de 2008 e que busca reforçar a ideia de que as “soluções são globais e podem ser adaptadas em diversas cidades” (Reis, 2016REIS, P. C. Rio de Janeiro, uma cidade global? Uma reflexão sobre a construção da marca Rio. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 39).

Assim posto, cabe explicarmos como a economia da inovação compôs - e ainda compõe - parte importante desse processo. Importante, pois:

[...] em relação ao capital investido na inovação, as condições gerais de produção possuem uma natureza diferenciada em relação as que servem de suporte a produção manufatureira tradicional. Isso porque há certas características do processo de inovação que são singulares e que podem ser sintetizadas, como já discutimos anteriormente, pelo papel do conhecimento como força produtiva essencial à inovação (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 46).

Para a autora, inspirada no Manual de Oslo (OCDE, 2005OCDE. ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO OU ECONÓMICO. Manual de Oslo: diretrizes para coleta e interpretação de dados sobre inovação. 3a ed. Brasília: Finep/OCDE, 2005.), temos quatro tipos de inovação: de produto, de processo, organizacionais e de marketing (Figura 8). As inovações de produto ocorrem quando “a empresa produz um produto novo ou substancialmente aprimorado em relação ao produto produzido anteriormente” (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 82), ou seja, corresponde à criação de algo novo ou à melhoria de algo que já exista. Já as inovações de processo são aquelas em que há “a mudança total ou parcial, desde que significativa, do processo de produção industrial ou de serviços” (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 82). Ainda nas palavras de Regina Tunes (2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 59), a “velocidade da criação do bem econômico e de sua difusão é o diferencia o processo de inovação que estamos hoje vivenciando do que aconteceu ao longo de todo o processo histórico de evolução das técnicas (por exemplo no século XIX com as estradas de ferro)”. Por fim, as inovações organizacionais e em marketing - que só passaram a ser consideradas para análise de mercado a partir de 2005 (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 81) - são aquelas que se dedicam a novas formas de gestão e de organização da produção (inovações organizacionais) e a estudos na área de marketing e propaganda (inovações em marketing), que passaram “a significar um diferencial a ser vendido pelas empresas ao mercado consumidor” (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 57).

Ao longo deste artigo, enfatizamos a análise das inovações de marketing - especialmente territorial -, pois são aquelas “associadas à diferentes técnicas de estudo de características de mercado e de consumo, a diferentes estratégias de inserção de produtos nos mercados e a diferentes formas de comunicação” (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 7).

Figura 8:
Tipologia de inovações

Isso significa que o marketing territorial - ou o city branding - participam decisivamente do processo de capitalização, em que o capital apresenta a mágica capacidade de se reproduzir autonomamente. Percebe-se, portanto, que o city branding e a financeirização do urbano se expressam como produção alienadora, pois o “forte imbricamento da renda imobiliária com a renda de ativos financeiros” conduz a um enorme “encarecimento do preço dos imóveis e das cidades - em parte suportados pela massiva captura de fundos públicos” (Rufino, 2017RUFINO, M. B. C. Financeirização do imobiliário e transformação na produção do espaço: especificidades da reprodução do capital e expansão recente na metrópole paulistana. In.: FERREIRA, A.; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Org.). O espaço e a metropolização: cotidiano e ação. Rio de Janeiro: Consequência , 2017. p. 213-240., p. 219). Essa condição reforça o que Alvaro Ferreira (2013FERREIRA, A. A imagem virtual transformada em paisagem e o desejo de esconder as tensões no espaço: por que falar em atores, agentes e mobilizações? In: FERREIRA, A.; RUA, J.; MARAFON, G.; SILVA, A. C. P. (Org.). Metropolização do espaço: gestão territorial e relações urbano-rurais. Rio de Janeiro: Consequência , 2013b. p. 53-74., p. 227) já indicara sobre as cidades em 2011:

Tornar-se competitiva virou sinônimo de ter capacidade de atrair investimentos internacionais, porém para isso são necessárias grandes reformas estruturais para adaptar as cidades às exigências internacionais, o que leva as administrações públicas a assumirem custos altíssimos, que são socializados com toda a população.

Nas palavras de Ana Fani Alessandri Carlos (2018CARLOS, A. F. A. (Org.). Crise urbana. São Paulo: Contexto, 2018., p. 15), “a extensão do capitalismo tomou o espaço, primeiro como recurso, depois como força produtiva, e finalmente como mercadoria reprodutível, através do setor imobiliário. Seu movimento em direção à sua reprodução aponta o urbano”. É nesse sentido que, inspirados em Alvaro Ferreira (2019FERREIRA, A. Materialização, substrução e projeção: uma construção teórico-metodológica como contribuição para o desvelar da produção do espaço. Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 35-43, 2019., p. 38), falamos em mercadificação das cidades. Segundo ele:

[...] temos em conta agora, mais do que em qualquer momento anterior, a relação entre determinado espaço e sua imagem construída é modificada. É o espaço, transformado em produto, que passa a representar a imagem, e não o contrário. O que estamos querendo deixar claro é que, cada vez mais, o espaço é consumido pelo que ele representa; ou seja, o que representa frequentar e estarem determinado lugar. Em outras palavras, falar em mercadificação do espaço significa dizer que ele é mercantilizado, mas que essa mercadoria que estamos comprando é cada vez mais um estilo de vida, uma experiência cotidiana diferenciada, compramos o que representa ter aquilo, fazer parte daquele nicho.

Encerrando este longo tópico, cabe uma breve reflexão. Ao tratar da mercadificação das cidades, apontamos inovações em marketing. Estas, por sua vez, são responsáveis pela construção imagética de “novos” produtos urbanos reestruturados, compondo “novos” estilos de vida, “novas” experiências cotidianas e, portanto, transformando o consumo na cidade em consumo da cidade.

Considerações finais

A análise da tríade inovação em marketing-financeirização-mercadificação das cidades pode ajudar muito a compreender as transformações urbanas deste início de século XXI, visto que o marketing territorial - ou o city branding - já é parte efetiva das transformações urbanas. Grandes projetos urbanos têm alicerçado parte de suas estratégias na construção imagética, bem como na divulgação dessa imagem, fazendo da cidade-vitrine/cidade-espetáculo (Marscarenhas, 2014) um modelo a ser vendido e replicado. Isso significa, portanto, que o city branding é cada vez mais mobilizado na reprodução do espaço urbano.

Desta feita, ao articular inovação em marketing-financeirização-mercadificação das cidades, reforçamos a ideia de que “[...] na perspectiva da Geografia da Inovação [...] o território deixa de ser apenas receptáculo da produção e estático e passa a ter um papel decisivo na produção” (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 339). Ainda nas palavras da autora:

[...] os estudos mais recentes de geografia da inovação procuram evidenciar o território como um elemento constitutivo e importante do processo de inovação. Não apenas do ponto de vista da localização no território, mas também como o território, ele mesmo, é um elemento ativo que pode contribuir para o desenvolvimento de uma nova forma de produção ou um novo produto (Tunes, 2020TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020., p. 340).

O território como elemento ativo compõe aquilo que Ferreira (2021FERREIRA, A. A cidade que queremos: produção do espaço e democracia. Rio de Janeiro: Consequência, 2021., p. 90-91) chamou de mercadificação do espaço e mercadificação da cidade. Em suas próprias palavras, “temos em conta que agora, mais do que em qualquer momento anterior, a relação entre determinado espaço e sua imagem construída é modificada, pois é o espaço - transformado em produto - que passa a representar a imagem e não o contrário”.

Como expusemos ao longo do artigo, “a presença ubíqua das marcas ou brands na cidade determina um processo de brandificação do próprio espaço urbano”9 9 “La presencia ubicua de las marcas o brands en la ciudad determinan así mismo un proceso de brandificación del propio espacio urbano” (Muñoz, 2004, p. 32). (Muñoz, 2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
, p. 32, tradução nossa), consolidando um mundo onde a marca substitui o produto.

Nesse mundo brandificado, a cidade se torna - no discurso do empresariamento urbano - cenário de uma sociabilidade fictícia, promovendo e legitimando a “nova” lógica, em que cultura e lazer são geradores de renda. O consumo no espaço é cada vez mais subsumido, e passamos ao consumo do espaço. Em consonância com Francesc Muñoz (2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
, p. 30, tradução nossa), a construção da imagem da cidade a partir do marketing territorial e do branding deixou de ser um “acessório [...] para se converter na condição sine qua non para garantir a competição da cidade no mercado global de capitais”.10 10 “[…] para convertirse en la condición sine qua non para garantizar la competencia de la ciudad en el mercado global de capitales” (Muñoz, 2004, p. 30).

Para Muñoz (2004MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf . Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
, p. 37, tradução nossa):

Assim, ao se especializar para o consumo, para o lazer e para o entretenimento, a cidade não só acabou sendo mais um produto de consumo, uma “commodity”, mas, uma vez concluído esse processo, a cidade passa a ter o mesmo papel dos demais produtos da franquia global, ou seja, nada mais é do que um suporte para representar marcas. É, nesse sentido, um espaço brandificado.11 11 “Así, a través de la especialización hacia él consumo, el ocio y él entretenimiento la ciudad no sólo ha acabado siendo un producto de consumo más, una commodity, sino que, toda vez consumado este proceso, la ciudad tiene el mismo papel que los demás productos en la economía global de las franquicias, es decir, se convierte en nada más que un soporte para representar a las marcas. Es en ese sentido, un espacio brandificado” (Muñoz, 2004, p. 37).

Parece-nos, por fim, mais do que símbolo de inovação, a financeirização das cidades-espetáculo e das cidades-vitrine é indício do outono do modo de produção capitalista, parafraseando Fernand Braudel e Giovanni Arrighi. Resta perguntar: até quando as imagens e narrativas lograrão abafar as contradições?

References

  • AALBERS, M. B. The potential for financialization. Dialogues in Human Geography, v. 5, n. 2, p. 214-219, 2015. doi: https://doi.org/10.1177%2F2043820615588158.
    » https://doi.org/10.1177%2F2043820615588158.
  • AALBERS, M. B. (Ed.). Subprime cities: the political economy of mortgage markets. Chichester, GB: Wiley-Blackwell, 2012.
  • ARRIGHI, G. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Rio de Janeiro: Contraponto/São Paulo: Ed. Unesp, 2006.
  • CARDOSO, W. Cônsul quer transformar o multicultural Bom Retiro em “Korea Town”. Folha de S.Paulo, 9 ago. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/08/consul-quer-transformar-o-multicultural-bom-retiro-em-korea-town.shtml Acesso em: 8 fev. 2022.
    » https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/08/consul-quer-transformar-o-multicultural-bom-retiro-em-korea-town.shtml
  • CARLOS, A. F. A. (Org.). Crise urbana. São Paulo: Contexto, 2018.
  • CARLOS, A. F. A. A condição espacial. São Paulo: Contexto , 2011.
  • CHESNAIS, F. A teoria do regime de acumulação financeirizado: conteúdo, alcance e interrogações. Economia e Sociedade, Campinas, v. 11, n. 1, p. 1-44, 2002. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643086/10638 Acesso em: 8 fev. 2022.
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ecos/article/view/8643086/10638
  • CHESNAIS, F. A mundialização financeira: gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998.
  • DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto , 1997.
  • EM CRISE, METRÔ RIO vende nome de estação, que vira Botafogo/Coca-Cola. G1 Rio, 7 jan. 2021. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/01/07/em-crise-metro-rio-vende-naming-rights-e-estacao-de-botafogo-vira-botafogo-coca-cola.ghtml Acesso em: 8 fev. 2022.
    » https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/01/07/em-crise-metro-rio-vende-naming-rights-e-estacao-de-botafogo-vira-botafogo-coca-cola.ghtml
  • FERREIRA, A. A cidade que queremos: produção do espaço e democracia. Rio de Janeiro: Consequência, 2021.
  • FERREIRA, A. Materialização, substrução e projeção: uma construção teórico-metodológica como contribuição para o desvelar da produção do espaço. Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 35-43, 2019.
  • FERREIRA, A. A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. Rio de Janeiro: Consequência , 2013a. doi: https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324.
    » https://doi.org/10.5216/ag.v13i1.58324.
  • FERREIRA, A. A imagem virtual transformada em paisagem e o desejo de esconder as tensões no espaço: por que falar em atores, agentes e mobilizações? In: FERREIRA, A.; RUA, J.; MARAFON, G.; SILVA, A. C. P. (Org.). Metropolização do espaço: gestão territorial e relações urbano-rurais. Rio de Janeiro: Consequência , 2013b. p. 53-74.
  • FREIRE, Q. G. Estação de metrô Botafogo passa a se chamar Botafogo Coca-Cola. Diário do Rio, 1 jan. 2021. Disponível em: Disponível em: https://diariodorio.com/estacao-de-metro-botafogo-passa-a-se-chamar-botafogo-coca-cola/ Acesso em: 15 fev. 2022.
    » https://diariodorio.com/estacao-de-metro-botafogo-passa-a-se-chamar-botafogo-coca-cola/
  • GAMA, R. Notas para uma geografia da inovação: localização, conhecimento e território. In: CAETANO, L. (Org.). Território, inovação e trajectórias de desenvolvimento. Coimbra, PT: Centro de Estudos Geográficos, 2001.
  • HARVEY, D. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2014a.
  • HARVEY, D. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014b.
  • HARVEY, D. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo , 2013.
  • HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo , 2011.
  • HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola , 2008a.
  • HARVEY, D. Neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Loyola , 2008b.
  • KLEIN, N. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2004.
  • KLINK, J.; BARCELLOS DE SOUZA, M. Financeirização: conceitos, experiências e a relevância para o campo do planejamento urbano brasileiro. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39, p. 379-406, 2017. doi: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3902.
    » https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3902.
  • LENCIONI, S. Reestruturação: uma noção fundamental para os estudos transformações e dinâmicas metropolitanas. In: ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA, 6., 1998, Buenos Aires. Anais... Buenos Aires: Universidade de Buenos Aires, 1998. p. 1-10.
  • MARTINS, A. Gesto de Cristiano Ronaldo faz Coca-Cola perder US$ 4 bilhões. Exame, 15 jun. 2021. Disponível em: Disponível em: https://exame.com/casual/gesto-de-cristiano-ronaldo-faz-coca-cola-perder-us-4-bilhoes/ Acesso em: 8 fev. 2022
    » https://exame.com/casual/gesto-de-cristiano-ronaldo-faz-coca-cola-perder-us-4-bilhoes/
  • MASCARENHAS, G. Cidade mercadoria, cidade-vitrine, cidade turística: a espetacularização do urbano nos megaeventos esportivos. Caderno Virtual de Turismo, v. 14, supl. 1, p. 52-65, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php/caderno/article/download/1021/406 Acesso em: 8 fev. 2022.
    » http://www.ivt.coppe.ufrj.br/caderno/index.php/caderno/article/download/1021/406
  • MUÑOZ, F. UrBANALización: en el zoco global de las imágenes urbanas. Cidades - Comunidades e Territórios, n. 9, p. 27-38, 2004. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf Acesso em: 8 fev. 2022. [parei aqui]
    » https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/3412/1/Cidades2004-9_Munoz.pdf
  • OCDE. ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO OU ECONÓMICO. Manual de Oslo: diretrizes para coleta e interpretação de dados sobre inovação. 3a ed. Brasília: Finep/OCDE, 2005.
  • PAULANI, L. M. Acumulação e rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 36, n. 3, p. 514-535, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rep/a/58LMxGpNSp9jjK4C4dvhFcM/?format=pdf⟨=pt Acesso em: 8 fev. 2022.
    » https://www.scielo.br/j/rep/a/58LMxGpNSp9jjK4C4dvhFcM/?format=pdf⟨=pt
  • REIS, P. C. Rio de Janeiro, uma cidade global? Uma reflexão sobre a construção da marca Rio. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf Acesso em: 8 fev. 2022.
    » https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27154/tde-19092016-164614/publico/PATRICIACERQUEIRAREIS.pdf
  • RIBEIRO, L. C. Q.; DINIZ, N. Financeirização, mercantilização e reestruturação espaço-temporal: reflexões a partir do enfoque dos ciclos sistêmicos de acumulação e da teoria do duplo movimento. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 19, n. 39, p. 351-377, 2017. doi: https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3901
    » https://doi.org/10.1590/2236-9996.2017-3901
  • RUFINO, M. B. C. Financeirização do imobiliário e transformação na produção do espaço: especificidades da reprodução do capital e expansão recente na metrópole paulistana. In.: FERREIRA, A.; RUA, J.; MATTOS, R. C. (Org.). O espaço e a metropolização: cotidiano e ação. Rio de Janeiro: Consequência , 2017. p. 213-240.
  • TUNES, R. Geografia da inovação: território e inovação no Brasil no século XXI. Rio de Janeiro: Letra Capital/Observatório das Metrópoles, 2020.
  • VACCA, P. The instagramization of the world. Médium, 2018. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/@paulvacca_58958/the-instagramization-of-the-world-34048a258611 Acesso em: 8 fev. 2022.
    » https://medium.com/@paulvacca_58958/the-instagramization-of-the-world-34048a258611

Editado por

Editor do artigo:

César Simoni Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Aceito
    02 Jul 2022
Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 338 - Cidade Universitária, São Paulo , SP - Brasil. Cep: 05339-970, Tels: 3091-3769 / 3091-0297 / 3091-0296 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistageousp@usp.br