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A mundanidade dos estudos pós-coloniais

Se, desde a publicação de Orientalismo (1978SAID, Edward Wadie. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 528 p.) e Cultura e Imperialismo (1992SAID, Edward Wadie. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 568 p.), de Edward Said, os estudos pós-coloniais se disseminaram amplamente, encontrando novos lugares de enunciação e fomentando abordagens críticas diversas, qual o lugar dos estudos pós-coloniais hoje, particularmente no que se refere à academia brasileira? Com base em quais repertórios e áreas de estudos os problemas colocados por pensadoras e pensadores associados ao debate pós-colonial têm sido reativados e ressignificados? Se binarismos correntes, como “primitivo/civilizado”, “arcaico/moderno”, “iletrado/letrado”, “regional/cosmopolita”, “particular/universal”, “subdesenvolvido/desenvolvido”, se revelaram invenções historicamente localizáveis, de que novas perspectivas os discursos nacionalistas (inclusive progressistas e anticoloniais) têm sido (ou podem ser) revisitados?

Ao destacar o conceito de “mundanidade”, de Edward Said, a convocatória propunha que os estudos pós-coloniais estão no mundo, sendo apropriados e instrumentalizados por diferentes atores sociais em suas lutas políticas. Nos últimos anos, com movimentos como Black Lives Matter, que questionaram monumentos e espaços públicos erguidos em homenagem a colonizadores e escravagistas na Europa, Américas e África, a crítica pós-colonial ocupou a praça pública e as redes sociais, por vezes utilizando como sinônimos os termos “pós-colonial” e “decolonial”. Por outro lado, em países como a França, os estudos pós-coloniais foram tratados pelo governo como inimigos da nação, capazes de ameaçar a identidade nacional com uma agenda supostamente importada das universidades norte-americanas. Parecia-nos, assim, urgente examinar com mais vagar os pressupostos ideológicos, os contextos específicos de produção e as lógicas de instrumentalização das diversas teorias pós-coloniais. Buscávamos, então, contribuir para uma maior precisão conceitual no diálogo e confronto crítico entre os estudos subalternos indianos, o Grupo Modernidade/Colonialidade, a crítica ao Orientalismo e ao Ocidentalismo, os estudos africanos e da diáspora africana, as epistemologias do Sul, a teoria crítica da raça e os feminismos.

Travar diálogo com Marcos Natali, professor de teoria literária e de literatura comparada na Universidade de São Paulo, pareceu-nos, de imediato, fundamental. Natali estudou com Dispesh ChakrabartyCHAKRABARTY, Dipesh. Museums in late democracies. Humanities Research, v. 9, n. 1, p. 5-12, 2002., na Universidade de Chicago, e trouxe uma reflexão original aos estudos literários brasileiros, elaborando uma crítica profunda ao eurocentrismo que habita a ideia de literatura como agente de humanização. Suas intervenções causam espanto e incômodo num campo intelectual que reproduz relações de colonialidade sob o signo do progressismo bem pensante e paternalista. A entrevista que agora publicamos, cujo foco principal é a discussão de seu livro A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária (Editora da Unicamp, 2020NATALI, Marcos Piason. A literatura em questão: a responsabilidade da instituição literária. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. 280 p.), indica que seu diálogo com os estudos subalternos e pós-coloniais se desdobra em profícuas interrogações sobre o próprio campo dos estudos literários, seus consensos, pressupostos, práticas e formas de sociabilidade. Destaca-se, na entrevista em pauta, a atenção concedida à “nossa sociabilidade patriarcal, com a exigência de fidelidade à instituição da literatura justificando diferentes tipos de violência, e o nome ‘literatura’ dissimulando a exigência de fidelidade à institucionalidade”.

Desde “Além da literatura”, artigo publicado, em 2006NATALI, Marcos Piason. Além da literatura. Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 11, n. 9, p. 30-43, 2006., na revista Literatura e sociedade (e que integra, revisto e ampliado, o livro A literatura em questão: sobre a responsabilidade da instituição literária, de 2020), Marcos Natali tem refletido sobre os usos retóricos e político-institucionais de formulações idealizantes e universalizantes do literário. Em sua perspectiva, mais que denunciar “falsos universais”, importa interrogar a sua necessidade, ou seja, entender para que serve ou a que responde a defesa da universalidade da literatura. Comentando sua leitura do ensaio “O direito à literatura” (1988), de Antonio CandidoCANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. p. 171-193., o estudioso diz que “o desafio era entender por que não parecia possível, naquele texto, imaginar uma política que não partisse da afirmação da semelhança, uma política que não tivesse a homogeneidade como condição”. Afinal, continua, o que “isso nos diz sobre os contornos e limites da nossa imaginação política? Caso ampliássemos um pouco mais o alcance da interrogação, poderíamos nos perguntar pelos motivos que fizeram o campo do estudo da literatura abraçar com tanto fervor formulação tão improvável, a tal ponto que ela se tornou uma espécie de mote da área, aparecendo em apresentações de departamentos e cerimônias de abertura de congressos”.

A discussão acerca de modelos de democracia, especialmente com base em Dipesh Chakrabarty, faz-se, então, crucial: “[...] no modelo pedagógico a cultura é entendida como uma parte da missão civilizadora que ambiciona transformar pessoas em cidadãos e, portanto, em sujeitos políticos, enquanto o modelo performativo de democracia entende qualquer comunidade e qualquer pessoa como já políticas, inclusive antes, e possivelmente contra, qualquer pedagogia”. Natali percebe, no famoso ensaio de Antonio Candido, uma inquietante tensão entre os dois modelos de democracia, o performativo e o pedagógico. Afinal, por que é preciso, para Candido, dissimular sua adesão ao modelo pedagógico, modelo que embasa justamente a defesa do acesso à literatura como “bem humanizador”? Considerando A literatura em questão de forma mais abrangente, Natali sugere: “Algo que o livro argumenta é que o gesto inclusivo se torna especialmente problemático quando inclui a certeza de que se conhece a natureza do desejo do outro, do desejo do subalterno, em movimento que associo à economia discursiva da democracia representativa, na qual se adquire poder justamente por meio da apropriação da voz do outro, pelo qual se falará. Nesse quadro, o sujeito político-pedagógico precisa negar sua própria particularidade, dissimulando também seu desejo de reformar ou transformar o subalterno, assegurando que o que faz é simplesmente representá-lo. A produtividade do diálogo que o estudioso trava também com Gayatri Spivak fica, aqui, evidente.

A figura de Marcos Natali é, de fato, central naquilo que chamamos de estudos pós-coloniais no Brasil. Ele de fato não foi o primeiro a abrir a “franquia teórica” na feirinha de jargões e conceitos da universidade brasileira, mas certamente foi o que se moveu no tabuleiro de modo mais consequente com o que a mirada pós-colonial poderia oferecer. Não por acaso, o seu texto seminal, “Além da literaturaNATALI, Marcos Piason. Além da literatura. Literatura e Sociedade, São Paulo, v. 11, n. 9, p. 30-43, 2006.”, toma como antagonista o personagem emblemático do pensamento progressista e o narrador da Formação da literatura brasileiraCANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (volume I e II). São Paulo: Itatiaia, 1993. 383 p., Antonio Candido. A situação é bastante desconfortável, porque quem está sendo escrutinado criticamente é “um dos nossos”, um pensador de esquerda. Esse desconforto é a consequência mais visível da mirada reflexiva dos estudos pós-coloniais, que intervém no campo intelectual como um questionamento aos pressupostos eurocêntricos do pensamento anticolonial. Segundo Partha ChatterjeeCHATTERJEE, Partha. Colonialismo, modernidade, política. Tradução de Fábio Baqueiro Figueiredo. Salvador: EdUFBA, 2004. 173 p., o nacionalismo do mundo colonizado opunha-se frontalmente ao colonizador, mas pretendia construir uma nação com base na gramática política e social da chamada “modernidade europeia”. Voltando a Natali, observamos uma crítica potente àquele discurso que é a pedra angular da boa consciência progressista: a literatura como, a um só tempo, um direito humano e uma fonte inesgotável de humanização. A tese de que todos os seres humanos têm direito à literatura para cultivar sua própria humanidade esconde o caráter metonímico da “literatura” com a cultura letrada europeia e o seu papel mundano num processo de colonização que destruía e hierarquizava culturas. Complicar as narrativas aparentemente simples de emancipação tem sido uma característica dos estudos pós-coloniais e, talvez por isso, tenha sido considerada pouco engajada politicamente (acusação muito semelhante àquela recebida pela desconstrução). A virada “decolonial”, que vem dos estudos latino-americanos localizados nos EUA, parece adotar muito mais um programa político de descolonização do que propor uma instância analítica de apreciação das contradições, ambiguidades, limites e potencialidades de um projeto que almeje algum tipo de descolonização.

O artigo de Nadia Altschul busca historiar a rivalidade e tensão teórica produzida entre estudos pós-coloniais e teoria decolonial. Por meio de lentes analíticas pós-coloniais, apreende as ambivalências fundamentais do projeto do grupo MCD (Modernidade, Colonialidade e Descolonialidade), grupo de latino-americanistas nos Estados Unidos que criam essa ruptura com os estudos pós-coloniais (vistos como críticos pós-modernos do eurocentrismo, mas ainda incapazes de romper com a Teoria do Norte Global). Altschul enxerga no MCD uma lógica de expropriação simbólica e epistemológica do pensamento subalterno que passa a circular nas universidades metropolitanas sem o devido crédito. No mais, a superação imaginada de uma divisão internacional do conhecimento (em que o Norte Global dá as cartas e o Sul Global segue os padrões criados no Norte) está longe de acontecer, uma vez que o MCD tem como seu lugar primordial de elocução a universidade metropolitana neoliberal. As críticas feitas por Altschul são bem elaboradas e dão o que pensar. Registre-se, entretanto, que, no Brasil, o vocabulário “decolonial” passa a circular nas universidades públicas no período em que há uma mudança demográfica substantiva na graduação e pós-graduação brasileira, talvez vindo mais da Coimbra de Boaventura de Sousa Santos do que da Durham (Carolina do Norte) de Walter Mignolo. Assim, as dinâmicas dos estudos decoloniais nas universidades brasileiras ainda precisam ser analisadas. Nesse sentido, é muito oportuna a publicação, aqui, da estimulante resenha “A abordagem decolonial da crítica em Meu país é um corpo que dói”, de Lúcia Ricotta, pois, ao refletir sobre o mais recente livro de Claudete Daflon, ajuda-nos a pensar distintas possibilidades de se interpelar a teoria decolonial desde o Brasil.

Em seu artigo, “Combined and Uneven Comparisons. Rethinking the Fields of African and Postcolonial Literary Studies within the Debate on World-Literature. Notes for New Comparatist Avenues”, Elena Brugioni propõe uma revisão dos estudos de literaturas africanas no Brasil, por meio de uma revisão substancial que faz dos estudos pós-coloniais, sobretudo o diálogo entre Edward Said e a vertente mais marxiana do pós-colonial, centrado nas figuras de Benita Parry e Neil Lazárus. Também é digno de nota o modo como se situa na posição de comparatista no campo intelectual brasileiro, buscando, a um só tempo, revisão do que se tem feito no Brasil e propondo um paradigma alternativo para os estudos africanos no país, para além do paradigma da formação, que tanto estruturou o campo de estudos de literaturas africanas de língua portuguesa por aqui. Brugioni propõe, por sua vez, as Literaturas Africanas Comparadas.

Também apostando num exercício de comparação, Maryllu Caixeta deslinda o intrincado entrelaçamento entre literatura e projetos de modernização em seu artigo “Demasiado humanos, mundanos e situados: universais, em língua portuguesa”. Ao cotejar três escritores canônicos de língua portuguesa - João Guimarães Rosa, José Saramago e Mia Couto -, a autora compara seus modelos de consagração e chama a atenção para “as intervenções estético-políticas desses autores, celebrados por sua universalidade, observando o modo como se posicionaram quanto a retóricas integrativas, empregadas em seus processos de canonização”, investigando “os modos como suas ficções teorizam os materiais de que dispõem, a começar pela dimensão histórica da língua portuguesa, com suas variantes”. Na metáfora construída por Saramago em A jangada de pedra (1986), a autora descobre uma crítica ao projeto europeu integrador/modernizador, sugerindo ali a imaginação de outras articulações possíveis, em direção ao Sul. Caixeta investiga, assim, com agudeza notável, o complexo jogo entre escrita literária e recepção da crítica especializada, gesto que caracteriza também sua abordagem de Guimarães Rosa e Mia Couto.

Ao problematizar os termos da consagração de Guimarães Rosa, a autora volta-se para os estudos de Antonio Candido, especialmente para a tese de que a escrita rosiana representaria uma suposta síntese regional-universal, ou a depuração do regional no universal. Na categoria do “super-regionalismo” (proposta por Candido em “Literatura e subdesenvolvimento”, de 1970), a autora percebe um vetor europeizante que estigmatiza o que é considerado regional ou local, tomado como resto ou sobrevivência. O diálogo com Dipesh Chakrabarty surge, então, extremamente oportuno, já que com base nele a autora adensa seu questionamento ao “universalismo puramente abstrato” que alicerça o modelo candidiano. Sua atenção volta-se especialmente para a violência linguística, ou seja, para os vínculos entre violência colonial/modernizadora e monolinguismo. Em sua perspectiva, Rosa “explorou o caráter babélico de um idioma colonial e pós-colonial, o português brasileiro, mas para desenredar Babel, sua ambição evolutiva e seu pendor à eliminação do outro”. Como destaca a autora, é muito significativo que Mia Couto indique, em seu discurso na ABL (Associação Brasileira de Letras), que as línguas bantu produziram afinidades entre o português do Brasil e o moçambicano. Aliás, vale a pena mencionar um comentário de Mia Couto aludido por Caixeta. O escritor, em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo (16/11/2008), comentava que algumas de suas narrativas circulavam em Moçambique adaptadas para teatro e traduzidas para línguas africanas: “converto meus textos para teatro. Algumas das minhas peças foram traduzidas do português para línguas locais. Trabalho para rádio e televisão, escrevo para jornais. Tenho uma intervenção pública. Não posso ficar preso ao livro”.1 1 COUTO, Mia. Temos apenas um nome diferente. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 128, 16 nov. 2008. Cultura, p. D6

É esse Moçambique fraturado, plurilíngue e heterotemporal que também se configura no mais recente romance de João Paulo Borges Coelho, analisado por dois artigos aqui publicados. Rui Miranda, no seu artigo “World(s) apart - Borges Coelho's Museu da Revolução and writing in (and of) a changing world”, examina o romance de João Paulo Borges Coelho com base numa noção de literatura mundial revisada e reavaliada pelo crivo cosmopolita de Pheng Cheah. Em seu livro What is a world? (2016), Cheah advoga que o mundo da literatura mundial é basicamente uma noção espacial: lugar onde as circulações literárias acontecem. Contrapondo-se a tal visão espacial, Cheah pensa em worlding, a capacidade de a literatura recriar e inventar mundos, impossíveis de ser reduzidos ou domesticados por um sujeito. Considerando essa visão de “mundo”, Miranda lê o romance de Borges Coelho como uma narrativa contra a moldura homogeneizante de um Moçambique neoliberal “virado para diante”. O romance, em sua avaliação, abre-se para as janelas fronteiriças, interétnicas, nostálgicas do “mundo recuado”. Já o artigo “As estórias dentro da história: mapeando a nação no Museu da Revolução, de João Paulo Borges Coelho”, de Sheila Khan e Sandra Sousa, elabora uma leitura mais pontual. Trata-se de investigar, com base em Marianne Hirsch e sua teoria da pós-memória, os objetos figurados no romance (veículos, telefone, tratores etc.) e suas funções na complexa economia narrativa. Para as autoras, a “pós-memória não aspira a conclusões arrumadas, puras e gratificantes, mas tem, sim, como objetivo deixar as audiências com o desconforto e a ousadia de descobrir que a história - sobretudo a história de eventos de extrema violência e sofrimento - deixa pontas soltas e lacunas que nenhum relato é capaz de amarrar e preencher totalmente”. Nesse sentido, argumentam que tal teorização mantém afinidades com a crítica pós-colonial, convidando a uma investigação mais detida.

Em “Literatura e desenvolvimento, por ocasião do Antropoceno”, Carolina Correia dos Santos investiga, por sua vez, a complexa participação de intelectuais do chamado “terceiro-mundo” em programas de modernização nacional. Com base em Chakrabarty, a autora sugere que o Antropoceno (quando o homem se percebe agente geológico) perturba radicalmente as ideias de progresso e modernização ao corroer uma dicotomia basilar da episteme ocidental, a oposição entre “cultura e natureza”. A autora aponta, ainda, para a necessidade de reavaliação crítica de alguns dos pressupostos dos próprios estudos subalternos, já que categorias decisivas como “agência humana” e “história humana” se revelam também problemáticas. Talvez o ponto mais polêmico da discussão proposta por Santos seja a instigante estratégia de cotejar discursos do intelectual brasileiro Antonio Candido (1918-2017) e do político indiano Nehru (1889-1964), primeiro-ministro da Índia de 1947 até 1964. É por dar relevo ao entrelaçamento entre políticas culturais e econômicas que a inesperada comparação encontra sua produtividade. Afinal, pensar as funções da literatura no Brasil é, para Antonio Candido, imaginar a construção de uma nação moderna nos trópicos, integrada às nações civilizadas do Ocidente. Como bem argumenta a autora, para Antonio Candido, o escritor “trabalha sobre a natureza, que permanece sempre o objeto de uma dicotomia epistemologicamente ativa”. De modo análogo, o projeto de desenvolvimento industrial de Nehru apropria-se do Himalaia como matéria-prima, a cadeia de montanhas sendo vista como fonte inesgotável de riquezas para o agente humano, único sujeito da relação. Daí que a escolha pela leitura de dois contos de João Guimarães Rosa, “As margens da alegria” e “Os cimos” (respectivamente o conto de abertura e o de encerramento do livro Primeiras estórias), se faça tão significativa, pois Santos encontra, nas parcerias do protagonista, o Menino, outras possibilidades de contato com a vida, para além (e contra) aquela que orienta os adultos empenhados na construção da “grande cidade”.

Se no artigo de Carolina Correia dos Santos, a nacional-modernização pressupõe uma teleologia em que o arcaísmo deve ser superado pela modernidade, Mariana Ruggieri, em seu artigo “A abstração da inequivalência: subalternidade e escravidão”, questiona tal sequência linear no modo de narrar a história do capitalismo. A autora justapõe criticamente os pensamentos de Gayatri Spivak e Sylvia Wynter com intuito de refletir acerca de uma possível equivalência teórica entre as figuras do proletário e da pessoa escravizada na teoria materialista da exploração do trabalho. Ruggieri sugere que a equivalência não se dá e que o trabalho escravo está longe de ser um resíduo arcaico quando comparado ao trabalho realizado pelos operários no chão de fábrica. Pelo contrário, a plantation é um laboratório disciplinar do capitalismo moderno que antecede a fábrica. Tal afirmação de inequivalência embaralha muito o jogo do que é percebido como central e periférico no capitalismo mundial e coloca questões novas para qualquer teoria da subjetivação subalterna.

Uma configuração da subjetividade subalterna bastante inusitada aparece no artigo “Entre ficção e crítica: Abdellah Taïa, leitor do orientalismo de André Gide”, de Júnior Vilarino. O autor argumenta que o romance Aquele que é digno de ser amado (2017), de Abdellah Taïa, consiste numa potente ficção de ajuste de contas históricas com a efebofilia orientalista do escritor francês André Gide, que enxergava nas suas frequentes relações sexuais com os corpos de jovens árabes o ápice de uma emancipação e experimentação sexual. A assimetria entre mestre europeu versus efebo árabe, que estrutura esse turismo sexual orientalizante e predador, fornece também o princípio formalizador do romance de Taïa, que conta a relação entre Emmanuel (professor de literatura francesa, francês, com nome do Cristo enviado, “Deus está convosco”) e Ahmed, árabe e estudante de literatura francesa. O narrador do romance é Ahmed que busca analisar as amarras coloniais e opressivas que o mantinham na relação com o Emanuel, ao mesmo tempo que cria forças para se livrar de tais amarras. O romance aparece como um ajuste de contas pós-colonial, um modo de repensar as relações de poder a partir de um outro ângulo narrativo.

As relações entre sexualidade e poder também aparecem como objeto de análise no artigo “A Autômata: a Unheimlich no tema do duplo”, de Ana Luíza Duarte de Brito Drummond. É a autômata que, sendo “motor de incômodo na ordem das dicotomias, especialmente entre mente e corpo, natureza e cultura, masculino e feminino, animal e humano, organismo e máquina, eu e outro, automatia e autonomia”, traz à tona (à revelia de Freud) o que deveria ficar oculto (Unheimlich). A autora relaciona a histórica desqualificação, perseguição e matança das mulheres à sua anulação no relacionamento amoroso, em que o feminino é desejado como não sujeito. Em sua perspectiva, é pela comicidade (viés que, aliás, teria passado despercebido a Freud em sua leitura do conto “O Homem da areia”, de Hoffmann) que a autômata Olímpia expõe a violência do desejo masculino, sua vontade de domínio e, no limite, de aniquilação. Único sujeito, o masculino erige-se em espectador por excelência, produzindo-se o feminino como imagem, ou a “mulher-imagem”. O homem teme, porém, a inversão das posições, o que já estaria insinuado no mito de Perseu e Medusa, mito que atravessa o artigo como um fio condutor da reflexão. É notável a disposição da autora a confrontar teorias e notar seus limites, problematizando alguns dos fundamentos da psicanálise e de teorias como as de René Girard e Georges Bataille. A conclusão do artigo reitera o diálogo travado com pensadoras feministas, fundamental para sua reflexão, sendo sugestiva de possíveis pontes entre a crítica feminista e a pós-colonial. Afinal, como indica Carolina Correia dos Santos, numa significativa nota de rodapé (nota 10 de seu artigo aqui publicado), o patriarcado alicerça a dicotomia “cultura e natureza”, localizando não só a mulher no segundo termo do binômio, mas também os chamados “primitivos”. Aliás, em sua resenha, Lúcia Ricotta nota que o escrutínio crítico de tal dicotomia é também crucial no diálogo que Claudete Daflon trava com a teoria decolonial.

O material aqui apresentado mostra, em nossa avaliação, uma pequena fração do que está sendo feito nos estudos pós-coloniais, no âmbito da crítica literária brasileira. O Brasil é um país que tem apresentado, ao longo de sua história, poderosas reflexões anticoloniais, seja no front do pensamento radical negro, seja no ameríndio ou, ainda, no âmbito do pensamento euroamericano. Ao mesmo tempo, porém, a cultura acadêmica brasileira é rica em exemplos da clássica alienação colonial, quando o deslumbre e a reverência pelas teorias adventícias nublam o senso crítico diante das tarefas do pensamento. Anticolonial e colonizado, eis a ambivalência do sujeito intelectual brasileiro. Esse deve ser, parece-nos, o ponto de partida para qualquer reflexão dos estudos pós-coloniais no Brasil: um conjunto de saberes produzido por vários atores periféricos/subalternos/não ocidentais que pode ter um potencial enorme de questionar estruturas de dominação (subjetivas e objetivas, intelectuais e materiais), ao mesmo tempo que há o risco de se tornar puro ornamento vocabular, sinal de atualização acadêmica, sem qualquer compromisso com um pensamento afiado analiticamente e politicamente pujante. Do mesmo modo que o marxismo, que vive uma tensão dialética entre a teoria e a prática, a agudeza crítica e o dogmatismo, os estudos pós-coloniais vivem contradições também poderosas. O desafio aqui proposto é o de encarar a mundanidade de nosso campo e, assim, colocarmo-nos como força que disputa os estudos pós-coloniais, advogando por um padrão de análise cultural conceitualmente rigoroso e que não simplifique a enorme complexidade e contradições do cenário pós-colonial.

References

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  • SAID, Edward Wadie. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 568 p.

Notas

  • 1
    COUTO, Mia. Temos apenas um nome diferente. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 128, 16 nov. 2008. Cultura, p. D6

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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