Acessibilidade / Reportar erro

“Libertação”, “discernimento” e “abertura”: acerca da religião e dos modos de conhecimento

“Deliverance”, “discernment”, and “openness”: on religion and ways of knowing

Resumo

Este artigo, que provém de pesquisa etnográfica realizada entre os anos de 2013 e 2016 com pessoas que se concentram em um grupo de oração e uma comunidade católica na cidade de São Paulo, tem como eixos questões relativas à “libertação”, ao “discernimento” e à “abertura”. Ele se dedica à análise dos conceitos de um coletivo de cristãos em que libertar não é se emancipar, mas se vincular e se comprometer cada vez mais fortemente com Deus. Em suma, trata-se de uma circunstância que não visa à liberdade, e consequentemente à autonomia, associada ao individualismo moderno, mas sim à aliança com a divindade. Esta incita a violência do demônio, que busca abrir uma “brecha” na “abertura para Deus”, o motor da libertação. Como se verá, o caráter comungatório da relação com Ele resulta no discernimento: um modo de conhecimento divinamente orientado que, como tentarei assinalar, se caracteriza pela realização de “distinções”, em lugar de divisões e misturas, e que viceja em um mundo intrinsecamente “aberto”.

Palavras-chave:
libertação; discernimento; abertura; conhecimento

Abstract

Based on fieldwork developed between 2013 and 2016, this article is an ethnographic study concerning the concepts of “deliverance”, “discernment”, and “openness” among Christians who gather in a prayer group and/or are members of a Catholic community in São Paulo/SP, Brazil. Its aim is to describe a mode of existence in which to deliver is not to emancipate, but rather to attach, to commit oneself ever more intensely to God. It is not a path towards individual freedom, and consequently to the kind of autonomy associated with modern individualism. This commitment to strengthen the alliance with divinity instigates the Devil’s efforts to open a “breach” in the person’s “openness to God”, the driving force of deliverance. As it will be argued, the commungatory character of the relationship with divinity results in discernment: a divinely oriented way of knowing characterized by the realization of “distinctions”, rather than divisions and mixtures, which thrives in an intrinsically “open” world.

Keywords:
deliverance; discernment; openness; knowledge

Introdução1 1 Agradeço a Ciméa B. Bevilaqua pelos comentários valiosos ao longo da elaboração do texto. Agradeço igualmente a Otávio Velho pelas observações generosas sobre o texto. Sou grato também à leitura cuidadosa realizada pelos(as) pareceristas.

O propósito deste artigo é salientar como, em um coletivo de católicos na cidade de São Paulo, as maneiras de ver e de ponderar são orientadas pelo “discernimento”, apreendido como uma dádiva divina. Essa particularidade localiza o ato de discernir como decorrência da “abertura para Deus”, que, enquanto motor da “libertação”, precipita uma liberdade que se define pela vinculação, em lugar da autonomização ou da individuação.

Considerando que a libertação, o discernimento e a abertura são extremamente valorizados entre as pessoas com quem estive, desejo propor uma forma de analisar esses conceitos sem perder de vista que também estão presentes em outros mundos cristãos. Todavia, a reflexão não se destina a esgotar uma vasta literatura. A partir da convivência com esses católicos, busco tentativamente dar conta de uma interrogação relativa à problemática da religião2 2 Quanto ao substantivo “religião”, fica a advertência de que uma definição trans-histórica e universal do mesmo tem alcance analítico limitado (Asad, 2010, p. 264). Emprego o termo de forma heurística. e dos modos de conhecimento: como se sabe em um mundo onde Deus “está em tudo” e o demônio “pode estar em tudo”?

A discussão a ser desenvolvida advém de minha tese de doutorado, cujo tema é a libertação (Costa, 2017COSTA, Y. G. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Trata-se de uma etnografia realizada entre os anos de 2013 e de 2016 na capital paulista. Os apontamentos que farei são oriundos da pesquisa com o Grupo de Oração São Pio (doravante Grupo de Oração ou Grupo) e seu afluente: a Missão Eucarística Clamor dos Pobres (doravante Missão ou comunidade), fundada por Luís, filho da irmã da iniciadora do Grupo, Ester.3 3 Os nomes usados aqui são em sua maioria pseudônimos. Nos momentos em que trouxer à baila as expressões “meus amigos”, “os católicos”, “esses católicos”, “as pessoas”, “essas pessoas” não estarei me referindo apenas a Ester e a Luís, mas a considerações que seguramente contavam com a anuência de outros adeptos.

Quando conheci Ester, ainda em 2013, a ex-professora de ginástica aeróbica trabalhava como auxiliar de cozinha. Aos 51 anos, era divorciada. Dessa união dissolvida advinham os seis filhos adultos, três dos quais estiveram presos devido ao envolvimento com a comercialização de entorpecentes ilícitos durante o período da pesquisa. Já Luís, um ex-lutador amador, na mesma época tinha 39 anos e era serralheiro. Seguia o ofício que o pai lhe ensinou. Era casado com Débora e tinha três filhos, o mais velho adulto e prestes a se casar, a caçula ainda criança.

O Grupo foi criado há aproximadamente 30 anos, sendo o resultado do envolvimento de Ester com a Renovação Carismática Católica (doravante RCC), um movimento que se destaca pela incorporação de práticas pentecostais ao Catolicismo através da ênfase na proliferação dos “dons do Espírito Santo”: cura, palavra de ciência, variedade de línguas (glossolalia), milagres, profecia, discernimento dos espíritos, etc. (Carranza, 2000CARRANZA, B. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. Aparecida: Santuário, 2000.; Csordas, 1994CSORDAS, T. J. The sacred self: a cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley: University of California Press, 1994.). Um grupo de oração pode ser definido como a instância mais imediata do Carismatismo católico, uma vez que sua presença está difundida em paróquias, escolas, universidades e residências (Maués et al., 2002MAUÉS, R. H. et al. Em busca de cura: ministros e “doentes” na Renovação Carismática Católica. Revista Anthropológicas, Recife, v. 13, n. 1, p. 131-154, 2002.; Steil, 2004STEIL, C. A. Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou saída do Catolicismo? Uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre (RS). Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 11-36, 2004.). A passagem de Ester pela RCC trouxe a “espiritualidade carismática” para o seio de sua família. Posteriormente, já em 2009, esse estímulo deu origem à Missão.

Por ser uma “comunidade de vida e aliança” (Carranza; Mariz, 2009CARRANZA, B.; MARIZ, C. L. Novas comunidades católicas: por que crescem?. In: CARRANZA, B. et al. (org.). Novas comunidades católicas: em busca do espaço pós-moderno. Aparecida: Ideias e Letras, 2009. p. 139-170.), a Missão, que contava com aproximadamente 400 “missionários” durante o período da pesquisa, absorve pessoas que fazem votos de castidade (os celibatários que vivem em lares exclusivamente masculinos ou femininos e recebem os títulos de frei e freira, os integrantes “de vida”). Há também outras pessoas que permanecem solteiras ou que se casam (leigos solteiros e casados, os integrantes “de aliança”) e aquelas que simpatizam com sua forma de vida (os “amigos”), incluindo os padres que a recebem em suas paróquias.

A Missão define-se especificamente como um ramo do franciscanismo. Sucintamente, trata-se de uma forma de vida cristã que reafirma tanto que a presença divina “está em tudo” quanto que a “razão”, em sua versão negativa, “tira Deus das coisas”. Ester e Luís não permaneceram na RCC por considerarem que o Espírito Santo não pode ser circunscrito a um movimento. Para as nossas pretensões, é fundamental realçar que essas pessoas definem a Igreja como originariamente “carismática” e, por isso, têm grande familiaridade com os “dons”.

Antes que prossigamos, cabe sublinhar que a argumentação visa permitir que o material etnográfico, provindo da convivência, observações e conversas no trabalho de campo, desobscureça em “seus próprios termos”4 4 As traduções dos textos e dos termos em língua estrangeira são de inteira responsabilidade minha. (Holbraad; Pedersen, 2017HOLBRAAD, M.; PEDERSEN, M. A. The ontological turn: an anthropological exposition. Cambridge: Cambridge University Press, 2017., p. 5) os assuntos que nos mobilizam: a libertação, o discernimento e a abertura. Esse tripé será problematizado especificamente através de minha relação com Ester, Luís e com outras pessoas que muito me ensinaram.

O texto, além desta introdução e das considerações finais, divide-se em quatro seções: a primeira consiste em um breve esboço da libertação. A segunda desdobra três modos de proceder para pensar: a divisão, a mistura e a distinção. Esta última me leva ao discernimento. A terceira seção tem por finalidade destacar algumas implicações subjacentes a um modo de conhecimento em que, no ato de discernir, prevalece a indelebilidade de Deus e do demônio a qualquer redução analítica. A quarta aborda em que medida a abertura é uma condição substantiva de um mundo onde a presença desses seres é dada.

A “libertação”

Meus amigos, quando replicavam o meu desejo de estudar a libertação, afirmavam que se tratava de um tema “forte e perigoso”. Guiado por estes últimos substantivos, um deslizamento sutil poderia me conduzir a equacionar a libertação da seguinte maneira: como um tema forte, ela poderia ser encarada como um correlato da conversão, ou seja, como uma “ruptura com o passado”; enquanto um tema perigoso, seria passível de ser enfrentada como uma busca de se desvencilhar de um demônio, tornando-se um gênero de “ritual” (Bialecki, 2011BIALECKI, J. Quiet deliverances. In: LINDHARDT, M. (ed.). Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians. New York: Berghahn Books, 2011. p. 249-276., p. 250-251; Bialecki et al., 2008BIALECKI, J. et al. The anthropology of Christianity. Religion Compass, v. 2, n. 6, p. 1139-1158, Nov. 2008., p. 1144-1145; Csordas, 1994CSORDAS, T. J. The sacred self: a cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 166-180, 226-227; Maués, 2002MAUÉS, R. H. Mudando de vida: a “conversão” ao pentecostalismo católico. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 37-64, 2002., p. 38; Meyer, 1998MEYER, B. Make a complete break with the past: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 28, n. 3, p. 316-349, Aug. 1998., p. 318; Mosko, 2015MOSKO, M. S. Unbecoming individuals: the partible character of the Christian person. Hau: Journal of Ethnographic Theory, London, v. 5, n. 1, p. 361-393, 2015., passim; Robbins, 2007ROBBINS, J. Continuity thinking and the problems of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity. Current Anthropology, Chicago, v. 48, n. 1, p. 5-38, Feb. 2007., p. 10-11, 2011ROBBINS, J. Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 11-31, jun. 2011., p. 17-20).

Reparemos que, em ambas as circunstâncias (de rompimento ou de ritualização), a libertação parece alavancar um modelo teórico de pessoa cristã que Michael W. Scott (2012SCOTT, M. W. “When people have a vision they are very disobedient”: a Solomon Islands case study for the anthropology of Christian ontologies. 2012. Paper presented. Conference Individualization through Christian Missionary Activity, 25-28 Apr. 2012, Erfurt, Germany. Disponível em: Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf . Acesso em: 1 out. 2018.
http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.a...
, p. 3) chama de “atomístico”,5 5 Agradeço à(ao) parecerista que oportunamente indicou a necessidade de precisar a noção de “modelo atomístico” empregada por Scott e o conceito moderno de autonomia ao qual ela alude. O modelo atomístico sustenta uma inferência tripla (Scott, 2012, p. 3-6), atualmente problematizada também por outras análises: a ideia de que o Protestantismo é decisivo quer nos modos de existência modernos, quer no surgimento da religião como um conceito moderno, quer como protótipo analítico majoritário do estudo do Cristianismo, em detrimento do Catolicismo e do Cristianismo não ocidental (Cannell, 2006, p. 20; Hann, 2007, p. 405-406; Houtman; Meyer, 2012, p. 9; Keane, 2007, p. 5). Segundo esse modelo, a pessoa cristã seria constituída por atributos como a interioridade, a individualização e a reflexividade. Consequentemente, presume-se que os cristãos cultivam uma relação interior, pessoal e privada com Deus. Sem dúvida, como observou o(a) parecerista, “não é concebível que o indivíduo possa ‘se libertar’ de Deus” em qualquer forma de vida cristã. No entanto, quando a libertação é definida como “[…] o primeiro passo de um processo de racionalização […]” (Mariz, 1994, p. 205), ela permanece em consonância com “[…] a autodefinição da modernidade em termos de progresso […]” (Meyer, 1998, p. 317) e autonomização individual. A persistência nas análises dos vocábulos “autonomia” e “autocontrole” não leva suficientemente em conta o caráter de aliança da relação com Deus: é possível reiterar analiticamente um sujeito cristão fazendo referências tangenciais a esse vínculo fundamental, o que vai de encontro às apostas deste artigo. o qual delimita “[…] uma trajetória lógica primária dentro do Cristianismo em direção à individualização” (Scott, 2012SCOTT, M. W. “When people have a vision they are very disobedient”: a Solomon Islands case study for the anthropology of Christian ontologies. 2012. Paper presented. Conference Individualization through Christian Missionary Activity, 25-28 Apr. 2012, Erfurt, Germany. Disponível em: Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf . Acesso em: 1 out. 2018.
http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.a...
, p. 3, grifo do autor) e o protótipo do “cristão da antropologia” (Scott, 2012SCOTT, M. W. “When people have a vision they are very disobedient”: a Solomon Islands case study for the anthropology of Christian ontologies. 2012. Paper presented. Conference Individualization through Christian Missionary Activity, 25-28 Apr. 2012, Erfurt, Germany. Disponível em: Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf . Acesso em: 1 out. 2018.
http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.a...
, p. 3-6). Nessa perspectiva, seria possível definir a libertação enquanto um evento que resultaria na emersão de sujeitos autônomos, emancipados, autocontrolados, racionais. É disso que me afastarei.

Podemos esboçar que o modelo constitui, em primeiro lugar, um solo por meio do qual as análises acima se iniciam, quer para corroborá-lo, quer para enfraquecê-lo. Em segundo lugar, ele tem implicações profundas porque, ao fim e ao cabo, redunda, como bem aponta Talal Asad (1996ASAD, T. Comments on conversion. In: VAN DER VEER, P. (ed.). Conversion to modernities: the globalization of Christianity. New York: Routledge, 1996. p. 263-273., p. 271), em um elemento-chave das definições modernas de “agência”, centradas no indivíduo: a premissa protestante de que “[o]s indivíduos são agentes porque são responsáveis por suas próprias almas […]”. Não sem motivo, a libertação é assimilada a ideias corriqueiras (ou modernas) de liberdade em que prevalece um viés marcadamente humanista.6 6 Essa redução foi antevista magistralmente por Otávio Velho (2007, p. 117) em seu estudo acerca da situação/expressão “cativeiro” entre pequenos agricultores na Amazônia Oriental.

Ester, Luís e muitos dos meus amigos diziam, por um lado, que a libertação é “diária” (para aquém da ruptura), pois o demônio “vai e volta” (para aquém do ritual), assim como a pessoa “cai e levanta”. Por outro lado, a multiplicavam, porque, conforme uma observação generalizada dessas pessoas: “A libertação é o ato da pessoa ser livre. É só o nome que se dá para o que acontece. Pode ser de várias formas. Deus pode libertar do jeito que Ele quiser.” Isso define a ocorrência dela na “Confissão”, na “cura de uma maldição”, na “cura de um trauma”, na cessação de um “assédio do demônio”, no “louvor”, no “amor”, no “perdão”, nas atividades pastorais como a “caridade”, no “celibato” e, sobretudo, de maneira inesperada, pois “só Deus sabe como libertar”. A posição d’Ele em tais circunstâncias explicita que a liberdade é menos a decorrência de virtudes humanas que uma espécie de dádiva divina que vincula, que cria, em sentido bíblico, o próprio “Código da Aliança” (Êxodo, 19-20, 24). Desse modo é que as pessoas insistiam na preeminência divina nos assuntos relativos à libertação, que depende menos de defini-la com exatidão que de seu propósito: efetivar a aliança com Deus.

Desejo realçar que lidar com a libertação depende especificamente das formas de vida cristãs que estudamos. Nesse caso, estou me remetendo a um modo de existência católico, em lugar de protestante.7 7 Reiterar, de acordo com Birgit Meyer, a “[…] nitidez de um dualismo imaginado entre protestantes/católicos em termos de religiosidades [respectivamente] mentalista/materialista […]” (cf. Mayblin et al., 2017, p. 24) pode levar a alguns equívocos. Logo, as diferenças são abordadas aqui apenas heuristicamente. Essa circunscrição possibilita salientar de maneira distinta como a libertação, segundo meus amigos, é um tema “forte e perigoso”. Digo isso porque sua motivação não é predominantemente romper com o passado ou desvencilhar-se de um demônio. “Libertar” não é se afastar, se separar, se emancipar, mas tem a ver com se vincular, se aproximar e se comprometer cada vez mais fortemente com Deus. É preciso, em tais circunstâncias, abrir mão daquele modelo mencionado acima porque se trataria de enfocar menos a análise da individuação do que o relacionamento com a divindade. Meus amigos repetiam incessantemente que “não são nada sem Deus”. Isso permite que se vislumbre a forma como essas pessoas conceptualizavam o “controle”, o elemento central da libertação. O controle de quem se liberta não redundava, segundo elas, no domínio de si, mas no reconhecimento de que é Deus “quem está no controle”.

Com isso destacado, faço a seguinte pergunta: como seria possível dedicar-me a um tema, a libertação, que é considerado forte e perigoso por esses católicos, e cujo controle não é possível por meios estritamente humanos? É fundamental reparar que isso tem a ver com uma forma de conhecimento que se prolonga no decorrer da contenda entre Deus e Satanás pela posse da humanidade, explicitada por duas afirmações enfáticas de meus amigos: Deus “está em tudo” (onipresente); e o demônio “pode estar em tudo” (quase onipresente). Dadas essas presenças irremovíveis, será necessário refletir se o mundo das pessoas com quem estive se constitui por meio do divisor aberto/fechado, uma das implicações possíveis do “modelo atomístico” que delinearia a pessoa cristã.

Se a libertação vai em direção ao compromisso com a divindade, é crucial enfrentar algo incontornável: a irredutibilidade da vida desses católicos a qualquer conceptualização que obscureça a qualidade comungatória do seu conhecimento, ou seja, um modo de saber que se faz, como tentarei demonstrar, “junto com” e “a partir de” Deus. No entanto, essa premissa só ganha sua real importância se não negligenciarmos que a “comunhão”, a aliança com a divindade, gera, ao mesmo tempo, uma reação inquieta e violenta do demônio.

São as “várias formas” pelas quais Deus liberta, ditas acima, que conduzem à tematização da abertura para Ele. Deixar que o Espírito Santo aja, abrir-se para tal, constitui, entre os meus amigos, o “discernimento”. Em momentos distintos da pesquisa, Ester e Luís disseram, respectivamente, que “a Verdade [Jesus/Deus] liberta” e que “a libertação nada mais é do que a pessoa que conhece a Verdade”.8 8 Ambos se referiam a uma passagem do Evangelho segundo São João (8, 31-32). A seguir, notaremos que não há nada de contraintuitivo no fato de os meus amigos definirem a Verdade como uma pessoa. Tais inferências baseiam-se em operações por meio das quais o ato de discernir pode ser conjecturado como um modo de conhecimento em que preponderam distinções, em lugar de divisões e de misturas. Nas próximas páginas, buscarei elucidar essa especulação através das considerações de Ester e Luís, que vivem em um mundo infestado de presenças divinas e malignas.

Divisão, mistura e distinção: o “discernimento”

Perto do fim de 2015, Ester conseguiu convencer a filha, Eloá, a se internar na Associação Missão Belém, uma comunidade católica cujo trabalho pastoral destina-se, entre outras coisas, a acolher dependentes químicos. Depois de várias tentativas, Eloá, adicta e ex-detenta, foi persuadida e encaminhada para uma chácara daquela Missão. Jesus Cristo pedira que Ester “testemunhasse” acerca do ocorrido. Ela o fez em uma das reuniões do Grupo de Oração diante de aproximadamente 30 pessoas agrupadas na sala da edificação onde mora com os pais e diversos outros familiares. Há uma pequena capela no lugar.

Eloá, que tinha na época 23 anos de idade, estava morando em um “barraquinho” próximo à residência da mãe. Ester foi ao seu encalço porque a jovem não conseguia mais cuidar dos dois filhos pequenos, com três e quatro anos, “por causa da droga”. Ester testemunhou que três dias depois de ter estado com ela recebeu uma ligação telefônica da moça, que a interpelava aos berros: “Mãe, quem era aquele velho que estava com você?” Por um breve momento hesitou, mas não tardou a se situar: “O velho que anda comigo só pode ser São Pio [de Pietrelcina9 9 São Pio (1887-1968) foi um monge capuchinho italiano e sacerdote, canonizado em 2002. Sua popularidade decorre dos estigmas que surgiram em suas mãos, pés e do lado esquerdo do tórax e dos carismas advindos dessa experiência de dor e sofrimento, tornando-o um santo muito evocado nas orações de cura e libertação. ], além de São Miguel Arcanjo, Santa Teresinha, Madre Teresa de Calcutá, Nossa Senhora. Isso deve ser assustador para quem vê!” Ester arrancou gargalhadas de todos e acrescentou que, além da filha, outros dois “noias10 10 O mesmo que usuário compulsivo de substâncias entorpecentes. viram o velho”. Mesmo entorpecidos, não havia qualquer engano na “visão” dos noias. A devota e eles viram a mesma coisa. Um deles, Carlão, um “matador da Vila”, era “de prova”, ou seja, poderia confirmar a visão.

O homem disse que a “viu chegar com um velho”. Assim que ela entrou na viela que conduzia ao casebre de Eloá, Carlão começou a gesticular para Ester de sua residência, como se alguém a acompanhasse. Não falava com ela. Estava, na verdade, incomodado com o velho. Se os noias, apesar de seu estado, viram aquilo que inicialmente só ela veria, “só Deus sabe” o porquê. A aparição não deixava de ser, conforme Ester, a “moção do Espírito Santo” para que a filha e os rapazes se libertassem. Por fim, declarou com firmeza: “Eu sei que ele [o santo] está comigo o tempo todo.” O “saber” de Ester é irredutível à explicação, a formas estritamente humanas de estabelecer o conhecimento. Não sendo explicável, resta elaborar um modo de descrever um saber que se produz pela possibilidade de “enxergar com” a presença de Deus.

Remeto-me a isso baseado na premissa geral de que os conceitos dos meus amigos é que devem orientar a maneira como a análise prosseguirá. A irredução não acarreta minimizar os “saberes” acadêmicos, mas sim realçar sua limitação quando trazem à baila conceitos cujo rendimento obscurece as formas de pensar desses católicos. A limitação decorre, muitas vezes, da intromissão de sobreposições conceituais quando se pretende estudar o Cristianismo.11 11 Estamos longe de supor que o Cristianismo seja uma unidade de análise congelada e homogênea. O termo embebe uma multiplicidade de estilos, devoções, perspectivas e denominações que passam por modificações imprevisíveis (Keane, 2007). O argumento não é uma novidade. Há mais de uma década já fora destacado por Joel Robbins (2003), podendo ser incluído nas problematizações gerais do que veio a ser denominado de “antropologia do Cristianismo” (Bialecki, 2014, 2015; Bialecki et al., 2008; Cannell, 2006; Hann, 2007; Mayblin, 2010; Mayblin et al., 2017; Mosko, 2010, 2015; Robbins, 2011; Scott, 2012; cf. nota de rodapé nº 7).

Dito de outro modo, uma vez que não é incomum se deparar na pesquisa com expressões que atravessam a própria retórica da antropologia, o risco é tomar os conceitos das pessoas com quem escolhemos conviver por um período determinado de nossas vidas como autoevidentes. No caso abordado aqui, isso poderia ocorrer com a libertação, o discernimento e a abertura. O mundo dos adeptos e o dos pesquisadores é “quase” o mesmo; contudo, aqueles falam desde uma narrativa que ajudou a constituir o vocabulário da teoria social destes (Keane, 2007KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007., p. 28). Originam-se dessas observações duas indagações que encerram, respectivamente, um paradoxo específico e um problema antropológico geral: como descrever a diferença dos cristãos em um mundo que se presume cristão? Em tais condições, como se desviar das ciladas da trivialização (uma consequência da familiaridade) e da exotização (uma decorrência da anomalia)?

Gregory Bateson dá uma lição exemplar a respeito do problema. Ele antecipava, ainda em 1958, que atribuir substância aos conceitos resultava na “[...] falácia whiteheadiana da concretude deslocada [da hipóstase]” (Bateson, G., 2008BATESON, G. Naven: um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova Guiné. São Paulo: Edusp, 2008., p. 312). Tomava-os, preferencialmente, como “[…] descrições de processos de conhecimento” (Bateson, G., 2008BATESON, G. Naven: um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova Guiné. São Paulo: Edusp, 2008., p. 312). G. Bateson (2008BATESON, G. Naven: um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova Guiné. São Paulo: Edusp, 2008., p. 311) definia a epistemologia por meio da variação e das relações entre “modos de pensamento”, em lugar de mecanismos de depuração que determinariam a posição do analista como alguém que organiza a informação (Velho, 2010VELHO, O. A religião é um modo de conhecimento?. PLURA: Revista de Estudos de Religião, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 3-37, 2010., p. 26-27) autonomamente. Se a discussão se apoiasse em tais mecanismos, a vida das pessoas se tornaria mera ilustração ou objeto dos “nossos”12 12 O pronome “nosso” deve ter uma reverberação específica, pois indica que a persistência de uma antropologia da religião baseada em uma episteme ocidental - a secular, que inventa o sujeito autônomo (Asad, 2003, p. 1, 24-25, 191-192) - é uma das forças motrizes das abordagens contemporâneas a respeito da libertação. saberes. Desviar-se do problema da autoevidência permite aventar a possibilidade de pensar os conceitos como “descrições de processos de conhecimento”, justapondo, e não sobrepondo, essas “descrições”.

Se posicionarmos heuristicamente a libertação, o discernimento e a abertura para “nós” e para “eles” como eixos para a descrição, o exercício pode ser desenvolvido por meio de uma “estratégia intelectual” em que a ocorrência “[…] de uma similaridade forte, menos do que produzir a identidade [ou a incomensurabilidade], permite fazer novas inferências” (Bateson, M. C., 1988BATESON, M. C. So what’s a meta for?. In: BATESON, G.; BATESON, M. C. Angels fear: towards an epistemology of the sacred. New York: Bantam Books, 1988. p. 183-200., p. 192) para além da familiaridade e da anomalia.13 13 Essas considerações oriundas do pensamento de Bateson estão parcialmente reproduzidas em Garcia (2018, p. 265).

Tendo isso em perspectiva, o breve “testemunho” de Ester disposto acima se comunica com algo que ocorrera no início da pesquisa. Ainda em março de 2013, Luís tinha no prelo um livro cujo tema era “cura e libertação”. Um excerto desse escrito pode aparecer em todo o seu alcance dadas as considerações anteriores:

[D]evemos saber que a existência, tanto do Céu e também do purgatório e do inferno, não depende de forma alguma de se crer ou não, pois são realidades que existem e continuarão a existir mesmo que ninguém creia. Só para fazer uma comparação, usando as realidades com as quais nós conseguimos entender, imaginemos um quadro de energia ligado, com aqueles barramentos de cobre nos quais se ligam os disjuntores e alguém disser: “Não acredito que lá tenha eletricidade pois não a vejo.” Então, mesmo que não acredite, se ela tocar os barramentos levará um tremendo choque, pois o que existe não depende de nossa crença, simplesmente existe.

Não há nada de trivial ou de exótico nessas palavras. Se estamos lidando com a possibilidade de estabelecer “novas inferências”, faço uma pergunta: diante de situações que juntam eletricidade, substâncias entorpecentes, noias, o Céu, o Inferno, o Purgatório, São Pio de Pietrelcina, São Miguel Arcanjo, Santa Teresinha, Madre Teresa de Calcutá, Nossa Senhora, como e quem decide “[…] manter a capacidade de diferir [(de divergir) e de diferenciar (de estabelecer distinções)] sob controle […]” (Holbraad et al., 2014HOLBRAAD, M. et al. The politics of ontology: anthropological positions. Cultural Anthropology, 13 Jan. 2014. Disponível em Disponível em https://culanth.org/fieldsights/462-the-politics-of-ontology-anthropological-positions . Acesso em: 1 fev. 2016.
https://culanth.org/fieldsights/462-the-...
)?

Ester acentuou que somente “Deus sabe” o motivo pelo qual Eloá e Carlão viram o velho, um santo. Luís concluiu que a eletricidade e o inferno existem e não “[…] depende[m] de nossa crença, simplesmente existe[m]”. A crença, na teoria dos meus amigos católicos, não é um equívoco epistemológico a ser corrigido por um saber verdadeiro, mas um saber que independe da suposta objetividade das formas de verificação científicas. A crença é da ordem da fé. Luís, entretanto, também se refere à crença como algo limitado ou quase negativo, o que, a meu ver, torna a sua analogia um artefato potente, pois a amplia como um hábito de pensamento comum a alguns fiéis e a céticos.

Os apontamentos de Ester e Luís podem ser relacionados ao que as pessoas com quem convivi chamam, como já assinalado, de “discernimento”.14 14 O vocábulo é oriundo do latim discernere, o mesmo que separar, distinguir. Devemos evitar eclipsá-lo por meio de sobreposições conceituais, visto que o discernimento é disseminado em nosso vocabulário, de maneira que as variações semânticas suscitam o “juízo”, expressando “bom senso e clareza”, “conhecimento, entendimento”, tal como dispõe o verbete no Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001)DICIONÁRIO Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.. Ademais, diz respeito também ao que seria intrínseco ao conhecimento enquanto atividade humana.

Caso recorramos ao sentido em que Ester e Luís mobilizam o discernimento, notaremos que se trata de uma longa trajetória que atravessa o Antigo Testamento e o Novo Testamento: como dom concedido por Deus para apartar o bem do mal (Deuteronômio, 18, 21-22); como maneira de enxergar os eventos a partir de Deus (Jó, 28, 28). O teólogo Joseph T. Lienhard (1980LIENHARD, J. T. On “discernment of spirits” in the early church. Theological Studies, Santa Clara, v. 41, n. 3, p. 505-529, Sept. 1980., p. 505) aponta que o “discernimento dos espíritos”, enquanto um dom do Espírito Santo, advém da Primeira Carta paulina aos Coríntios (12, 10).15 15 Na literatura antropológica acerca de mundos cristãos, o termo tem grande presença no trabalho de Thomas J. Csordas (1994). Aparece também nos textos de Tanya M. Luhrmann (2006, p. 9), de Jon Bialecki (2011, p. 268) e ganha atenção detida em Frederick Klaits (2016, p. 1151-1152), que se inspira em Luhrmann. Ademais, não se pode negligenciar que a problematização do discernimento, a partir de autores como Michael Lambek e James Laidlaw, talvez tenha relações com o que se alcunhou há alguns anos de “antropologia da ética” (Cannell, 2017, p. 13-14). Há, a meu ver, todo um lugar para a feitura de uma “antropologia do discernimento” (Costa, 2017, p. 64-79) e de operações derivadas dele, tal como a “precaução” (Costa, 2017, p. 53, nota 59, p. 396-413). O discernimento pode ser pensado, eu postulo, ao redor de três operações possíveis, caso nos atenhamos ao testemunho de Ester e ao escrito de Luís: a “divisão”, a “mistura” e a “distinção”.

Em uma passagem esclarecedora, Alain Pottage (2004POTTAGE, A. Introduction: the fabrication of persons and things. In: POTTAGE, A.; MUNDY, M. (ed.). Law, anthropology, and the constitution of the social: making persons and things. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 1-39., p. 8), na introdução de uma coletânea dedicada à análise da fabricação de pessoas e coisas pelo direito, ressalta que a teoria social contemporânea teria dificuldade de escapar de um “esquema de ‘divisão’” e de considerar um “esquema de ‘distinção’”. O elemento que deve nos reter na divisão, enquanto operação intelectual, é que a mesma cesura o mundo em “oposições fundacionais”. Estas funcionam por meio de categorias que as englobam: “[…] espaço (próximo/distante), tempo (passado/futuro), ação (intenção/efeito) […] ‘[N]o caso da distinção, tudo depende de como a fronteira que divide dois lados (isto é, a distinção) é estabelecida’” (Luhmann, 1998 apud Pottage, 2004POTTAGE, A. Introduction: the fabrication of persons and things. In: POTTAGE, A.; MUNDY, M. (ed.). Law, anthropology, and the constitution of the social: making persons and things. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 1-39., p. 8). A meu ver, a discussão ganharia potência se fosse introduzida a inimiga clássica da divisão: a mistura. É o que empreendo.

Um esquema de mistura amalgamaria o mundo, de maneira que as operações de divisão o tomariam como ilógico e contraintuitivo. Não prosseguirei com a divisão e tampouco com a mistura, mas sim com a distinção. A implicação que posso tirar da última é heurística, tornando-se, por assim dizer, uma forma menos acidentada de me remeter aos conceitos das pessoas com quem convivi. Não é o caso de afirmar que na ausência de mistura há divisão e vice-versa, mas sim que é possível que a distinção ocupe a posição de um terceiro. Postulo que no mundo dos meus amigos predomina a “distinção”, em lugar da “divisão” e da “mistura”.16 16 Os três termos são operações que não se excluem entre si. Cada uma delas pode, no seu funcionamento, suscitar as outras (Costa, 2017, p. 11, nota 16).

Você distingue e cria contrastes (“novas inferências”); divide e cria incomensurabilidades; mistura e cria solubilidades. Ester e Luís não estão denegando “irracionalmente” a razoabilidade dos efeitos dos alucinógenos ou o caráter doloroso de um choque elétrico. Ressalto que tampouco excluem mutuamente (dividem) ou identificam imediatamente (misturam) o que nós consideraríamos “visível” (os efeitos dos entorpecentes e a eletricidade nos barramentos de cobre nos disjuntores) e “invisível” (o santo, o Céu, o Inferno e o Purgatório). Eles discernem (distinguem). Assim, estão destacando que há algo mais a ser visto que a mera submissão do que se passa com os noias e com as correntes elétricas à trivialidade da “razão humana” ou a constatação, por si só exótica, de que tudo o que ocorre é “sobrenatural”.

A tia e o sobrinho, ao discernir, distinguem: uma operação que por ser realizada, como eu postulo, “junto com” e “a partir de” Deus estabelece um eixo triádico através do qual se contrasta a origem da ação. Essas pessoas geralmente discerniam se um pensamento, uma visão, uma sensação vinham de Deus, do “humano da pessoa”17 17 A expressão “humano da pessoa”, enunciada por esses católicos, muitas vezes é assimilada a outro vocábulo bastante comum em suas vidas: a “fraqueza”. A incompletude e o inacabamento da natureza humana tornam a pessoa, desde a expulsão do Paraíso, essencialmente “fraca”. ou, em várias ocasiões, do demônio. Há, de início, uma primeira assimetria, Deus está em tudo, que se contrapõe assimetricamente a uma segunda, o Diabo pode estar em tudo, e reforça uma terceira: a fragilidade humana diante desses seres.

O discernimento de que falam meus amigos é uma operação geral oriunda da abertura para a divindade. Não se deve obscurecer que eles definem a vontade e o juízo como presentes divinos, não obstante o “julgamento”, devido ao seu teor acusatório, seja tomado como uma ação maligna. O “conhecimento como dádiva (e vínculo)”, como eu prefiro chamar, distancia-se do “conhecimento como autonomia” porque determina uma posição que as pessoas ocupam. Não era raro que elas dissessem ser “instrumentos de Deus”, isto é, que eram mobilizadas, controladas, por Ele. Se o conhecimento é doado, a liberdade/libertação também o é. Esse deslizamento me deixa à vontade para, a seguir, tentar responder à interrogação que praticamente introduz este texto: como se sabe em um mundo onde Deus está em tudo e o demônio pode estar em tudo e é real?

Situando o “conhecimento”

A elucidação da pergunta depende, incialmente, de não perder de vista que estamos acompanhando uma forma de conhecimento que parece suscitar distinções, em lugar de divisões e de misturas. Nesses termos, procurarei demonstrar concisamente que, por exemplo, tomar o demônio, ficando apenas com ele, como uma abstração ou representação (esquema de divisão/purificação), ou admitir a sua existência pela suposição de que se trata de um cosmo marcado por hibridismos (esquema de mistura) (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 16), ofusca o que essas pessoas assinalam ser fato.

Se lidamos com a “distinção”, afastamo-nos de “dois conjuntos de práticas” (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 16) que designam o mundo moderno. No primeiro predominam, “[…] por “tradução”, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura”. No segundo vigoram, “[…] por “purificação”, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos, de outro” (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 16).

Uma das principais garantias da “Constituição Moderna”, considerando a purificação, consiste também em excluir Deus da realidade não humana dos fatos naturais e da construção humana do mundo social (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 38). Ao mesmo tempo, ela assume uma ruptura irreversível com o passado, criando um mundo purgado de “falsos saberes” (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 41) ou “crenças”. Alguns de seus aspectos purificadores centrais são as cesuras entre representação e realidade, sujeito e objeto, nós e eles, espiritual e material, palavra e coisa, interior e exterior, antes e depois, etc.

Há, a partir das considerações de Ester e de Luís, outros modos de estabelecer a distinção entre domínios humanos e não humanos sem que se recorra àqueles esquemas. Com isso dito, vou em direção a três aspectos gerais relativos à elucidação da indagação apresentada logo acima. Cada um deles destaca maneiras de obscurecer o conhecimento dessas pessoas: como o ceticismo é uma limitação de perspectiva; como se estabelece a relação entre pessoa, controle e liberdade; como a libertação é subjugada à purificação, ou seja, à criação de rupturas e divisões.

Inicio o primeiro aspecto através da seguinte interrogação: por que alguns analistas frequentemente opacificam a realidade do demônio, transformando-o em uma abstração relativa aos desafios do controle de si e do mundo? Os conceitos mobilizados para “explicar” tal realidade são variados e estão disseminados na literatura antropológica, e de áreas afins, acerca do Cristianismo. Cito apenas alguns deles, pois cintilam muitos outros: um problema concernente à “ética” (Parkin, 1985PARKIN, D. Introduction. In: PARKIN, D. (ed.). The anthropology of Evil. Oxford: Basil Blackwell, 1985. p. 1-25., p. 3); uma “[…] representação coletiva […] da pessoa como um repertório de atributos negativos” (Csordas, 1994CSORDAS, T. J. The sacred self: a cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 185); um esquema cognitivo ou modelo cultural (Versteeg; Droogers, 2008VERSTEEG, P.; DROOGERS, A. A schema repertoire approach to exorcism: two case studies of spiritual warfare. In: VAN DOORN-HARDER, N.; MINNEMA, L. (ed.). Coping with evil in religion and culture: case studies. Amsterdam: Rodopi, 2008. p. 105-124., p. 107-110).

A proliferação dessas definições “purificatórias”, ao extirpar a existência desse ser, tem como consequência o ocultamento de enunciados do tipo “o mal [demônio] é real” e “a Verdade [Deus] é uma pessoa”. Em acréscimo, advém de motivações mais profundas. Passo a isso agora.

Proponho que retornemos, por ora, a Luís. Se estivesse com ele e propusesse que o demônio, o “Inimigo”, não poderia existir, estaria admitindo a sua existência. Por assumir uma posição incrédula em face da sua realidade, mesmo que não o soubesse, estaria sendo enganado por ele ao negar, no ato de produzir um saber, a sua realidade. Duas das principais qualidades específicas do Inimigo são a astúcia e o disfarce. Ele fica à vontade para agir quando sua realidade é substituída por uma purificação (divisão) que obscurece a sua existência. Em suma, é como se o demônio se regozijasse com um tipo costumeiro de redução analítica que põe em dúvida a sua existência, um procedimento que lhe agrada. Caso eu pronunciasse que meus amigos veem o demônio em tudo, recorrendo à ênfase em misturas que os tornariam, digamos assim, pessoas distantes do “mundo moderno”, eles discerniriam que eu deveria procurar um psiquiatra e interromper a pesquisa.

Neste ponto, devo esclarecer algo crucial. Conforme Ester, se eu não levasse em consideração a existência divina, o Diabo jamais irromperia no e contra o trabalho. Distanciar-me do ceticismo, dando crédito ao que meus amigos encaram como fato, não me leva a resvalar em problemas oriundos das supostas fronteiras entre analistas e fiéis, mas sim nas formas como eles tentavam me dizer a verdade. Esta, na vida dessas pessoas, advém do discernimento, uma doação divina, o que realça uma das maneiras como se sabe nesse mundo. Meu intuito na pesquisa foi sempre fugir das ciladas de uma “antropologia contra a religião”: aquela que obscurece o que as pessoas dizem ser fato e igualmente minora os modos de conhecimento delas.

Com isso sublinhado, alcanço o segundo aspecto: a relação entre pessoa, controle e liberdade. Recupero o que meus amigos diziam quando se remetiam à pessoa e seus respectivos modos de realizar distinções: a “pessoa com ou próxima de Deus” (às voltas com o “discernimento” e estabelecendo juízos divinamente orientados) ou a “pessoa longe de Deus” (atada às “fraquezas do seu humano”). Elas correspondem, respectivamente, aos termos livre/junto (próximo de Deus) e autônomo/afastado (distante de Deus). Se a liberdade é “ver junto com” e a “partir de” Deus, já a autonomia é da ordem da distância e da cegueira, condições do sujeito moderno autocontido. Sempre me pareceu uma questão desafiadora que esses católicos exortassem uns aos outros para que “fossem livres, se libertassem”. Nunca estimulavam, até onde me recordo, a autonomia ou que se autonomizassem.

É prudente afastar-se da redução do que as pessoas alcunham de verdade à representação. Deve-se, então, problematizar a própria noção de controle, à qual retorno agora. Ela mantém uma relação umbilical com uma noção corriqueira de liberdade e precipita muitas vezes um sujeito secular, autônomo e emancipado. Nesses termos, transformar analiticamente o Diabo, um ser, em um símbolo da ausência de controle de si e do mundo revela um saber oriundo de um modo de existência que valoriza a autonomia e o autocontrole. As pessoas com quem convivi remetiam-se à localização e à manutenção do controle de modo distinto.

Há, assim, um deslocamento. É preciso distinguir, segundo esses católicos, entre a dominação como “opressão maligna” e como “submissão”18 18 De maneira pertinente, Cecília L. Mariz (1994, p. 207) sublinha que a liberdade, entre os pentecostais que se recuperaram do alcoolismo, “[…] se reporta a uma submissão a Deus […]”. Aponta também que “[…] ser livre não é seguir os desejos individuais […]” (Mariz, 1994, p. 207), mas sim os desígnios d’Ele. Entretanto, ao enfatizar que a libertação conduz ao âmbito “ético-racional do ‘indivíduo’” (Mariz, 1994, p. 205), a autora acaba por equacionar a relação com Deus com a produção de formas de vida modernas, eticizadas e racionalizadas (Mariz, 1994, p. 220; cf. nota de rodapé nº 5). Velho (2007, p. 118) não deixou de detectar o problema no momento em que se remeteu à noção de “servo-arbítrio” extraída do Luteranismo, pois a liberdade, quando é encarada como “servidão” a Deus, impõe limites a “[…] toda análise que toma a realização libertária humanística como referência (implícita ou explícita)” (Velho, 2007, p. 117). a Deus. A primeira “aprisiona”; a segunda, “liberta”. Na opressão demoníaca, a autonomização leva ao distanciamento com relação a Deus. A busca pela autonomia, pela individualização, pelo “ter”, pela “construção de um Céu na Terra”, não deixam de ser “formas de escravidão”, não se cansavam de repetir as pessoas. Na submissão, o jugo conduz à aproximação com Deus, à doação e/ou aprimoramento do discernimento, mas também ao ataque iminente do Diabo.

A partir de agora gostaria de assentar o terceiro aspecto: como a libertação parece subjugada a atos de purificação (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.), de criar, por exemplo, cesuras entre “antes e depois”. É por meio de tais atos que ela se torna obscurecida, pois o Cristianismo impulsionaria formas de vida supostamente caracterizadas pela individualização (Scott, 2012SCOTT, M. W. “When people have a vision they are very disobedient”: a Solomon Islands case study for the anthropology of Christian ontologies. 2012. Paper presented. Conference Individualization through Christian Missionary Activity, 25-28 Apr. 2012, Erfurt, Germany. Disponível em: Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf . Acesso em: 1 out. 2018.
http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.a...
). Ou seja, o obscurecimento das especificidades da libertação na própria vida dos adeptos denota os empecilhos para lidar com a diferença dos cristãos em um mundo que se presume cristão. Muitas vezes, o modo como ela é ligada ao individualismo termina por associá-la primariamente com a ruptura, com a irreversibilidade da mudança, com noções canônicas de conversão e, secundariamente, com algumas das possibilidades modernas da autonomia.

Mariz, na revisão bibliográfica mais circunstanciada já realizada acerca da “guerra espiritual” e da “libertação de demônios” na literatura brasileira, nota que a Igreja Universal do Reino de Deus tornou-se o mínimo denominador comum de tal “guerra”. A passagem seguinte explicita de maneira exemplar o argumento desenvolvido até aqui:

Em seu discurso [pentecostais e neopentecostais], valorizam a ruptura com religiosidades do passado e adotam o mito de uma “pureza da fé”. A depreciação da mistura e a valorização da pureza têm sido identificadas por Fry (1991) como características da cultura anglo-saxônica protestante […]. (Mariz, 1999MARIZ, C. L. A teologia da batalha espiritual: uma revisão da bibliografia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 1, n. 47, p. 33-48, 1999., p. 38-39).

A “pureza” (protestante) e a “purificação” (moderna) aparentemente têm uma relação passível de ser descrita. É o que farei a partir de agora em termos genéricos, sabendo, de antemão, que isso incorre em um sem-número de omissões de uma vasta literatura em que se rediscute, entre outras coisas, a cesura entre religião e materialidade (Houtman; Meyer, 2012HOUTMAN, D.; MEYER, B. Introduction: material religion - how things matter. In: HOUTMAN, D.; MEYER, B. (ed.). Things: religion and the question of materiality. New York: Fordham University Press, 2012. p. 1-23.). Em geral, quem executa a purificação, no mundo moderno, é a “Ciência”19 19 Quando me refiro à “Ciência, com C maiúsculo” (Latour, 2001, p. 33), o faço porque essa menção dá conta da definição moderna de ciência como conhecimento objetivo de uma realidade “em si”, isto é, que existe e independe das representações humanas. . Discuto, porém, que esse privilégio pode em alguma medida ser repensado.

Webb Keane apresenta uma contribuição basilar para a discussão. Ele relata que os missionários calvinistas, no encontro com os Sumbanese, na Indonésia, insistiam que as “[p]alavras deveriam estar sujeitas à agência de um[a] orador[a] que se aparta das palavras que ele ou ela controla” (Keane, 2007KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007., p. 15). A importância designada à responsabilidade moral do enunciador corresponde à criação de um domínio subjetivo e impulsiona decisivamente, segundo Keane, as noções modernas de linguagem que funcionam por meio daquelas cesuras, já mencionadas, presentes na purificação moderna. As palavras seriam veículos arbitrários para comunicar significados imateriais (representação), uma forma de destacamento da materialidade (realidade).

A desmaterialização reverbera o próprio modo como os protestantes acusam os católicos de misturar (uma ação não moderna) o que é “apropriadamente espiritual” (Keane, 2013KEANE, W. Secularism as a moral narrative of modernity. Transit: Europäische Revue, Wien, v. 43, p. 159-170, 2013., p. 160) com o que é desprezivelmente material. Dessa maneira, o Protestantismo também foi decisivo para a feitura de uma “[…] história da libertação humana de uma multidão de crenças falsas e fetichismos [idolatrias] que minam a liberdade” (Keane, 2013KEANE, W. Secularism as a moral narrative of modernity. Transit: Europäische Revue, Wien, v. 43, p. 159-170, 2013., p. 160). Esse impulso, em certa medida, é também crucial para as compreensões modernas da liberdade, pois prefigura a valorização do “discurso”, um resultado da agência individual humana, sobre a matéria, objetos, coisas, etc. (Keane, 2007KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007.), sendo um dos impulsionadores daquela “divisão” que Bruno Latour, conforme Keane (2007KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007., p. 5, 24), chamou de purificação. Esta e o acento na autonomia imputado às formas de vida protestantes parecem estar entrelaçados.

Embora eu concorde que a “[…] dimensão religiosa do conceito de modernidade” (Keane, 2007KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007., p. 23) é tributária do Protestantismo, não é adequado afirmar que meus amigos católicos sejam menos “modernos”. Eles são igualmente modernos quando assentam a assimetria entre pessoas e coisas, material e imaterial, mas são diferentemente modernos no modo de qualificar a assimetria, porque mobilizam o discernimento, em lugar da divisão/purificação e da mistura.

Ester, por exemplo, certa vez afirmou que a imagem de um santo não é o próprio santo, mas discerniu que contém uma bênção sacerdotal que a torna, assim, poderosa. Repetiu, em outra ocasião, que água benta em si é água, mas que é prodigiosa porque essa mesma bênção é também vertida para ela. Luís, por sua vez, sempre advertiu para que se discernissem as origens físicas, psíquicas ou malignas de uma doença.

Dadas as colocações já suscitadas, é possível notar como a “purificação” moderna e a “emancipação” protestante podem ser consideradas formas de “libertação” que se contrapõem à libertação na vida dos meus amigos. Cada uma delas possui uma forma distinta de enfrentar as assimetrias entre pessoas e coisas, natureza e cultura, seres humanos e não humanos. Em resumo, não são equivalentes. São preferencialmente posições concorrentes entre si: a da Ciência, a do Catolicismo e a do Protestantismo, não obstante a terceira, conforme vimos, esteja na gênese da primeira.20 20 Um(a) parecerista salientou, de maneira pertinente, que a “relação entre Protestantismo e ciência moderna” poderia ser apresentada através de autores como Max Weber e Peter L. Berger. No entanto, a preferência por Keane e Latour diz respeito à forma como nos trabalhos de ambos a “purificação” é singularmente descrita enquanto uma prática almejada pelo Protestantismo e pela Ciência, algo crucial para a economia do argumento apresentado aqui.

O problema, ao lidar com a libertação enquanto a efetuação de um modo de conhecimento, abrange a qualidade da assimetria entre pessoas e coisas que se desdobra em cada uma dessas três narrativas. Desse modo, é possível descrever a maneira como alguns cristãos, situados no “mundo moderno/cristão”, estabelecem regimes específicos por meio dos quais lidam com a divisão/pureza e com a mistura, o que não coincide com defini-las respectivamente como positivas ou negativas e vice-versa.

Ester e Luís partem do discernimento, da distinção, em vez da mistura ou da divisão. Não era incomum que falassem de “pureza da alma”, da “pureza da Virgem criada sem pecado”, da “purificação de lugares e de pessoas”, de “limpar-se dos pecados”, porém isso diz muito pouco acerca da purificação (no sentido descrito acima) e, também, da mistura, mas sim de um compromisso com Deus. Esse vínculo é a qualidade específica que determina como se distinguirá o que deve ser avizinhado ou afastado, em lugar de amalgamado ou cesurado.

Esse apontamento consiste em sugerir que o modo de diferenciar pessoas e coisas (animadas e inanimadas) não é, em nosso mundo, um atributo e uma prerrogativa exclusiva da “purificação”, em seu sentido dominante (científico/protestante), levando à conclusão, como bem nota Tânia Stolze Lima (1999LIMA, T. S. Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia Juruna. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 43-52, jun. 1999., p. 44), de que seria um “[…] verdadeiro traço identitário dos (autodenominados) modernos”. A imprecisão reside na premissa de que, mesmo entre os cristãos, as assimetrias entre material e imaterial, pessoas e coisas, devam ser descritas somente através da purificação que, ao fim e ao cabo, transforma o demônio em uma abstração e Deus em um ser distante, ausente, espiritual e, no limite, presente apenas na “intimidade do coração” (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 38-40). Perde-se de vista “[…] a questão da diversidade dos regimes por meio dos quais ela [a assimetria] opera” (Lima, 1999LIMA, T. S. Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia Juruna. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 43-52, jun. 1999., p. 45). É a isso que me voltarei na próxima seção, enfocando a abertura para Deus, pois ela concerne, em seu funcionamento, aos três aspectos que sublinhei acima: escapar do ceticismo; reconceptualizar a pessoa, a liberdade e o controle; e desentranhar a libertação da purificação.

A “abertura”

Nas páginas anteriores, argumentei que definir o demônio como uma abstração repercutia as divisões entre representação e realidade, sujeito e objeto, nós e eles, espiritual e material, interior e exterior, etc., isto é, operações purificadoras. O propósito foi sugerir que essas divisões, em nosso mundo, podem operar por meio de regimes distintos, como ocorre, por exemplo, na Ciência e no Protestantismo. Contudo, há algo que os une: a ênfase moderna na indesejabilidade da “mistura” corrobora a separação e disposição assimétrica dos polos resultantes das divisões, um corolário da “purificação” (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994., p. 16). Ademais, esta é oposta especularmente à mistura por meio de termos como abertura e fechamento, como se observa em uma reivindicação de Tim Ingold (2006INGOLD, T. Rethinking the animate, re-animating thought. Ethnos, Stockholm, v. 71, n. 1, p. 9-20, 2006., p. 11, 19, grifo do autor) acerca da cesura moderna entre sujeito (humanidade) e objeto (natureza):

Eu quero recuperar a abertura original para o mundo em que as pessoas que nós (isto é, etnólogos treinados no Ocidente) chamamos de animistas encontram o sentido da vida […] Se a ciência deseja ser uma prática de conhecimento coerente, deve ser refeita sobre as bases da abertura ao invés do fechamento, do envolvimento ao invés do destacamento.

Charles Taylor (2007TAYLOR, C. The bulwarks of belief. In: TAYLOR, C. A secular age. Cambridge: Harvard University Press, 2007. p. 25-89., p. 27), por seu turno, aponta que

[…] a ciência, ao ajudar a desencantar o universo, contribuiu para abrir caminho para o humanismo excludente. Uma condição crucial para isso foi um novo sentido do self e de seu lugar no cosmos: não aberto, poroso e vulnerável a um mundo de espíritos e poderes, mas o que eu chamaria de “impermeável”.

Nos dois casos, é como se a pureza fosse um “fechamento/descontinuidade” (modernidade, secularidade, Ciência, Protestantismo); e a mistura, uma “abertura/continuidade” (não modernidade, não secularidade, animismo, idolatria católica). Sugiro que argumentos como os de Ingold e Taylor são bastante disseminados e explicitam uma hipóstase: a abertura/mistura existiria somente em mundos tidos como radicalmente “outros”, ou seja, seria um “verdadeiro traço identitário” (Lima, 1999LIMA, T. S. Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia Juruna. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 43-52, jun. 1999., p. 44) daqueles que, no presente, não foram capturados pelos dispositivos liberadores da purificação moderna; ou, então, viveram antes de sua invenção. É impressionante que, novamente, isso se aproxime da presunção de que a libertação, em seu sentido protestante, é também uma ruptura com o passado.

Meus amigos, situados no mundo moderno, repetem que a “abertura para Deus”, que está em tudo, é a condição principal da libertação e do discernimento. Contudo, seria um equívoco concluir que ela deva ocupar o lugar da continuidade ou da mistura, cujo reverso seria a descontinuidade ou o fechamento. Se o demônio pode estar em tudo, o que a abertura para Deus torna saliente não é um fechamento, mas sim a neutralização, como as pessoas diziam, de uma “brecha” para o mal.

Lembro-me que em minha primeira incursão na capela da casa onde o Grupo de Oração se reúne, ainda em 2013, Ester afiançava: “Deus vai te ajudar a fazer o trabalho. Você tem que dar abertura para que Ele trabalhe em você.” A abertura, como concordaria Luís, se alonga por meio do aprendizado das saudações, das formas de tratamento, dos movimentos corporais na genuflexão, na adoração a Jesus Sacramentado no ostensório. A abertura não é uma brecha. Nesta, o demônio age; naquela, como diziam essas pessoas, deve-se “estar aberto para que Jesus faça algo”.

Especulo que meus amigos não ficariam satisfeitos se eu mecanicamente opusesse a abertura ao fechamento. Sem paradoxo, a abertura permanece constante, mesmo quando eles falavam de fechamento. O fechamento para a ação divina e mesmo o ceticismo acerca da existência do maligno são brechas, em lugar de oclusões: “Uma oportunidade, um vacilo” que se dá ao Inimigo. A brecha para o demônio, na vida desses católicos, está em tensão e é contrastada com a abertura para Deus.

Haveria algumas maneiras de lidar com esse modo de conhecimento. Recuperando a discussão anterior acerca da divisão, da mistura e da distinção, faço um acréscimo em que podemos notar como a libertação, o discernimento e a abertura podem ser compreendidos em cada uma dessas operações. A primeira, a de “divisão”, consistiria na suposição de que a libertação, por se tratar da abertura para Deus e de evitar que se dê uma brecha para o demônio, coincidiria com uma forma de “purificação”/“descontinuidade”, porque denota uma qualidade definitiva e exclusiva dos seres humanos: a escolha racional. A segunda, a de “mistura”/“continuidade”, consistiria na suposição de que a libertação, por se tratar de uma questão de abertura para Deus e de evitar que se dê uma brecha para o demônio, coincidiria com uma forma de ausência de divisão, porque denota uma qualidade que, no primeiro modo, é extirpada: a distribuição da ação entre seres humanos e não humanos. A terceira, a de “distinção”/“contraste”, que venho propondo, consiste na suposição de que a libertação, por se tratar de uma questão de abertura para Deus e de evitar que se dê uma brecha para o demônio, coincide com uma forma de conhecimento, porque denota uma qualidade do modo de existência dos meus amigos católicos: o discernimento.

Na primeira operação, a de divisão, é possível recorrer às reduções analíticas referidas na seção anterior, mas com o risco de tornar ininteligível como Deus está em tudo e como o Diabo pode estar em tudo. Na segunda, a de mistura, os católicos se tornam não modernos, idólatras. Na terceira, a de distinção, depara-se com a irredutibilidade às outras duas, seja à forma pura, seja à forma híbrida. O valor heurístico da distinção permite que escapemos do fechamento, do apartamento e da emancipação sem sermos conduzidos em direção à mistura. Possibilita que se descreva uma maneira diferencial de discernir ações oriundas de Deus, do Diabo e do humano da pessoa.

Postulo que um mundo onde Deus está em tudo (onipresente) e, ao mesmo tempo, o demônio pode estar em tudo (quase onipresente) tem na “abertura” uma qualidade substantiva, uma condição essencial. Ou seja, trata-se de um mundo “aberto”. Meus amigos diriam que não há lugar em que Deus não possa estar e não há forma que Ele não possa adquirir. Já o demônio não pode saber os pensamentos das pessoas, mas pode transformar-se naquilo que ele quiser, capturar as palavras ditas pelas pessoas e lançá-las contra elas, transformando-as em pensamentos. Luís frequentemente apontava que as “decisões humanas” podem ser simplesmente humanas, ainda que a possibilidade de decidir seja um dom divino: “Deus te deu a liberdade de decidir. Deus deu para o ser humano o maior de todos os dons: de até negar o próprio Deus.” Deus como criador do mundo e doador da vontade, do arbítrio, manifesta-se em tudo que concerne ao humano e ao não humano.

Os estudos de grupos de católicos carismáticos na antropologia, na ciência da religião e na sociologia da religião brasileiras se veem habitualmente às voltas com a abertura. Seus sentidos se multiplicam, não como resultado da imprecisão, mas da potencialidade do próprio termo. Elenco a seguir alguns trabalhos realizados entre os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro21 21 As remissões aos autores a seguir, assim como a outros não citados aqui, estão dispostas em sua completude em Costa (2017, p. 36-38). em que ela é explicitamente citada.22 22 O termo também aparece em etnografias de formas de vida cristãs realizadas na América do Norte, na Melanésia, na Amazônia, na África (Bialecki, 2011, p. 265; Csordas, 1994, p. 46; Daswani, 2011, p. 260; Mosko, 2010, p. 230; Vilaça, 2011, p. 253-254; Werbner, 2011, p. 181). É revelador que em cada um desses trabalhos a remissão à abertura traga à baila as ações de Deus ou do demônio em suas relações com os seres humanos. Essa persistência não deve ser ignorada, pois é como se nada pudesse estar fechado para esses seres.

A abertura é apresentada diversificadamente como: instrução doutrinária para o devoto lidar com os dons do Espírito Santo (Carranza, 2000CARRANZA, B. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. Aparecida: Santuário, 2000., p. 112); aspecto decisivo da cura (Pereira, 2008PEREIRA, E. S. O Espírito da comunidade: passagens entre o mundo e o sagrado na Canção Nova. 2008. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008., p. 164); crítica ao congelamento oriundo da razão (Portella, 2009PORTELLA, R. Em busca do Dossel Sagrado: a Toca de Assis e as novas sensibilidades religiosas. 2009. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009., p. 173); motor da conversão (Bonfim, 2012BONFIM, E. de S. A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012., p. 58).

Evandro de S. Bonfim (2012BONFIM, E. de S. A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012., p. 66, 225) postula um “[…] princípio de abertura que caracteriza a circulação do Espírito Santo […]”, assinalando que “[…] a pessoa carismática é compósita e ontologicamente aberta […]”. A reflexão é fundamental. Sugiro, contudo, que não se trata especificamente ou somente da pessoa “ontologicamente aberta”, mas, conforme venho argumentando, de um mundo “aberto”. Aproximando-se das proposições de Ingold e Taylor mencionadas acima, Bonfim (2012BONFIM, E. de S. A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012., p. 225) afirma: “[…] a Antropologia não possui linguagem e instrumentos teóricos adequados para tratar de fenômenos de abertura ontológica em coletivos que não sejam explicitamente ‘não-ocidentais’”. Penso que essa passagem repercute, novamente, a presunção disseminada de que “nós” ficamos com a purificação (fechamento); “eles”, com a mistura (abertura).

A contribuição que tenho buscado oferecer, ao esboçar os conceitos de “abertura” e de mundo “aberto”, consiste em acentuar que a abertura não indica mistura, mas sim a possibilidade do discernimento como dádiva do Espírito Santo, o que é também o reconhecimento de que Deus, conforme meus amigos, “sempre esteve lá, em tudo”. A consequência primeira de se abrir fixa a possibilidade de discernir presenças distintas: divina, maléfica e humana. Contiguar-se a Deus é submeter-se, em lugar de confundir-se ou misturar-se com Ele. Essa submissão é que liberta, pois as pessoas não deixarão de enunciar que “não são nada sem Deus”. É porque o mundo é aberto que se torna preciso saber discernir, como faziam Ester e Luís quando se remetiam, respectivamente, ao uso de entorpecentes e à visão do santo, e à corrente elétrica e às realidades invisíveis. Isso acontecia por meio da abertura para Deus, impedindo que o demônio, por meio da abertura de uma brecha, e o humano da pessoa obscurecessem o discernimento, o que levaria a um distanciamento em relação a Ele.

Não posso afirmar que esse argumento deva ser ampliado para outros coletivos católicos: corresponde a uma elaboração a que pude chegar a partir das formas de existência dos meus amigos, que se afastam da forma de vida teórica onde há uma só dicotomia possível entre “aberto/híbrido/misturado” e “fechado/purificado/apartado”. Trata-se de descrever a pluralidade dos regimes pelos quais as assimetrias entre pessoas e coisas, seres humanos e não humanos, entes materiais e imateriais, etc. se desdobram. Na vida de Ester e de Luís, a libertação (vincular-se com Deus), o discernimento (modos de ver divinamente orientados) e a abertura (o motor da libertação) são os elementos centrais, permitindo-me salientar um regime em que predominam distinções, em lugar de divisões e de misturas.

Considerações finais

Ao longo da exposição anterior, tentei mostrar que a abertura equivalia exclusivamente à mistura apenas quando se tomava a purificação como dada. Meu argumento é que a abertura para Deus leva a uma forma específica de realizar distinções: o discernimento. As pessoas começam a “ver” o que não viam antes, isto é, a vicinalidade de seres divinos e maléficos é que é dada, devendo ser discernida. O caráter perene dessas vizinhanças cria um desvio em relação às posições do que foi denominado de “debate Mark Mosko-Joel Robbins” (Bialecki, 2015MOSKO, M. S. Unbecoming individuals: the partible character of the Christian person. Hau: Journal of Ethnographic Theory, London, v. 5, n. 1, p. 361-393, 2015.; Holbraad; Pedersen, 2017HOLBRAAD, M.; PEDERSEN, M. A. The ontological turn: an anthropological exposition. Cambridge: Cambridge University Press, 2017., p. 246-252), desenvolvido a partir de etnografias realizadas na Melanésia.

Partindo de Joel Robbins (2004ROBBINS, J. Becoming sinners: Christianity and moral torment in a Papua New Guinean society. Berkeley: University of California Press, 2004., 2007ROBBINS, J. Continuity thinking and the problems of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity. Current Anthropology, Chicago, v. 48, n. 1, p. 5-38, Feb. 2007., 2011ROBBINS, J. Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 11-31, jun. 2011.), o Cristianismo seria uma religião em que implacavelmente sobressairia o conceito de indivíduo, opondo-se a formas relacionalistas pretéritas à conversão. Seguindo Mark S. Mosko (2010MOSKO, M. S. Partible penitents: dividual personhood and Christian practice in Melanesia and the West. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 16, n. 2, p. 215-240, May 2010., 2015MOSKO, M. S. Unbecoming individuals: the partible character of the Christian person. Hau: Journal of Ethnographic Theory, London, v. 5, n. 1, p. 361-393, 2015.), a religião cristã teria desde sempre gerado um modo de “personitude [personhood] dividual” (relacional ou partível) que se definiria pela “participação” dos seres humanos, divinos e maléficos uns nos outros por meio das transações entre si das partes que os comporiam.23 23 Os desdobramentos do debate destacam-se nas análises de Aparecida Vilaça (2011), Girish Daswani (2011), Richard Werbner (2011), Bonfim (2012) e Bialecki (2015). Como reverberações positiva e negativa do modelo atomístico já referido, a primeira posição suscita a purificação/divisão (fechado/moderno/individuado/secular); a segunda, a mistura (aberto/não moderno/dividuado/não secular).

A persistência dessa cesura ofusca, como busquei demonstrar, modos de conhecimento em que a abertura não é um atributo do “outro”, distante, mas algo que se realiza “aqui”, em nosso mundo, por meio de um regime específico de distinção, que escapa da divisão e da mistura. Por esse motivo, jamais me pareceu trivial que meus amigos dissessem reiteradamente que sua liberdade advinha de um compromisso com Deus e que esse vínculo era o resultado de uma abertura que os presenteava com o discernimento, permitindo-lhes “enxergar junto com” e “a partir d’Ele”.

Se o conhecimento e a liberdade são dádivas, é preciso evitar que os modos de conhecimento que estamos enfrentando não se transformem em mais um prolongamento da vida de nossos conceitos, o que ocorreria se a mistura e suas imagens correlatas de fluidez e heterogeneidade fossem tomadas como substitutas imediatas da divisão e suas imagens correlatas de fixidez e de homogeneidade. No mundo onde estive, conhecimento e liberdade não podem ser equacionados com o incremento de faculdades intelectuais, da autonomia e da emancipação (em linguagem liberal e secular), mas sim com o discernimento, o vínculo e a abertura (em linguagem de libertação), o que não tem a ver com um cosmo caracterizado pela ausência de separações (em linguagem pré-liberal e não secular). Ester, Luís e muitos outros dos meus amigos sempre quiseram que eu estivesse a par da qualidade específica em que baseavam suas distinções.

Referências

  • ASAD, T. Comments on conversion. In: VAN DER VEER, P. (ed.). Conversion to modernities: the globalization of Christianity. New York: Routledge, 1996. p. 263-273.
  • ASAD, T. Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003.
  • ASAD, T. A construção da religião como uma categoria antropológica. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 19, n. 19, p. 263-284, 2010.
  • BATESON, G. Naven: um esboço dos problemas sugeridos por um retrato compósito, realizado a partir de três perspectivas, da cultura de uma tribo da Nova Guiné. São Paulo: Edusp, 2008.
  • BATESON, M. C. So what’s a meta for?. In: BATESON, G.; BATESON, M. C. Angels fear: towards an epistemology of the sacred. New York: Bantam Books, 1988. p. 183-200.
  • BIALECKI, J. Quiet deliverances. In: LINDHARDT, M. (ed.). Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians. New York: Berghahn Books, 2011. p. 249-276.
  • BIALECKI, J. Does God exist in methodological atheism? On Tanya Luhrmann’s When God Talks Back and Bruno Latour. Anthropology of Consciousness, v. 25, n. 1, p. 32-52, Mar. 2014.
  • BIALECKI, J. The judgment of God and the non-elephantine zoo: Christian dividualism, individualism, and ethical freedom after the Mosko-Robbins debate. AnthroCyBib, Mar. 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.blogs.hss.ed.ac.uk/anthrocybib/2015/03/17/occasional-paper-bialecki-the-judgment-of-god-and-the-non-elephantine-zoo/ Acesso em: 5 maio 2017.
    » http://www.blogs.hss.ed.ac.uk/anthrocybib/2015/03/17/occasional-paper-bialecki-the-judgment-of-god-and-the-non-elephantine-zoo/
  • BIALECKI, J. et al. The anthropology of Christianity. Religion Compass, v. 2, n. 6, p. 1139-1158, Nov. 2008.
  • BONFIM, E. de S. A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
  • CANNELL, F. The anthropology of Christianity. In: CANNELL, F. (ed.). The anthropology of Christianity Durham: Duke University Press, 2006. p. 1-50.
  • CANNELL, F. Mormonism and anthropology: on ways of knowing. Mormon Studies Review, Provo, v. 4, n. 1, p. 1-15, Jan. 2017.
  • CARRANZA, B. Renovação Carismática Católica: origens, mudanças e tendências. Aparecida: Santuário, 2000.
  • CARRANZA, B.; MARIZ, C. L. Novas comunidades católicas: por que crescem?. In: CARRANZA, B. et al. (org.). Novas comunidades católicas: em busca do espaço pós-moderno. Aparecida: Ideias e Letras, 2009. p. 139-170.
  • COSTA, Y. G. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
  • CSORDAS, T. J. The sacred self: a cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley: University of California Press, 1994.
  • DASWANI, G. (In-) Dividual Pentecostals in Ghana. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 41, n. 3, p. 256-279, Jan. 2011.
  • DICIONÁRIO Houaiss da língua portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2001.
  • GARCIA, Y. Formas de “buscar Deus” e de ser assediado pelo demônio: objetos na vida de católicos brasileiros. Etnográfica, Lisboa, v. 22, n. 2, p. 259-280, jun. 2018.
  • HANN, C. The anthropology of Christianity per se. Archives Européennes de Sociologie, Cambridge, v. 48, n. 3, p. 383-410, Dec. 2007.
  • HOLBRAAD, M.; PEDERSEN, M. A. The ontological turn: an anthropological exposition. Cambridge: Cambridge University Press, 2017.
  • HOLBRAAD, M. et al. The politics of ontology: anthropological positions. Cultural Anthropology, 13 Jan. 2014. Disponível em Disponível em https://culanth.org/fieldsights/462-the-politics-of-ontology-anthropological-positions Acesso em: 1 fev. 2016.
    » https://culanth.org/fieldsights/462-the-politics-of-ontology-anthropological-positions
  • HOUTMAN, D.; MEYER, B. Introduction: material religion - how things matter. In: HOUTMAN, D.; MEYER, B. (ed.). Things: religion and the question of materiality. New York: Fordham University Press, 2012. p. 1-23.
  • INGOLD, T. Rethinking the animate, re-animating thought. Ethnos, Stockholm, v. 71, n. 1, p. 9-20, 2006.
  • KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007.
  • KEANE, W. Secularism as a moral narrative of modernity. Transit: Europäische Revue, Wien, v. 43, p. 159-170, 2013.
  • KLAITS, F. Insult and insecurity: discernment, trust, and the uncanny in two US Pentecostal communities. Anthropological Quarterly, Washington, D.C., v. 89, n. 4, p. 1143-1173, 2016.
  • LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
  • LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc, 2001.
  • LIENHARD, J. T. On “discernment of spirits” in the early church. Theological Studies, Santa Clara, v. 41, n. 3, p. 505-529, Sept. 1980.
  • LIMA, T. S. Para uma teoria etnográfica da distinção natureza e cultura na cosmologia Juruna. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 40, p. 43-52, jun. 1999.
  • LUHRMANN, T. M. Learning religion at the Vineyard: prayer, discernment and Participation in the Divine. Religion and Culture Web Forum, Sept. 2006. Disponível em: Disponível em: https://divinity.uchicago.edu/sites/default/files/imce/pdfs/webforum/092006/learning_religion.pdf Acesso em: 25 ago. 2017.
    » https://divinity.uchicago.edu/sites/default/files/imce/pdfs/webforum/092006/learning_religion.pdf
  • MARIZ, C. L. Libertação e ética. Uma análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, A. et al. (org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 204-224.
  • MARIZ, C. L. A teologia da batalha espiritual: uma revisão da bibliografia. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 1, n. 47, p. 33-48, 1999.
  • MAUÉS, R. H. Mudando de vida: a “conversão” ao pentecostalismo católico. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 37-64, 2002.
  • MAUÉS, R. H. et al. Em busca de cura: ministros e “doentes” na Renovação Carismática Católica. Revista Anthropológicas, Recife, v. 13, n. 1, p. 131-154, 2002.
  • MAYBLIN, M. Gender, Catholicism, and morality in Brazil: virtuous husband, powerful wives. New York: Palgrave Macmillan, 2010.
  • MAYBLIN, M. et al. Introduction: the anthropology of Catholicism. In: MAYBLIN, M. et al. (ed.). The anthropology of Catholicism: a reader. Berkeley: University of California Press, 2017. p. 1-29.
  • MEYER, B. Make a complete break with the past: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 28, n. 3, p. 316-349, Aug. 1998.
  • MOSKO, M. S. Partible penitents: dividual personhood and Christian practice in Melanesia and the West. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 16, n. 2, p. 215-240, May 2010.
  • MOSKO, M. S. Unbecoming individuals: the partible character of the Christian person. Hau: Journal of Ethnographic Theory, London, v. 5, n. 1, p. 361-393, 2015.
  • PARKIN, D. Introduction. In: PARKIN, D. (ed.). The anthropology of Evil Oxford: Basil Blackwell, 1985. p. 1-25.
  • PEREIRA, E. S. O Espírito da comunidade: passagens entre o mundo e o sagrado na Canção Nova. 2008. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
  • PORTELLA, R. Em busca do Dossel Sagrado: a Toca de Assis e as novas sensibilidades religiosas. 2009. Tese (Doutorado em Ciência da Religião) - Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2009.
  • POTTAGE, A. Introduction: the fabrication of persons and things. In: POTTAGE, A.; MUNDY, M. (ed.). Law, anthropology, and the constitution of the social: making persons and things. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. p. 1-39.
  • ROBBINS, J. What is a Christian? Notes toward an anthropology of Christianity. Religion, London, v. 33, n. 3, p. 191-199, 2003.
  • ROBBINS, J. Becoming sinners: Christianity and moral torment in a Papua New Guinean society. Berkeley: University of California Press, 2004.
  • ROBBINS, J. Continuity thinking and the problems of Christian culture: belief, time, and the anthropology of Christianity. Current Anthropology, Chicago, v. 48, n. 1, p. 5-38, Feb. 2007.
  • ROBBINS, J. Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 11-31, jun. 2011.
  • SCOTT, M. W. “When people have a vision they are very disobedient”: a Solomon Islands case study for the anthropology of Christian ontologies. 2012. Paper presented. Conference Individualization through Christian Missionary Activity, 25-28 Apr. 2012, Erfurt, Germany. Disponível em: Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf Acesso em: 1 out. 2018.
    » http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf
  • STEIL, C. A. Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou saída do Catolicismo? Uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre (RS). Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 11-36, 2004.
  • TAYLOR, C. The bulwarks of belief. In: TAYLOR, C. A secular age Cambridge: Harvard University Press, 2007. p. 25-89.
  • VELHO, O. O cativeiro da Besta-Fera. In: VELHO, O. Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 103-133.
  • VELHO, O. A religião é um modo de conhecimento?. PLURA: Revista de Estudos de Religião, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 3-37, 2010.
  • VERSTEEG, P.; DROOGERS, A. A schema repertoire approach to exorcism: two case studies of spiritual warfare. In: VAN DOORN-HARDER, N.; MINNEMA, L. (ed.). Coping with evil in religion and culture: case studies. Amsterdam: Rodopi, 2008. p. 105-124.
  • VILAÇA, A. Dividuality in Amazonia: God, the Devil, and the constitution of personhood in Wari’ Christianity. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 17, n. 2, p. 243-262, May 2011.
  • WERBNER, R. The Charismatic dividual and the sacred self. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 41, n. 2, p. 180-205, Jan. 2011.
  • 1
    Agradeço a Ciméa B. Bevilaqua pelos comentários valiosos ao longo da elaboração do texto. Agradeço igualmente a Otávio Velho pelas observações generosas sobre o texto. Sou grato também à leitura cuidadosa realizada pelos(as) pareceristas.
  • 2
    Quanto ao substantivo “religião”, fica a advertência de que uma definição trans-histórica e universal do mesmo tem alcance analítico limitado (Asad, 2010ASAD, T. A construção da religião como uma categoria antropológica. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 19, n. 19, p. 263-284, 2010., p. 264). Emprego o termo de forma heurística.
  • 3
    Os nomes usados aqui são em sua maioria pseudônimos. Nos momentos em que trouxer à baila as expressões “meus amigos”, “os católicos”, “esses católicos”, “as pessoas”, “essas pessoas” não estarei me referindo apenas a Ester e a Luís, mas a considerações que seguramente contavam com a anuência de outros adeptos.
  • 4
    As traduções dos textos e dos termos em língua estrangeira são de inteira responsabilidade minha.
  • 5
    Agradeço à(ao) parecerista que oportunamente indicou a necessidade de precisar a noção de “modelo atomístico” empregada por Scott e o conceito moderno de autonomia ao qual ela alude. O modelo atomístico sustenta uma inferência tripla (Scott, 2012SCOTT, M. W. “When people have a vision they are very disobedient”: a Solomon Islands case study for the anthropology of Christian ontologies. 2012. Paper presented. Conference Individualization through Christian Missionary Activity, 25-28 Apr. 2012, Erfurt, Germany. Disponível em: Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf . Acesso em: 1 out. 2018.
    http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.a...
    , p. 3-6), atualmente problematizada também por outras análises: a ideia de que o Protestantismo é decisivo quer nos modos de existência modernos, quer no surgimento da religião como um conceito moderno, quer como protótipo analítico majoritário do estudo do Cristianismo, em detrimento do Catolicismo e do Cristianismo não ocidental (Cannell, 2006CANNELL, F. The anthropology of Christianity. In: CANNELL, F. (ed.). The anthropology of Christianity. Durham: Duke University Press, 2006. p. 1-50., p. 20; Hann, 2007HANN, C. The anthropology of Christianity per se. Archives Européennes de Sociologie, Cambridge, v. 48, n. 3, p. 383-410, Dec. 2007., p. 405-406; Houtman; Meyer, 2012HOUTMAN, D.; MEYER, B. Introduction: material religion - how things matter. In: HOUTMAN, D.; MEYER, B. (ed.). Things: religion and the question of materiality. New York: Fordham University Press, 2012. p. 1-23., p. 9; Keane, 2007KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007., p. 5). Segundo esse modelo, a pessoa cristã seria constituída por atributos como a interioridade, a individualização e a reflexividade. Consequentemente, presume-se que os cristãos cultivam uma relação interior, pessoal e privada com Deus. Sem dúvida, como observou o(a) parecerista, “não é concebível que o indivíduo possa ‘se libertar’ de Deus” em qualquer forma de vida cristã. No entanto, quando a libertação é definida como “[…] o primeiro passo de um processo de racionalização […]” (Mariz, 1994MARIZ, C. L. Libertação e ética. Uma análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, A. et al. (org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 204-224., p. 205), ela permanece em consonância com “[…] a autodefinição da modernidade em termos de progresso […]” (Meyer, 1998MEYER, B. Make a complete break with the past: memory and post-colonial modernity in Ghanaian Pentecostalist discourse. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 28, n. 3, p. 316-349, Aug. 1998., p. 317) e autonomização individual. A persistência nas análises dos vocábulos “autonomia” e “autocontrole” não leva suficientemente em conta o caráter de aliança da relação com Deus: é possível reiterar analiticamente um sujeito cristão fazendo referências tangenciais a esse vínculo fundamental, o que vai de encontro às apostas deste artigo.
  • 6
    Essa redução foi antevista magistralmente por Otávio Velho (2007VELHO, O. O cativeiro da Besta-Fera. In: VELHO, O. Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 103-133., p. 117) em seu estudo acerca da situação/expressão “cativeiro” entre pequenos agricultores na Amazônia Oriental.
  • 7
    Reiterar, de acordo com Birgit Meyer, a “[…] nitidez de um dualismo imaginado entre protestantes/católicos em termos de religiosidades [respectivamente] mentalista/materialista […]” (cf. Mayblin et al., 2017MAYBLIN, M. et al. Introduction: the anthropology of Catholicism. In: MAYBLIN, M. et al. (ed.). The anthropology of Catholicism: a reader. Berkeley: University of California Press, 2017. p. 1-29., p. 24) pode levar a alguns equívocos. Logo, as diferenças são abordadas aqui apenas heuristicamente.
  • 8
    Ambos se referiam a uma passagem do Evangelho segundo São João (8, 31-32). A seguir, notaremos que não há nada de contraintuitivo no fato de os meus amigos definirem a Verdade como uma pessoa.
  • 9
    São Pio (1887-1968) foi um monge capuchinho italiano e sacerdote, canonizado em 2002. Sua popularidade decorre dos estigmas que surgiram em suas mãos, pés e do lado esquerdo do tórax e dos carismas advindos dessa experiência de dor e sofrimento, tornando-o um santo muito evocado nas orações de cura e libertação.
  • 10
    O mesmo que usuário compulsivo de substâncias entorpecentes.
  • 11
    Estamos longe de supor que o Cristianismo seja uma unidade de análise congelada e homogênea. O termo embebe uma multiplicidade de estilos, devoções, perspectivas e denominações que passam por modificações imprevisíveis (Keane, 2007KEANE, W. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Berkeley: University of California Press, 2007.). O argumento não é uma novidade. Há mais de uma década já fora destacado por Joel Robbins (2003)ROBBINS, J. What is a Christian? Notes toward an anthropology of Christianity. Religion, London, v. 33, n. 3, p. 191-199, 2003., podendo ser incluído nas problematizações gerais do que veio a ser denominado de “antropologia do Cristianismo” (Bialecki, 2014BIALECKI, J. Does God exist in methodological atheism? On Tanya Luhrmann’s When God Talks Back and Bruno Latour. Anthropology of Consciousness, v. 25, n. 1, p. 32-52, Mar. 2014., 2015BIALECKI, J. The judgment of God and the non-elephantine zoo: Christian dividualism, individualism, and ethical freedom after the Mosko-Robbins debate. AnthroCyBib, Mar. 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.blogs.hss.ed.ac.uk/anthrocybib/2015/03/17/occasional-paper-bialecki-the-judgment-of-god-and-the-non-elephantine-zoo/ . Acesso em: 5 maio 2017.
    http://www.blogs.hss.ed.ac.uk/anthrocybi...
    ; Bialecki et al., 2008BIALECKI, J. et al. The anthropology of Christianity. Religion Compass, v. 2, n. 6, p. 1139-1158, Nov. 2008.; Cannell, 2006CANNELL, F. The anthropology of Christianity. In: CANNELL, F. (ed.). The anthropology of Christianity. Durham: Duke University Press, 2006. p. 1-50.; Hann, 2007HANN, C. The anthropology of Christianity per se. Archives Européennes de Sociologie, Cambridge, v. 48, n. 3, p. 383-410, Dec. 2007.; Mayblin, 2010MAYBLIN, M. Gender, Catholicism, and morality in Brazil: virtuous husband, powerful wives. New York: Palgrave Macmillan, 2010.; Mayblin et al., 2017MAYBLIN, M. et al. Introduction: the anthropology of Catholicism. In: MAYBLIN, M. et al. (ed.). The anthropology of Catholicism: a reader. Berkeley: University of California Press, 2017. p. 1-29.; Mosko, 2010MOSKO, M. S. Partible penitents: dividual personhood and Christian practice in Melanesia and the West. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 16, n. 2, p. 215-240, May 2010., 2015MOSKO, M. S. Unbecoming individuals: the partible character of the Christian person. Hau: Journal of Ethnographic Theory, London, v. 5, n. 1, p. 361-393, 2015.; Robbins, 2011ROBBINS, J. Transcendência e antropologia do Cristianismo: linguagem, mudança e individualismo. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 11-31, jun. 2011.; Scott, 2012SCOTT, M. W. “When people have a vision they are very disobedient”: a Solomon Islands case study for the anthropology of Christian ontologies. 2012. Paper presented. Conference Individualization through Christian Missionary Activity, 25-28 Apr. 2012, Erfurt, Germany. Disponível em: Disponível em: http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.ac.uk_storage_LIBRARY_Secondary_libfile_shared_repository_Content_Scott%2C%20M_When%20people%20have%20vision_Scott_When%20people%20have%20vision_2014.pdf . Acesso em: 1 out. 2018.
    http://eprints.lse.ac.uk/55615/1/__lse.a...
    ; cf. nota de rodapé nº 7).
  • 12
    O pronome “nosso” deve ter uma reverberação específica, pois indica que a persistência de uma antropologia da religião baseada em uma episteme ocidental - a secular, que inventa o sujeito autônomo (Asad, 2003ASAD, T. Formations of the secular: Christianity, Islam, modernity. Stanford: Stanford University Press, 2003., p. 1, 24-25, 191-192) - é uma das forças motrizes das abordagens contemporâneas a respeito da libertação.
  • 13
    Essas considerações oriundas do pensamento de Bateson estão parcialmente reproduzidas em Garcia (2018GARCIA, Y. Formas de “buscar Deus” e de ser assediado pelo demônio: objetos na vida de católicos brasileiros. Etnográfica, Lisboa, v. 22, n. 2, p. 259-280, jun. 2018., p. 265).
  • 14
    O vocábulo é oriundo do latim discernere, o mesmo que separar, distinguir.
  • 15
    Na literatura antropológica acerca de mundos cristãos, o termo tem grande presença no trabalho de Thomas J. Csordas (1994)CSORDAS, T. J. The sacred self: a cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley: University of California Press, 1994.. Aparece também nos textos de Tanya M. Luhrmann (2006LUHRMANN, T. M. Learning religion at the Vineyard: prayer, discernment and Participation in the Divine. Religion and Culture Web Forum, Sept. 2006. Disponível em: Disponível em: https://divinity.uchicago.edu/sites/default/files/imce/pdfs/webforum/092006/learning_religion.pdf . Acesso em: 25 ago. 2017.
    https://divinity.uchicago.edu/sites/defa...
    , p. 9), de Jon Bialecki (2011BIALECKI, J. Quiet deliverances. In: LINDHARDT, M. (ed.). Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians. New York: Berghahn Books, 2011. p. 249-276., p. 268) e ganha atenção detida em Frederick Klaits (2016KLAITS, F. Insult and insecurity: discernment, trust, and the uncanny in two US Pentecostal communities. Anthropological Quarterly, Washington, D.C., v. 89, n. 4, p. 1143-1173, 2016., p. 1151-1152), que se inspira em Luhrmann. Ademais, não se pode negligenciar que a problematização do discernimento, a partir de autores como Michael Lambek e James Laidlaw, talvez tenha relações com o que se alcunhou há alguns anos de “antropologia da ética” (Cannell, 2017CANNELL, F. Mormonism and anthropology: on ways of knowing. Mormon Studies Review, Provo, v. 4, n. 1, p. 1-15, Jan. 2017., p. 13-14). Há, a meu ver, todo um lugar para a feitura de uma “antropologia do discernimento” (Costa, 2017COSTA, Y. G. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 64-79) e de operações derivadas dele, tal como a “precaução” (Costa, 2017COSTA, Y. G. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 53, nota 59, p. 396-413).
  • 16
    Os três termos são operações que não se excluem entre si. Cada uma delas pode, no seu funcionamento, suscitar as outras (Costa, 2017COSTA, Y. G. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 11, nota 16).
  • 17
    A expressão “humano da pessoa”, enunciada por esses católicos, muitas vezes é assimilada a outro vocábulo bastante comum em suas vidas: a “fraqueza”. A incompletude e o inacabamento da natureza humana tornam a pessoa, desde a expulsão do Paraíso, essencialmente “fraca”.
  • 18
    De maneira pertinente, Cecília L. Mariz (1994MARIZ, C. L. Libertação e ética. Uma análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, A. et al. (org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 204-224., p. 207) sublinha que a liberdade, entre os pentecostais que se recuperaram do alcoolismo, “[…] se reporta a uma submissão a Deus […]”. Aponta também que “[…] ser livre não é seguir os desejos individuais […]” (Mariz, 1994MARIZ, C. L. Libertação e ética. Uma análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, A. et al. (org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 204-224., p. 207), mas sim os desígnios d’Ele. Entretanto, ao enfatizar que a libertação conduz ao âmbito “ético-racional do ‘indivíduo’” (Mariz, 1994MARIZ, C. L. Libertação e ética. Uma análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, A. et al. (org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 204-224., p. 205), a autora acaba por equacionar a relação com Deus com a produção de formas de vida modernas, eticizadas e racionalizadas (Mariz, 1994MARIZ, C. L. Libertação e ética. Uma análise do discurso de pentecostais que se recuperaram do alcoolismo. In: ANTONIAZZI, A. et al. (org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 204-224., p. 220; cf. nota de rodapé nº 5). Velho (2007VELHO, O. O cativeiro da Besta-Fera. In: VELHO, O. Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 103-133., p. 118) não deixou de detectar o problema no momento em que se remeteu à noção de “servo-arbítrio” extraída do Luteranismo, pois a liberdade, quando é encarada como “servidão” a Deus, impõe limites a “[…] toda análise que toma a realização libertária humanística como referência (implícita ou explícita)” (Velho, 2007VELHO, O. O cativeiro da Besta-Fera. In: VELHO, O. Mais realistas do que o rei: ocidentalismo, religião e modernidades alternativas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. p. 103-133., p. 117).
  • 19
    Quando me refiro à “Ciência, com C maiúsculo” (Latour, 2001LATOUR, B. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru: Edusc, 2001., p. 33), o faço porque essa menção dá conta da definição moderna de ciência como conhecimento objetivo de uma realidade “em si”, isto é, que existe e independe das representações humanas.
  • 20
    Um(a) parecerista salientou, de maneira pertinente, que a “relação entre Protestantismo e ciência moderna” poderia ser apresentada através de autores como Max Weber e Peter L. Berger. No entanto, a preferência por Keane e Latour diz respeito à forma como nos trabalhos de ambos a “purificação” é singularmente descrita enquanto uma prática almejada pelo Protestantismo e pela Ciência, algo crucial para a economia do argumento apresentado aqui.
  • 21
    As remissões aos autores a seguir, assim como a outros não citados aqui, estão dispostas em sua completude em Costa (2017COSTA, Y. G. “Abertura para Deus” e “brecha” para o demônio: a “libertação” entre católicos na cidade de São Paulo. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017., p. 36-38).
  • 22
    O termo também aparece em etnografias de formas de vida cristãs realizadas na América do Norte, na Melanésia, na Amazônia, na África (Bialecki, 2011BIALECKI, J. Quiet deliverances. In: LINDHARDT, M. (ed.). Practicing the faith: the ritual life of Pentecostal-Charismatic Christians. New York: Berghahn Books, 2011. p. 249-276., p. 265; Csordas, 1994CSORDAS, T. J. The sacred self: a cultural phenomenology of Charismatic healing. Berkeley: University of California Press, 1994., p. 46; Daswani, 2011DASWANI, G. (In-) Dividual Pentecostals in Ghana. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 41, n. 3, p. 256-279, Jan. 2011., p. 260; Mosko, 2010MOSKO, M. S. Partible penitents: dividual personhood and Christian practice in Melanesia and the West. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 16, n. 2, p. 215-240, May 2010., p. 230; Vilaça, 2011VILAÇA, A. Dividuality in Amazonia: God, the Devil, and the constitution of personhood in Wari’ Christianity. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 17, n. 2, p. 243-262, May 2011., p. 253-254; Werbner, 2011WERBNER, R. The Charismatic dividual and the sacred self. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 41, n. 2, p. 180-205, Jan. 2011., p. 181). É revelador que em cada um desses trabalhos a remissão à abertura traga à baila as ações de Deus ou do demônio em suas relações com os seres humanos. Essa persistência não deve ser ignorada, pois é como se nada pudesse estar fechado para esses seres.
  • 23
    Os desdobramentos do debate destacam-se nas análises de Aparecida Vilaça (2011)VILAÇA, A. Dividuality in Amazonia: God, the Devil, and the constitution of personhood in Wari’ Christianity. Journal of the Royal Anthropological Institute, London, v. 17, n. 2, p. 243-262, May 2011., Girish Daswani (2011)DASWANI, G. (In-) Dividual Pentecostals in Ghana. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 41, n. 3, p. 256-279, Jan. 2011., Richard Werbner (2011)WERBNER, R. The Charismatic dividual and the sacred self. Journal of Religion in Africa, Leiden, v. 41, n. 2, p. 180-205, Jan. 2011., Bonfim (2012)BONFIM, E. de S. A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais em uma comunidade carismática. 2012. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. e Bialecki (2015)BIALECKI, J. The judgment of God and the non-elephantine zoo: Christian dividualism, individualism, and ethical freedom after the Mosko-Robbins debate. AnthroCyBib, Mar. 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.blogs.hss.ed.ac.uk/anthrocybib/2015/03/17/occasional-paper-bialecki-the-judgment-of-god-and-the-non-elephantine-zoo/ . Acesso em: 5 maio 2017.
    http://www.blogs.hss.ed.ac.uk/anthrocybi...
    .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2017
  • Aceito
    05 Nov 2018
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - IFCH-UFRGS UFRGS - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Av. Bento Gonçalves, 9500 - Prédio 43321, sala 205-B, 91509-900 - Porto Alegre - RS - Brasil, Telefone (51) 3308-7165, Fax: +55 51 3308-6638 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: horizontes@ufrgs.br