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A "ecologia imaginária" e o "paradigma tropical": lições culturais para um repensar a epistemologia e a metodologia das práticas iátricas e das práticas educativas

The imaginary ecology and the tropical paradigm: cultural lectures to rethink the epistemology and methodology of the medical and educational practices

Resumos

De modo poético, na realidade filosófica, Keyserling formula o importante conceito de "paisagem mental", que ampliado pelo de "paideuma" de Frobenius, seria um dos esteios da antropologia simbólica e das mentalidades, tanto com relação às questões epistemológicas e metodológicas, quanto às questões da construção das práticas educativas e comunicacionais, das iátricas sobretudo. Dessas "lições culturais", deriva a busca etológica e cultural do "etnotipo". Keyserling busca os traços do etnotipo sul-americano, em suas invariâncias e variações regionais, por onde cruza com o "luso-hispano-tropicalismo" de Gilberto Freyre e o "tempo tríbio" e a "cultura sincrética ou mestiça" dos trópicos, apreendida em sua dinâmica configuracional de "traços étnicos" e em sua proposta da necessidade de se conhecer essa "formação" para se pensarem questões e propostas de intervenção no âmbito da praxis social. A transdução, método de apreensão poético-experimental da realidade, aí tem suas origens.

Antropologia cultural; Etnopsicologia; Educação médica


In a philosophical way, Keyserling constructs an important concept of mental landscape, enlarged by the "paideuma" of Frobenius, would be one of the main supports for symbolic anthropology and mentalities. All this has to do with the epistemology and the methodological questions as well as with the questions related to the construction of educational and communicative practices in the medical field. From these lectures derive an ethnological and cultural search for a ethno-type. Keyserling searches for the signs of the South American ethno-type in its regional pecularities and in the crossing over with Gilberto Freire's Lusitanian-Spanish tropicalism and the syncretism of the tropics to know such formation aiming at the formulation of questions and proposals towards a social praxis. The poetic-experimental apprehension of reality has its roots in this approach.

Antropology, Cultural; Ethnopsycology; Education, medical


ARTIGOS E RELATOS

A "ecologia imaginária" e o "paradigma tropical": lições culturais para um repensar a epistemologia e a metodologia das práticas iátricas e das práticas educativas

The imaginary ecology and the tropical paradigm: cultural lectures to rethink the epistemology and methodology of the medical and educational practices

José Carlos de Paula-Carvalho1 1 Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP.

RESUMO

De modo poético, na realidade filosófica, Keyserling formula o importante conceito de "paisagem mental", que ampliado pelo de "paideuma" de Frobenius, seria um dos esteios da antropologia simbólica e das mentalidades, tanto com relação às questões epistemológicas e metodológicas, quanto às questões da construção das práticas educativas e comunicacionais, das iátricas sobretudo. Dessas "lições culturais", deriva a busca etológica e cultural do "etnotipo". Keyserling busca os traços do etnotipo sul-americano, em suas invariâncias e variações regionais, por onde cruza com o "luso-hispano-tropicalismo" de Gilberto Freyre e o "tempo tríbio" e a "cultura sincrética ou mestiça" dos trópicos, apreendida em sua dinâmica configuracional de "traços étnicos" e em sua proposta da necessidade de se conhecer essa "formação" para se pensarem questões e propostas de intervenção no âmbito da praxis social. A transdução, método de apreensão poético-experimental da realidade, aí tem suas origens.

Palavras-chave: Antropologia cultural/educação; Etnopsicologia/educação; Educação médica/metodologia.

ABSTRACT

In a philosophical way, Keyserling constructs an important concept of mental landscape, enlarged by the "paideuma" of Frobenius, would be one of the main supports for symbolic anthropology and mentalities. All this has to do with the epistemology and the methodological questions as well as with the questions related to the construction of educational and communicative practices in the medical field. From these lectures derive an ethnological and cultural search for a ethno-type. Keyserling searches for the signs of the South American ethno-type in its regional pecularities and in the crossing over with Gilberto Freire's Lusitanian-Spanish tropicalism and the syncretism of the tropics to know such formation aiming at the formulation of questions and proposals towards a social praxis. The poetic-experimental apprehension of reality has its roots in this approach.

Key words: Antropology, Cultural/education; Ethnopsycology/eduction; Education, medical/methods.

Para meus avós, "in memoriam", ao nosso mito bandeirante e ao matriarcado.

Se uma das clássicas conceituações de Haeckel permite vislumbrar como ecologia o estudo das relações genéricas entre Homem e Natureza, sabemos também, entretanto, desde a antropologia cultural e a antropologia das organizações, das relações entre cultura e organizacionalidade, ou seja, que desde sempre uma rede de mediações simbólicas situa-se entre o Homem e a Natureza. E sem cairmos nos excessos de uma culturologia, mas acolhendo as reflexões de Sahlins (1980) dentro de um construtivismo mitigado, consideramos procedente aquilo que o autor chama de "paradigma Boas", que se prolongaria através da "hipótese Sapir-Whorf", ou seja, entre Homem e Natureza teremos, desde sempre, talvez mesmo para sempre – é a clausura da linguagem... –, uma rede de leitura, aliás o único fenômeno desde que nos situamos e falamos, e o único fenômeno a que temos acesso: a função simbólica é a única e exclusiva medida da abordagem da realidade, e talvez mais, é a própria realidade. Ora, ao campo definido pela função simbólica – no sentido que lhe empresta Cassirer – homologamos-lhe a equivalência com o campo das "polissemias simbólicas" ou o campo do imaginário que, como se expressa Durand (1985; p.123), "é o campo genérico da representação humana sem qualificação explicativa ou práxica, i.e., o campo balizado por sensações e imagens perceptuais, imagens mnésicas, signos, símbolos, imagens oníricas, disposições de imagens em relatos, etc." que define, aliás o domínio mais amplo do trabalho do antropólogo. Temos, portanto, entre Homem e Natureza, o domínio do imaginário como domínio das mediações simbólicas. E, assim, genericamente, sempre teremos uma ecologia imaginária ou simbólica, pleonasmo que serve para marcar, entretanto, a importância instituinte ou instaurativa da rede de leitura. É nesse sentido que nas "Meditações sul-americanas" do Conde Von Keyserling lidaremos com uma ecologia imaginária ou simbólica, mas sobretudo, de modo antecipador seja com relação à antropologia simbólica, seja com relação à história das mentalidades. Lidaremos com uma ecologia centrada na noção de "paisagem" que, ademais, é e não é específica referência à América do Sul. Ambos os pontos devem ser esclarecidos antes de ingressarmos no conteúdo eco-simbólico das "Meditações".

1A meio caminho entre o etnotipo e a individuação: a "paisagem"

"Dans la mesure où je parais aujourd'hui disciple de Spengler e de Frobenius, je l'ai été avant que leurs livres principaux fussent écrits: le "Journal de Voyage d'un philosophe"... n'a été possible que parce que Je savais que les civilisations sont des organismes d'un genre particulier et que le "paysage", entité physico-psychologique, est en lui-même formateur."

(Conde Von Keyserling, "Journal de Voyage", Préface à l'édition française, p. XII)

Publicada na década de 30, as "Meditações sul-americanas" podem ser lidas como "trajeto antropológico" e/ou como "trajeto iniciático", visto que a "paisagem" é uma "viagem", como veremos, posto que, parafraseando Corbin, a exegese do mundo, a exegese da obra, é uma exegese da alma. Assim também em Keyserling. Por isso que a ecologia imaginária faz par com a iniciação; por isso que a paisagem está entre o etnotipo e a individuação; por isso que a trajetividade que se perfaz através do ideário da ecologia imaginária é a mesma que a da imaginária da iniciação/individuação. Por isso que uma ampla configuração de imaginário permitirá – o texto de Keyserling, aliás, o impõe – a leitura e/ou, com as imisções e os entremeados de idéias e de figuras. Nesse sentido é que o autor observa tanto o caráter vivencial dos fatos, quanto a hibridação ensaio-romance, de que a noção de "paisagem" é a chave. Destaquemos ambos aspectos em Keyserling: o caráter vivencial-imaginário dos fatos e o teor imaginário do ensaio.

Com relação ao primeiro aspecto, Keyserling (1932, p. 13-14[15-16])2 2 Há excelente edição espanhola: Meditaciones suramericans. Trad. Ballesteros y de Torres, Madrid: Espasa-Calpe, 1933, mais acessível comercialmente. Sempre citaremos as páginas da edição Alemã e, a seguir, as da espanhola. observa:

Pois os fatos não são coisas que existam por si mesmas, mas produtos artificiais de abstração voluntária. Primordialmente só há situações de conjunto indivisíveis, dentre os elementos existindo aqueles que todas as pessoas podem, em maior ou menor escala, confirmar de modo equivalente, mas quando se submetem a condições mais o menos iguais. Cabe, sem dúvida, acentuar preferencialmente tais constantes. Mas então o mundo se reduz, desaparece a diferença que separa a obra pictórica da paleta, a vivência se desvanece, dissipa-se o sentido e o quadro perde seu teor de coisa única... Mas, ao contrário, o mundo, como a mulher, entrega-se feliz ao poema do enamorado, se é um autêntico enamorado... Trata-se, então, de uma autêntica metamorfose. Por isso aquele que fez o mundo acrescer de um mundo verdadeiramente próprio, sempre teve razão, e não só para si mesmo, pois se tinha vocação de amante, isto é, se compreendia seu objeto em profundidade, de novo o universo viria a existir, com feminina parcialidade, que todos o vissem como o amante o vira, até que surgisse um amante melhor...

E, nesse sentido, relacionando de modo vivo o Criador e a Criação, fala no "vivo enlace", na "total e exclusiva união orgânica com a Criação, tal como é a Criação, algo em perpétua transformação", e o fato vivo passa a ter à "fé" como "última instância subjetiva", fator de "agregação do pessoal ao externo", "afirmação da fantasia". Há, assim, nos fatos, "tantas possibilidades cósmicas quantas possa a imaginação conceber, terá havido tantas realidades cósmico-fatuais quantas imaginações puderam se impor." (Keyserling, 1932; p. 16-17 [17]) Por isso, não só o fato é uma vivência plural, uma criação da fé imaginativa, uma produção da "vis imaginativa"3 3 Para a noção de "vis imaginativa", cf. PAULA CARVALHO, J. C. de. Energia, símbolo e magia: para uma antropologia do imaginário. Tese de Doutoramento, Antropologia Social, SP, FFLCHUSP, 1985 (mimeo, 3 vol., cf. vol 1, c. III e IV, p. 324-411). , mas também essa ótica encaminha as noções de verdade e de Sentido. Assim,

chegamos ao único conceito de verdade que pode ser cosmicamente mantido e que coincide com o conceito da correspondência entre o sujeito e o objeto ... e a correspondência pode significar que o espírito criador transforma o universo a sua imagem e semelhança. Interpretado assim, e só assim, pode significar o conceito limite de um Autor Primeiro, em relação com o qual adveio, de modo demonstrável, um conteúdo pleno de sentido, incluindo não só a evolução natural, mas também a renovação da Criação do mundo pelo espírito ... Sem qualquer preconceito metafísico pode-se considerar demonstrado que o espírito colabora na criação do universo. Em nosso mundo humano o espírito, que experiencia para si mesmo, impõe ao universo suas próprias relações e confere um sentido, sendo inclusive a última instância. (Keyserling, 1932; p. 16-17 [17])

Assim o fato é uma dação de Sentido como cor-respondência, um ato portanto do espírito que faz entrarem em ressonância duas manifestações suas, o sujeito-criador e o objeto-criação. Como Keyserling observa em "Figuras simbólicas", o conhecimento é um ato do Espírito, de dação de Sentido e o Sentido "corresponde àquilo que domina a antinomia do racional e do irracional, e a escolha do termo se deve ao fato de que a plenitude do Sentido comporta naturalmente algo de muito mais que a mera conformidade com a razão" (Keyserling, 1928; p. 134). Como observa Delamain, apesar de o Espírito ser um, Keyserling mostra-o existenciando em teor plural, pois o autor realiza – e esse é o sentido do trajeto e da viagem, como veremos adiante – a "unitas multiplex", a unificação. Delamain (1961; p. 13) diz ainda, de modo significativo, para concluirmos essa questão primeira:

O princípio está, se preferimos, ao começo do Gênesis, no relato da criação, quando se diz que Deus criou as ervas e as plantas segundo sua espécie, os animais, as aves segundo sua espécie, e o homem à semelhança de Deus. O método de Keyserling consistirá em transportar na interpretação o espírito da criação, um espírito de variedade infinita; presentificam-se, assim, espécies inúmeras e não só de seres vivos, mas de coisas, de atos, de épocas, de idéias, de sistemas, em suma, toda unidade ou qualquer conjunto aí tem seu lugar. É um pluralismo: o acento recai sobre a diferença...,

mas não menos sobre a unicidade, pois essa dinâmica é precisamente a dinâmica do símbolo e, assim, o fato é símbolo, finalmente, pois o fato é "factum", fado de criar e feito de responder, co(r)-respondência ato-Sentido-Espírito. Co(r)-respondência que se vivencia na e através da "paisagem" e na e através da "viagem": eco-simbólica e iniciação na trajetividade do e no Espírito.

Quanto ao outro aspecto – o teor imaginário do ensaio – já está antecipada pelo "algo mais" que é o Sentido, pela mística (em sua significação etimológica) do Sentido, que faz ver de modo "místico" o conhecimento, e portanto faz rimarem a "paisagem" e a "viagem", os espaços mentais e a iniciação, as idéias e as imagens como figurações do Espírito. Por isso o ensaio é romance – cujo teor iniciático conhecemos desde os trabalhos de Simone Vierne – e o romance é ensaio, dada entretanto a anterioridade à vivência, pois o lema de Keyserling é "primum vivere, deinde philosophare". Daí as observações do autor, por exemplo referindo-se ao "Diário de viagem de um filósofo": "... não é um livro de filosofia abstrata, mas a descrição mais ou menos poética de uma evolução interior vivida ... Sou essencialmente um homem vivo. Eis porque em mim o implícito tem freqüentemente, como ocorre em quase todos os poetas, mais valor que o explícito" (Keyserling, 1986; p. XI-XII). E tendo, assim, aproximado exegese da obra e exegese da alma, posteriormente como enunciamos no início, exegese do mundo, portanto "paisagem" e "viagem", Keyserling (1986; p. XVII-XVIII) destaca o caráter romanceado do ensaio, a natureza mesmo poética da reflexão:

(referindo-se ao "diário"), gostaria que o lesses como a um romance. Certamente é constituído, em grande parte, por elementos que as excitações exteriores de uma viagem à volta do mundo fizeram nascer em mim, contendo ademais muitas descrições objetivas e considerações abstratas que se bastam a si mesmas. Mas, no seu todo, representa ele, antes de mais nada, um poema de inspiração e de coerência totalmente internas; somente aquele que o compreender apreenderá o verdadeiro sentido. Desse sentido, nada direi por ora, pois se manifestará àquele que docilmente seguir o viajor através de seus múltiplos estados de espírito e de suas múltiplas transfigurações, jamais esquecendo que, para mim, os fatos jamais são, e em lugar nenhum, um fim em si, mas sempre e em qualquer lugar o meio de expressão de um sentido que existe independentemente deles. Ele se revelará àquele que, por conseguinte, não se obumbrará ao ver considerações sobre as culturas estrangeiras alternarem-se com a introspecção pessoal e exposições precisas com as transposições poéticas, vendo que muitas, e talvez a maioria das descrições levam mais em conta a virtualidade do que a realidade. Ele se revelará sobretudo àquele que não se deixar enganar pelas contradições que por vezes me impõe imperiosamente a necessidade de mudança de pontos de vista e de estados de espírito ... Mas quem me ler nesse espírito, por certo terá a haurir, mesmo antes do final, o sentimento menos de uma filosofia teoricamente possível que o de um nível de consciência praticamente acessível...

Com esse denso texto, que é uma súmula e um programa, detectamos não só o teor imaginário do ensaio, o espírito que deve comandar a leitura, mas também identificamos talvez uma única exegese – porque o Espírito se diz em vários modos –, do mundo, da obra e da alma. E talvez pudéssemos, a rigor, dizer dessa "metodologia" de Keyserling ser a "transdução"4 4 Sobre a "transdução", ver PAULA CARVALHO, J. C. de. A Culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação fática e ação cultural. Ensaio de Titulação (Antropologia das organizações). SP, FEUSP, 1991, cf. nota 197, p. 165 (no prelo com o título de Imaginário e culturanálise de grupos – EDUSP). . E as múltiplas "paisagens" que desfilam durante a "viagem" devessem talvez responder ao Verlaine de "votre âme est un paysage choisi..."

Eis como, pincelados os dois aspectos da leitura keyserliana – o caráter vivencial-imaginário dos fatos e o teor imaginário de ensaio –, já nos vemos introduzidos na questão – também já encaminhada pelos textos examinados – da "paisagem", essa " entidade físico-psicológica em si formadora das civilizações e culturas". Será ela, lembremo-lo, a medida e a enunciação da ecológica imaginária, da eco-simbólica, ao mesmo tempo em que, sendo "fatos" de viagem, informa a iniciação. Portanto, espaços mentais, alma, Sentido e Espírito, sendo o mundo uma figuração simbólica. Assim, a "paisagem" corresponde, de modo preciso, à "Landschaft" em Spengler e à "paideuma" em Frobenius, sendo ademais como que o traçado-mapa de trajeto e de leitura remanescente do "trajeto antropológico" de Durand. Corresponde, enfim, à "atmosfera mental" em Bloch e ao "climat" em Febvre, onde entretanto é dado destaque ao aspecto físico-psicológico, mais que ao social na história das mentalidades, por isso atendo-se mais à linha de investigação de Febvre. É de se notar, entretanto, que esse rastreamento é feito "a posteriori", tendo-se em vista a anterioridade de Keyserling com relação ao "paradigma dos Annales". Portanto, se a "paisagem" forma e informa a cultura, se há um "policulturalismo", haverá "paisagens mentais"; entretanto, para Keyserling, desde a "Análise espectral da Europa", há uma tendência em linhas de força convergirem para a definição de quase-tipos culturais, que não chegam entretanto a definir "caracteres nacionais" aproximando-se bastante de "etnotipos", conquanto grande seja a oscilação do autor nesse sentido, que ora afirma peremptoriamente, ora modula, tendo-se em vista precisamente a problemática não só da "unitas multiplex" e da unificação sob a égide do Espírito, mas também o fato, que nos interessa sobremaneira, de a "paisagem" estar ligada à "viagem" e, assim, à ressonância que essa traz de uma paisagem interior, de uma "individuação" diríamos em termos junguianos, de uma iniciação mesmo. Como veremos esse aspecto logo mais, pensemos a oscilação mencionada na "paisagem", sempre entre o etnotipo e a individuação mas, de qualquer modo, sempre também um mapa simbólico e uma eco-simbólica a definirem "espaços mentais"5 5 Os "espaços mentais" são entendidos tanto no sentido da topologia de Thom, quanto das investigações de G. Bateson e da Escola de Palo-Alto. Cf. Paula Carvalho, (1991, nota 176, p. 163), para todo o material referente; obra citada na nota 04. e os correlatos suportes de materialidade. Keyserling (1986; p. X) diz:

O pensamento está tão estritamente ligado à língua que o exprime como a alma ao corpo. Cada raça percebe o mundo sob um ângulo diferente, cada ponto de vista é único em seu gênero. E apesar de todas as línguas disporem de símbolos para os mesmos objetos e as mesmas relações objetivas, as palavras equivalentes jamais terão sentido idêntico. O espírito francês é facetado; o espírito alemão é esculpido em cabochão.

E, assim, apreende a diferença e o vetor etnotípico já ao nível da lingüística do "outillage mental" (Paula Carvalho, 1990, Cap. III, nota 22, p. 90), que é o aspecto basal do mesmo. Insistindo, também, não só em a "Análise espectral da Europa", mas no próprio "Diário", e também nas "Meditações Sul-americanas", nessa caracterização via quase-etnotipo, Keyserling (1932; p. VIII [9-10]) diz nas "Meditações" que, a despeito de elas se referirem à "vida hispano-americana", o que lhes dá "significação especial" e destino a que não podem aspirar outras nações, sendo portanto situadas em termos de "paisagem",

muitos esperam das 'Meditações' um livro sobre a América do Sul. Entretanto, jamais estiveram destinadas a sê-lo, nem nunca chegarão a isso, como tampouco as 'Cartas Persas' de Montesquieu foram um livro sobre a Pérsia. As atuais 'Meditações' tratam das mais importantes questões, geralmente humanas, a partir dos abismos da vida telúrica em direção ao ápice do espírito. Mas, por outro lado, como as soluções que encontrei para elas foram fruto de meu contato pessoal com o mundo hispano-americano, quase todo o concreto encerrado nesse livro mostra, naturalmente, uma marca ou uma cor hispano-americana. O título reflete, portanto, com perfeita exatidão e clareza o sentido e o teor do livro.

E, nessa oscilação constitutiva do próprio bifrontalismo da noção de "paisagem", outra citação do autor perfaz o sentido, o vetor rumo à individuação e à viagem. Diz Keyserling (1932; p. 20-22 [21, 23-24]):

No transcorrer da batalha que tive a travar no crisol da 'puna' para manter minha identidade, adquiri consciência de minha própria mineralidade ... Como o espírito do mineral, o espírito da serpente pode determinar uma paisagem na sua totalidade. Também do estrato, a ele correspondente no meu foro interno, adquiri a consciência na América do Sul ... Precisamente esse espírito de 'fermento da Criação' é o espírito que domina a paisagem da América do Sul, ali onde a terra não está 'desordenada e vazia'.

E assim chegamos à ecologia imaginária, eco-simbólica revelada no seu aspecto viagem rumo a Si-mesmo.

2A meio caminho entre o Outro e o Si-mesmo: a viagem

"Le plus court chemin qui conduise à Soi-même vous mène autour du monde"

(Conde Von Keyserling, "Journal de voyage d'un philosophe", p. VIII)

Não nos cansamos de mostrar essa co-essencialidade entre paisagem e viagem, esse en-formação da alma. Nas "Meditações" diz Keyserling (1932; p. 20-22 [21,23-24]):

Desde que cheguemos a vislumbrar semelhante relação, já não nos parece inexplicável, por incompreensível que continue sendo. Todos os elementos constitutivos do homem são nele co-determinantes; o mundo circundante que o plasmou, a ele pertence organicamente e, assim também, o 'espírito' do metal e a 'virtude' do mineral colaboraram na formação da alma.

E, adiante, mostra essa preensão na própria alma do viajor:

Em sua paisagem natal, esse mundo abissal, que a realidade externa fez surgir em mim como correspondência, logo conquistou sua marca original e primordial. Todas as cores se empalideceram e desvaneceram-se os contornos precisos. Senti-me cercado por uma confusão de larvas rastejantes e em meus ouvidos ressoou a música macabra da dança das sombras no 'Orfeu' de Gluck, como se fora o necessário acompanhamento daquelas imagens. E efetivamente o é (1932; p. 25 [26-27]).

Assim, independentemente das características telúricas da América do Sul em sua paisagem, o autor apreende essa dissolução da alma, que é marcada por toda viagem que ressoa, faz emergirem correspondências interiores, toda viagem que se anuncia como um trajeto iniciático no jogo entre a paisagem e alma. Essa problemática é muito bem caracterizada pelo autor no "Diário de viagem de um filósofo", adquirindo tons épicos mesmo em Ceilão. Diz Keyserling (1986; p. 3-4):

Por que ainda viajar? Acabaram-se meus anos de peregrinações. Findos também os tempos em que uma simples aquisição de matéria era suficiente para me enriquecer interiormente. Nessa época coincidiam um desenvolvimento interno e a expansão da superfície; existia eu ao nível da criança, intelectivamente, que deve inicialmente crescer fisicamente, antes que se ponha a questão de crescer de outra maneira. Entretanto, nenhuma criança, qualquer que seja sua vitalidade, não cresce ao infinito; chegará o dia em que, para cada um, será atingido o ponto crítico, em que não mais poderá avançar no mesmo sentido, dia em que deverá parar completamente ou então transferir seu crescimento para outra dimensão. E como a vida, desde que ela não se tenha esgotado, jamais pára, em certa idade a necessária mudança de dimensões produz-se por si mesma. Cada um, chegado à maturidade, tende às profundezas e a uma potência mais elevada, pelos mesmos motivos que, nos tenros anos, incitavam seu ser orientando-o para a expansão e o enriquecimento.

E não obstante essa redução-transferência da capacidade lúdico-exploratória do mundo, essa redução do espaço "euryecético" como dizem os etólogos, essa "desafectação" pelo mundo da extensão e essa sensibilização para o mundo da "intensão"; não obstante esse cristalizar-se em formas, afirma-se a inquietude do ser e do Sentido, a busca renovada do "Merkmale" como dizem os etólogos, apesar de Keyserling mostrar, com profundidade, o aspecto dos "espaços mentais" nessa dinâmica, entretanto num sentido que pode inverter as significações da paisagem e, assim, reconduzir a importância da viagem. Diz o autor (Keyserling, 1986; p. 9):

As relações de ordem mental, no meio das quais um homem vive, não o condicionam somente desde o interior; são, para ele, ao mesmo tempo, um meio ambiente sempre presente; e esse meio ambiente mental pode se tornar tão importante que, onde a consciência figura-se representar o mais íntimo de seu ser, não reflete, na realidade, senão sua ambiência e assim não supera a reprodução imagética das coisas exteriores.

E, a seguir do texto, tendo evidenciado a nocividade de uma cristalização no gênero, volta a ter importância o ser proteiforme do homem, porque

é preciso, enquanto for possível, retardar o inevitável processo de cristalização; enquanto for viável, Proteu deve persistir proteico, porque só as naturezas de Proteu são chamadas a serem os sacerdotes da metafísica. Resolvi, assim, retornar ao mundo. Como o mundo ajuda a realização do eu, em que tanto penso? Porque se costuma pensar que ele impede. Entretanto ele auxilia àquele que dispõe da atitude natural para forçar sua alma a revestir formas sempre novas ... Na verdade, o mundo não pode ser útil, em nada, ao homem imutável, desde que ele atingiu sua maturidade ... Mas, ao contrário, o espírito plástico, que cada novo meio transforma conformemente à sua natureza, não poderá jamais experienciar tanto que é tudo, porque, a cada vez, sai mais profundo de cada metamorfose (Keyserling, 1986; p. 6-7).

E, assim, o ser metamórfico do Homem corresponde à dimensão do Espírito, porque a ele praz "encarnar os valores espirituais nas contingências naturais e históricas, quaisquer sejam elas, como um pensamento se encarna numa língua qualquer..." (Keyserling, 1961; p. 141). Daí confessar Keyserling o valor metamórfico da viagem, a cuja poética e simbólica não retornaremos porque já a visamos em outro texto (Paula Carvalho, 1976). Diz Keyserling (1986; p. 5): "O que me lança no vasto mundo, ao largo, é precisamente aquilo que conduziu outros ao claustro: o desejo de realizar-me." E, enfim, num texto profundo que, como que alinha os temas até agora vistos, diz: "(Aqueles que se cristalizaram em formas de vida, formas de pensamento) não sentem a necessidade de superar uma forma acabada e de atingir esse mundo mais essencial onde o Sentido vive no estado de substância e onde todos os fatos são re-engendrados em símbolos." (Idem, p. 9)

É, precisamente, dentro desse Espírito, que deveremos abordar as margens do "Continente do Terceiro Dia da Criação", ou seja, a América do Sul e seu mundo telúrico-abissal. Antes, entretanto, pois que há como uma temática da viagem emergente em Keyserling, a funcionar como que arquetipalmente com relação à viagem como fato simbólico encarnado, cabe relacionar alguns temas: o "mistério da polarização", a "interdependência dos mundos", a "polifonia", a "criatividade" e a "revolta das forças telúricas – a vocação do Espírito", aliás temas que, como moldes arquetipais, presidem à en-formação dos engendramentos proteimórficos das paisagens e espaços mentais, à ecologia imaginária, portanto.

No livro "Sobre a arte da vida", Keyserling fala do encontro com o Outro e da ética decorrente, através do "mistério da polarização". Pensando o fato, e as razões, do "número limitado das formas culturais importantes", Keyserling (1961; p. 101) afirma:

O que significa a superioridade de tal ou tal forma cultural? As formas de expressão de uma cultura não derivam seu valor somente da experiência individual ou das circunstâncias que elas exprimem; tiram-no sobretudo de sua capacidade a tornar transmissível aquilo que de vivo há nelas ... Graças à clareza, o conhecimento se torna imediatamente transmissível a todos aqueles que são capazes de compreender. E ela se torna diretamente transmissível pelo fato que uma clara formulação estabelece uma relação necessária entre o problema abstrato e as condições do conhecimento humano em geral.

Assim, a expressividade da forma cultural e seu impacto se devem sobremaneira ao fato da "evocação de uma experiência íntima" naquele que a encontra. É nesse sentido que se orienta o "mistério da polarização" oriundo do encontro com o Outro, que é uma ampliação e um aprofundamento potenciais para o Si-mesmo, e portanto uma ética da criação, como veremos. Assim,

se o homem abre-se em todo seu ser ao Universo, se ele se entrega integralmente a tudo aquilo que o afeta, e se então ele se vale das forças profundas do Espírito para transformar aquilo que o impressiona e o comove, então ele integrará a si mesmo porções cada vez maiores da natureza exterior e interior; ao mesmo tempo, seu eu espiritual acabará chegando a uma interiorização cada vez maior e sempre crescente; como resultado final, o homem se recria a si mesmo ... Não há experiência profunda que não signifique polarização. Por outro lado, só a polarização é a experiência que desenvolve o homem, impelindo-o adiante. Há identidade limite, quanto à significação, entre toda experiência profunda e aquilo a que se chama revelação. Donde o fato de as experiências de ordem material e exterior poderem despertar o espírito (Keyserling, 1986; p. 7).

E tendo ensinado o potencial sentido do encontro como "experiência profunda", Keyserling (1961, p. 75-78) adverte para o ensinamento da "Escola de Sabedoria":

O homem deve, hoje, tornar a comungar, de modo tão completo quanto possível, com o não-eu, sobretudo com seus aspectos mais negligenciados nos últimos séculos (as forças telúricas), para reencontrar o caminho que leva à plenitude, portanto a um desenvolvimento mais elevado da personalidade ... É preciso nascer um tipo originariamente mais profundo que aqueles atualmente predominantes no plano do Espírito. Agora entretanto, não basta que o novo tipo seja somente mais profundo: é preciso que seja também de mais vasta envergadura ... A "Escola de Sabedoria" ensina a todos, que deixem de lado o amor-próprio, que vejam nos outros seu próprio complemento ... A recíproca polarização de espíritos individuais não é, evidentemente, senão uma das vias que, com o tempo, chegará à criação de um nível espiritual superior. Mas, dado o espírito analítico excessivo, sobretudo na Europa contemporânea, talvez seja essa a via mais necessária no início do processo. Para começar, é preciso que o espírito pessoal de cada um não continue a ser, mesmo ele, a última instância, mas que aceite outros como partes integrantes de seu próprio eu superior.

Daí o autor deriva considerações sobre a educação, que mais vão no sentido da ressonância de inconsciente para inconsciente via paisagem e paideuma, do que via instrução (Keyserling, 1961; p. 91-92):

O inconsciente da criança está todo aberto a todas as influências que experiência. Dessas influências, aquelas filtradas pela inteligência são em menor número e bem menos profundas. Donde a importância verdadeiramente mínima da educação e da instrução tais como as entende nossa bem-aventurada idade das massas, que crê o homem cultivado poder ser fabricado como se fabricam automóveis, crença aliás do liberalismo triunfante. Donde, de outro lado, a influência verdadeiramente enorme que exerce, sobre o inconsciente das crianças, o ser bastante próximo e a atividade involuntária e silenciosa das pessoas de seu meio ambiente e, através delas, dessa realidade psico-física integral a que chamamos, na falta de melhor expressão, o espírito da época ou a paisagem...

É precisamente nesse contexto que se situa o aprendizado de que a América do Sul é portadora, sendo mesmo sua missão: como continente das forças telúricas, há muito reprimidas pela mística do progresso, é seiva para o Espírito na criação de um tipo superior, pois lá rege a "origem emocional" e toda a temática, como adiante veremos, girando em torno da nova parturição. É o continente da "participação mística" e do "cosmomorfismo" ou da "obscura zona cosmo-antropológica", da "educação fática", se não fora demais pretensão de nossa parte...

No livro "A revolução mundial e as responsabilidades do Espírito", podemos, desde as considerações acima, refletir sobre a "interdependência dos mundos" e o significado das forças telúricas nessa fenomenologia do Espírito. Por um lado Keyserling (1961; p. 162) observa o sentido da diferença nessa dinâmica:

Os povos são ou se tornam diferentes segundo o papel que são chamados a desempenhar. E o papel, por sua vez, não é coisa que possa ser imposta ao todo por uma parte: o papel está pré-figurado na estrutura do todo. Isso implica que é impossível a um povo como a um indivíduo desempenhar um dado papel, de toda maneira com resultado positivo, a menos que tal papel corresponda a tal estrutura.

Portanto, a co(r)-respondência holonômica pede, à base da polarização – que pode assumir mais um caráter individual, conquanto também o possa coletivamente –, o equivalente coletivo da polarização, ou seja, a interdependência dos mundos. A interdependência de todos os mundos "implica, entre outras coisas, a mais justa 'designação' das forças telúricas, que ressurgem na nova juventude, propiciando, dessa feita, a mais justa designação da Humanidade" (Keyserling, 1961; p. 167). Vale dizer do caráter orientado dessa polarização e dessa interdependência de mundos: é o estrato abissal da personalidade e o Continente do Terceiro Dia da Criação, objetos das "Meditações sul-americanas". Entretanto, por outro lado, põe-se a problemática da co-existência unificada de mundos vários; e Keyserling desenvolve, em "Sobre a arte da vida", a temática da "polifonia": "O problema não é comunicar com outros por meios diversos, mas atingir um nível superior do ser que permita pensar originariamente e naturalmente de diferentes modos" (idem, p. 81). E discutindo uma confrontação entre Dostoievsky e Goethe, chega à idéia de "polifonia":

Há (neles, em Goethe sobretudo) não só essa polifonia que é mais ou menos equivalente à música sinfônica, cuja multiplicidade não pertence portanto senão a um só plano, mas há também a polifonia, no sentido de atualização simultânea, por meio de uma expressão unitária, de muitos planos de existência ou de ser. Ora, esse segundo gênero de polifonia é indispensável para dar conta ... de toda a complexidade do ser humano (idem, p. 82).

Entretanto, diríamos, não só em nível da arte, se a vida é arte e se há uma arte de viver a que se chama "sabedoria"; portanto, em nível da própria vida, a ética do encontro com o Outro como encontro com o Si-mesmo, na ótica da polarização/interdependência, só pode ser "resolvida" (no sentido musical) pela "polifonia", como que a resolução vivencial e projetiva da "unitas multiplex", a individuação como reunificação de alteridades, a humanidade como o repositório de chances da roleta, em Lévi-Strauss. Donde o significativo texto de Keyserling (1961, p. 142), onde o "desde fora" torna-se "de dentro":

o homem não é, em absoluto, essa unidade ou mônada simples, que aquele que distingue 'sua verdade' daquilo que não é 'sua verdade' está a pressupor, sempre: o homem é essencialmente complexo, infinitamente mais complexo, sobretudo no sentido de que nele existem diferentes estratos cujas normas são freqüentemente incompatíveis entre si, sendo entretanto suas mesmo, por igual modo, igualmente reais, indiscutíveis e que não podem ser renegadas.

O acolhê-las, e ouvi-las – a tal "pedagogia da escuta" no rimbaudiano "Je suis un Autre" – conduz a com-preensão ... e a criatividade, em Keyserling. Porque, opondo-se à mística do progresso e à era mecânica, e ao seu correlato ideativo que é o "saber generalizável" – "onde se pode tudo saber sem compreender nada, e tudo compreender sem nada saber"- , a criatividade pede o desenvolvimento, o cultivo, de duas faculdades: a compreensão e a alegria do risco. Com relação à primeira diz o autor (idem, p. 57):

... a compreensão interior, vinda de dentro, em oposição aos conhecimentos trazidos de fora. Todo ato de compreensão é simultaneamente um ato pessoal e criador ... Mas todo ato de compreensão é dação de um Sentido, constituindo-se numa atividade espiritual que age de dentro para fora. Jamais encontraremos um sentido para as coisas, senão aquele que a elas damos.

Já a "alegria do risco" cruza com a "incerteza" – ambas significando o mesmo atributo da presença do Espírito, a liberdade –, que conduz a derradeira fenomenologia do Espírito por meio da confrontação – em sentido junguiano de "Auseinandersetzung" – com a "revolta das forças telúricas".

Porque só é livre aquele que suporta a incerteza (correlato teórico do que é o risco na vida prática), aquele que pode viver sem se crer possuidor da última palavra. E só uma grande liberdade interior permite desvencilhar-se das contingências, ver através dos fenômenos, prever assim o que virá a ser e assim pré-formá-lo (Keyserling, 1961; p. 139).

E aqui estamos em pleno contato com a temática das forças telúricas e seu Sentido. Verificando o "unilateralismo" da civilização que, proscrevendo a natureza, com ela proscreveu a fecundidade e o telúrico em nome de um espírito reduzido a intelecto, de um espírito portanto dissecado – é interessante lembrar que, no próprio solo do Cristianismo, mas oriental, o Espírito quase chega a ser Feminino por Sophia, fato que não ocorreu no cristianismo romano, co-responsável por esse espírito de "terra gasta"... –, de um espírito de "terra gasta", Keyserling chega a pensar num "movimento de re-paganização" como terapêutica, na "angústia" que tão bem Dodds analisaria, quase num "gênio do paganismo". Diz Keyserling (1961, p. 135-136):

Há só uma atitude que se me afigura como boa: aceitar a natureza humana tal qual ela é, na diversidade de seus estratos e na totalidade de seu estranho desequilíbrio ... Desde que triunfou a crença no progresso ... perdeu-se de vista, na Europa, a própria existência das forças telúricas, cada vez mais reprimidas no inconsciente. Ora, esse recalcamento só fez provocar, ao longo do tempo, um aumento formidável e crescente, sempre, de seu potencial ... Por que não aspirar a uma integração de todas as forças vitais em nossa consciência, como a Antigüidade o fizera em seu nível de compreensão? Por que não criar uma síntese tendo-se como base as positivas aquisições dos séculos passados? Pois as forças telúricas, eu repito, são coisas boas em si; essas forças elementares, vitais e emocionais, são coisas boas em si, pois delas depende toda a riqueza da vida na terra. Quanto mais agirem em harmonia com as forças espirituais do homem, com mais plenitude desabrochará a vida.

3 A modo de provisória conclusão: Paisagem e Viagem nas "Meditações sul-americanas"

"Em América del Sur, el espírito determinante del tercer dia de la Creación hace que la primera impresión sea por doquier la de este horror. El hombre contempla allí, involuntariamente, cara a cara, a la Magna Mater."

(Conde Von Keyserling, "Meditaciones Suramericanas", p. 31)

A paisagem sul-americana é regida pela simbólica e pela mística da Tellus Mater, cujos traços Keyserling capta através de um belíssimo texto escalonado em doze meditações. Essa paisagem é, assim, uma configuração simbólica cujos temas de maior destaque, objetos das meditações, são os seguintes: o medo originário, a guerra, o sangue, o fado, a morte, a "gana", a delicadeza, a ordem emocional e a tristeza. Seria objeto para todo um trabalho exegético mas, dada a impossibilidade de o desenvolvermos aqui, remetemos o leitor à leitura, mesmo porque se trata de um texto de beleza e profundidade incríveis. Sabemos, desde a advertência do "Segundo Fausto" de Goethe, os perigos que espreitam aqueles que se confrontam com o "reino das Mães"; sabemos também, pelos estudos arquetipológicos dos aspectos negativos do Feminino, sobretudo quando o enfrentamento se faz através daquele espírito mitigado de terra gasta frente à vida de que a Natureza é portadora. Por isso, com a paisagem sul-americana e seus temas referidos, acopla-se a viagem que, assim, é trajeto iniciático, mesmo porque é "depaysement" e dissolução e progressiva parturição do Espírito, pois as últimas meditações trazem os significativos títulos de "a irrupção do Espírito" e "a Divina Comédia".

Ficaremos, aqui, com as próprias palavras do Conde Von Keyserling, com as descrições da interação paisagem-viagem, que é o trajeto antropológico do autor, tomando-as sobretudo à Primeira Meditação: "o Continente do Terceiro Dia da Criação", "ouverture" ao mesmo tempo que música programática de um Encontro.

Já vimos que o autor se sentira cercado pelo mundo larvar, reptílico e frio das sombras do "Orfeu" de Gluck, que desenham o ser larvar e réptil do homem, ou melhor, seu estrato de sombra abissal e mineralização. Assim:

E essas larvas a nada mais se assemelham senão a sombras humanas. Não são precisamente serpentes, mas seres serpentinos ... transparentes às trevas. Quando pela primeira vez vi reptar em minha direção aqueles corpos frios e viscosos e vi aqueles incontáveis olhos de basilisco, fixos e vítreos, cravados em mim, encolhi-me e me senti entregue indefeso ao Mal. Mas não me custou ver que não reptavam, nem me olhavam. Moviam-se incessantemente, sem direção precisa, e apesar de seus dilatados olhos fosforescentes, não viam; foi-me então revelado que aquilo que a princípio crera ser o Mal, era somente a Vida Primordial, pois minha primeira associação provinha de ter visto refletida a imagem num espelho que deforma. Compreendi também, agora, porque a vida abissal tem que se refletir na consciência diurna sob a forma de uma serpente, dando assim razão aos caldeus que dispunham de uma única palavra para os conceitos 'vida' e 'serpente' (Keyserling, 1932; p. 25 [27]).

E observando que os que não perderam por completo o contato com as Mães telúricas chegaram a experienciar, ainda que por breves momentos, o que pode ser designado como "o saber do sangue" (idem, p. 27 [29]), que é ainda "luz líquida", Keyserling prossegue na "catábasis" e na "nekyia" rumo à "fria noite", à vida gelatinosa, a desmineralização, à arborescência luxuriante etc., em suma, ao continente que se define pelo "fermento da Criação" (no texto em alemão, o autor mostra que os verbos franceses "grouiller" e "pulluler" são os verdadeiros indicadores para essa vida-"nigredo") e pela "viscosidade primordial".

Assim, por um lado, essa ecologia imaginária, essa eco- simbólica desenha a paisagem, essa entidade físico-psíquica que, aqui, se aproxima do etnotipo sul-americano:

No que direi, simplificarei e generalizarei e, conquanto minhas descrições se afastem, quanto a alguns tipos, da proporção dos elementos raciais, serão não obstante precisas no sentido qualitativo e diferencial. Porque o homem sul-americano é essencialmente taciturno, e tanto mais taciturno quanto mais profundo for. Quanto mais grave é o conflito, mais retém a voz. O importante jamais é exprimido, mas só aludido, e inversamente só o aludido é compreendido no ato. Aqui o espírito teme a luz. O contato que a palavra propicia nos homens da superfície, é aqui propiciado pelo silêncio. Toda intelectualidade autóctone é passiva, e impassíveis os rostos. A expressão impenetrável, surda e cega, mas ao mesmo tempo prenhe de ameaças, que ali é mais comum aos homens do que aos malvados, reflete o olhar dos anfíbios e dos répteis daquele continente. Até o esplêndido entusiasmo que por vezes estoura com violência vulcânica no homem sul-americano, tem algo do réptil. Assemelha-se ao brusco impulso da anaconda real que, depois de se lançar num salto formidável, volta, no ato, à entumecida apatia. E a primeira vez que ali encontrei homens com aspirações espirituais, espontaneamente brotou-me à imaginação, sem que ainda tivesse qualquer conhecimento arqueológico, o símbolo primordial mexicano: a serpente alada (Keyserling, 1932, p. 35 [36-37]).

Mas, por outro lado, a mesma ecologia imaginária, essa eco-simbólica, essa paisagem deixa o traçado da viagem, que é iniciação:

quando desembarquei na Argentina, minhas primeiras palavras foram: 'não vim aqui para ensinar, mas para aprender'. Essas palavras pareceram abrir-me todos os corações, pois em seguida encontrei tão boa disposição e tão aberta receptividade que tive que dar, pude dar, vi-me obrigado a dar como nunca dantes. Mas enquanto assim se estabelecia uma relação de profundidade para profundidade e o novo campo de forças deixava desprenderem-se integralmente suas influências, eu mesmo fui me transformando. Emergiram em minha consciência aquelas profundezas e aqueles abismos que em mim correspondiam às profundezas determinantes daquele mundo sul-americano: acedi ao estrato do terceiro dia da Criação, em mim mesmo. É nesse estrato que, segundo podemos experienciar a posteriori, a vida já venceu a inércia da Proté Hylé, a Matéria Prima. Nesse estrato não há liberdade, mas somente vínculo e liames absolutos. Nele reina, quanto ao psíquico, a exata correspondência da gravidade material. Ele carrega, para o homem, como vivência primordial, a terra, não o espírito. Indômito e até então refratário a qualquer ligação, foi nessa parte do mundo, à qual chamo, desde aquele dia, o Continente do terceiro dia da Criação, que pela primeira vez adquiri consciência desse profundo estrato ... Declarei-me mais ligado à terra sul-americana que a meu próprio solo. A relação com a terra é sempre uma relação com o mundo subterrâneo. Só que a maioria dos homens ignora o que isso significa, pois se sentem ligados à terra por um laço de sangue. Evidentemente é possível que a planta homem sinta-se incorporada, da raiz à copa, a sua paisagem, e assim sucede com quase todos os seres com relação à paisagem de sua terra natal. Mas a relação mais autêntica e profunda promana do sangue frio, e só a partir dele pode-se apreender exatamente o sentido da terra e do que é terrestre. Devo a meu contato com a América do Sul a revelação desse sentido. A América do Sul me deu muito mais que a Índia e a China. O chinês, como o indiano, é-me muito mais afim, pois também ele vive profundamente pelo espírito ... O sul-americano é total e absolutamente homem telúrico, encarnando o pólo oposto ao homem condicionado e permeado pelo espírito. Não me foi possível, assim, enfrentá-lo com meus órgãos de compreensão: com dolorosa dificuldade tiveram de formar-se, em mim, outros órgãos ... E os perigos levaram à formação de novos órgãos para prover à desintegração. Durante seu desenvolvimento consegui obter uma nova perspectiva da realidade: a perspectiva desde a terra (Keyserling, 1932; p. 17[18-19]).

Enfim, à toda catábase segue-se uma anábase, a todo "descensus ad inferos" uma trans-figuração e, nessa ótica da plenitude e não da perfeição, como acentuam Keyserling e Jung, o trajeto iniciático vai das Trevas à Luz, e o retorno é re-parturição do Espírito, porque várias são as paisagens e várias as viagens. Portanto, aquilo que Keyserling diz ao final do "Diário de viagem de um filósofo", pode servir como chave e cifra:

Minha grande viagem fez-me aproximar da realização do eu. Em toda sua força. Cada uma das possibilidades de vida que atravessei, deu-me mais claramente consciência daquilo que é essencial, falando-se metafisicamente, e daquilo que não o é. Enquanto ser, continuo o mesmo, seja meu modo de sentir o de um hindu ou de um chinês, de um cristão ou de um budista; sei agora, por viva experienciação, que a verdade essencial vive para lá das esferas das formas particulares. Que tal ou qual formas se realizem. Isso depende das condições; que tal ou qual formas sejam mais apreciadas, isso depende dos alvos propostos ... Nenhuma fórmula é fórmula suprema no sentido metafísico; cada uma representa uma possível expressão do absoluto e cada expressão particular determina limites específicos. As diferentes almas que adquiri ficaram-me como possíveis modalidades de meu ser; minha natureza enriqueceu-se, por conseguinte. Graças ao conhecimento das vias da metempsicose, meu ser, que persiste através de qualquer migração de alma, tornou-se, como "negativo", tão manifesto que me parece cotidianamente que, hoje mesmo, o "positivo" irá se mostrar sem dúvida alguma. Ele não se mostrou ainda. Por ora sinto-me o mesmo, não mais seguro, mas menos seguro que outrora: há muito em via de transformação e de mudança. Mas isso se arranjará. O processo natural apenas começa: precisa de tempo. Vamos dar-lho. Quanto a mim, esperarei, com calma confiança ... Nesses dias, na bela e antiga sala de meu castelo, com sua soberba acústica, andei tocando muito Bach. Por que sua arte tem para mim tanta importância? Porque seu espírito é, de modo absoluto, um espírito dos tons fundamentais. Há íntima concordância entre a profundidade dos pensamentos e a profundidade dos sons. Do mesmo modo que um baixo dado permite imaginar, nas claves mais elevadas, uma infinidade de melodias, enquanto que toda melodia acima dada só se põe em acordo com um só baixo. A música moderna existe somente acima, não fazendo sentir senão de modo mediato os tons fundamentais; a música de Bach é, em sua totalidade, em tons fundamentais e assim é a base das demais. Nenhum músico foi mais profundo que Bach; e como nenhum outro, ele é con-genial ao metafísico. O papel do metafísico é tocar o baixo na sinfonia do espírito cognitivo, encontrar e fazer vibrar os tons fundamentais da música do universo. E enquanto minh'alma mergulhava em Bach, eu suspirava: se eu pudesse pensar como esse homem compôs, se meu conhecimento chegasse a refletir tanta profundidade quanto sua música, teria atingido o alvo ... e o fim (Keyserling, 1986; p. 839-840).

4 O "lirismo hermenêutico" e "transdutivo" do "ethos tríbio" e a culturanálise do "paradigma tropical"

Nosso propósito não será, aqui, estudar a obra de Gilberto Freyre, mas fundamentalmente evidenciar como prolonga as reflexões de Keyserling através do "luso-hispano-tropicalismo", e mais, como situa as considerações sobre a pós-modernidade no mundo atual com relação à formação hispano-brasileira: em nosso caso, trata-se mais de uma "vocação" de longa data, de modo que as noções de "sincretismo" e de "heterocultura" captam com mais densidade o "modernoso" da pós-modernidade em seus modismos europeizantes. Enfim, como o autor situa nossa paisagem mental em termos de "arquétipos epítetos" e como, de certo modo, ao tratar das distinções regionais, abre espaço para o questionamento matriarcal do patriarcado e, assim, para um "devir feminino" do/no "paradigma tropical".

A "catenoscopia" de Gilberto Freyre significa – nas modulações dadas ao termo por Corbin e por Durand – de início uma metodologia, que muito tem a ver com os pensadores hispânicos (Alcântara, in: Cândido, A. et al., 1962), com seus mestres (Vives, Gracián, Ortega e Gasset, Unamuno e Marías, dentre os decisivos), por onde a apreensão do "objeto" in-siste no sujeito, modo hermenêutico – a valorizar a pessoa, a história de vida, o ético, etc. – se mescla com o que se chamou "transdução", uma "apreensão poético-científica da realidade" – próxima do "ensaio" de teor hispânico – dando origem à mescla que Gilberto Freyre faz entre arte e ciência. A catenoscopia se revela como "o" método para a apreensão do "sincretismo", do "paradigma tropical" e para a "heterocultura" definindo a pós-modernidade brasileira como uma problemática de "pseudomorfose" dos arcaísmos da formação luso-hispano-tropical. Mas a catenoscopia vem, em terceiro lugar, a definir um modo de apreensão que hoje chamaríamos de "holonômico", pois cada "Figura" é "figuração do todo", que pode em si ser apreendido ou na ergódica de cada uma de suas "Figuras" de per si; daí uma ciência do "individual" e do "único" que desponta no considerar os "traços" do "paradigma tropical" – que alguns autores vinculam à variante antropológica dos estudos sobre o caráter nacional, na escola Cultura e Personalidade, mas que já se refere mais ao "paideuma" de Frobenius –, traços esses que são apresentados de modo imagético e arquetipal como "arquétipos epítetos" (no sentido de Durand, 1960). Esse é o quarto sentido do termo. Aqui, para nossos propósitos, daremos leves pinceladas nos terceiro e quarto sentidos.

No livro "Como e porque sou e não sou sociólogo" (Freyre, 1988), reconhecendo-se mais antropólogo formado por Boas e ensaísta formado pelo pensamento hispânico, G. Freyre configura as componentes do "ethos" brasileiro por meio de um triângulo cuja base é o "Trópico" e o corpo a "Interpenetração das etnias e das culturas" – aliás o lugar da dinâmica etno-cultural e sócio-cultural em si, além da organizacionalidade da "brasilidade"-, sendo o produto-cimento o "Patriarcado". Segue-se da densa análise, sobretudo de "Casa Grande e Senzala" (Freyre, 1989) com suas ramificações especiatórias em "Região e Nordeste" (Freyre, 1968, 1955), que o "ethos" brasileiro é o paradigma tropical cuja dinâmica é essa "interpenetração das etnias e das culturas", ao mesmo tempo definindo um "homem situado" e um "homem tríbio", uma "miscigenação" e uma "mestiçagem" como simultaneamente parâmetros de engendramento histórico e de engendramento estrutural do "ethos" de uma "cultura simbiótica" ou "euro-tropical". Tendo explorado (Freyre, 1971, 1962) a especificidade de uma cultura situada e desenvolvida nos trópicos, "luso-tropical" sem dúvida, mas fundamentalmente "hispano-tropical", como "cultura mista ou sincrética", portando a vocação de uma formação histórico-social prolongando-se nas pseudomorfoses pós-modernas, o autor vem a definir, herança tipicamente hispânica (Freyre, 1975a, 1975b), a especificidade da vivência do tempo nesse espaço-trópico. Trata-se do "tempo tríbio", e não somente passado ou presente ou futuro. Aqui o tempo social é sempre o encontro miscível dos três tempos num só, predominando, por vezes, um ou outro, mas nunca de modo "exclusivo" (Freyre, 1988; p. 31). E no livro "Além do apenas moderno" (Freyre, 1973) o autor explora as implicações – e sobretudo o modo de nos im-plicarmos, de sermos im-plicados – do tempo tríbio sobre o "ethos" brasileiro:

O homem não existirá jamais só no presente, sem perder os traços de homem pleno ou integral. Se ele se ligar só ao passado, torna-se arcaico; se só ao futuro, tornar-se-á utópico. A solução está no reconhecimento do tempo como de uma realidade dinamicamente 'tríbia', o que se torna um traço de concepção especificamente brasileira; e assim como o homem vive dentro do tempo, o próprio homem será um ser 'tríbio' (Freyre, 1973; p. XXVII).

A antropologia catenológica é uma "ciência anfíbia, mista e tríbia" (Freyre, 1988), e identifica os traços desse "ethos" "situado", "tropical", "tríbio" e "sincrético", lembrando-nos o tributo ao pensamento hispânico: "É como expressão cultural que se surpreende o sentido particularíssimo de interpretar o Tempo, criando um Tempo Hispânico diferente do europeu em geral, caracterizado pela identificação de estados de alma com a trajetória físico-temporal..." (Alcântara, in: Cândido, A. et al., 1962; p. 19), o que recobre literalmente a "paisagem mental" em Keyserling. Pois bem, são traços do "ethos" o caminho oriundo da con-fusão dos traços luso-espanhóis, negros e indígenas. Assim, luso-hispânicos: instabilidade; riqueza de aptidões sem coerência, não práticas; procriação exuberante; honra; franqueza; lealdade; individualidade pouco empreendedora; excesso de patriotismo; imprevidência; inteligência; fatalismo; imitabilidade; antagonismo pronunciado e cíclico introversão-extroversão; mobilidade; miscibilidade; adaptabilidade; exaltação sensual; purismo religioso; caráter nacional quente e abarcante; tristeza; espírito de aventura; preconceitos aristocráticos; continuidade social e amor ao trabalho árduo; valorização da pessoa e do drama de viver, das estórias; moralismo e ética; rudeza e ternura de palavras e de gestualidade; o trágico e o fado ... ademais de todos os traços identificados por Keyserling (é bom se lembrar que aqui os traços se apresentam como arquétipos-epítetos de Durand), ao que enfim G. Freyre fala de um "cristocentrismo mais que de um etnocentrismo". Negros: bondade excessiva; cálido misticismo e volúpia enriquecendo a sensibilidade e a imaginação do brasileiro; fratriarcalismo e lufadas do telúrico-materno. Ameríndios: exaltação sexual; animismo e culto à natureza; ensimesmado e desconfiança. Daí o "ethos" brasileiro: sadismo do grupo dominante; masoquismo dos dominados; animismo e naturalismo; crença no sobrenatural e religiosidade popular; erotismo; humor e "gozação"; gosto pela ostentação; personalismo; culto sentimental ou místico do Pai; "infantilidade" adolescente no abarcador materno; simpatia pela mestiçagem e pelo "bricolage"; individualismo e epistemofilia; complexo de refinamento.

Caberia, enfim, lembrar que seria de se explorar, por um lado, no próprio Gilberto Freyre (1951, 1989), o universo matriarcal, por outro lado fazendo-o em contraponto com as investigações, que correm ao mesmo tempo, do Conselheiro Meira Penna que, "Em berço esplêndido" e "Brasil na idade da razão" – apesar de a presença das matriarcas dos bandeirantes em textos de G. Freyre (1951, 1989) sobre os paulistas (devemos isso a um comentário pessoal de Gilbert Durand – ECA/USP – out/90) –, ao reinado do Patriarcado no "ethos" brasileiro gilbertiano "opõe" o "reino das Mães" no mesmo "ethos". Quando entre nós, Gilbert Durand mostrou a importância que pudera vislumbrar, no Brasil, do "mito da fecundidade" irisando para o "Reino das Mães", da mística do Feminino e do papel das mulheres nas obras de cultura, do telurismo nas esculturas de Brenand, da pululância vegetal e da viscerabilidade do sentir e expressar-se no "paradigma tropical", em suma, da "magicalidade somatofílica" (Paula Carvalho, 1997a) do "ethos", como exploramos também. Ademais, lembra Durand a imaginária da casa e do corpo sexualizado em Gilberto Freyre. Nós (1988), M. Augras (1990), dentre outros, vimos identificando as Figuras do Brasil como orgastério-matriz de uma nova socialidade exponenciando os traços de uma "unidade dual" (Paula Carvalho, 1997b) , precisamente no sentido da "urdimbre" explanada por A. Ortiz-Osés (1992).

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  • PAULA CARVALHO, J. C. Aporia e Gnose: a hermenêutica do símbolo do labirinto. Dissertação de Mestrado (Filosofia), SP, FFLCHUSP, 1976 (mimeogr.
  • ______. Energia, símbolo e magia: para uma antropologia do imaginário Tese de Doutoramento, Antropologia Social, SP, FFLCHUSP, 3. vol., 1985, (mimeogr.
  • FREYRE, G. De Tatá-Molambo au sein poubelle: la pratique transionnelle d'un groupe d'Umbanda à São Paulo. Revue Sociétés des Sciences Humaines et Sociales, n. 19, p. 29-33, 1988.
  • ______. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
  • ______. A corporeidade ima(r)ginal: estudos sobre o imaginário do corpo, 1997 (no prelo).
  • ______. Cultura e Sublimação na antropologia psicanalítica de Géza Róheim: vetores. In: ROCHA PITTA, D. (coord.). Imaginário, Sexo e Religião Recife, Massangana, 1997 (no prelo).
  • SAHLINS, M. Au coeur des sociétés: raison utilitaire et raison culturelle. Trad. S. Fainzang. Paris: Gallimard, 1980.
  • 1
    Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP.
  • 2
    Há excelente edição espanhola: Meditaciones suramericans. Trad. Ballesteros y de Torres, Madrid: Espasa-Calpe, 1933, mais acessível comercialmente. Sempre citaremos as páginas da edição Alemã e, a seguir, as da espanhola.
  • 3
    Para a noção de "vis imaginativa", cf. PAULA CARVALHO, J. C. de. Energia, símbolo e magia: para uma antropologia do imaginário. Tese de Doutoramento, Antropologia Social, SP, FFLCHUSP, 1985 (mimeo, 3 vol., cf. vol 1, c. III e IV, p. 324-411).
  • 4
    Sobre a "transdução", ver PAULA CARVALHO, J. C. de. A Culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação fática e ação cultural. Ensaio de Titulação (Antropologia das organizações). SP, FEUSP, 1991, cf. nota 197, p. 165 (no prelo com o título de Imaginário e culturanálise de grupos – EDUSP).
  • 5
    Os "espaços mentais" são entendidos tanto no sentido da topologia de Thom, quanto das investigações de G. Bateson e da Escola de Palo-Alto. Cf. Paula Carvalho, (1991, nota 176, p. 163), para todo o material referente; obra citada na nota 04.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Fev 1998
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