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A espetacularização da natureza no Pantanal

Nature spectacularized in the Pantanal

La nature comme spectacle dans le Pantanal

La naturaleza como espectáculo en el Pantanal

Resumo:

No Brasil, o Pantanal localiza-se entre os Estados de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, estendendo-se para a Bolívia e o Paraguai. Desde os anos de 1970, a região vivencia transformações sociais, culturais, econômicas e destas com a natureza, promovidas pela pecuária e pelo turismo. O turismo participa do processo de mercantilização do Pantanal, espetacularizando a natureza. O objetivo deste artigo é compreender a espetacularização da natureza como um dos elementos que compõem as novas relações entre as gentes pantaneiras e a natureza.

Palavras-chaves:
natureza; espetáculo; gente; transformação; Pantanal

Abstract:

In Brazil, the Pantanal is located Brazil between states of Mato Grosso do Sul and Mato Grosso, also Bolivia and Paraguay. Since the 1970s the region has been undergoing social, cultural, economic and nature transformations with the modernization of livestock and tourism. The tourism contributes to the process of marketization of the Pantanal, especially by the spectacularization of the nature. The aim of this paper is to understand nature as a spectacle the new relations between the Pantanal people and nature.

Keywords:
nature; spectacle; people; transformation; Pantanal

Résumé:

Au Brésil, le Pantanal est dans le Mato Grosso do Sul et du Mato Grosso États, ainsi que la Bolivie et le Paraguay. Depuis 1970, la région a passe par transformations social, culturel, économique et avec la nature, en raison de élevage de bétail et le tourisme. Le tourisme participe à la marchandisation du Pantanal, transformant la nature en spectacle. Les objectifs de l’article et comprendre la nature comme spectacle dans le nouvelles relations entre les gens du Pantanal et la nature.

Mots-clés:
nature; spectacle; personnes; transformation; Pantanal

Resumen:

En Brasil el Pantanal se ubica entre los Estados de Mato Grosso do Sul y Mato Grosso, además de Bolivia y Paraguay. Desde 1970 la región pasa por transformaciones sociales, culturales, económicas y de éstas con la naturaliza, debido de la ganadería y el turismo. El turismo participa en el proceso de mercantilización del Pantanal, espectacularizando la naturaliza. El objetivo de este artículo es comprender la espectacularidad de la naturaleza como elemento de las nuevas relaciones entre las gentes pantaneras y la naturaleza.

Palabras clave:
naturaliza; espectáculo; persona; transformaciones; Pantanal

1 INTRODUÇÃO

O Pantanal é a maior planície de inundação contínua do planeta, com uma área de mais de 138 mil quilômetros quadrados entre os Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Brasil, estendendo-se para a Bolívia e o Paraguai. Por reunir expressiva biodiversidade traduzida em valor ambiental, o Pantanal foi elevado à condição de Patrimônio Natural da Humanidade pela UNESCO.

Os registros de ocupação do Pantanal contam que, desde o século XVII, indígenas, portugueses, espanhóis, paraguaios, bandeirantes paulistas, bolivianos, entre outros, construíram e reconstruíram o território pantaneiro ao longo desses anos.

Desde a segunda metade do século XX, o Pantanal vivencia acentuadas transformações territoriais, ambientais, sociais e econômicas. O avanço da modernidade capitalista no mundo contemporâneo e a expansão do processo de globalização impuseram outros sujeitos e diferentes atividades econômicas ao espaço pantaneiro, imprimindo novas formas de relacionamento social e profissional entre as pessoas que moram no Pantanal e destas com a natureza, alterando sistematicamente o viver local.

Diferentes concepções sobre a natureza permeiam o pensamento da humanidade nas últimas épocas. Autores como Porto Gonçalves (1990)PORTO GONÇALVES, C. W. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990., Smith (1988)SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988., Harvey (2006)HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006., Thomas (2010)THOMAS, K. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., Santos (2009)SANTOS, M. Natureza do espaço. 4. ed., 5. reimpressão. São Paulo: EDUSP, 2009., Sousa Santos (2010), dentre outros, imprimem as noções de natureza conforme o momento histórico social vigente, condizentes com as formas de produção e de acumulação de capital determinadas pelo mercado globalizado.

Smith (1988, p. 28)SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. atribui à concepção de natureza complexidades e contradições:

A natureza é material e espiritual, ela é dada e feita, pura e imaculada; a natureza é ordem e desordem, sublime e secular, dominada e vitoriosa, ela é uma totalidade e uma série de partes, mulher e objeto, organismo e máquina. A natureza é um dom de Deus e é um produto de sua própria evolução; é uma história universal à parte, e é também o produto da história, acidental e planejada, é selvagem e jardim. Em nosso elenco de concepções de natureza, todos esses significados sobrevivem hoje, mas mesmo em sua complexidade eles são organizados em um dualismo essencial que domina a concepção de natureza. (SMITH, 1988SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988., p. 28).

No Pantanal, o dualismo em referência pelo autor fica perceptível no momento em que as transformações nas relações com a natureza se materializam no cotidiano pantaneiro. Por esse motivo, a dicotomia sociedade e natureza, calcada em teorias desenvolvidas ao longo do tempo, não representa, na contemporaneidade, a real condição de transformação na relação do ser humano com a natureza, porque:

A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente catalisador da progressiva fusão das ciências naturais e ciências sociais coloca a pessoa, enquanto autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento, mas, ao contrário das humanidades tradicionais, coloca o que hoje designamos por natureza no centro da pessoa. Não há natureza humana porque toda a natureza é humana. (SOUZA SANTOS, 2010SOUZA SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2010., p. 71).

As mudanças nas relações com a natureza intensificaram-se, sobretudo, com a emergência do capitalismo industrial, pois, “Mais que qualquer outro acontecimento conhecido, a emergência do capitalismo industrial é responsável pelo surgimento das concepções e visões contemporâneas sobre a natureza” (SMITH, 1988SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988., p. 27).

Para garantir a manutenção no ordenamento do capital, a sociedade e a natureza se modificam e passam por um processo de espetacularização, assim, “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos” (DEBORD, 1997DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p. 08). Nesse momento, a compreensão de natureza, pela comunidade local, altera-se.

No Pantanal, principalmente a partir da década de 1970, a modernização da pecuária e o advento do turismo conduziram ao reordenamento da produção e, consequentemente, da comunidade pantaneira.

Diferentes sujeitos e elementos podem ser elencados como condutores na construção das novas relações com a natureza. Dentre as pessoas envolvidas na reorganização social do Pantanal estão os empresários do turismo e da pecuária modernizada e os/as trabalhadores/as tanto do turismo quanto da pecuária.

Os ditos novos elementos, detectados no decorrer desta pesquisa, são: a urbanização do campo, a espetacularização da natureza, o retorno dos jovens ao campo, o uso de medicamentos industrializados, as contradições entre o conhecimento popular e a tecnologia, além de outros. Porém, como referencial para este artigo, optou-se pela análise da transformação dos animais silvestres (animais nativos, como, por exemplo, a onça e a capivara) em espetáculo da natureza mercantilizada para a atividade turística.

A metodologia de aplicação da pesquisa, referenciada na observação, no levantamento de dados, em entrevistas semiestruturadas realizadas com os denominados novos sujeitos, interpretadas à luz da Geografia, direcionou o desenvolvimento das investigações, cujo principal objetivo é compreender a espetacularização da natureza como um dos elementos que compõem as novas relações, ora em construção, entre as gentes2 2 A expressão “gentes pantaneiras”, no plural, faz referência às mulheres, aos homens e às crianças que vivem e produzem no Pantanal, independente da origem. pantaneiras e a natureza.

2 A ESPETACULARIZAÇÃO NAS NOVAS RELAÇÕES COM A NATUREZA

No final dos anos de 1970, iniciou no Pantanal um período de grandes mudanças que culminaram, nos primeiros anos do século XXI, com a ascensão do turismo e a modernização da pecuária. Esse processo impôs ao Pantanal novas relações socioeconômicas, novos atores e, consequentemente, novos modelos de relacionamento com a natureza.

Os primeiros registros de ocupação e produção no Pantanal pelo mundo moderno contam aproximadamente duzentos anos. Historicamente, os povos indígenas, primeiros habitantes do Pantanal, caçavam animais silvestres como meio de subsistência, já os fazendeiros os abatiam, sobretudo as onças, para proteger o rebanho dos ataques desse felino, em um processo de domínio da natureza.

No período da colonização do Pantanal, diferentes povos chegaram à região, demarcaram as terras, organizaram as fazendas, implantaram a pecuária e adaptaram várias técnicas para manejo, produção e comércio da carne, dentre elas a de preparação do charque (carne conservada com utilização de sal) para armazenamento e transporte da carne bovina abatida nas fazendas pantaneiras.

No século passado, com a instalação da rede de energia elétrica, em partes das terras pantaneiras, e a aquisição de geladeiras e freezers domésticos pelos fazendeiros, a produção do rebanho começou ser mantida congelada.

Com o uso do charque e, posteriormente, da carne congelada na maioria das fazendas do Pantanal, as gentes pantaneiras começaram a se alimentar, quase exclusivamente, da carne de gado, deixando de consumir a carne de caça para subsistência.

Nos dias atuais, normalmente, as fazendas abatem quinzenalmente uma rês para distribuir gratuitamente ou vender aos funcionários, conforme acordado em contrato de trabalho. Com isso, a carne bovina continua fazendo parte da dieta pantaneira diariamente.

Esporadicamente, como forma de lazer nos momentos de encontros, os homens pantaneiros caçam algum animal, preferencialmente o porco monteiro, para fazer um churrasco, como forma de descontração e diferencial culinário. Um proprietário de terras entrevistado relata (as falas dos entrevistados receberam transcrição literal):

[...] peão come carne todo dia, não precisa tá caçando. Às vezes tem um porco do mato que ele caça, ele vai lá, laça o porquinho pro almoço. Ele fala: ‘Hoje é domingo vô matá um capado, um porco do mato’. Vai lá, mata o porco, tira o óleo, tira a banha, frita.

Nesse sentido, pode-se entender a caça como um ato social secular da gente pantaneira. Para essas pessoas não se trata de uma agressão ou um crime ao ambiente, mas uma forma de se relacionar com a natureza construída ao longo de, pelo menos, dois séculos.

É importante esclarecer a generalidade em referência no texto; casos isolados da prática criminosa de abate de animais silvestres no Pantanal, como, por exemplo, o da caça a onça pintada, noticiado em rede nacional no ano de 2011 e, até o momento, sem ação efetiva de punição aos responsáveis, não são focos desta análise.

Nas fazendas de difícil acesso, principalmente nos períodos de cheia, a população chega a ficar isolada durante meses, nesse caso, o abate pode ser considerado um meio de sobrevivência. Segundo um administrador de fazendas entrevistado, “Prá quem vive na fazenda, pro peão, prá ele é válido matá prá comê ou se defendê”.

A captura de animais silvestres vai além da necessidade de, algumas vezes, subsistência; o extermínio, sobretudo da onça, para salvaguardar o rebanho, como se sabe, ainda persiste em algumas propriedades a despeito da negação por parte dos proprietários.

O ataque dos felinos ao rebanho acontece, também, pela forma de manejo do gado que os mantém agregados, deixando os bezerros vulneráveis aos ataques da predadora, por isso a onça é considerada uma ameaça à produção bovina e à criação de animais domésticos. Ao sentirem os prejuízos econômicos com a perda da mercadoria - o gado - os patrões determinavam o abate do animal, como forma de proteção e de dominação da natureza (RIBEIRO, 2015RIBEIRO, M. A. Entre cheias e vazantes: a produção de geografias no Pantanal. Campo Grande: Ed. UFMS, 2015., p. 87).

Na tentativa de amenizar os prejuízos dos proprietários de terras e proteger tais animais, desde o final do século XX, Organizações Não Governamentais (ONGs), como, por exemplo, a Pró-Carnívoros, financiam projetos de pesquisa com objetivo de conhecer o comportamento dos felinos e assim estabelecer práticas de convivência entre fazendeiros e animais.

Para um ex-peão entrevistado, antigo caçador de onça e atualmente monitor ambiental, o abate dos felinos era determinado pelos patrões: “Antes eu caçava, [...] eu era contratado, obedecia, trabalhava em fazenda. No campo a gente via a onça e a gente fazia aquilo. Era uma coisa normal eu até gostava de fazê”. O empregado recebia uma ordem superior, uma missão a ser cumprida, não cabia qualquer questionamento, especialmente porque se tratava da rotina no trabalho do campo.

Qualquer processo de transformação é prenhe de contradições; no caso em estudo, pode-se citar a alteração na compreensão de que ora um animal é hostil e deve ser executado, ora se converte em espetáculo da natureza, como, por exemplo a onça pintada que deixou de representar uma ameaça e ascendeu ao status de atrativo turístico - um espetáculo, gerador de emprego e de renda. Nesse momento, “A natureza é, então, transformada em espetáculo [...]” (LUCHIARI, 1999LUCHIARI, M. T. D. P. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e organização em Ubatuba-SP. 1999. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, 1999., p. 132).

As novas regras de convivência com a natureza também geram conflitos entre a comunidade local. Em entrevista, um peão demonstra preocupação sobre o direcionamento ambiental dos proprietários de pousadas e fazendas no Pantanal, o qual sobrepõe o animal ao ser humano:

Hoje cê não pode matá uma cobra. Cê matá uma cobra, um tatu, uma onça, se ela pula em você, cê vai preso, pega uns quantos ano de cadeia. Mais antes cê matá uma pessoa do que uma onça [...].

A simplicidade do ato de cortar um ramo de planta, de abater um animal silvestre para consumo ou como defesa da própria vida, tornou-se um novo modelo de relação com a natureza para as gentes pantaneiras. Porém, nem sempre compreendido pela comunidade que vive e produz no Pantanal, conforme exposto na fala um pantaneiro nascido no Pantanal do Nabileque:

Já mudou muita coisa por aqui. Antigamente a turma fumava, jogava uma carteira de cigarro aí [mostra o mato]. Hoje não, hoje cê não pode jogá um papel no chão. Faz fogo e tem que apagá. Antigamente você punha um fogo no pasto deixava queimá. Hoje não pode queimá um campo, mas precisava. Antigamente eles fazia queima, finado meu pai, chegava a época da queima, agosto/setembro, eles fazia aquela queimada no pasto prá tropa, era o vermífugo da tropa, dos animal, do cavalo prá engordá. Hoje o vermífugo é tudo comprado, cê vai lá compra aquela pasta prá apricá, dá Neguvon de guela abaixo. Antigamente não. Depois de trinta dia da queimada, cê ia lá, a tropa tava roliça de gorda. Não era destruí a natureza.

Nas entrelinhas do trecho da entrevista, fica perceptível a dificuldade de entendimento e assimilação das novas regras de convivência tanto com a natureza, quanto social.

A reorganização econômica na região a partir da década de 1970, principalmente com a ascensão da atividade turística, transformou o Pantanal em atrativo para o turismo e, consequentemente, para os interessados em trabalhar com essa atividade.

Turistas, trabalhadores e investidores de diferentes regiões do país e do mundo, adentraram terras pantaneiras com diferentes objetivos, culturas e formas de relacionar-se com a natureza e iniciaram um processo de reestruturação nas formas de viver social e ambiental no Pantanal. Os moradores locais atribuem as alterações ao turismo, como afirma um dos entrevistados: “Com o turismo mudou barbaridade. Tem certos lugar que a gente passa e não pode cortá um raminho de pranta”.

O turismo é uma atividade econômica que promove a espetacularização da natureza com o objetivo de obter lucro. Os empresários que trabalham com a pecuária e o turismo no mesmo espaço vislumbram os animais como um atrativo gerador de renda. Com isso, a perda de uma rês em um universo de milhares de cabeça de gado é compensada pelo retorno financeiro promovido do turismo, em formato de diárias nas pousadas ou gorjetas para os/as trabalhadores/as, conforme relato:

A onça começava matá dois, três bezerro por dia; um dia eu liguei pro gerente e falei: “A onça tá batendo”. Ele falou prá mim: “Não mata. O patrão falou que ‘caba os dente da onça, mas num caba meus boi que eu tenho no pasto, deixa que come. Não é prá matá, deixa cumê’. Isso num tá certo, mas pro proprietário que tem dinheiro, tá.

O ato de não abater um animal, por determinação do patrão, caracteriza-se como uma forma de dominação da natureza. “[...] A Natureza, desde que conhecida, será dominada, gerida e utilizada a serviço da vida humana” (THOMAZ, 2010, p. 35), ou seja, não matar o animal também é um mecanismo de controle e superioridade perante a natureza. Assim, a onça, espetacularizada, é uma mercadoria para o empresário do turismo.

Diante disso, progressivamente, a compreensão da natureza pelas gentes pantaneiras está mudando, refletindo no cotidiano e no trabalho. Um entrevistado declara:

Quando eu comecei trabalhá de guia, eu comecei a pará de caçá e comecei a mostrá os bicho, a natureza. Eu num sabia preservar, [...]. A gente num sabia o que era preservação. Quando eu comecei a trabalhá de guia, comecei a mostrá pro turista e aprendí a preservá a natureza. Cê vê uma onça, cê vê outros bicho, cê começa mostrá e é legal.

A transcrição acima evidencia o início do processo de reorganização social (mudança de trabalho), de transformação na relação com a natureza e de pertencimento com o local.

A produção no espaço pantaneiro, ditada pela totalidade do mundo, mercantilizou a natureza. Os rios, a flora e a fauna passaram a ter valor econômico, representa produtividade, lucro, aumento de receita. Para um guia de turismo os animais pantaneiros podem garantir retorno financeiro:

Vamo usá o bicho com turismo, prá tirá foto, é muito mais vantajoso, mais rendoso. Você vai ganhá dinheiro tirando foto daquele bicho. Daí cê compra o alimento. Prá quê matá ele? Eu penso assim, num sei se tô certo, eu penso assim.

O instinto de proteção refletido na fala do entrevistado se concretiza no lucro, na recompensa vinda do turista satisfeito por ter avistado um animal, “O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem” (DEBORD, 1997DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., p. 25).

Na atividade turística, o profissional com experiência no viver pantaneiro tem um valor agregado em sobreposição aos trabalhadores de outras regiões. Para o monitor ambiental entrevistado, a primazia do saber/conhecer local o valoriza profissionalmente: “Eu tenho umas trinta foto de onça. Eu sei onde é o ninho dela. A gente vai, encosta o barco no barranco do rio e a onça tá lá, os turista adora, tira foto, filma...”. O pertencer local exerce uma espécie de credenciamento empírico aos/às profissionais do turismo, sobretudo, no momento de disputar uma vaga de emprego em um empreendimento turístico.

Para garantir a atração turística e atender a demanda do turismo, as pousadas pantaneiras domesticam os animais silvestres, atribuem nomes a eles e, eventualmente, oferecem-lhes alimentos humanos, a proprietária de uma pousada garante: “A arara chama Dona Nair, come junto com a gente, vive comendo macarrão, comendo carne gorda, ela gosta disso”.

Os nomes atribuídos aos animais são de celebridades do mundo político, artístico e do esporte como, por exemplo, o casal de catetos Marisa e Lula são referências ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e à ex-primeira dama Marisa Leticia Lula da Silva; os filhotes são Chitãozinho e Xororó em homenagem a uma dupla de cantores sertanejos: o jacaré Ronaldinho recebeu o nome do jogador de futebol Ronaldo Nazário, conforme Figura 1.

Figura 1
Placa na BR 262 anuncia as atrações locais

Os hábitos urbanos estão permeando cada elemento na nova relação com a natureza. Há vinte ou trinta anos, os animais domésticos recebiam nomes singelos, o gato era bichano; a vaca, mimosa; a égua, dengosa; o cavalo, valente; a cadela, princesa; nos dias atuais, a referência nominal é de personalidades vistas diariamente na programação televisiva.

Tanto para o/a pantaneiro/a quanto para o turista, a relação de proximidade com a natureza pode reverter em geração de renda, na forma de gorjeta ou na indicação do lugar para futuros turistas.

A espetacularização da natureza é compreendida pelas pessoas que vivem no Pantanal, como um cuidado especial com os animais abandonados ou perdidos das mães em fuga da mata queimando, e não como um processo de domesticação ou amansamento com objetivo de retorno financeiro. Uma empresária do turismo relata sobre um cervo abandonado: “O Bambi é um cervo criado solto. Na época da queimada, a mãe dele morreu e ele tava todo queimado, nós conseguimos salvá, e agora ele fica aqui, mas fica porque qué”.

Porém domesticar animais silvestres é crime ambiental, conforme o Art. 29 da Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm>. Acesso em: 12 ago. 2017.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
, com pena de detenção de seis meses a um ano. Na citação abaixo, é possível observar uma contradição entre o relato do proprietário de uma pousada no Pantanal e o comentário da representante do Centro de Recuperação de Animais Silvestres (CRAS):

Os turistas tiram fotos com a arara Dona Nair. [...] Era um casalzinho de cateto, a Marisa e o Lula, a Marisa teve quatro catetinho, vive solta, é uma atração, ela tem o Faísca e Fumaça e o Chitãozinho e Xororó [...]. Tem o tuiuiú Pacheco ele é bem manso. Esses animais, a gente vai procurando trazê e tratá bem, eles acabam ficando, mas são todos soltos, não são domesticados [...]. Nós fomos no CRAS pedí prá fazê soltura de passarinho na pousada. A bióloga falou: ‘Não. Infelizmente nós não vamos soltá porque vocês têm o hábito de domesticá os animais e não é isso que nós queremos.

Logo, mesmo sem ter consciência da ação, o empresário do turismo está cometendo um crime ambiental ao espetacularizar os animais para apreciação dos turistas, conforme Figura 2.

Figura 2
Monitores ambientais seguram o jacaré para apreciação dos turistas

O discurso do cuidado e da preservação da fauna e da flora pantaneira não é atribuído à possibilidade de extinção ou à preocupação ambiental, mas ocorre, principalmente, porque os animais são considerados um atrativo turístico, ou seja, fonte de renda. Segundo Porto Gonçalves (1990)PORTO GONÇALVES, C. W. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990. “[...] nem sempre as pessoas que se mobilizam em torno dessas questões (ecológicas) o fazem enquanto movimento ecológico [...]”. O autor afirma que a mobilização ou preocupação das pessoas é para

[...] garantir o seu tradicional modo de viver e de produzir e não se mobilizando enquanto movimento ecológico, [...] quer dizer, a ecologia tem interessado aos mais diferentes segmentos da sociedade, apesar de nem todos partirem da mesma motivação política e ideológica. (PORTO GONÇALVES, 1990PORTO GONÇALVES, C. W. Os (des)caminhos do meio ambiente. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990., p. 13).

O reordenamento na produção e no espaço pantaneiro transformou os animais, antes considerados hostis ou comuns, em espetáculo. A ascensão de categoria das espécies demanda proteção, pois a onça, o tuiuiú, a arara etc., agora são instrumentos de trabalho, atrativos turísticos promotores da circulação de dinheiro, além de incrementar os sites de divulgação das pousadas no Pantanal. Segundo Debord (1997)DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.:

O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade social. Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha feita na produção, e no seu corolário - o consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação principal do tempo vivido fora da produção moderna. (DEBORD, 2003, p. 9-10).

A Figura 3 mostra o site de uma pousada no Pantanal com a onça pintada e a arara azul em primeiro plano, com o objetivo de chamar a atenção do turista para o atrativo faunístico.

Figura 3
Site de divulgação de uma pousada no Pantanal

Nesse sentido, no momento histórico no qual o Pantanal está inserido, pode-se garantir que: “No processo de trabalho, os seres humanos tratam os materiais naturais como objetos exteriores do trabalho a serem transformados em mercadorias” (SMITH, 1998SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988., p. 32).

No Pantanal, as mercadorias estão materializadas nos elementos da natureza, considerados como patrimônio material e imaterial pantaneiro, representados pelos rios da Bacia do Alto Paraguai, pela vegetação exuberante, pelos os animais exóticos e pelas gentes pantaneiras.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As mudanças de compreensão da natureza assumem um papel relevante no atual formato de produção, inserindo a comunidade pantaneira na ordem mundial por intermédio do trabalho, porque “O trabalho é a expressão da vida humana e, através dele, se altera a relação do homem com a natureza; por isso, mediante o trabalho, o homem transforma-se a si mesmo” (GASPAR, 2003GASPAR, R. C. As fronteiras do possível: trabalho, lazer e civilização. São Paulo: Germinal, 2003., p. 39).

As gentes pantaneiras, prioritariamente envolvidas com a atividade turística, espetacularizam a natureza para participar do ciclo produtivo global, identificam a relevância dos fatos como modelo implantado pela totalidade do mundo e reorganizam social, cultural e economicamente o território.

O trabalho de investigação possibilitou a compreensão da complexidade que envolve a relação sociedade e natureza no mundo capitalista, em que os caminhos para acumulação de riqueza conduzem a transformações sociais, ambientais e de visões de mundo, utilizando todos os recursos da natureza para, de alguma forma, transformá-lo em mercadoria.

No caso do Pantanal, as pessoas envolvidas na dinâmica local, espetacularizam os elementos da fauna e da flora falaciosamente, em nome da geração de emprego e da melhor distribuição de renda local, independente das consequências ambientais ou sociais advindas desse procedimento.

Nesse universo, homens e mulheres se veem obrigados, sob pena de ficarem de fora da engrenagem econômica vigente, a ter outros olhares e comportamentos perante a natureza, independente da real compreensão sobre o tema a eles imposto.

  • 2
    A expressão “gentes pantaneiras”, no plural, faz referência às mulheres, aos homens e às crianças que vivem e produzem no Pantanal, independente da origem.

REFERÊNCIAS

  • BRASIL. Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm>. Acesso em: 12 ago. 2017.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9605.htm
  • DEBORD, G. A sociedade do espetáculo Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
  • GASPAR, R. C. As fronteiras do possível: trabalho, lazer e civilização. São Paulo: Germinal, 2003.
  • HARVEY, D. A produção capitalista do espaço 2. ed. São Paulo: Annablume, 2006.
  • LUCHIARI, M. T. D. P. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e organização em Ubatuba-SP. 1999. Tese (Doutorado em Geografia) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP, 1999.
  • PORTO GONÇALVES, C. W. Os (des)caminhos do meio ambiente 2. ed. São Paulo: Contexto, 1990.
  • RIBEIRO, M. A. Entre cheias e vazantes: a produção de geografias no Pantanal. Campo Grande: Ed. UFMS, 2015.
  • SANTOS, M. Natureza do espaço 4. ed., 5. reimpressão. São Paulo: EDUSP, 2009.
  • SMITH, N. Desenvolvimento desigual Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
  • SOUZA SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências 7. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
  • THOMAS, K. O homem e o mundo natural São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    22 Set 2017
  • Revisado
    20 Dez 2017
  • Aceito
    26 Jan 2018
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