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Controle da qualidade no laboratório clínico: alinhando melhoria de processos, confiabilidade e segurança do paciente

Quality control in clinical laboratory: aligning process improvement, reliability and patient safety

Resumos

INTRODUÇÃO: Inúmeros questionamentos têm sido levantados com relação ao nível da qualidade dos serviços de saúde, principalmente a partir do início desta década. Uma abordagem que tem sido utilizada como base teórica para essa questão é a de organização da alta confiabilidade (HRO). Neste trabalho, propomos nova abordagem para o controle da qualidade analítica (CQA), com base nos princípios da teoria das HROs e com foco na ampliação do nível de segurança para os clientes no laboratório clínico. OBJETIVOS: Propor uma abordagem complementar para o sistema de CQA, alinhado à teoria HRO, com foco na ampliação do nível de segurança do paciente. MATERIAIS E MÉTODOS: Visando aprimorar a abordagem tradicional para o CQA, viabilizando a análise de estabilidade do sistema analítico com visão de longo prazo, propomos um modelo embasado em avaliação de erro aleatório e sistemático, utilizando cartas de controle avançadas. Para validar o modelo, realizamos simulações, utilizando dados reais obtidos da rotina (glicose, Vitros FS 5.1, OCD). RESULTADOS: O ensaio em estudo foi avaliado em termos de desempenho de longo prazo, apresentando desempenho adequado (4,1 sigma) para seu uso diagnóstico. DISCUSSÃO: O modelo proposto oferece alternativa multiferramenta, com base no conhecimento já amplamente estabelecido de controle estatístico de processos, visando à utilização no controle de estabilidade de longo prazo de métodos laboratoriais. CONCLUSÃO: A abordagem proposta como complementar ao sistema de controle de qualidade (CQ) tradicionalmente utilizado, envolvendo a aplicação sequencial e associada de diferentes ferramentas estatísticas, mostrou-se válida e útil para uma avaliação efetiva do desempenho do método e da estabilidade desse desempenho ao longo do tempo.

Processos; Segurança; Qualidade; Riscos; Organização da alta confiabilidade; Controle


INTRODUCTION: Countless questions have been raised concerning quality of health services, mainly since the beginning of this decade. One approach that has been widely pursued as a theoretical basis for this issue is high reliability organization (HRO). In this paper we propose a new approach to analytical quality control (AQC), based on HRO principles and focused on patient safety improvement. OBJECTIVES: To propose a new approach to AQC system, aligned with HRO theory and focused on patient safety improvement. MATERIALS AND METHODS: In order to optimize the traditional AQC approach and make feasible the long term assessment of system stability, we propose a model based on evaluation of random and systematic error by means of advanced control charts. We used real data obtained from the routine to validate the simulated model (glucose, Vitros FS 5.1, OCD). RESULTS: The studied assay was evaluated in terms of long term performance and showed an adequate performance (4.1 sigma) for its diagnostic use. DISCUSSION: The proposed model suggests an alternative tool based on expertise already widely applied in statistical process control in order to control long-term stability of laboratory methods. CONCLUSION: The new proposed approach, which is a complement to the traditional quality control system and involves the sequential and associated use of different statistical tools, proved to be a valid and useful model for effective performance evaluation and its ongoing performance stability.

Process; Safety; Quality; Risk; High reliability organization; Control


ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE

Controle da qualidade no laboratório clínico: alinhando melhoria de processos, confiabilidade e segurança do paciente

Quality control in clinical laboratory: aligning process improvement, reliability and patient safety

Fernando de Almeida Berlitz

Gestor de Sustentabilidade do Laboratório Weinmann (Regional RS - Grupo Fleury); MBA em Gestão Empresarial e Marketing; Black Belt em Lean Seis Sigma

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Fernando de Almeida Berlitz Rua Ramiro Barcelos, 1.056/404 - Moinhos de Vento CEP: 90035-001 - Porto Alegre-RS

RESUMO

INTRODUÇÃO: Inúmeros questionamentos têm sido levantados com relação ao nível da qualidade dos serviços de saúde, principalmente a partir do início desta década. Uma abordagem que tem sido utilizada como base teórica para essa questão é a de organização da alta confiabilidade (HRO). Neste trabalho, propomos nova abordagem para o controle da qualidade analítica (CQA), com base nos princípios da teoria das HROs e com foco na ampliação do nível de segurança para os clientes no laboratório clínico.

OBJETIVOS: Propor uma abordagem complementar para o sistema de CQA, alinhado à teoria HRO, com foco na ampliação do nível de segurança do paciente.

MATERIAIS E MÉTODOS: Visando aprimorar a abordagem tradicional para o CQA, viabilizando a análise de estabilidade do sistema analítico com visão de longo prazo, propomos um modelo embasado em avaliação de erro aleatório e sistemático, utilizando cartas de controle avançadas. Para validar o modelo, realizamos simulações, utilizando dados reais obtidos da rotina (glicose, Vitros FS 5.1, OCD).

RESULTADOS: O ensaio em estudo foi avaliado em termos de desempenho de longo prazo, apresentando desempenho adequado (4,1 sigma) para seu uso diagnóstico.

DISCUSSÃO: O modelo proposto oferece alternativa multiferramenta, com base no conhecimento já amplamente estabelecido de controle estatístico de processos, visando à utilização no controle de estabilidade de longo prazo de métodos laboratoriais.

CONCLUSÃO: A abordagem proposta como complementar ao sistema de controle de qualidade (CQ) tradicionalmente utilizado, envolvendo a aplicação sequencial e associada de diferentes ferramentas estatísticas, mostrou-se válida e útil para uma avaliação efetiva do desempenho do método e da estabilidade desse desempenho ao longo do tempo.

Unitermos: Processos. Segurança. Qualidade. Riscos. Organização da alta confiabilidade. Controle.

ABSTRACT

INTRODUCTION: Countless questions have been raised concerning quality of health services, mainly since the beginning of this decade. One approach that has been widely pursued as a theoretical basis for this issue is high reliability organization (HRO). In this paper we propose a new approach to analytical quality control (AQC), based on HRO principles and focused on patient safety improvement.

OBJECTIVES: To propose a new approach to AQC system, aligned with HRO theory and focused on patient safety improvement.

MATERIALS AND METHODS: In order to optimize the traditional AQC approach and make feasible the long term assessment of system stability, we propose a model based on evaluation of random and systematic error by means of advanced control charts. We used real data obtained from the routine to validate the simulated model (glucose, Vitros FS 5.1, OCD).

RESULTS: The studied assay was evaluated in terms of long term performance and showed an adequate performance (4.1 sigma) for its diagnostic use.

DISCUSSION: The proposed model suggests an alternative tool based on expertise already widely applied in statistical process control in order to control long-term stability of laboratory methods.

CONCLUSION: The new proposed approach, which is a complement to the traditional quality control system and involves the sequential and associated use of different statistical tools, proved to be a valid and useful model for effective performance evaluation and its ongoing performance stability.

Key words: Process. Safety. Quality. Risk. High reliability organization. Control.

Introdução

Inúmeros questionamentos têm sido feitos com relação ao nível de qualidade dos serviços de saúde, principalmente a partir do início desta década. Esses questionamentos têm sua origem na comparação entre a evolução tecnológica e do conhecimento na área médica e a evolução da qualidade dos serviços prestados aos pacientes(14). Esse falta de correlação tem sido evidenciada também quando se compara o mesmo aspecto em outras áreas, como na indústria aeronáutica(7), frequentemente utilizada como benchmarking de nível de desempenho. A partir dessas manifestações, questionando o desempenho da área de saúde, inúmeras iniciativas foram implantadas com a intenção de melhorar os processos nos serviços de saúde. Muitas dessas iniciativas utilizaram como apoio metodologias e ferramentas já amplamente empregadas em outros negócios, como Gestão da Qualidade Total(4), Pensamento Enxuto(19), Seis Sigma(6), Redesenho de Processos, Normas ISO ou Prêmios da Qualidade. Outras iniciativas customizadas para a área médica foram implantadas, como as certificações ou acreditações específicas para os serviços hospitalares (p. ex., Joint Comission on Accreditation of Hospitals [JCAHO]) ou de medicina diagnóstica (p. ex., Programa de Acreditação de Laboratórios Clínicos [PALC]). Todos esses esforços desenvolvidos para melhorar o nível da qualidade dos serviços em saúde têm como objetivo primordial ampliar o nível de segurança do paciente. Entretanto, o nível de qualidade dos serviços prestados e, consequentemente, a garantia de segurança ofertada ao paciente, não têm sido ampliadas em patamares proporcionais aos esforços e recursos empregados. Um relatório recentemente publicado pela Agency for Healthcare Research and Quality, dos EUA, indica que a segurança do paciente tem sido melhorada anualmente em taxa de apenas 1% nos serviços de saúde(1). Várias hipóteses têm sido formuladas para explicar essa questão. Algumas dizem respeito às ferramentas e metodologias utilizadas nas iniciativas de melhoria dos processos da área médica. Existem inúmeros questionamentos quanto à adequação de metodologias formatadas inicialmente para a utilização em processos industriais quando utilizadas para melhoria dos processos da área de saúde. Outras hipóteses questionam a profundidade com que as melhorias de processos na área médica têm sido implantadas, tanto em razão de resistência à mudança por parte dos profissionais da área quanto motivadas pela falta de recursos disponíveis para investimentos por parte de empresas e governos. Alguns pesquisadores apontam ainda aspectos culturais como essenciais para que uma organização de saúde possa efetivamente evoluir no sentido de ampliar os níveis de qualidade de seus processos, garantindo, de forma efetiva, a segurança de seus pacientes. Na verdade, de alguma forma, todas essas questões estão envolvidas e são corresponsáveis por eficácia e efetividade baixas das iniciativas de melhoria de qualidade nos serviços de saúde. Independente de qual seja a iniciativa de melhoria da qualidade a ser implantada em uma organização de saúde ou em qual metodologia esta tenha base, o essencial é que o objetivo primordial não seja esquecido ou colocado em segundo plano. O objetivo principal de qualquer melhoria de processos na área da saúde é ampliar a segurança dos serviços prestados ao paciente. Outros ganhos, financeiros ou em competitividade no mercado, mesmo que indispensáveis à sustentação do negócio (retorno do investimento realizado), devem ser entendidos como consequência das ações focadas na melhoria da segurança do paciente. Oferecer níveis elevados de segurança aos pacientes significa melhorar continuamente os processos que impactam nesses clientes, garantindo estabilidade e previsibilidade a esses processos e antecipando-se a possíveis falhas, sempre que possível. Isso exige extremo conhecimento e controle de todos os processos críticos de uma organização de saúde; exige conhecer, principalmente, a complexidade dos processos e os fatores de riscos envolvidos.

Uma abordagem muito utilizada como base teórica para essa questão é a de organização da alta confiabilidade (high reliability organization [HRO])(8). A conceituação original de HRO foi baseada na ideia de que uma organização de alta confiabilidade é aquela capaz de evitar catástrofes em um ambiente em que acidentes sejam previsíveis devido a fatores de riscos e complexidade do negócio. O conceito teórico refere-se a catástrofes por ter sido inicialmente estudado e formulado em ambientes e situações de alto risco, como usinas nucleares, atentados terroristas, operações militares, plantas petroquímicas, acidentes de aviação e navais, terremotos etc. Em termos práticos, uma organização de alta confiabilidade é aquela que entende a complexidade de seu negócio e seus processos, compreende seus riscos, busca alternativas para constantemente controlar seus processos, melhorando-os continuamente, a fim de minimizar os riscos envolvidos. Mais do que uma teoria, HRO é uma abordagem que implica em mudança cultural, exigindo mudança de postura de todos os profissionais da organização, focada em intenso conhecimento de suas atividades e inter-relações (entender toda a complexidade de seu negócio), proatividade (antecipar efeitos indesejados com base nos riscos previamente identificados), planejamento (projetar cada processo com base na segurança do paciente) e disciplina (cumprimento efetivo de todos os padrões preestabelecidos). Os conceitos relativos à teoria das HROs tiveram raiz no início da década de 1970, mais especificamente a partir da publicação (em 1971) do livro Essence of decision: explaining the Cuban missile crisis, de Graham Allison, cientista político norte-americano. A partir daí, a teoria da HRO evoluiu até a construção de princípios teóricos que poderiam ser aplicados, em tese, por qualquer organização. O conceito de HRO é centrado na ideia de confiabilidade, que pode ser entendida como uma propriedade que depende da ausência de indesejada, imprevista e inexplicável variação de desempenho. Analisando esse conceito, vemos que HRO, em seu objetivo, não difere consistentemente de várias abordagens já utilizadas para orientar as melhorias de processos na área da saúde, que, em sua maioria, elegem a busca pelo erro zero como seu propósito final e primordial. Entretanto, a HRO deve ser interpretada como um padrão de comportamento, uma filosofia a ser compreendida e convertida em ações práticas no dia a dia da organização(15). A filosofia HRO é centrada na gestão de riscos e fundamentada em cinco pilares que traduzem padrões comportamentais seguidos por uma empresa de alta confiabilidade(8):

• preocupação com falhas;

• relutância à simplificação de interpretações;

• sensibilidade a operações;

• comprometimento com a resiliência;

• deferência com a expertise.

Analisando esses princípios, podemos verificar seu alinhamento com os da gestão da qualidade, cujos sistemas são formatados para:

• detectar possíveis falhas, reais ou potenciais (não conformidades);

• agir corretivamente sobre falhas e, quando possível, preventivamente antes que elas ocorram e provoquem impactos indesejados para os clientes;

• investigar a causa raiz das falhas e implantar ações que eliminem definitivamente essas falhas dos processos, evitando sua recorrência.

De forma genérica, para gerenciar a qualidade dos processos executados em uma organização e atingir alta confiabilidade nessa execução, devemos:

• ter preocupação com falhas, utilizando sistemas de detecção que sejam sensíveis às operações executadas e que visam detectar possíveis desvios, sempre que existirem;

• investigar, com adequada profundidade, as causas de falhas potenciais ou reais nos processos, definindo e removendo a causa raiz desse desvio de desempenho e evitando simplificar explicações para a ocorrência dessas falhas;

• procurar nos antecipar à ocorrência das falhas (mais do que tratá-las), mitigando riscos com o objetivo de assegurar adequado nível de segurança aos clientes.

A abordagem HRO está extremamente alinhada à gestão da qualidade dos processos de uma organização. Seus princípios, em teoria, podem ser aplicados nas iniciativas de melhoria de processos e na gestão de desempenho desses processos. Umas das aplicações práticas desses conceitos pode ser o processo de controle da qualidade analítica (CQA) no laboratório clínico. Esse sistema de controle visa implantar um sistema de detecção de erros nos métodos analíticos em utilização no laboratório. Seu objetivo é detectar possíveis desvios de desempenho desses métodos, permitindo agir antes que a qualidade dos resultados laboratoriais seja afetada, impactando na segurança do paciente. No presente trabalho, discutiremos um novo modelo de abordagem para o CQA, visando à otimização desse processo, com base nos princípios da teoria das HROs e com foco na ampliação do nível de segurança oferecido aos clientes atendidos no laboratório clínico.

Objetivo

Este artigo tem como objetivo propor um novo modelo de abordagem complementar para o sistema de CQA no laboratório clínico, orientado pelos princípios da teoria das HROs, visando à melhoria do processo de controle da qualidade (CQ) com foco na ampliação do nível de segurança do paciente.

Materiais e métodos

Quando falamos em melhoria de um processo, duas prioridades são geralmente apresentadas: eliminar ou minimizar atividades que não agregam valor ao cliente e diminuir a variação no processo. De forma simplista, muitos elegem somente eliminar atividades como objetivo da melhoria do processo e ignoram a questão do impacto no cliente. Em última análise, é sempre o cliente que direciona os esforços da organização em suas iniciativas de melhoria de processos. Quando aplicamos esse enfoque para o processo de CQ no laboratório, visualizamos poucas atividades que podem ser eliminadas na maioria dos laboratórios, visto que até mesmo a documentação (como registro e armazenamento de dados) pode ser necessária, ao menos visando ao atendimento legal ou para fins de certificação. Por outro lado, quando focamos na ideia de diminuir a variação nesse processo, podemos visualizar ainda promissoras oportunidades de melhoria.

A elevada qualidade das informações fornecidas pelo sistema de detecção de desvios de desempenho analítico instituído pelo CQ é vital para assegurar resultados laboratoriais adequados para a utilização clínica. Essa elevada qualidade de informações significa a efetividade do sistema, isto é, sua capacidade de fornecer sinais de que o desempenho do sistema analítico está inadequado sempre que determinada situação ocorrer e, vice-versa, a capacidade de não sinalizar erroneamente um desempenho inadequado quando o sistema estiver operando dentro das especificações preestabelecidas. Em termos técnicos, essas propriedades de um sistema de CQ são denominadas, respectivamente, potencial de detecção de erros (PDE) e potencial de falsa rejeição (PFR)(18).

Alto PDE e baixo PFR garantem confiabilidade ao sistema de CQ, garantindo baixa variação das informações fornecidas. A adequada padronização do sistema de CQA baseia-se na customização de parâmetros para cada analito a ser monitorado(3), com atendimento de uma especificação de qualidade apropriada para esse analito, utilizando limites e regras de controle que garantam o atendimento dessa especificação com desempenho adequado (PED > 90% e PFR < 5%)(2). Mesmo com essa padronização, ainda existirão deficiências apresentadas pelo sistema de CQ que poderão, em algum grau, impactar na qualidade dos resultados e na segurança do paciente ou, ao menos, no gerenciamento da rotina analítica.

Na maioria das vezes, mesmo com a utilização adequada das regras de controle, o foco da análise dos dados de CQ é na liberação das corridas analíticas da rotina. Assim, ele fica restrito a curto prazo, ou seja, os resultados dos controles internos do dia em face dos resultados dos mesmos nas corridas analíticas imediatamente anteriores. Com essa abordagem, inviabilizamos a visão de longo prazo do desempenho analítico do sistema, dificultando análises como as de impacto de calibrações sequenciais ou da utilização de diferentes lotes de reagentes.

A análise de desempenho de longo prazo é, em última análise, de vital importância para garantir a utilidade da informação diagnóstica fornecida pelo laboratório, visto que garante a comparabilidade entre diferentes resultados de um mesmo paciente ao longo do tempo. Sem essa visão mais ampla da estabilidade do sistema analítico, podemos ignorar variações de desempenho desse sistema ao longo de diferentes condições de análise (lotes de reagentes, calibrações, manutenções, mudança de operadores e temperatura ambiente, no qual o sistema opera), o que prejudicará a avaliação da evolução clínica do paciente.

Modelo proposto

Com o objetivo de minimizar essa deficiência da abordagem tradicional para o CQA e viabilizar adequada análise de estabilidade do sistema analítico com visão de longo prazo, propomos um modelo complementar para a análise tradicional do CQ. A abordagem proposta foi embasada na avaliação de erro aleatório (EA; imprecisão) e erro sistemático (ES; bias ou inexatidão). A análise de imprecisão foi modelada com a utilização de gráficos de controle, do tipo Levey-Jennings(9), e gráficos tempo-ajustados, do tipo exponentially weighted moving average (EWMA)(10).

Gráficos do tipo Levey-Jennings são simplificações das tradicionais cartas de controle de Shewhart, criadas inicialmente na primeira metade do século passado (1920, publicação em 1931), customizadas para a utilização em laboratório por Levey e Jennings (1950) e, mais tarde, aprimoradas por Henry e Segalove (1952), formatando o aspecto atual dessa ferramenta. A carta de controle de Levey-Jennings consiste em um gráfico de controle com linha central de média e linhas adjacentes correspondendo a múltiplos de desvio padrão (DP). Gráficos do tipo EWMA(10) tem sua base na utilização de um método denominado alisamento exponencial. É uma técnica de tratamento de dados históricos (série temporal) que busca valorizar as ocorrências mais recentes para o cálculo do DP. Quando se determina o DP de uma base de dados igualmente ponderada, todos os desvios ou erros (quadráticos) das observações com relação à média têm o mesmo peso. Utilizando o alisamento exponencial, os últimos (mais recentes) erros têm peso maior, que vai diminuindo à medida que caminhamos em direção aos dados mais antigos. Esse método é fundamentado na premissa de que ocorrências mais recentes têm maior probabilidade de serem reproduzidas nos próximos dados a serem obtidos. A utilização do gráfico de controle do tipo EWMA confere maior sensibilidade ao sistema de CQ a pequenas variações de performance, permitindo maior agilidade para ações corretivas e, assim, prevenindo maiores impactos no paciente.

A análise de inexatidão foi modelada com a utilização de carta de controle (Shewhart), construída com dados de standard deviation index (SDI - índice de desvio entre o resultado do laboratório e o grupo comparativo) obtidos a partir de dados de teste de proficiência (TP), e análise de regressão, cujo modelo obtido foi utilizado para acessar o ES em diferentes níveis de concentração.

Para validar o modelo proposto, simulamos sua utilização a partir de dados reais obtidos da rotina. Esses dados de CQ originados do sistema de CQ implantado para monitoramento do ensaio para glicose (soro) no equipamento Vitros FS 5.1 (VTF), fornecido pela Johnson & Johnson Produtos Profissionais (Ortho-Clinical Diagnostics). O equipamento VTF é um sistema analítico automatizado multicanal, que processa o ensaio para glicose utilizando ensaio colorimétrico por química seca e detecção por reflectância.

Análise de imprecisão

Para acessar a imprecisão do método analítico de glicose no Vitros FS 5.1, usamos dados de CQ diário para esse ensaio, que foram obtidos com o processamento do material de controle performance verifier - nível I (VER1), provido pelo mesmo fornecedor do equipamento, e reagente. Foram utilizados dados diários desse material de controle provenientes de um dos equipamentos de rotina, processados entre setembro e dezembro de 2008, totalizando 119 resultados. Esses dados foram inseridos em gráficos de controle do tipo Levey-Jennings, com limites de controle definidos segundo protocolo padrão internacionalmente utilizado (média e DP obtidos a partir dos primeiros 20 dados da amostragem) e limites de especificação (inseridos no mesmo gráfico) de 6,9%(11). Durante o período analisado, foram utilizados três diferentes lotes de reagentes e realizadas duas calibrações, que foram sinalizadas no mesmo gráfico de controle. Regras tradicionais de controle de processo foram adotadas para detectar resultados fora dos limites aceitáveis de controle. Com o objetivo de acessar possíveis alterações de desempenho no ensaio analítico com a utilização de diferentes lotes de reagentes e calibrações com maior sensibilidade, foi gerado um gráfico do tipo EWMA com os mesmos dados de CQ interno anteriormente utilizados no gráfico de Levey-Jennings. Nesse gráfico EWMA, foram usados dados móveis de média e DP, com diferentes limites de controle para cada novo lote de reagente utilizado, coeficiente de ajuste (peso) de 0,5 e limites de especificação, considerando a média de todos os lotes de reagentes. A partir dos dados gerados, foram aplicadas regras de controle tradicionais, identificando dados que sinalizem desempenho fora dos limites de controle.

Análise de inexatidão

Para acessar a inexatidão de longo prazo para o método analítico de glicose no Vitros FS 5.1, utilizamos dados de TP obtidos para esse ensaio, originados a partir do programa do College of American Pathologists (CAP), kit de ensaio C, e processados entre 2007 e 2008. Desses dados de TP, utilizaram-se os SDIs para todas as amostras dos kits de TP avaliados, que foram dispostos em gráficos de controle de Shewhart(13), com limites de controle obtidos conforme método tradicional (3DP), e inseridos ante a linha central definida como SDI = 0. Regras de controle(17) foram aplicadas para detectar dados fora dos limites de controle estabelecidos. Com o objetivo de acessar o ES em diferentes níveis de concentração de glicose, comparamos os resultados obtidos pelo laboratório processando amostras do TP com as concentrações médias obtidas pelo grupo comparativo do programa de TP. Para obter modelo comparativo entre as duas origens de dados, adotamos a abordagem de regressão linear (mínimos quadrados). O modelo comparativo obtido foi utilizado para estimar o ES em três diferentes níveis de decisão médica (NDMs): 70, 99 e 126 mg/dl.

Análise global de desempenho

A partir dos dados de EA, provenientes da análise de imprecisão (coeficiente de variação [CV] obtido com a amostragem de resultados de CQ interno diário, material de controle VER1, n = 119, CV = 1,5%) e dados de ES, originados da análise de inexatidão (modelo de regressão aplicado a diferentes NDMs, utilizado maior ES obtido, em 70 mg/dl, 0,6%), determinou-se o erro total (ET) do ensaio. Esse ET obtido foi comparado ao erro máximo permitido para a determinação de glicose, 6,9%(11), e inserido em um gráfico de decisão médica (medical decision chart [MDC]). O gráfico MDC(16) apresenta o desempenho de um ensaio diante da relação entre dois parâmetros: imprecisão e inexatidão, representadas como percentual da variação total permitida, representadas nos eixos das abscissas e ordenadas, respectivamente. O desempenho do método é representado pelo operating point (ponto de operação que representa o nível atual de desempenho do método), que é classificado em termos de métrica-sigma, representada pelas curvas delineadas no gráfico. O nível de ET adotado como especificação da qualidade para o ensaio laboratorial de glicemia sérica foi obtido a partir de consenso europeu, publicado por Petersen et al.(11). Nesse estudo, o valor para ET permitido para os testes laboratoriais é obtido a partir da seguinte equação:

Especificações da qualidade nos laboratórios clínicos têm sido abordadas em diferentes estudos e frequentemente são alvo de controvérsias ou ponderações(2). Em termos teóricos, as principais diretrizes sugerem que essas especificações de qualidade no laboratório clínico devam ser embasadas em necessidades médicas, isto é, em requisitos de desempenho que atendam a essas necessidades médicas. Algumas especificações de qualidade, especialmente as relacionadas com características de processo (como tempo de resposta e tipo de amostra e volume), podem ser obtidas por meio de discussão com os médicos, pesquisas específicas ou outras formas de feedback junto aos usuários do laboratório clínico. No entanto, essas estratégias podem não ser as mais adequadas para gerar especificações de qualidade para características de desempenho analítico dos ensaios laboratoriais, como imprecisão e inexatidão. No estudo de Petersen et al.(11), citado anteriormente, foram detalhadas iniciativas europeias para estabelecer especificações analíticas de desempenho com base em parâmetros biológicos. O referido estudo discute a geração de especificações da qualidade embasadas na variação biológica(5), demonstrando que especificações provenientes destas têm como base as principais utilizações clínicas dos ensaios laboratoriais, ou seja, acompanhamento e diagnóstico.

Resultados

A amostragem utilizada para avaliar a imprecisão de longo prazo do ensaio de glicose sérica no equipamento VTF (setembro a dezembro de 2008) apresentou as seguintes características:

• n = 119;

• média = 77,695 mg/dl;

• erro padrão médio = 0,109 mg/dl;

• DP = 1,188 mg/dl;

• variância = 1,412;

• CV = 1,53%;

• mínimo = 74,70 mg/dl;

• 1º quartil = 77 mg/dl;

• mediana = 77,70 mg/dl;

• 3º quartil = 78,30 mg/dl;

• máximo = 82,50 mg/dl.

A distribuição estatística dessa amostragem de controles internos está demonstrada no histograma a seguir (Figura 1).


A Figura 2 mostra o gráfico de controle de Levey-Jennings, gerado a partir de dados das amostras de controle interno para glicose no VTF. Ele apresentou apenas um resultado de controle considerado inadequado, que ficou distante mais de 4DP da média da amostragem. Comparando esse resultado fora de controle com as especificações de qualidade para o teste de glicose, podemos observar que o mesmo não ultrapassa o limite máximo de especificação, embora esteja muito próximo dele.


Ao analisarmos esse achado, podemos presumir a presença de causas especiais afetando o processo nesse dia específico de análise. Em razão dos resultados seguintes do mesmo gráfico, podemos visualizar a remoção dessa(s) causa(s), pois os resultados dos controles processados a seguir tendem para a média inicial da amostragem. Analisando globalmente a amostragem de dados, podemos evidenciar uma tendência para diminuição na variação dos dados a partir do primeiro evento de calibração (novo lote de reagente). A partir do segundo evento (terceiro lote de reagente na amostragem avaliada), podemos avaliar sensível elevação da média dos resultados do controle, com quase todos os resultados acima da média inicialmente fixada, culminando no resultado fora de controle, já comentado anteriormente.

Essa flutuação dos valores de controle em blocos bem definidos evidencia o efeito sequencial de calibrações e trocas de reagentes na estabilidade do método analítico e nos resultados dos controles, impactando, consequentemente, nos resultados fornecidos para as amostras de pacientes.

A Figura 3 apresenta os mesmos dados da Figura 2, dispostos em um gráfico de controle diferente. Gráficos de controle do tipo tempo-ajustados, como o EWMA, são mais sensíveis a mudanças de comportamento do método ou processado monitorado. Como demonstrado na Figura 3, foram definidos nessa abordagem limites de controle distintos para cada novo lote de reagente e suas respectivas calibrações. Analisando o conjunto da amostragem de longo prazo, podemos evidenciar o mesmo comportamento genérico do gráfico de Levey-Jennings da Figura 2, ou seja, tendência a maior variação no primeiro lote de reagente, diminuição dessa variação no segundo lote/calibração e elevação nos valores dos controles com o terceiro lote/calibração. Com a utilização desse gráfico de controle e limites de controle para cada diferente lote de reagente, evidenciamos um controle mais rígido da variação dentro de um mesmo lote de reagente, com limites de controle mais restritos e menos permissíveis a variações bruscas de desempenho do método. Por outro lado, se analisarmos cada lote de reagente de forma isolada, isto é, sem a visão de longo prazo (com, no exemplo, os três lotes de reagentes), podemos não evidenciar o aumento gradual das médias dos resultados dos controles com as calibrações sequenciais e alteração dos lotes de reagentes. Isso porque os limites de controle, evidentemente, estão sendo alterados a partir dessa nova média obtida nas novas condições. De forma genérica, isso nos aponta para a ideia de que o gráfico EWMA possa ser mais bem utilizado de forma retroativa (conjunto de resultados consolidados de controle da qualidade) do que na avaliação diária do controle da qualidade interno. Essa visão retroativa global dos resultados de controle com o gráfico EWMA, entretanto, é extremamente útil para a finalidade proposta neste estudo, uma vez que o mesmo gráfico evidencia, de forma visualmente mais clara, as modificações de performance do método analítico em avaliação.


A Figura 4 apresenta um gráfico de controle tradicional de Shewhart, adaptado para utilização com dados do TP. Cada kit ensaiado do TP (CAP) para glicose está representado virtualmente por colunas no gráfico, delimitados pelas linhas verticais pontilhadas. Da esquerda para a direita, temos os resultados sequenciais de cada amostra processada dos kits do TP, de 2007 a 2008. O resultado de cada amostra no gráfico está representado em termos de SDI, que significa o desvio entre o resultado obtido pelo laboratório para a amostra de TP processada e o resultado médio do grupo de comparação para essa mesma amostra/analito/equipamento, expresso como múltiplos do DP do grupo comparativo. O SDI é calculado por meio da fórmula:


A partir dos resultados de SDI obtidos e inseridos no gráfico de controle da Figura 4, podemos avaliar o TP de maneira semelhante ao dos controles internos, avaliando, entretanto, bias e imprecisão de forma associadas e com visão de longo prazo, visto que temos resultados de dois anos de TP dispostos em um único gráfico.

Considerando esse gráfico, podemos verificar situações importantes e que ficam, por vezes, quase imperceptíveis com a análise individual de cada ciclo de TP. Uma delas é a mudança brusca de desempenho do método entre os dois primeiros ciclos de TP avaliados. Os resultados de SDI passam de resultados sensivelmente positivos para resultados francamente negativos no segundo TP. Esses resultados se elevam no terceiro ciclo e se mantêm sob controle até o final da amostragem analisada (entre o terceiro e o quinto ciclos do TP). Analisando no gráfico o primeiro ciclo avaliado do TP, podemos constatar uma sensível variação de desempenho entre as amostras do mesmo ciclo, o que nos leva a presumir diferentes bias entre diferentes concentrações do analito, podendo apontar para um problema na calibração utilizada para o analito em estudo no período desse primeiro ciclo de TP. No segundo ciclo, a variação apresenta-se menor entre as diferentes amostras, mostrando desempenhos semelhantes em diferentes concentrações do analito. Entretanto, quando analisados esses resultados ante os próximos ciclos de TP, os resultados dessas amostras são sensivelmente menores. Uma análise com maior profundidade, avaliando os resultados de TP com os controles internos do mesmo período de cada ciclo de TP, deveria ser processada para viabilizar melhor análise de causas, analisando, entre outras possibilidades, lotes de reagentes, calibrações e manutenções efetuadas no equipamento. A utilização do gráfico de controle da Figura 4, com a inserção sequencial dos resultados de cada amostra do TP em termos de SDI, permite visualizar, de forma efetiva e segura, por meio de evidências consistentes, as alterações de desempenho do método analítico, permitindo intervenção nele mesmo quando um ciclo de TP apresenta resultados genericamente adequados ao serem analisados individualmente e visivelmente inadequados quando comparados aos ciclos de TP anteriores ou posteriores, conforme demonstrado na Figura 4 nos primeiros dois kits do TP. Com o objetivo de uma melhor avaliação do ES apresentado pelo TP, foi utilizada uma análise de regressão (mínimos quadrados), criando um modelo comparativo entre os resultados de cada amostra do TP obtida no laboratório e nos demais laboratório do grupo comparado no programa de TP para o analito/equipamento (média do grupo comparativo). Procedendo com a análise de regressão, obtivemos o seguinte modelo:

Ao utilizarmos esse modelo (Figura 5), interpolamos seus dados para três diferentes níveis hipotéticos de glicose, representados pelos NDMs, 70, 99 e 126 mg/dl. Avaliando a diferença obtida entre os NDMs utilizados e aqueles obtidos com a utilização do modelo, obtemos o nível de inexatidão do método para esses três níveis de concentração do analito, bias este representado em termos de ES percentual (ES%). Os resultados obtidos foram:

• NDM = 70 mg/dl; ES = 0,6%;

• NDM = 99 mg/dl; ES = 0,5%;

• NDM = 126 mg/dl; ES = 0,4%.


A Figura 6 apresenta uma avaliação global do método de glicose no equipamento Vitros FS 5.1, utilizando os dados de controle de qualidade interno e de TP, nos períodos avaliados no estudo. O gráfico da Figura 6 representa um gráfico de decisão médica, ou seja, avaliam-se de forma conjunta os impactos dos níveis de bias e imprecisão obtidos pelo método analítico em estudo diante das especificações de desempenho para o analito em questão. Nesse gráfico, o operating point representa o desempenho global do método e é obtido pelo cruzamento entre os níveis de inexatidão (bias), disposto nas ordenadas, e de imprecisão, disposto no eixo das abscissas. Utilizamos como nível de imprecisão o CV do método obtido com a amostragem de controles internos, ou seja, 1,5%. Como nível de inexatidão, adotamos o maior ES obtido pelo modelo de regressão, ou seja, para NDM de 70 mg/dl, temos ES de 0,6%.


Avaliando esse nível de desempenho apresentado (operating point) ante o nível de desempenho preconizado para o método de glicose, 6,9%(11), podemos definir o desempenho do método como aceitável para a utilização na rotina. Esse desempenho pode ser melhor analisado em termos de métrica-sigma, calculada como 4,1 sigma, que significa prever a ocorrência de cerca de cinco resultados inadequados a cada mil resultados de glicose fornecidos pelo equipamento. Esse nível estimado de desempenho tem impacto na padronização de um sistema de controle da qualidade para o método, visando detectar adequadamente a ocorrência dos desvios de performance esperados e atuar corretivamente com a finalidade de evitar impactos indesejados para as amostras de pacientes processadas por esse método.

Discussão

Melhorar continuamente os processos deve ser o foco primordial de qualquer organização, visto que essas iniciativas buscam, em última análise, oferecer melhores produtos ou serviços a seus clientes, garantindo o pleno atendimento de suas necessidades, e, assim, preservar e, se possível, ampliar o nível de competitividade da empresa no mercado em que atua. Na área da medicina, mais do que buscar atender os desejos dos clientes, busca-se continuamente otimizar processos, visando minimizar os riscos à vida dos pacientes, atitude essa materializada no fornecimento de informações diagnósticas consistentes e fidedignas nos momentos exatos em que elas sejam mais necessárias. Dessa forma, podemos evidenciar a expressiva importância que os processos que controlam a qualidade do produto/serviço fornecido pelo laboratório clínico têm nesse contexto. Uma organização altamente confiável é aquela que controla de forma adequada todos os seus processos, sendo capaz de identificar possíveis falhas assim que elas ocorrem e estando preparada para atuar prontamente sobre elas, minimizando suas principais consequências indesejadas. Controle é a palavra-chave nesse contexto. Entretanto, o foco deve ser colocado em controle efetivo, ou seja, nos processos de controle ágeis, eficientes e eficazes, consumindo somente os recursos necessários para sua finalidade, com eficácia constantemente monitorada e revisada sempre que necessário.

Muitas organizações têm interpretado de forma equivocada as tendências atuais que incentivam um completo redesenho de processos das organizações, focando excessivamente na redução de utilização de recursos. A real importância da revisão dos processos de uma organização está na profunda análise dos mesmos e na proposição de melhorias que permitam alinhar eficiente utilização de recursos com eficácia no atendimento das necessidades dos clientes. No laboratório clínico, os clientes desejam, além de preços justos e atendimento adequado, resultados laboratoriais condizentes com seu estado clínico e disponíveis no menor prazo possível.

Todos os processos no laboratório devem, portanto, estar alinhados para atender adequadamente a todas essas necessidades. Quanto a resultados exatos e precisos, todas as fases do processo de análises clínicas (pré-análise, análise e pós-análise) devem estar padronizadas e atuando de forma esperada para garantir resultados adequados clinicamente. Na fase analítica, procedimentos eficazes de CQ são essenciais para garantir a adequação do resultado fornecido pelo laboratório. Assim, ao contrário de ações que têm sido propostas ultimamente por algumas fontes de regulação (como, por exemplo, o Clinical Laboratory Improvement Amendments [CLIA] nos EUA) nas proposições do CQ equivalente, os procedimentos devem ser ampliados e aperfeiçoados na ampla maioria dos laboratórios clínicos e não reduzidos como alguns outros processos no próprio laboratório.

A racionalidade presente nas iniciativas de melhoria de processos deve obedecer a uma premissa básica e primordial: eliminar ou reduzir somente atividades que não agreguem valor ao cliente. Mesmo na redução de atividades, visando à redução de recursos utilizados (tempo ou outros recursos que impliquem na elevação de custos operacionais), o foco deve sempre se basear no atendimento às necessidades dos clientes.

Assim, como o cliente deseja resultados fidedignos, assegurar o real atendimento dessa necessidade é primordial e somente é garantido por procedimentos de CQ ajustados ao processo a ser controlado. Os sistemas de CQ empregados na maioria dos laboratórios clínicos brasileiros, e igualmente em outras partes do mundo, não atendem perfeitamente a essa necessidade. Em sua maior parte, as padronizações de CQ em vigor nos laboratórios procuram atender a legislações existentes ou normas de certificação ou acreditação, sem se preocuparem especificamente com a obtenção de evidências de que os resultados liberados pelo laboratório atendem aos requisitos de qualidade clinicamente exigidos. Evidentemente, há implicações em termos de custos quando se fala de ampliação e aprofundamento dos procedimentos de CQ. Entretanto, se adequadamente planejada e padronizada, uma rotina de CQ, na maioria das vezes, acaba trazendo ganhos importantes para os laboratórios. Se mensurados de forma efetiva, os custos da não qualidade (incluindo, por exemplo, repetições de testes e recoletas) trazem custos desnecessários para a organização e comprometem sua credibilidade, contribuindo muitas vezes negativamente para sua competitividade e sobrevivência no mercado em que atua.

O modelo proposto neste estudo apresenta uma alternativa multiferramenta, embasada no conhecimento já amplamente estabelecido na área de controle estatístico de processos, visando à utilização no controle de estabilidade de longo prazo de métodos laboratoriais, uma das principais deficiências das rotinas tradicionais de CQA. Garantir a estabilidade de um método analítico ao longo do tempo, mesmo após intervenções (manutenções no equipamento, ajustes ou calibrações, troca de instrumentos, operadores ou de lotes de reagentes), significa assegurar a comparabilidade entre diferentes resultados de um mesmo paciente ao longo do tempo, o que assegura o atendimento de uma das principais funcionalidades do produto fornecido pelo laboratório: permitir ao médico avaliar a evolução do paciente assistido, possibilitando que ele atue de forma mais segura e eficaz, visando à resolução do quadro clínico em vigor.

Conclusão

O modelo de CQ proposto nesse estudo foi planejado e estruturado de forma a estar alinhado aos conceitos da teoria das HROs, com ênfase específica na ampliação da segurança do paciente. Segundo essa teoria, as organizações confiáveis devem ser sensíveis às suas operações, ou seja, devem monitorar constantemente a estabilidade de seus sistemas e processos, identificando riscos e prevenindo-os. Abordagens tradicionais de CQ não são suficientemente sensíveis a alterações de desempenho do método analítico, tanto pela utilização de ferramentas inadequadas quanto pela visão de curto prazo com que são utilizadas. Outra característica encontrada nas HROs é a relutância à simplificação.

As organizações, principalmente na área de medicina, não devem analisar de maneira simplista seus processos, devendo investigar com profundidade possíveis riscos e causas de falhas, relutando em aceitar explicações simplistas para as não conformidades detectadas. Analisar dados de CQ com visão de curto prazo conduz para explicações simplificadas e incompletas sobre alterações inesperadas de desempenho do método analítico, gerando dificuldades para evidenciar, por exemplo, tendências para elevação de ES ao longo de calibrações e/ou trocas de lotes de reagentes.

A nova abordagem proposta tem como objetivo, prioritariamente, viabilizar essa visão de longo prazo, proporcionando o aprofundamento da análise do processo analítico, ampliando o portfólio de causas passíveis de investigação e sua consequente eliminação ou minimização e evitando, assim, maiores impactos no paciente. Uma das críticas que pode se fazer ao método proposto é o nível de conhecimento necessário para aplicar e analisar suas ferramentas. Conhecimentos estatísticos e de controle de processo, embora não sejam recentes e estejam amplamente difundidos em outras áreas, nem sempre são dominados adequadamente por todos os profissionais de laboratório clínico. Mesmo que isso possa ser minimizado com treinamentos específicos, um sistema de CQA, preferencialmente, deve ser gerenciado por profissionais com conhecimentos e experiência diferenciados.

Essa especialização do profissional que gerencia o sistema de CQ confere, sem dúvida alguma, diferencial importante a seu laboratório clínico. Isso porque, em CQ, não bastam ferramentas estatísticas avançadas ou sistemas informatizados de última geração. O conhecimento e a habilidade do profissional encarregado de gerenciar o sistema de CQ são essenciais para gerenciar riscos de falhas de processo que impactem na qualidade dos resultados.

Conforme outra característica listada para as HROs na teoria das organizações altamente confiáveis, essas organizações apresentam deferência à expertise, isto é, sistemas de controle confiáveis são geralmente os que têm suas decisões delegadas para indivíduos com conhecimento e habilidade adequados para tomar essas decisões de forma segura e eficaz, preservando a segurança dos pacientes, independentemente de seu nível hierárquico. Assim, a especialização dos profissionais encarregados de gerenciar sistemas de CQ não é um ponto negativo de estratégias mais robustas ou avançadas de CQ, mas sim uma necessidade para atender adequadamente os clientes do laboratório clínico. É, portanto, uma contingência para executar adequadamente a função primordial do laboratório clínico: fornecer informações diagnósticas confiáveis.

A abordagem proposta como complementar ao sistema de CQ tradicionalmente utilizado, envolvendo a aplicação sequencial e associada de diferentes ferramentas estatísticas, mostrou-se válida e útil para uma avaliação efetiva do desempenho do método e de sua estabilidade ao longo do tempo. Essa abordagem, além de conferir agilidade à avaliação de estabilidade analítica de longo prazo, em razão de permitir análise visual dos dados estatísticos obtidos, viabilizou o monitoramento da consistência entre diferentes resultados de um mesmo paciente em diferentes momentos e condições clínicas, mesmo com um ambiente analítico de processamento diferenciado entre os momentos das análises laboratoriais.

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  • Endereço para correspondência:
    Fernando de Almeida Berlitz
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Out 2010
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