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Realismo versus globalismo nas relações internacionais

Realism versus globalism in international relations

Resumos

Discute-se a influência que os temas econômicos produzem nas bases do poder mundial, tradicionalmente vinculadas aos temas clássicos da estratégia e das relações de poder. Para isso, discutem-se dois pontos de vista teóricos centrais no debate contemporâneo sobre as relações internacionais, o realismo e o globa-lismo, concluindo-se que as divergências existentes não excluem percepões semelhantes no que toca à visão de mundo. As teorias da estabilidade hegemônica e da interdependência complexa são consideradas no quadro do debate relativo às possíveis ordem ou desordem internacionais.


World power, traditionally linked with classic themes of strategy and power relations, is discussed in terms of the influence that economic issues have on its foundations. Two main theoretical approaches in the contemporary debate on international relations - realism and globalism - are examined. Existing divergences between them do not conceal a perceptible similarity in their outlooks, the authors argue. Hegemonic stability and complex interdepence theories ares considered in the context of the debate on international order or disorder.


FRONTEIRAS

Realismo versus globalismo nas relações internacionais

Realism versus globalism in international relations

Tullo VigevaniI; João Paulo C. VeigaII; Karina Lilia P. MarianoIII

IProfessor de Ciência Política da UNESP, professor - visitante do IEA/USP e pesquisador do CEDEC

IIDoutorando em Ciência Política na USP e pesquisador do CEDEC

IIIMestranda em Ciência Política na USP e pesquisadora do CEDEC

RESUMO

Discute-se a influência que os temas econômicos produzem nas bases do poder mundial, tradicionalmente vinculadas aos temas clássicos da estratégia e das relações de poder. Para isso, discutem-se dois pontos de vista teóricos centrais no debate contemporâneo sobre as relações internacionais, o realismo e o globa-lismo, concluindo-se que as divergências existentes não excluem percepões semelhantes no que toca à visão de mundo. As teorias da estabilidade hegemônica e da interdependência complexa são consideradas no quadro do debate relativo às possíveis ordem ou desordem internacionais.

ABSTRACT

World power, traditionally linked with classic themes of strategy and power relations, is discussed in terms of the influence that economic issues have on its foundations. Two main theoretical approaches in the contemporary debate on international relations — realism and globalism — are examined. Existing divergences between them do not conceal a perceptible similarity in their outlooks, the authors argue. Hegemonic stability and complex interdepence theories ares considered in the context of the debate on international order or disorder.

A compreensão do mundo atual passa cada vez mais pelo exame das relações entre temas econômicos e temas clássicos da estratégia e das relações de poder, relativos às bases do poder mundial. Trata-se de compreender como a capacidade econômica, entendida em sentido amplo e dinâmico, poderá incidir nas formulações estratégicas globais, tornando-se o fator decisivo do poder em escala internacional.

Os autores que se utilizam do globalismo como ponto de partida para suas análises teóricas do sistema internacional consideram que a emergência da economia como fator explicativo básico das relações internacionais é irreversível, sendo isso o que permite a compreensão das modificações em curso. Essa perspectiva vem ganhando força com a aparente crise do realismo, que predominou nos Estados Unidos durante décadas, após se sobrepor ao chamado idealismo de inspiração wilsoniana, que tivera força no período entre as duas guerras mundiais. Nesta nova fase dos debates, há uma tentativa de reabilitar o realismo, ou o neo-realismo, como se chama a nova sofisticação desse modelo de análise (Waltz, 1979), entrando como principais opositores os chamados globalistas (Rosecrance, 1981).

É certamente esse o debate que oferece o pano de fundo necessário à compreensão das modificações da política internacional, particularmente da norte-americana nos anos oitenta, e que explica parte dos pressupostos, também teóricos, que orientam a ação internacional dos Estados Unidos e dos demais atores.

Particularmente no caso das análises globalistas, que tiveram notável incidência na formulação da política norte-americana nos anos oitenta, apesar de sempre estarem condicionadas pelo realismo, deve-se dizer que alimentaram, também fora dos Estados Unidos, as novas correntes "internacionalistas".

Hoje, a questão da crise do realismo e da supremacia da concepção liberal-internacionalista aponta para uma relação complementar mais do que excludente. Os críticos do realismo o qualificam de obsoleto, um modelo de análise envelhecido para um mundo globalizado, no qual a aceitação universal de valores parece generalizar-se. Contudo, o realismo permanece um modelo fundamental para a análise das relações internacionais, menos por constituir um guia normativo e mais por buscar uma perspectiva de explicação de como o mundo funciona. Por isso, mesmo incompleto, o modelo realista vem sendo criticado por alguns mais com o propósito de inserir nele novas variáveis do que para substitui-lo. De forma geral, os desafios mais significativos vêm sendo propostos pela perspectiva globalista ou liberal-internacionalista.

As interpretações da política mundial devem ser analisadas criticamente, o que implica um certo grau de sofisticação em relação ao tema, pois todas as análises e todas as teorias estão enviesadas pela própria experiência que as informa e por referências históricas, ideológicas e políticas. É importante lembrar que a teoria não existe como um fim em si mesmo, e somente tem sentido como arcabouço explicativo de realidades ou de projetos. Se não possuir essa capacidade, rapidamente torna-se caduca. A teoria política, assim como a teoria das relações internacionais, insere-se num campo do conhecimento diretamente vinculado à consciência, à moral e às concepções gerais do ser humano. Isso a torna uma área do conhecimento intrinsecamente datada. Hoffmann assinala (Hoffmann, 1977) que a área do conhecimento denominada "relações internacionais" é uma ciência social tipicamente americana. O que caracteriza essa situação é a própria temática tratada.

Para Waltz, as teorias não nascem de tentativas de estabelecer leis, mesmo nos casos em que essas tentativas obtenham sucesso. Para ele, a elaboração de uma teoria é uma tarefa de importância fundamental devido à necessidade de se decidir em que argumentos deve concentrar-se a atenção, com vistas a uma explicação dos fatos e das relações internacionais. Portanto, para ele, o esforço da elaboração teórica está voltado para a tentativa de identificar como variam as possibilidades das grandes potências de governar de forma construtiva os assuntos internacionais.

Tendo em conta as mudanças da política mundial e as modificações dos valores de que estamos imbuídos, não há garantia alguma de que mesmo uma teoria hoje bem assentada possa permanecer válida no futuro. Qualquer proposta teórica das relações internacionais deve ser atentamente examinada para verificar o raio da sua aplicabilidade, e também o grau da sua funcionalidade explicativa com respeito aos aspectos que se propõe tratar.

Mesmo considerando a existência de enfoques profundamente distintos, há, segundo Cox, duas características sempre retomadas: a perspectiva dos Estados Unidos serem a potência preponderante com um certo grau de responsabilidade, e as relações entre poder e moralidade e entre ciência e tradição (Cox, 1986).

Nesse sentido, toda teoria das relações internacionais tem seus princípios valorativos fortemente vinculados a concepções sobre o homem. Justifica-se assim que toda análise séria das relações internacionais parta de Hobbes, Grotius ou Kant, pois ela sempre remete à natureza do homem e ao enfoque que se tem dessa mesma natureza. Nessa perspectiva, a natureza humana projeta-se na sociedade e no Estado, e acaba determinando as relações entre estados ou entre sociedades. Ao mesmo tempo, é importante que, na busca dos fundamentos das relações internacionais, sejam estabelecidos parâmetros referentes ao contexto do período histórico em questão.

No período entre as duas guerras tudo levava a crer que, nas relações internacionais, prevalecia a concepção kantiana da não-existência objetiva do conflito entre a moral e a política. Isso possibilitaria, segundo a proposta de Kant, a constituição de uma liga de paz, que eliminaria todas as guerras. Implícita nisso estava a exequibilidade da idéia de federação, que se estenderia gradativamente a todos os estados. Naquele momento as formulações de uma política internacional racional e pacifista estavam no auge, visíveis particularmente no empenho da Liga das Nações por estabelecer uma paz duradoura e nas tentativas de alcançar-se um desarmamento global.

Essa concepção entrou em crise às vésperas da Segunda Guerra Mundial, abrindo caminho para a emergência do realismo, que se afirmou no mundo anglo-saxão como a formulação mais importante da política exterior do pós-guerra. A preocupação dos realistas não tinha como objeto principal a explicação das causas do poder: concentrava-se no poder em si mesmo, sendo a busca deste considerada inata no ser humano. Disso decorre a idéia de que a natureza humana determina em boa medida a lógica da ação política dos homens, posto que a busca do poder é parte da sua motivação básica. A compreensão do poder acaba sendo necessária à visualização do instrumento para se alcançar outros objetivos, os chamados interesses nacionais.

A estreita vinculação entre a política e a natureza humana para os realistas torna-se ainda mais clara quando se considera a explicação do fenômeno da guerra. Uma teoria que pretende explicar como o mundo funciona deve ser capaz de revelar como e porque as guerras ocorrem. Morgen-thau, que persistentemente rebateu as teses idealistas, entendia a guerra como o resultado de forças inerentes à natureza humana. Segundo ele, seria isso que induziria as organizações políticas à luta pelo poder. Waltz, mais tarde, destacou a hipótese de Morgenthau, perguntando se a natureza humana era capaz de explicar também a paz, ou por que determinados períodos eram mais conflituosos do que outros. Na verdade, a questão de fundo, no caso, era a de se as guerras eram ou não o resultado da organização anárquica do sistema internacional, no qual cada Estado deve ser capaz de se prover de recursos próprios para sobreviver, o que gera a necessidade do uso da força.

A origem hobbesiana desse encadeamento analítico é evidente. Nas relações internacionais não haveria, de fato, um poder acima do poder soberano de cada Estado, imperando portanto a desordem. Daí a redução que os realistas fazem dos valores morais: para Hobbes, onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça.

Em outras palavras, pode-se reconhecer aqui elementos que persistem em toda a elaboração pós-Segunda Guerra Mundial. Há uma característica definitiva do Realismo que reitera permanentemente a separação entre a esfera do nacional e a esfera do internacional. Se, segundo a análise de Waltz, na esfera nacional há uma estrutura hierárquica sempre funcionando, as partes dos sistemas políticos internacionais estão, pelo contrário, numa situação de coordenação: "Formalmente cada uma delas é igual a todas as outras: nenhuma tem o direito de mandar e ninguém tem o dever de obedecer. Os sistemas internacionais são anárquicos e descentralizados" (Waltz, 1979, p. 178). Tal situação exerce forte influência sobre o comportamento dos Estados nacionais.

Ainda que sem referência específica, a preocupação de Hobbes com as relações entre os povos é evidente: "Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa situação de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude de gladiadores, com as armas assentadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra. Mas como através disto protegem as indústrias de seus súditos, daí não vem como conseqüência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos isolados" (Hobbes, 1974, p.81).

A DIMENSÃO ECONÔMICA

Porém, a partir do início dos anos oitenta, toda obra que surge nos Estados Unidos, mesmo quando não rompe totalmente com o realismo, volta-se à busca de novos conceitos que permitam a compreensão da nova evolução das relações internacionais, incorporando principalmente a dimensão e a influência das questões econômicas nas relações internacionais. Isto inclui o avanço da distensão como terna eixo da política norte-americana e o crescente peso das nações que Rosecrance (Rosecrance, 1986) chamou de "Estados comerciais". A linha de análise que desafia o realismo, cada vez mais fortalecida pelo desenvolvimento empírico, se agrupa sobretudo no enfoque globalista ou liberal-internacionalista.

De fato, os realistas do período da Guerra Fria, de Morgenthau a Kissinger, preocupavam-se mais com a polaridade política, militar e ideológica e, relativamente, pouca atenção era destinada às questões econômicas. Todavia, mesmo dentro da tradição realista, autores como Hamilton e Cart sempre buscaram nos fatores econômicos uma base explicativa para os fenômenos políticos.

Recentemente, autores como Gilpin incorporaram e revalorizaram muitos elementos econômicos, dentro da perspectiva realista, que, em grande medida, não contradiz a análise liberal-globalista. Rosecrance e Gilpin acreditam na força do mercado para a maximização da eficiência. Todos são liberais no sentido normativo da valorização da liberdade e do controle sobre o Estado. Acreditam que o livre-mercado gera riqueza e que uma economia internacional liberal assegura o crescimento sustentado e o bem estar global.

Contudo, os realistas visualizam a distribuição do poder, e não o livre-mercado, como o aspecto decisivo das relações internacionais. Por mais importante que seja o nível das trocas mundiais, o livre-mercado é o resultado de arranjos políticos entre Estados que estimulam preferências a partir de interesses particularistas. Portanto, o livre-mercado não emerge espontaneamente. É nessa perspectiva que autores como Nye, Keohane, Snidal e Gowa discutem o conceito de hegemonia e o aplicam a situações empíricas.

O conceito de hegemonia é uma forma de articulação entre os pressupostos de funcionamento de uma economia internacional liberal e os recursos de poder disponíveis e concentrados em um único Estado. Por isso, os exemplos sempre citados são o da Grã-Bretanha no século XIX e o da hegemonia norte-americana exercida nos vinte anos consecutivos ao término da II Guerra Mundial.

O debate atual, do ponto de vista realista, situa-se no campo da busca de sustentáculos para um novo equilíbrio, já que a situação hegemônica norte-americana vem declinando. Os desequilíbrios nas relações de trocas financeiras e comerciais, alguns indicadores de produtividade, o endividamento dos Estados Unidos erodem sua capacidade de sustentação de um sistema internacional liberal. De acordo com Gilpin, que tem como pano de fundo da sua discussão a situação norte-americana, deveriam ser utilizados instrumentos de poder adequados, sobretudo econômicos, com o objetivo de restabelecer uma posição de equilíbrio, como única garantia de prevalência dos valores liberais no sistema global.

Adotando conceitos desenvolvidos por economistas liberais, esta visão subentende que o livre-mercado, embora necessário, não é suficiente para restaurar o equilíbrio do mercado. A existência de um livre mercado, o mais abrangente possível, pode estimular o surgimento de "caronas" que se utilizariam das vantagens, evidentemente em proveito próprio, sem a contrapartida de arcar com os custos inerentes à manutenção de uma economia liberal. Isso aconteceria na medida que utilizassem recursos não diretamente econômicos ou dificilmente avaliáveis e, portanto, não passíveis de uma contabilidade precisa, o que é também chamado de "falhas do mercado".

Conseqüentemente, de acordo com os neo-realistas, o debate atual encaminhou-se no sentido de precisar quais compensações poderiam ser adotadas para equilibrar as imperfeições ou as falhas do mercado. É preciso mostrar, porém, que o conceito de falhas do mercado é mais abrangente e se refere sobretudo aos valores claramente não-econômicos. No caso do contencioso norte-americano com o Japão, a posição neo-realista valoriza a iniciativa política como instrumento de pressão para o restabelecimento do equilíbrio na balança de comércio.

Isso, obviamente, não exclui a necessidade de a indústria norte-americana buscar maior competitividade. No entanto, os neo-realistas apontam para a necessidade de os países resguardarem seus interesses sob pena do desequilíbrio provocar alterações de fundo na economia mundial. Tome-se o caso do setor automotivo. Do ponto de vista dos princípios do livre-comércio, havendo tarifas alfandegárias análogas nas transações entre dois ou mais países, o desequilíbrio comercial adviria apenas da maior competitividade de um ou de mais de um deles. Segundo o ponto de vista neo-realista, a maior competitividade pode ser o resultado da incidência de condições extra-econômicas, portanto não atribuíveis à melhor engenharia de produto ou de produção, ou à melhor tecnologia em sentido estrito.

Nesse caso, a existência de condições culturais específicas poderia ser um elemento de desequilíbrio da maior importância. Ao mesmo tempo, o país prejudicado, também por razões culturais e pela adesão a valores não econômicos, não se disporia a assimilar os métodos que tornam o adversário mais competitivo. Ainda de acordo com os neo-realistas, na medida em que houver condições para fazê-lo, deveria se restabelecer um equilíbrio desejado, permitindo que os princípios do livre-mercado absorvessem disparidades consideradas não-avaliáveis. Por isso entre as conclusões da Rodada Uruguai do GATT e entre as premissas da Organização Mundial do Comércio está a necessidade de rever-se e eventualmente eliminar as chamadas barreiras não alfandegárias, favorecendo os que partem de posições mais sólidas.

Diferentemente dos neo-realistas, os globalistas consideram que o livre-mercado e a plena vigência das regras de concorrência os mais perfeitos possíveis seriam o principal veículo na maximização de vantagens de todos os atores internacionais, estatais e privados. Parece-nos que novos conceitos que se estão universalizando, como os de dumping social e ecológico, derivam das concepções que acabamos de descrever. Em princípio, poderiam ser apropriados por qualquer ator na cena internacional, mas é evidente que as relações de poder assimétricas acabam por favorecer os detentores de maior poder de barganha.

Utilizando novamente o exemplo do contencioso entre Estados Unidos e Japão em relação à indústria automotiva, os globalistas consideram que os efeitos da concorrência, mesmo que prejudiciais a curto prazo, num prazo maior acabariam por favorecer a produtividade geral, inclusive nos Estados Unidos e nos outros países que utilizam sistemas menos rentáveis. Em última análise, o livre comércio também seria um eficiente mecanismo de restauração do equilíbrio.

Por exemplo, se uma empresa norte-americana sofresse prejuízos devido à concorrência japonesa, seria muito mais rentável que a empresa concorrente adquirisse uma participação acionária da empresa atingida, ao invés de suplementar uma linha de produção substitutiva. Ou seja, numa era de parcerias tecnológicas estratégicas, do global sourcing e do modo de produção enxuto, não importa se a Chrysler pode ser absorvida pela Toyota ou vice-versa. Essa situação seria percebida, segundo os globalistas, como uma necessidade de se ganhar competitividade e de atender aos padrões de consumo exigidos. Os neo-realistas diriam que a posição de competitividade norte-americana teria sofrido mais um golpe, e que esse enfraquecimento lento e ascendente traria conseqüências ao equilíbrio do poder mundial.

Dessa forma, para os globalistas a concorrência livre teria como resultado não só a possibilidade de oferecer aos consumidores produtos de melhor qualidade e preços inferiores, mas teria também a capacidade indutora de novos aperfeiçoamentos a médio e longo prazos. Estes proviriam do efeito de difusão das novas tecnologias ou sistemas produtivos, da produção local das empresas mais competitivas ou, ainda, do esforço de desenvolvimento tecnológico, administrativo, de marketing, etc, das empresas até aqui inferiorizadas.

Se o globalismo pudesse prevalecer nas estratégias dos principais países, particularmente da parte dos Estados Unidos, então estariam colocadas as bases para atingir dois grandes objetivos: a sustentação de um regime internacional liberal e a manutenção de um relativo status quo, que percebe na continuidade do poder norte-americano a garantia da estabilidade internacional.

Os realistas duvidam reiteradamente dessa possibilidade. Sua percepção é a de que as mudanças nas relações econômicas entre países são, de fato, mudanças nas relações de poder entre eles, envolvendo,conseqüências políticas que criam tensões na sustentação de todo o sistema.

Onde os liberais asseguram que o sistema continua forte na medida em que as grandes nações obtêm ganhos econômicos e aumentam sua competitividade, os realistas acreditam que o sistema internacional de fato reflete posições de vantagem econômica, mas estas estão subordinadas ao interesse nacional. Para eles, o valor do interesse nacional deve manter o seu significado, na medida em que somente assim se poderá garantir o equilíbrio e a universalização de outros valores desejados.

Outro aspecto importante da discussão é o de que a hegemonia e a liderança exercida por um único país facilita a criação e o funcionamento de situações de equilíbrio e cooperação. Snidal e Smith (Snidal, 1985; Smith, 1987) discutem a relação entre regime internacional e hegemonia da seguinte forma: a) os regimes são o resultado de uma situação hegemônica na qual o país dominante os utiliza para manter sua liderança em várias áreas em que a ordem mundial está organizada. Numa situação em que, no caso dos Estados Unidos, o país não dispõe mais de um amplo predomínio no cenário internacional, há necessidade de fortalecer os "regimes" através de outros meios; b) as soluções dos problemas mundiais que a cooperação produz não concede vantagens exclusivamente aos próprios países hegemônicos, mas a toda a comunidade internacional; e c) se a hegemonia declina, isso pode conduzir a cooperação à crise.

Trata-se, na verdade, de compreender se a hegemonia compromete ou estimula a cooperação e se as exigências para garantir sua estabilidade implicam, necessariamente, a existência de uma situação hegemônica. É por isso necessário ver em detalhe o significado da idéia de hegemonia.

A ESTABILIDADE HEGEMÔNICA

A teoria da estabilidade hegemônica, formulada inicialmente por Kindleberger (Kindleberger, 1973), define a capacidade hegemônica de uma nação como o controle e o predomínio em relação às fontes de matérias-primas, aos fluxos de capitais financeiros, aos mercados externos e também como o predomínio em relação às vantagens competitivas na produção de bens de alto valor agregado.

Trata-se de uma teoria que articula a capacidade de um país de dispor de determinados recursos de poder a partir de suas fontes de riqueza. Ela vem sendo amplamente discutida e revalorizada por suas implicações para a sustentabilidade da suposta hegemonia norte-americana depois dos chamados vinte anos "dourados" do pós-guerra, perpassando toda a discussão que envolve o suposto declínio dos Estados Unidos.

Em síntese, a teoria da estabilidade hegemônica sustenta que para a existência e ascensão de uma economia mundial liberal é necessária a liderança de uma nação hegemônica; supondo-se que a hegemonia seja não apenas uma condição necessária à manutenção de uma economia internacional aberta, como também suficiente para a criação de um ambiente cooperativo.

O modelo da teoria da estabilidade hegemônica, no entanto, sofreu críticas de vários autores. Segundo Gilpin (Gilpin, 1987) e Keohane (Keohane, 1.980, 1984), essa teoria não assevera que uma economia internacional liberal seja absolutamente incapaz de funcionar na ausência de hegemonia, ou que a hegemonia garanta, por si mesma, a existência dos princípios do livre-mercado.

O caso sempre citado, de inspiração histórico-empírica, é o da Grã-Bretanha na segunda metade do século XIX. Apesar do seu forte predomínio sobre as fontes econômicas de poder, isso nem sempre significou a consolidação de regras de comércio que a beneficiassem. O controle sobre as rotas comerciais não foi suficiente para induzir os principais traders a adotarem políticas de comércio liberais. Entre 1900 e 1913, o declínio da hegemonia britânica diminuiu as tensões nas relações de comércio, ao invés de estimulá-las. Portanto, os esforços do governo britânico de consolidar regras comerciais foram menos bem sucedidos do que a teoria da estabilidade hegemônica faria crer.

Alguns autores utilizam a comparação entre o caso norte-americano e a experiência hegemônica da Grã-Bretanha para discutir a teoria da estabilidade hegemônica, em geral apontando as diferenças entre as duas situações. Nye (Nye, 1990) identifica principalmente quatro: a) a Grã-Bretanha nunca foi superior em produtividade em relação ao resto do mundo, como o foram os Estados Unidos durante o pós-guerra, e os Estados Unidos nunca foram dependentes dos fluxos de comércio exterior e de investimentos; b) os Estados Unidos, desde 1865, possuem uma economia continental imune à desintegração nacionalista; c) havia diferenças de fundo entre o império britânico e suas colônias, de uma parte, e as áreas de influência dos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra, de outra; d) os tipos de desafios geopolíticos colocados para os Estados Unidos em relação à ex-URSS eram de natureza diferente. Portanto, segundo Nye, uma teoria que se apóia em evidências empíricas frágeis dá margem a dúvidas sobre sua validade científica.

Seria também questionável na teoria da estabilidade hegemônica, segundo Keohane, a relação automática que ela estabelece entre as noções de poder e liderança. A hegemonia é definida pela teoria da estabilidade hegemônica como "uma situação em que um Estado é poderoso o suficiente para manter regras e procedimentos governando as relações in-ter-Estados" (Keohane, 1984, pp. 34 e 35). Contudo, isso não significa que a condição de poder subjacente à situação hegemônica conduza, necessariamente, à projeção do país no cenário internacional.

Sistemas políticos domésticos e processos decisórios têm grande importância para a análise da hegemonia. Portanto, o argumento de que a hegemonia é necessária à cooperação é empírica e teoricamente fraco, além de que a simples existência de uma nação hegemônica não é suficiente para assegurar o desenvolvimento de uma economia internacional liberal. Inúmeras outras condições parecem necessárias.

Ao mesmo tempo, Keohane entende que a discussão sobre a hegemonia nas relações internacionais é um bom ponto de partida para a análise das condições em que a cooperação pode ocorrer e para a compreensão das possibilidades abertas com sua erosão. Para isso, a hegemonia teria que ser pensada menos como um conceito explicativo para situações empíricas específicas e mais como um instrumento para descrever a forma como a liderança pode ser exercida.

Do nosso ponto de vista, a hegemonia não é condição para a cooperação. Para Keohane, a liderança hegemônica depende de um certo tipo assimétrico de cooperação. Por nos parecer correta esta conclusão, entendemos que a propensão a uma atitude internacional cooperativa deve ser estabelecida a partir das vantagens que os diferentes atores poderiam visualizar nessa posição. Isso implicaria o fortalecimento dos regimes internacionais, mas de acordo com a perspectiva da distribuição de vantagens para muitos (ou a totalidade) dos atores, e não apenas para o(s) ator(es) hegemônico(s). Em outras palavras, trata-se de criar mecanismos positivos, que poderiam impor limites à reiterada busca de adesão dos atores mediante a virtual ameaça de perdas se não se adequarem aos valores dominantes.

Na interpretação de Attinà (Attinà, 1989), a pluralidade dos fatores relevantes na reorganização dos sistemas internacionais, que os autores norte-americanos neo-realistas realçam, tem um significado teórico importante. Pois a atribuição da hegemonia ao Estado que está em condições de controlar as relações sistêmicas, tanto no campo político-militar quanto nos outros, provém do reconhecimento da exis-tência de uma dimensão econômica e social internacional que se integra com a dimensão político-militar. A pluralidade dos fatores relevantes, na medida em que não são controlados por um só ator, abre possibilidades, alternativamente, a fenômenos de desordem ou a fenômenos novos de cooperação; daí a importância disso numa fase, como esta, de reorganização do sistema internacional.

Determinadas análises tendem a acentuar a possibilidade de que se a hierarquia entra em crise (enfraquecendo a estabilidade hegemônica) isto permitiria o ressurgimento de pressões protecionistas e autárquicas. De acordo com esta perspectiva, a probabilidade maior é a de um parcial retorno do papel do Estado-nação, pela revitalização dos conceitos ligados ao interesse nacional.

No caso do declínio do papel dos Estados Unidos, isso justificaria a necessidade, segundo Gilpin, de uma política norte-americana voltada a reafirmar o próprio papel, não apenas pelas razões egoístas relativas aos próprios interesses, mas também como único caminho de reciclagem de uma situação de ordenamento mundial. É nesse contexto que ganha destaque a discussão a respeito da interdependência. Apesar de não ser nova, seu entrelaçamento com o debate sobre o declínio norte-americano abre caminho para a compreensão dos temas que serão importantes nas próximas décadas.

A INTERDEPENDÊNCIA

A idéia de interdependência não é propriamente nova. Na medida em que sempre existiram intercâmbios (econômicos, humanos, culturais, etc), a idéia existia de alguma forma. O que se quer aqui indicar é o seu significado contemporâneo. É por isto que ao discutir as modificações no sistema internacional o tema deve ser especificamente tratado.

Em primeiro lugar, a interdependência altera qualitativamente o conceito de soberania nacional. Nessa perspectiva, surgiriam novas estruturas de relações (os regimes internacionais), onde a ação dos Estados ficaria reduzida e onde, numa visão grociana ou kantiana, a capacidade de se promoverem situações de vantagens multilaterais, eclipsando todas as concepções de jogos de soma zero, acabaria prevalecendo de forma definitiva.

Pode-se dizer que a interdependência passou a significar que um Estado está sendo determinado ou significativamente afetado por forças externas, ou seja, esse conceito dentro da política externa refere-se às situações caracterizadas pelos efeitos recíprocos entre países ou atores nos diferentes países (Keohane e Nye, 1989). Além disso, as conquistas técnicas e científicas, a circulação rápida de mercadorias, assim como a instan-taneidade dos fluxos financeiros internacionais, são todos elementos aceleradores da interdependência.

Essa alteração significou uma perda parcial por parte do Estado-nação de seu status de ator dominante, e praticamente único, da política mundial; seu "poder" foi debilitado pelo surgimento de novos atores internacionais. Todavia, apesar da existência dos novos atores não-estatais, são os governos nacionais que controlam e regulam as relações transnacionais e interestatais.

Porém, a existência da interdependência afetou a política internacional e o comportamento dos Estados, os interesses ampliaram-se para além das fronteiras nacionais. O que é importante assinalar, pela novidade histórica subjacente, é que as condições nacionais dos países menores ou mais pobres estão assim determinadas, mas, ainda que em escala muito diferente, também as dos países poderosos. É verdade que o mercantilismo, a revolução industrial e o imperialismo haviam elevado o grau de interdependência, mas hoje ela é instantânea e, sobretudo, o equacionamento de qualquer objetivo nacional implica ter como pressuposto a compreensão deste contexto.

Outro aspecto decisivo é o de que onde há interdependência, encontram-se também custosos efeitos das transações, que nem sempre são impostos direta ou intencionalmente por algum ator, mas que surgem devido às circunstâncias, como no caso da necessidade de realizar uma ação coletiva para prevenir desastres no sistema ambiental ameaçado pelo aumento gradual de resíduos industriais.

Na perspectiva de Keohane e Nye, as relações de interdependência sempre implicarão custos para os envolvidos, e a princípio não é possível especificar se os benefícios do relacionamento serão maiores do que seus custos; nada garante que as relações de interdependência possuam benefícios mútuos.

É dentro do debate desta perspectiva que surge o conceito de interdependência complexa. Nosso interesse em discuti-la está no fato de buscar articular a tendência à cooperação com a utilização da noção de poder. Esta tentativa nos parece especialmente interessante para explicar a atual realidade nas relações internacionais.

A interdependência complexa possui três características principais:

a) Múltiplos canais: os diversos atores podem estabelecer estratégias ligadas a determinados temas de acordo com suas conveniências e, assim, repartir os elementos e instrumentos de poder nos diferentes assuntos da agenda de negociação. Esses múltiplos canais são representados pelas relações interestatais, transgovernamentais e transnacionais. As relações interestatais são os canais aceitos pelos realistas; as transgovernamentais são aquelas relações feitas entre as partes das unidades que são os Estados, portanto não atuariam como unidades coesas, como supõe a teoria realista. As relações transnacionais são realizadas pelas organizações transnacionais, como bancos ou corporações multinacionais;

b) Ausência de hierarquia de temas: não existe uma hierarquia rígida nos temas da agenda das relações internacionais e, com isso, essa agenda mundial acaba sendo estabelecida no decorrer da negociação; a atual agenda é muito ampla e diversa, não está organizada de forma hierárquica, nem tampouco a segurança militar é seu principal tema. A variedade temática requer um tratamento caso a caso, ou seja, para cada assunto busca-se uma solução apropriada e particular, assim como gera diferentes coalizões e arranjos políticos. Nota-se que a estipulação dos meios para resolver determinado assunto varia de acordo com suas características, assim como a importância dos atores, porque num tema um ator pode desempenhar um papel central, enquanto em outro ele pode ser totalmente secundário. Ainda assim, a capacidade articulado-ra do núcleo central de cada Estado é relevante;

c) Papel menos relevante das Forças Armadas: onde existe interdependência complexa, a utilização de força militar, ou sua ameaça, pareceria tornar-se desnecessária. Devido à amplitude da agenda mundial, querelas econômicas ou ambientais tornariam inapropriado o uso da força militar. No entanto, a posse de poder militar pode significar um elemento de influência política, ou barganha, ainda que isso não implique no uso efetivo desse poderio. Uma possibilidade derivada desta, bastante utilizada nos anos recentes, é a do recurso limitado a meios militares, particularmente em cenários não-centrais. Ao mesmo tempo, a capacidade das organizações internacionais de serem o palco da formação de coalizões políticas, entre os mais variados atores, tem aumentado constantemente; elas têm se tornado um ator efetivo e eficaz nas negociações internacionais (ONU, Conselho de Segurança, GATT, OMC, AIEA, etc).

Dentro desse cenário, as ações individuais dos diferentes atores deveriam se harmonizar através de um processo de negociação, coordenação e cooperação. A cooperação intergovemamental ocorreria quando as políticas realmente seguidas por um governo são percebidas pelos demais como estimuladoras para a realização de seus próprios objetivos.

O enfraquecimento da hegemonia pode levar a situações de cooperação através de regimes internacionais sólidos, cujo objetivo é promover relações globalmente mais estáveis e de maior benefício para os atores internacionais.

A agenda internacional, sob um processo de interdependência complexa, é afetada principalmente pelas alterações na distribuição dos recursos de poder. Enfim, pode-se afirmar que o poder e a conseqüente assimetria são um ponto relevante, mas que em determinadas circunstâncias se poderia estabelecer uma densidade de interesses suficientemente forte, capaz de, em aspectos concretos, garantir continuidade a determinadas políticas. De qualquer forma, de acordo com as realidades existentes, a heterogeneidade na distribuição de recursos de poder sinaliza o papel central que continua tendo o debate no único Estado que pode aspirar à detenção dos instrumentos que poderiam garantir a estabilidade hegemônica. A percepção do papel desse Estado no mundo é por isso importante.

O DECLÍNIO AMERICANO

Outro tema contemporâneo ao da interdependência é o do declínio norte-americano e as possíveis formas de enfrentá-lo. Trata-se, sobretudo a partir da análise de Kennedy (Kennedy, 1989), de uma discussão histórica, a partir de uma problematização sobre quais os meios e as políticas desejáveis para evitar a decadência dos Estados Unidos.

Com esta questão vem à tona a problemática da relação entre a teoria e as necessidades de reorientação da política exterior dos Estados Unidos, com o objetivo de colocá-lo em condições de agir em defesa de seus valores, considerados universais. É clássico o reconhecimento de que a política exterior dos Estados é a continuação de sua vida política interna. No caso norte-americano, o estudo de suas instituições e de sua legislação indica que, além do que é válido em geral, a sua política externa é elaborada como se fosse parte de sua própria condição soberana.

A análise do significado do declínio pode se dar tanto a partir de uma perspectiva neo-realista quanto a partir de uma perspectiva globalista. Nos dois casos, as diretrizes propostas absorvem a necessidade de uma ação no sentido de obstaculizar os entraves gerais aos fluxos internacionais. Para os neo-realistas, a questão se coloca mais concretamente e, como sugere Nye (Nye, 1992), não se trata em nenhum caso de abdicar da liderança na ação coletiva, ainda que contando com a colaboração ativa de outros países.

É evidente, como reconhece este autor, que as concepções mais tradicionais de relações internacionais não podem ser desprezadas, mesmo quando a questão política strictu sensu se funde com a econômica. Em outras palavras, a questão econômica vincula-se à questão dos interesses nacionais.

Poderíamos admitir que em futuro não muito distante poderá haver uma revitalização do valor poder nacional como forma de administrar os processos de globalização e regionalização. Assim, o combate ao declínio, numa perspectiva neo-realista, se daria a partir do reconhecimento da consolidação da interdependência complexa, mas sua administração teria que estabelecer-se a partir de precisos núcleos de poder que coincidem com os Estados nacionais, e não a partir de organizações transnacio-nais não-estatais.

As modificações que se verificam na(s) teoria(s) das relações internacionais têm, como dissemos, seu ponto de partida nas necessidades explicativas que a perspectiva sistêmico-estrutural já não satisfazia a contento, mesmo tendo-se em consideração suas atualizações criativas. A discussão a respeito da insatisfação de suas propostas é evidente, aumentando ao longo do tempo.

O melhor exemplo disto é Politics Among Nations, a principal obra de Morgenthau, publicada em 1948, que se insurge contra o liberalismo e o que considera sua conseqüência perniciosa: o estreitamento do campo da política em benefício da filosofia racional ou do cientificismo. Para ele, foram estas concepções que levaram à Segunda Guerra Mundial e, mais do que isto, não serviam ao objetivo de fundamentar a política mundial e norte-americana no início da Guerra Fria. Suas pesadas críticas às "interpretações científicas" das relações internacionais derivam de sua declarada adesão à idéia de que apenas o reconhecimento das forças que determinam a realidade política pode estabelecer as premissas para a ação, e não postulados ideais e razões abstratas.

Para Waltz, herdeiro da tradição realista, o sistema internacional se define em termos de distribuição das capacidades: esta pode ser centralizada, se quisermos podemos chamá-la de hierárquica, ou descentralizada, e portanto anárquica. Sua explicação parte de um outro conceito teórico: a teoria do equilíbrio. Deste ponto de vista, seria preciso prever sempre um comportamento dos Estados em condições de produzir equilíbrios, que geram, apesar da anarquia inata, um sistema de relações internacionais dominado pela centralização do poder, o que torna previsíveis os comportamentos dos atores.

É preciso insistir na compreensão dos pressupostos da tendência ao equilíbrio. Neste sentido, mais uma vez não se pode prescindir do conhecimento da realidade atual e o que deu origem a ela. Neste caso, como em outros na história, o momento constituinte é a guerra, que imporia pelos seus resultados, uma determinada ordem ao sistema internacional.

Isto poderia se constituir em base para a paz, não necessariamente com justiça universal, na medida em que nas relações internacionais o legislador e o suporte dos princípios da ordem estejam concentrados num só Estado ou num pequeno grupo de Estados.

O momento fundante constituído pelo resultado da Segunda Guerra Mundial, sem dúvida, está muito presente em meados da década de noventa. Não é apenas o fato dos Estados Unidos serem ainda a potência universal o que testemunha isto, mas é sobretudo a persistência de valores que se irradiaram a partir do núcleo mais importante ao final daquela guerra. Valores que têm sua base no liberalismo e que se expandiram para o conjunto dos temas da agenda contemporânea: não só o comércio e as relações econômicas, mas também direitos humanos, democracia, meio ambiente, etc.

Estes valores são em inúmeros casos compartilhados e compar-tilháveis, mas são desconsiderados outros tantos que por não serem contemplados, colocam pesadas interrogações. São os casos da pobreza e do subdesenvolvimento, da igualdade social e nacional, da cultura, etc

Apesar de não ter havido um novo momento fundante, a partir da década de oitenta e particularmente nesta de noventa, dois fatores precisam ser cada vez mais absorvidos no plano da teoria: as novas dimensões da distensão, com a decadência do bloco político-militar soviético, que era um dos pilares do sistema anterior, e o crescimento de potências econômicas sem pretensão, aparente, de potência político-estratégica. A partir deste momento, surge a urgência da necessidade de se dar espaço a outras variáveis, estabelecendo pesos equivalentes para os aspectos políticos e econômicos.

Para Gilpin, a crise do sistema e a perspectiva teórica da inevita-bilidade de retorno a alguma forma de equilíbrio, coloca a questão de qual seria o cenário desta nova estabilidade. Sua conclusão é tendencialmente protecionista, tentar-se-ia evitar a decadência restabelecendo equilíbrios a partir das potencialidades ainda persistentes em grande medida.

Parece-nos que esta perspectiva deva ser compreendida em todo o seu significado. De fato, não há nos Estados Unidos correntes de pensamento com alguma importância que elaborem uma política protecionista. A tradição histórica é favorável ao livre-comércio e esta posição tem largo respaldo na opinião pública.

Reconhecemos que os novos equilíbrios implicam a substituição de um modelo sistêmico bipolar por um multipolar. Essa nova posição indicaria aos Estados Unidos que somente a reformulação de suas políticas impediria a situação de declínio. Ou seja, admitida a multipolaridade, mantém-se a suposição de que sua equilibrada permanência depende da existência de um centro que garanta a estabilidade. E esta uma questão básica para compreender boa parte das questões concretas colocadas nestes anos noventa.

Como vemos, na análise neo-realista há uma relativa indefinição no que tange ao conteúdo e ao funcionamento das regras políticas da ordem internacional. Além disso, sua análise não enfrenta a questão do funcionamento das instituições relativas à hegemonia econômica ou, na versão mais recente, à distribuição multipolar do poder. Deixa indefinido, do ponto de vista das regras do funcionamento internacional, o espaço que deveria ser utilizado para evitar o declínio, objetivo que considera desejável para a manutenção da ordem.

O DESAFIO GLOBALISTA

O liberalismo tem sua fundamentação concentrada no funcionamento do mercado como principal organizador da atividade econômica e da articulação social entre pessoas, grupos e nações. Quanto mais livres e abertos, os mercados funcionariam de forma eficiente, aumentariam o comércio de bens e serviços, assim como os fluxos financeiros. De acordo com esta perspectiva, se as nações permitirem uma economia mundial mais livre, o crescimento da riqueza será maior.

Segundo Rosecrance (Rosecrance, 1986), as novas tendências nas relações internacionais, com a característica principal de se apoiarem sobre um mundo de trocas, oferecem a possibilidade de romper com um círculo vicioso e de encontrar novos modelos de cooperação entre os Es-tados-nação, ainda que enfraquecidos como tais. É dentro desta perspectiva que os globalistas predizem que o mundo do futuro pertencerá às nações comerciantes, enquanto que aquelas de tradição territorial, aferra-das ainda a uma concepção estratégica de relações entre Estados, tenderão a declinar.

A análise de Rosecrance possui como um de seus principais sus-tentáculos a hipótese da total internacionalização do capital, libertando-se definitivamente das amarras do Estado-nação. A dificuldade de apoio a esta interpretação de parte dos realistas, se deve ao fato de que consideram que o capital, embora não sirva aos interesses nacionais particulares, na forma como historicamente se constituíram, mantém regras de funcionamento que não deixam de ser estabelecidas pelos atores estatais. Os globalistas consideram que o único regulador possível do sistema internacional não se apóia sobre a existência de Estados, mas apenas sobre relações econômicas cuja ligação com a base territorial é, no melhor dos casos, tênue.

Os globalistas vão mais a fundo na crítica aos neo-realistas, procurando demonstrar que o próprio conceito de regime internacional não pode ser apontado como resultado de um sistema internacional anterior, quando o papel dos Estados era bem maior. Para eles, os regimes tanto podem ser produto como causa de determinadas regras de funcionamento do próprio sistema.

Assim, uma maior radicalidade na análise levou alguns autores que descrevem o declínio do Estado-nação e do valor soberania nacional, a afirmarem que o novo real detentor da soberania no sistema internacional seriam os regimes. Conseqüentemente, seriam as regras e os procedimentos considerados internacionalmente consensuais e válidos a obrigar cada sociedade política a estruturar sua ação de acordo com eles.

Como os teóricos norte-americanos do globalismo depositam absoluta confiança no mercado, podemos imaginar que a crença em seus valores é também o resultado da idéia de que os Estados Unidos ainda possuem vantagens comparativas no sistema internacional, o que lhe daria sustentação para melhorar sua própria posição, lastreando assim o caminho para a reversão da ameaça de declínio. Entretanto, falta à análise glo-balista a explícita percepção da existência de um balance of power claramente favorável aos Estados Unidos. Para eles, esta percepção é subentendida, não explícita, o que poderia criar um círculo vicioso e não virtuoso como pretendem.

Para evitar o declínio não seria preciso apontar na direção de uma polarização hegemônica, mas haveria a necessidade de se criar condições para a continuidade da prosperidade internacional. Seria necessário "um mercado americano dinâmico para convencer os outros de que eles precisam responder às políticas dos Estados Unidos e abrir suas economias ao comércio exterior" (Rosecrance, 1990, p. 98).

Neste contexto, surge como prioritária a questão do próprio desenvolvimento econômico e da diminuição dos encargos militares. Os globalistas percebem no atual quadro internacional uma possibilidade inesperada de reduzir seus gastos militares e seus compromissos político-estratégicos no exterior. Se a esta possibilidade somam-se as vantagens comparativas importantes que permanecem, surge o quadro de reversão do declínio existente.

O círculo virtuoso traria, ainda de acordo com estas premissas, a promessa de vantagens para todos. A posição dos Estados Unidos, porém, não seria igual à dos demais, mantendo-se como garantia da supremacia dos valores liberais e, ao mesmo tempo, pelas suas capacidades, beneficiário privilegiado. Desta forma se superariam as debilidades demonstradas nas últimas décadas.

Falamos também de círculo vicioso na medida em que os custos inerentes à sustentação de um regime liberal poderiam demonstrar-se extremamente pesados, levando a uma relação custo-benefício desfavorável. Nesse caso, novas interrogações a respeito do globalismo surgiriam a partir dos próprios Estados Unidos. Mesmo supondo-se a irreversibilidade histórica do processo de globalização, se reacenderia o debate de como proceder dentro dele, de forma a evitar perdas para países que detêm um poder sistêmico que sugere apego a uma situação que pelo menos mantenha o próprio prestígio e posição.

Para isso, os globalistas entendem ser necessário ampliar ao máximo o comércio internacional, até o limite da mais absoluta liberdade dos fluxos comerciais e financeiros. Para este objetivo, a ação estatal se faz necessária. As modificações na legislação de comércio dos Estados Unidos, particularmente a partir de 1984, deram sustentação a esta perspectiva, porque passaram a penalizar com maior intensidade os países que adotaram instrumentos artificiais de competição comercial. As negociações da Rodada Uruguai do GATT, obviamente conduzidas pelos Estados, também servem de exemplo.

O desafio do século XXI, para os globalistas, seria o do desenvolvimento através do aprofundamento das trocas, em todos os campos. Dessa forma, compreende-se que a base de alguns contenciosos dos Estados Unidos com outros países não parta de uma visão restrita a um fato particular, nem mesmo esteja diretamente determinada por interesses ime-diatistas ou de alguns grupos e lobbies específicos. Crescentemente, os contenciosos referem-se a uma concepção global das relações internacionais que precisaria ser implementada como forma de assegurar um mundo pacífico e próspero, onde os valores que propiciam a criação de bens públicos — cujas prioridades, em boa parte, foram inicialmente elaboradas nos Estados Unidos — se universalizariam.

Não se trata de superação do pragmatismo. Trata-se de que, cada vez mais, há uma aproximação entre os interesses concretos e a própria visão de mundo ou de ordem internacional desejada. Valham como exemplos a guerra do Golfo em 1991, a intervenção na Somália em 1992 e no Haiti em 1994, casos que indicam, como dissemos, de fato haver uma relação complementar, e não excludente, entre os dois enfoques teóricos.

CONCLUSÕES?

Talvez se possa dizer, tendo em conta as elaborações recentes de Nye (Nye, 1990), que o impacto causado pelas teorias declinistas poderia levar a uma certa complementaridade entre os distintos enfoques dominantes. Até os globalistas admitem a continuidade da presença dos Estados Unidos como um ator de importância central no cenário internacional. No entanto, não se trataria mais de uma presença semelhante à que foi exercida durante os últimos quarenta anos, mas seria sobretudo um exercício de garantia de segurança de última instância.

Para Nye, "a áspera divergência entre as duas abordagens (realista e liberal-globalista) sobre assuntos internacionais é exagerada, porque, na verdade, elas são complementares" (Nye, 1990, p. 23). Provavelmente, apesar de dúvidas e exceções, a tendência a curto e médio prazos será a de se procurar fóruns internacionais para regulamentar interesses, tendência que poderá se alterar a longo prazo, caso estes fóruns não respeitem os interesses constituídos e as forças que os respaldam. A criação da Organização Mundial do Comércio, a partir de janeiro de 1995, parece indicar que este caminho será efetivamente percorrido.

Trata-se de estruturar uma ordem internacional em que as expressões particulares de soberania se manifestariam numa "estrutura" previamente moldada, onde se buscariam resultados diferentes dos de soma zero. Diríamos que a melhor expressão disso é a afirmação, como bem público universal, do ideário liberal.

Para alguns, isso significa capacidade de produção de maior poder de comportamento cooptativo e também maior investimento nas organizações internacionais, em outras palavras, significa os próprios regimes internacionais.

Concluindo, deve-se reconhecer que existe uma área em que a busca de estruturação de um campo teórico está longe de estar consolidada é a das relações internacionais. De acordo com Powell (Powell, 1994), o debate entre neo-realistas e neoliberais deixa muitos pontos obscuros, apesar de ter contribuído à elucidação de algumas questões relativas à anarquia no sistema internacional. Mas não se trata apenas de falta de elucidação de questões teóricas. Como o demonstra a contínua intensidade dos debates teóricos e políticos, trata-se de afinar os instrumentos analíticos necessários à compreensão do mundo do século XXI.

O beneplácito da dúvida nos permite imaginar que não há destinos definitivamente traçados, sobretudo numa questão em que o peso dos condicionamentos humanos é decisivo. Portanto, como reconhecem alguns dos principais participantes das polêmicas relativas às teorias das relações internacionais, novos e mais significativos passos deverão ser dados, de forma a dar conta de variáveis insuficiente ou apenas marginalmente consideradas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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