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A materialidade da literatura: a inscrição do romance Iaiá Garcia no "Folhetim do Cruzeiro"

Literature's materiality: the insertion of the novel Iaiá Garcia into the "Folhetim do Cruzeiro"

Resumos

Este artigo analisa o modo como o romance Iaiá Garcia, de Machado de Assis, se inscreve na materialidade do jornal O Cruzeiro. Com base no perfil editorial do periódico, investigam-se as implicações da integração da obra ao conjunto de discursos, concepções ideológicas e fatores de mercado que formam a unidade multiforme de sua instância de divulgação. Da confluência entre a textualidade da obra e sua constituição material, resultam maneiras particulares de fruição literária, determinadas pelos protocolos de leitura, categorias de leitores e horizontes de expectativas próprios de cada contexto de produção.

Iaiá Garcia; O Cruzeiro; materialidade da ficção


This paper examines the insertion of the novel Iaiá Garcia, by Machado de Assis, in the materiality of the newspaper O Cruzeiro. Based on the editorial line of this newspaper, it investigates the implications of integrating the novel with the set of discourses, ideological conceptions and marketing factors that form the plural unity of the newspaper's materiality. This confluence between the literary text and its material composition results in particular ways of literary enjoyment, determined by reading practices, categories of readers and horizons of expectation that prevail in this production context.

Iaiá Garcia; O Cruzeiro; fiction's materiality


ARTIGO

A materialidade da literatura: a inscrição do romance Iaiá Garcia no "Folhetim do Cruzeiro"

Literature's materiality: the insertion of the novel Iaiá Garcia into the "Folhetim do Cruzeiro"

Jaison Luís Crestani

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Este artigo analisa o modo como o romance Iaiá Garcia, de Machado de Assis, se inscreve na materialidade do jornal O Cruzeiro. Com base no perfil editorial do periódico, investigam-se as implicações da integração da obra ao conjunto de discursos, concepções ideológicas e fatores de mercado que formam a unidade multiforme de sua instância de divulgação. Da confluência entre a textualidade da obra e sua constituição material, resultam maneiras particulares de fruição literária, determinadas pelos protocolos de leitura, categorias de leitores e horizontes de expectativas próprios de cada contexto de produção.

Palavras-chave: Iaiá Garcia; O Cruzeiro; materialidade da ficção.

ABSTRACT

This paper examines the insertion of the novel Iaiá Garcia, by Machado de Assis, in the materiality of the newspaper O Cruzeiro. Based on the editorial line of this newspaper, it investigates the implications of integrating the novel with the set of discourses, ideological conceptions and marketing factors that form the plural unity of the newspaper's materiality. This confluence between the literary text and its material composition results in particular ways of literary enjoyment, determined by reading practices, categories of readers and horizons of expectation that prevail in this production context.

Keywords: Iaiá Garcia; O Cruzeiro; fiction's materiality.

Em setembro de 1877, Machado de Assis finalizaria a elaboração de seu quarto romance, Iaiá Garcia, composto com o fim de participar do lançamento do jornal O Cruzeiro, que passaria a circular em 1º de janeiro de 1878. Concebida sob um acordo prévio com os gestores do periódico, a narrativa marcaria presença, desde o número de abertura, no rodapé destinado ao folhetim. Essa publicação parcelada se estenderia até 2 de março de 1878, quando o último fragmento do romance traria estampada a data final da escrita da obra: "setembro de 1877".

Como "resultado de encomenda do grupo que então se preparava para lançar o novo jornal",1 1 MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Prefácio. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia. Edições críticas de obras de Machado de Assis. v. 3. Rio de Janeiro; Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1975. p.12. a obra de Machado de Assis também foi previamente pensada com vistas a uma publicação posterior em livro. Elaborada em colunas mais largas e tipos maiores,2 2 A página do jornal era dividida em seis colunas e, exclusivamente no espaço do folhetim dedicado à publicação de Iaiá Garcia, adotou-se a divisão em quatro colunas. a composição tipográfica já estava sendo preparada para a impressão do livro à medida que o texto era divulgado em folhetim. Um mês após o término de sua publicação no jornal, anunciava-se a venda do romance, em "um nítido volume de mais de 300 páginas", editado pela tipografia do próprio jornal O Cruzeiro. Além de uma eficiente estratégia econômica, esse investimento prévio traduzia a aposta do periódico na competência e na credibilidade do escritor, mencionado na carta-programa como sinônimo de distinção literária.

Desse modo, considerar a conjuntura que presidiu à criação dessa obra literária implica reconhecer a exigência de se compreender o romance não como uma produção autônoma, mas como parte integrante de um empreendimento editorial coletivo. A inscrição de um texto no corpo de um jornal pressupõe uma inter-relação, convergente ou dissonante, em termos de orientação literária, posicionamento ideológico, diretriz editorial e fatores de mercado. Para além dessas disposições, é necessário atentar também para o conjunto de implicações diferenciadas que cada materialidade inscreve na definição do sentido das obras: da confluência entre a constituição material e a componente textual resultam maneiras particulares de fruição da obra literária, determinadas pelos protocolos de leitura, categorias de leitores e horizontes de expectativas próprios de cada contexto.

Entretanto, uma vez que o romance foi inteiramente escrito três meses antes do início da publicação em folhetim,3 3 De acordo com Raimundo Magalhães Júnior no "Prefácio" à edição crítica do romance, a data estampada ao término do último folhetim indica que o romance estava "inteiramente escrito, três meses antes do inicio da sua publicação em O Cruzeiro". a sua composição não recebeu influxos diretos de sua inscrição no corpo de um jornal plenamente constituído. Em vez disso, a escritura de Iaiá Garcia interagiu apenas com o prospecto que orientaria a criação do novo periódico. A interação dinâmica das relações de complementaridade recíproca e de compartilhamento de características entre os diversos elementos textuais que constituem a unidade multiforme de um jornal entraria em ação a partir da colaboração constante que o escritor passaria a manter junto ao periódico O Cruzeiro no decorrer do ano de 1878.

Por outro lado, a composição prévia de Iaiá Garcia, finalizada três meses antes do início da circulação do jornal, sugere que a participação do escritor foi deliberadamente pensada como um investimento estratégico para a construção da credibilidade do periódico, conforme se observa pela reciprocidade legitimadora que se articula entre o jornal e a imagem pública do escritor. Assim, a ratificação do reconhecimento do autor por meio de declarações e resenhas elogiosas retroage em favor da imagem do próprio jornal, que tem o mérito de contar com a colaboração de tão renomado escritor.

Durante o ano de 1878, período em que Machado de Assis participou do corpo de redatores de O Cruzeiro, Iaiá Garcia foi o único romance de procedência nacional a ocupar as páginas do periódico. Todos os demais romances publicados no rodapé do jornal ao longo desse ano constituíam traduções de narrativas folhetinescas de origem francesa. No ano de 1878, o espaço do "Folhetim do Cruzeiro" seria preenchido com a divulgação das seguintes narrativas seriadas: O capitão satanás, de Luiz Gallet, A bruxa, de Emanuel Gonzales, Os sete homens vermelhos, de Armand Lapointe, e O filho das Hervas, de Emílio Richebourg. Verifica-se, portanto, a função especial exercida pelo escritor no âmbito das matérias publicadas no rodapé do jornal, encarregado de representar a literatura nacional, seja sob a forma do romance, do conto, ou mesmo, da crítica literária.

Com o falecimento de José de Alencar, no ano anterior, Machado de Assis começava a afirmar-se como um dos primeiros nomes da literatura brasileira. Em 1873, o retrato do escritor já havia sido estampado ao lado de Alencar na capa do Archivo Contemporâneo, evidenciando o reconhecimento adquirido principalmente em função de sua atuação como poeta e crítico literário. Ao final da década de 1870, com três romances e dois volumes de contos publicados, a obra de Machado de Assis começava a se consolidar como uma referência também no âmbito da prosa. Dessa forma, decidido a reunir os intelectuais mais renomados da corte carioca, O Cruzeiro corroborou a legitimação desse prestígio e filiou a sua própria imagem à competência do escritor, ostentando no programa de abertura do periódico a escolha de "um dos nossos mais distintos escritores, o Sr. Machado de Assis".

A inscrição de Iaiá Garcia no "Folhetim do Cruzeiro"

Em 17 de fevereiro de 1878, "SIC", pseudônimo de Carlos Laet, iniciou a sua crônica dominical referindo-se à questão da febre amarela, que se alastrava pelo Rio de Janeiro. Consciente de estar desvirtuando o protocolo tradicional da seção, comumente dedicada a assuntos amenos e narrativas romanescas, o cronista se sentiu na obrigação de justificar essa mudança inconveniente junto ao público principal dessa seção do jornal: "Este começo parece calculado para despertar a atenção e dissipar o enfado da leitora que desceu às lojas para conversar com a Iaiá Garcia, e não pode reter um muxoxo topando com o cronista dos domingos".4 4 O Cruzeiro, 17 fev. 1878, p. 1, col. 1.

Dessa justificativa, depreendem-se inferências essenciais para a definição das relações entre o romance, o jornal e o segmento de público que presumidamente frequentava o rodapé do periódico. Inicialmente, evidencia-se a especificidade do espaço, em regra reservado a fantasias e amenidades. Conflui para esse arranjo, a particularização do leitorado da seção ao gênero feminino, imbuída também de uma denúncia do desdém deste segmento de público pelo debate sobre problemas sociais e políticos do país. Deste modo, a inscrição do romance Iaiá Garcia nesse círculo, se já não poderia condicionar a sua elaboração ficcional, influencia decisivamente o processo de apropriação e de fruição da obra, implicando assim uma transformação da leitura em função do suporte que a materializa.5 5 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. 2. reimp. São Paulo: Editora da Unesp, 1999. p. 88.

Efeitos dessa complexa interação entre o texto literário e sua inscrição na materialidade do jornal transparecem, por exemplo, em uma apreciação crítica do romance publicada no próprio O Cruzeiro por um de seus principais redatores, que ocultava sua identidade sob o pseudônimo de "Rigoletto". Em meio à inevitável publicidade dos produtos culturais comercializados pelo periódico, surpreende-se uma advertência sutil à escolha do autor por um "romance de amores", considerado pelo crítico como um "seixo duríssimo", que já teria dado tudo quanto tinha de dar: "O autor faz o que quer. O público e o crítico aceitam a obra como ela se apresenta; é o seu dever. Critica-a conforme o seu mérito: é o seu direito".6 6 O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.

Simulando imparcialidade crítica, a advertência constitui mais propriamente um pretexto para o crítico salientar "o fino talento, apurado gosto e elegante linguagem" que permite ao autor fazer "engolir ao povo até mesmo uma história de amores". Dessa forma, em lugar da imagem de um escritor puramente convencional, que a escolha do gênero romanesco tenha, porventura, inspirado ao público, a avaliação crítica almeja afiançar a elevação literária do principal ficcionista do jornal, apresentando-o como modelo de bom gosto, finura, civilidade, distinção e esmero linguístico.

Além da elegância estilística, bem ao gosto aristocrático do público de O Cruzeiro, Rigoletto salienta especialmente o decoro da composição, isenta de máculas e obscenidades, passível de ser lida sem nenhum assombro por todas as famílias da boa sociedade. Assim, se a parte inicial do romance carece de dramaticidade, essa fraqueza seria compensada pelo interesse e aprumo moral da parte final: "Se a exposição, como frequentemente acontece, se lê sem grande abalo, a segunda metade do seu livro arrasta o leitor com um interesse sempre crescente, até o desfecho, que, bem ao revés desses torpes Basílios, é sem mancha e sem reproche".

O contraponto estabelecido com a conduta licenciosa das personagens do romance de Eça de Queirós conflui igualmente para a instituição de uma convergência entre os interesses éticos presumidamente comuns da tríade formada pelo jornal, pela obra e pelo público. Desse modo, a continuidade da avaliação crítica de Rigoletto concentra-se estritamente na conformação do romance a essa perspectiva de leitura preconizada pelos preceitos éticos. Salientam-se, assim, os valores morais que dignificam o caráter da personagem Estela e a convertem em um "belo e virtuoso exemplar de mulher":

É suave, depois de atravessar o charco onde coaxam os Antunes e os Procópios, os Jorges e Garcias, respirar um pouco de puro ambiente moral junto dessa criatura, cuja vida se concentrou em uma constante e virtuosa abnegação, e remata solitária no trabalho honesto, esse consolador de todos os espíritos retos que encontra no seu cumprimento a própria recompensa. A essa não lhe corrompeu a civilização o instinto.7 7 O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1, col. 6.

Ao enaltecer a dedicação ao trabalho e a renúncia aos favores da classe dominante como elementos distintivos da nobreza moral da personagem machadiana, Rigoletto promove o estreitamento dos vínculos entre o enredo do romance, o decoro moral supostamente requerido pelo público e as diretrizes conservadoras da linha editorial do periódico. Assim, nas páginas de O Cruzeiro, a deliberação inviolável de Estela formaria um coro uníssono com os diversos artigos em que o jornal defendeu a necessidade de elevação intelectual e combateu severamente os preconceitos ao trabalho, a devoção ao luxo e o culto da ambição e da vaidade, conforme se observa nitidamente nos excertos transcritos a seguir:

A ambição de riquezas absorve-nos as forças mais vivas da nação. [...]

O justo orgulho do espírito desapareceu quase completamente para dar lugar à vaidade das aparências.

Sacrificamos tudo às aparências do luxo. Vestimo-nos, douramo-nos, condecoramo-nos, mas aprendemos, ilustramo-nos o menos que podemos e daí vem que, embocadas as faculdades intelectuais por falta de cultura, saciados o corpo e a vaidade, se abre em torno de nós esse imenso deserto de tédio [...].

[As] grandes invenções [os caminhos de ferro, o vapor, a eletricidade, o desenvolvimento da indústria], absorvendo totalmente, na luta do mercantilismo, grande número de espíritos, tem sido obstáculo ao desenvolvimento intelectual de milhões de indivíduos, que desconhecem que deviam aproveitar essa emancipação gradual do trabalho, que a ciência lhes proporciona, não para abrirem novo campo a ambições vulgares, mas para se elevarem e à sociedade em que vivem, por meio da cultura do espírito.8 8 O Cruzeiro, 31 maio 1878, p. 1.

O anonimato dos artigos de fundo e o pseudônimo Rigoletto encobriam a identidade de um único e mesmo autor, o redator-chefe do jornal, Dr. Henrique Correa Moreira. Além da confluência moralizadora com os editoriais, a crítica de Rigoletto é perpassada por uma concepção limitadora que reduz a atividade literária ao compromisso de reproduzir fidedignamente a realidade social para o fim de promover a perquirição de verdades morais: "Um romancista deve descrever a humanidade como ela é, como se lhe apresenta a sociedade e não como ela deveria ou poderia ser".9 9 O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1. Para além da afirmação de um realismo extremado, essa determinação constitui mais propriamente uma negação das potencialidades criativas da literatura e dos conceitos de mimese e verossimilhança artísticas, firmados desde a Poética de Aristóteles.10 10 "[...] é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso [...]. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido" (ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética. Introdução e notas de Jean Voilquin e Jean Capelle. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Clássicos Garnier. São Paulo: Difel, 1959. p. 286). Assim, em sua opinião, uma literatura de costumes, como o crítico concebe o romance machadiano, deveria simplesmente "representar a verdade ética, e desenvolvê-la convenientemente".

Por conseguinte, manifesta a convicção de que Machado de Assis teria colhido na vida real os tipos transplantados para seu romance, e toma a liberdade de acrescentar algumas cenas adicionais ao desfecho da história com o intuito de potencializar a dimensão moralizante da narrativa:

Iaiá Garcia deve aí andar passeando por essas ruas em um grande carro, com quatro ou cinco filhos, muito gorda, fazendo numerosas compras de bagatelas na rua do Ouvidor, riquissimamente vestida, com braceletes de ouro maciço, falando em voz alta e estridente, queixando-se dos criados e escravos, que são todos uma peste, enquanto o marido, absolutamente anulado e igualmente pançudo, discute à porta dos Castelões a autenticidade das formas de certas figurantes do Alcazar ou do circo equestre.11 11 O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.

Como se observa, nessa projeção descabida do futuro do casal que teria servido de protótipo às personagens machadianas, o crítico encarrega-se de arruinar o destino da "matreira" Iaiá Garcia e de seu afortunado marido mediante a aplicação de uma caracterização burlesca de suas feições e de uma representação derrisória das práticas levianas de suas condutas sociais. Essa desqualificação das personagens, que a textualidade do romance não pressupõe, constitui um dos efeitos consequentes da inscrição da obra literária no âmago de um programa editorial comprometido com a moralização da sociedade, e especialmente da mulher, por meio da literatura e de seus artigos de opinião.

Pertencente a uma família humilde, mas independente, Iaiá Garcia não herdou a elevação moral e o sentimento de dignidade pessoal de seu pai e de sua madrasta, que prezavam, acima de tudo, a sua independência em relação aos favores paternalistas da classe dominante. Alheia a essas convicções, Iaiá Garcia não concebia como aviltante a ascensão social alcançada por intermédio de um casamento desigual. Em vez disso, demonstrava uma invulgar habilidade para dissimular seus sentimentos e manipular as circunstâncias de modo a concretizar as suas ambições.

A esse respeito, cumpre salientar que, embora a perspectiva narrativa do romance valorize e endosse o ponto de vista das personagens socialmente desfavorecidas,12 12 Cf. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 113-161. o desfecho da trama não pressupõe uma retribuição compensatória àqueles que se mantiveram independentes, tampouco desqualifica ou condena aqueles que tiraram vantagens das relações paternalistas. Portanto, essas ponderações judicativas são inscritas na obra pelo crítico, que julga conveniente complementar as verdades éticas do romance, acreditando que o público-leitor o acompanha na aplicação dessas sentenças à conduta moral da "matreira" Iaiá Garcia:

O público não nos honrou com as suas confidências, até porque não dispõe de cômodos meios de comunicação conosco; mas é muito provável que tenha feito plena justiça àquela nervosa e infantil pescadora, a todo o transe, de um marido gentil e rico; espécie de Putifar virgem, que não recua nem ainda diante do expediente de o agarrar pela aba do fraque, quando ele quer fugir a uma sedução obstinada.13 13 O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.

Nessa apreciação sentenciosa, Rigoletto equipara as ações de Iaiá Garcia às da esposa do general egípcio Putifar, personagem da tradição bíblica, que, na cultura judaico-cristã, é concebida como um arquétipo da mulher adúltera e ardilosa.14 14 De acordo com a narrativa bíblica, Putifar comprou José, filho de Jacó, que fora vendido como escravo pelos próprios irmãos. Atraída pelo escravo, a esposa de Putifar tentou seduzi-lo diversas vezes. Como não obteve êxito, acusou José de tentar tomá-la à força, despertando, assim, a ira de Putifar, que mandou o escravo para a prisão ( Gênesis 39, 1-23). Ao agregar o adjetivo virgem a essa alusão bíblica, a avaliação crítica concentra-se estritamente na destreza com que a personagem manipula as circunstâncias a seu favor na conquista de um marido rico.

Por fim, para perfazer esse quadro moral, restava ainda ao crítico moralista recompensar a abnegação de Estela, confortando-a com a amabilidade e o respeito de todo o seu círculo social:

Estela raro passa na rua do Ouvidor. Quando a eu encontro com seu nítido e singelo vestido de flanela azul orlado de preto, o seu liso chapéu de palha com uma fita, as suas luvas de fio da Escócia, as suas grossas e cômodas botinas inglesas, perguntou-lhe sempre o que leva naquele seu cabazinho de fina esteira. São Livros, gravuras, músicas para os seus discípulos, pequenas encomendas de uso doméstico, surpresas para uma criança, lembranças para uma amiga.

Como ela é bem recebida e acatada em todas as casas conhecidas onde aparece, em todas as ocasiões em que é preciosa a consolação e o conforto! Como a acarinham as crianças, a afagam os hospedes, lhe sorriem e a servem os criados! Atrás de si deixa sempre uma palavra, um sentimento, uma recordação. Nada sabe do que é mau; atravessa a sociedade na ponta dos pés sem enlamear-se. Sua beleza, serenando, santificou-se. Até os parvos compreendem que não há aí lugar para outro sentimento senão para o respeito.15 15 O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.

Com o desfecho proposto pelo crítico, santificava-se não só a beleza, como também as nobres ações de Estela, que consolidou a sua independência econômica e o seu reconhecimento social por meio do trabalho honesto à frente de um estabelecimento de ensino. Uma vez mais, estreitam-se os laços entre o romance, o público-leitor e as demais publicações do Cruzeiro, que também defendiam a emancipação da mulher por intermédio do desenvolvimento da instrução pública, das artes e da cultura intelectual. Conforme demonstrou Daniele Megid, durante o período de publicação de Iaiá Garcia, o jornal apresentou diversas alternativas para que as mulheres pudessem superar a restrição às tradicionais atividades domésticas e conquistar a sua independência:

Mostra-se, por exemplo, mulheres que conquistaram reconhecimento público por meio da arte (cantoras de ópera, atrizes); fala-se de uma Casa de trabalho de mulheres construída em Nova Iorque com a intenção de permitir que as mulheres conseguissem gerir sua vida por meio de seu trabalho (08/01/1878); noticia-se a abertura de um hospital em Berlim que seria dirigido por mulheres (03/02/1878); comenta-se sobre uma ilha na qual as mulheres realizavam todos os trabalhos de agricultura (04/02/1878); divulga-se uma reunião que ocorreria em Buenos Aires para discutir a questão da emancipação da mulher (09-02/1878); comenta-se um episódio norte-americano no qual uma mulher atuou em defesa da participação feminina na política (21/02/1878).16 16 MEGID, Daniele Maria. Representações femininas em Machado de Assis: uma análise de Iaiá Garcia no jornal O Cruzeiro. Anais do I Encontro de Pesquisa de Graduação em História. Campinas, SP: IFCH – UNICAMP, 2008. p. 1-13 Disponível em: < http://www.ifch.unicamp.br/graduacao/anais/daniele_megid.pdf>. Acesso em: 13 de março de 2013. p. 8, nota 12.

Evidentemente, dadas as condições em que se encontrava o sistema educacional da época, o caminho a ser trilhado por essas mulheres (a leitora e sua congênere ficcional) não deixaria de apresentar imperiosas dificuldades, como o próprio periódico reconhece em uma de suas reivindicações em prol da melhoria das conjunturas que amparavam o exercício do magistério no Brasil do último quartel do século XIX:

Cercar o professorado de todas as garantias, proporcionar-lhe meios de subsistência que o dispense de procurá-los em outros misteres, dar-lhe a importância que deve ter, tornando-o respeitável e respeitado, exercendo ao mesmo tempo ativa vigilância e exigindo o mais severo cumprimento dos deveres, será colocá-lo em posição que procurarão ocupar muitos que, embora habilitados, dele fogem, pelas precárias condições de existência a que está atualmente sujeito.17 17 O Cruzeiro, 26 fev. 1878, p. 6.

Verifica-se, portanto, que a avaliação crítica do romance machadiano conduzida por Rigoletto concentra-se no fortalecimento da consonância entre as ações da narrativa e a ideologia civilizatória dos artigos em que o jornal abordou as possibilidades de emancipação feminina no contexto das relações paternalistas do século XIX no Brasil. Prevalece, tanto na ficção quanto nesses editoriais, a ausência de contestação crítica do sistema social vigente e a inoperante proposição de uma "saída heroica" por meio do trabalho assalariado ligado ao exercício do magistério.18 18 Cf. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, cit., p. 160.

Converge igualmente para essa conformação do romance à ideologia civilizatória do periódico a explicação que Rigoletto apresenta para a "experiência maliciosa" praticada pelo autor na escolha do título do romance. Em sua interpretação, Machado de Assis teria investido na "imparcialidade até o ponto de deslocar, por meio do título, o interesse do livro, para assim fazer uma experiência maliciosa sobre o público, a ver se ele concentrava as suas simpatias na matreira Iaiá Garcia".19 19 O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1. Como se observa, o crítico reduz esse deslocamento proposto pelo autor a um simples artifício narrativo destinado a surpreender o público de maneira a exigir uma revisão das expectativas previamente formuladas. Descarta-se, assim, a possibilidade de se considerar que o autor estivesse privilegiando, ainda que de maneira subliminar, a perspectiva da antagonista Iaiá Garcia como a mais adequada para lidar com a cultura paternalista, já que a independência de Estela não recebe uma compensação à altura do sacrifício praticado. Portanto, conforma-se essa sugestiva inversão a uma leitura conservadora, que amortiza o seu potencial subversivo.

Em suma, pode-se afirmar que a inscrição do romance Iaiá Garcia no corpo do jornal O Cruzeiro, acrescida da avaliação crítica traçada por um de seus principais redatores, atua de maneira a integrar a obra à ideologia civilizatória do conjunto de matérias do periódico dedicadas a aspectos peculiares da vida intelectual, cultural, moral e material da época. Desse modo, sob a chancela de O Cruzeiro, a leitura do romance machadiano, tanto na sua versão em folhetim quanto na primeira edição em livro, alinha-se ao conjunto de discursos, códigos, signos, concepções e fatores mercadológicos que formam a unidade multiforme de sua instância de divulgação.

A repercussão de Iaiá Garcia na imprensa

Comprometida com a publicidade dos produtos culturais comercializados pelo periódico, a apreciação do romance Iaiá Garcia traçada por Rigoletto intenta corroborar o valor da obra machadiana amparando-se fundamentalmente em critérios de natureza ética. O juízo crítico é determinado, neste caso, pela conformidade das soluções narrativas do romance com as concepções ideológicas dos atores envolvidos na difusão e no consumo imediato da obra.

Em outra avaliação contemporânea à publicação do romance, distanciada do círculo de interesses da comercialização da obra, Urbano Duarte criticaria, em tom galhofeiro, o caráter insosso da personagem Iaiá Garcia e obtusidade da tese desenvolvida pelo romancista:

[...] Foi-se também Iaiá Garcia, e tão desenxabida como no dia em que nasceu. Ainda estamos por saber que tese quis o autor desenvolver em seu livro, sendo fora de dúvida que ele quis ali desenvolver qualquer tese. Tratamos de descobrir o fito do pensador em meio daquele langoroso idílio e chegamos à conclusão final de que a sua tese era uma tese garcio lógica.20 20 Revista da Sociedade Fênix Literária, n. 3, mar. 1878, p. 69.

Na sequência, o crítico enalteceria o estilo e os dotes de analista revelados pelo autor de Iaiá Garcia: "Um estilo ameno e fácil sem trivialidade, alguns interessantes estudos psicológicos feitos ao correr da pena, uma ou outra fosforescência de poesia doméstica, são qualidades incontestáveis e valiosas ao livro do Sr. Machado de Assis". No entanto, asseveraria a inequívoca insuficiência desses aspectos para "tornar uma obra de arte viável na república das letras" e alertaria o autor para a necessidade de "apimentar um pouco mais o bico de sua pena a fim de que seus romances não morram linfáticos".

Como se observa, a avaliação crítica de Urbano Duarte adota parâmetros completamente distintos daqueles aplicados na leitura de Rigoletto. De suas ponderações, depreende-se que a amenidade e o decoro moral da composição, além de não se sustentarem como critério de valia literária, constituem verdadeiros óbices à afluência do público à proposição da obra. Se Rigoletto salientava a contraposição à torpeza dos Basílios como uma das principais qualidades do romance, a recomendação de Urbano Duarte sugere exatamente o contrário. Ao aconselhar o autor a apimentar um pouco mais o pico de sua pena, suas considerações críticas referenciam a conotação picante e a intensidade dramática do realismo praticado por Eça de Queirós, em O primo Basílio – romance contemporâneo de Iaiá Garcia, lançado em fevereiro de 1878. As advertências de Urbano Duarte focalizam especialmente essa falta de dramaticidade do romance machadiano: Iaiá Garcia é desenxabida, insossa; a tese é dúbia, obliterada em meio a um idílio langoroso; e o romance, como um todo, corre o risco de morrer linfático.

Afora a inclinação antidramática, a dicção vernácula da linguagem empregada por Machado de Assis também despertaria pouco interesse ao crítico imbuído de parâmetros estéticos do movimento realista. Desse modo, Iaiá Garcia é incluído, por extensão, na avaliação desfavorável que Duarte aplica à linguagem do romance Motta Coqueiro ou a pena de morte, de José do Patrocínio, publicado nesse mesmo período nos folhetins da Gazeta de Notícias:

Foi finalmente enforcado Motta Coqueiro.

O Sr. Patrocínio revelou nessa produção entreter relações com a vernaculidade da língua, essa dama casquilha e anacrônica com quem ninguém já se importa. Mostrou ser moço de bastante talento, mas só isso; porque para ser romancista ainda tem que parafusar muito sua esfera icteroide.21 21 Revista da Sociedade Fênix Literária, n. 3, mar. 1878, p. 69.

Comparada às tendências mais arrojadas da linguagem realista, que conferia maior simplicidade e agilidade à sintaxe da frase, a vernaculidade dos romances de Machado de Assis e de José do Patrocínio convertia-se em sinônimo de arcaísmo retrógrado, representativo de uma literatura pedante e passadista, no caso, o Romantismo, que se encontrava em ostensivo declínio nesse período.

O paralelo entre as duas obras seria uma constante das apreciações críticas fomentadas na imprensa da época. Evidentemente, essa convergência do olhar crítico se deve especialmente à importância dos periódicos responsáveis pela publicação dos romances, que respondiam pelas maiores tiragens do país.22 22 O Cruzeiro iniciou a sua circulação com a avultada tiragem de 12 mil exemplares diários. Cf. MATTOSO, Ernesto. Cousas do meu tempo (reminiscências). Paris: Bordeaux, 1916. p. 132, nota de rodapé. Em 13 de janeiro de 1878, o periódico justificou as dificuldades enfrentadas na regularização da distribuição pelo fato de que a sua tiragem fosse talvez a maior de todo o império – afirmação severamente contestada pela Gazeta de Notícias, que, com seus 18 mil exemplares diários, reivindicou para si a posição de jornal de maior circulação do país. Daí o insistente esforço das demais folhas em desconstruir a performance literária encenada por essas obras, conforme se observa nitidamente no comentário divulgado em O Zigue-Zigue ainda na primeira quinzena de publicação dos folhetins de Iaiá Garcia. Note-se, a propósito, que a responsabilidade das obras não é associada aos autores, mas às suas instâncias de divulgação:

[...] para impingir ao leitor coisas insossas, chegam as que fabricamos cá por casa, como, por exemplo, o Senhorio, romance importantíssimo, que começamos também hoje de dar a lume, propositalmente para fazer frente à langorosa Iaiá Garcia, do Cruzeiro, e ao chorado mártir Motta Coqueiro, da Gazeta de Notícias.23 23 O Zigue-Zigue, 12 jan. 1878, p. 3.

Seguindo essa tendência, a Revista Illustrada, ainda antes de ser finalizada a publicação dos folhetins dos romances, promoveria uma articulação paródica das duas histórias, fundindo-as por meio da realização de um casamento entre Iaiá Garcia e Motta Coqueiro. Intitulada "Iaiá Coqueiro", essa representação humorística explorava o aspecto burlesco desse conúbio tão contrastante entre uma joia "esbelta" e "tão bem lapidada" e um homem "áspero" e de "instintos perversos". Além disso, fundiam-se também os nomes dos autores aos das personagens de seus romances: "Machado Garcia" e "Patrocínio Coqueiro". Certamente, essas associações eram pouco agradáveis aos olhos dos escritores; no primeiro caso, atribuía-se a Machado de Assis a austeridade monástica da personagem Luís Garcia, e, no segundo, fundia-se o fervor abolicionista de Patrocínio ao próprio mal que ele se empenhou em combater, o regime servil, personificado na figura do Motta Coqueiro, o fazendeiro escravocrata de seu romance histórico.

Nesse desfecho paródico, assinado por Fr. Fidélis, o casamenteiro, relata-se a descoberta, por um grupo de pessoas, dos encontros furtivos de Iaiá Garcia e Motta Coqueiro ao amanhecer: "Não havia que ver, Iaiá tinha todo o dia entrevistas com Coqueiro, e casá-los era a única saída recomendada pela santa madre igreja. O conjugo salva tudo...". Como artifício final dessa encenação paródica, transcreve-se o anúncio do casamento, publicado supostamente nas páginas do periódico católico O Apóstolo: "No Apóstolo de ontem lê-se este proclama: 'Acham-se justos e contratados para se receberem em matrimônio Motta Coqueiro e Iaiá Garcia... etc., etc...'".24 24 Revista Illustrada, 19 fev. 1878, p. 8, col. 3.

Evidentemente, essa referência ao periódico católico e à unção dos noivos por parte da igreja transcende a simples pretensão humorística e assume uma conotação crítica e irônica, cujo escopo consiste em debochar do decoro moral das obras parodiadas e de sua preocupação em abalizar a conduta das personagens em conformidade com os preceitos da ética cristã. Cumpre salientar, nesse sentido, que o narrador do romance de Patrocínio, visando asseverar a inocência de Motta Coqueiro, intenta consubstanciar a figura do fazendeiro injustiçado com a imagem de Cristo crucificado inocentemente.25 25 "Se se pode traçar paralelo a semelhante sofrimento, era como o do Cristo diante do cálix de amargura na tremenda noite do Horto. / Ambos, porém, acabaram pela resignação, e tiveram a serenidade heroica de encarar, caminhar e subir ao patíbulo, dando de esmola à atroz perseguição o perdão sincero dos seus espíritos calmos" (PATROCÍNIO, José do. Motta Coqueiro ou a pena de morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves; SEEC, 1977. p. 251).

Esse desfecho paródico, proposto pelo redator da Revista Illustrada, receberia uma versão pictórica nas páginas de O Besouro, que, em 27 de abril de 1878, publicaria uma charge humorística desse consórcio disparatado, elaborada pelo editor Rafael Bordalo Pinheiro. Sob o título de "Literalogia", apresentava-se, em forma de caricatura, o casamento do comendador Motta Coqueiro e de Iaiá Garcia, adicionando-se à cena a participação do polêmico protagonista de O primo Basílio, de Eça de Queirós. Os traços atribuídos aos noivos evidenciam o nítido propósito de enfatizar o contraste da compleição física e da casta social, à maneira da descrição verbal traçada pela Revista Illustrada. Assim, o comendador é delineado como um velho obeso e bronco, de traços rudes e grosseiros, enquanto Iaiá Garcia é caracterizada como uma figura langorosa, excessivamente pálida e delgada, perfazendo o ideal de beleza feminina apregoado pelo Romantismo. Ao fundo da cena, visualiza-se o perfil opacamente esboçado dos dois escritores, Machado de Assis e José do Patrocínio, que assistem satisfeitos ao consórcio presidido pelo "bojudo" padre. Este, por sua vez, é representado por uma caricatura que, em outras ocasiões, é utilizada também para personificar o periódico católico O Apóstolo. Evidencia-se, portanto, a nítida intenção de verter em caricatura o desfecho paródico proposto pela Revista Illustrada e de ampliar o alcance do debate por meio da proposição de um triângulo amoroso, prenhe de implicações literárias.

Dessa forma, para completar o quadro, destaca-se, entre os convidados, a figura do primo Basílio, representado como um janota, elegantemente vestido, que ocupa o primeiro plano da gravura e troca olhares insinuativos com a "matreira" Iaiá Garcia. Os traços físicos e o uso do monóculo compõem a caricatura do próprio criador da personagem, o escritor Eça de Queirós, promovendo-se, assim, uma duplicação do triângulo formulado, que transcende o plano das personagens e inclui também os autores responsáveis pelos três romances em cena. Para finalizar, agrega-se à charge uma extensa legenda explicativa, que delimita o sentido da situação representada sob a forma de caricatura:

No momento em que Iaiá Garcia e o Sr. Motta Coqueiro recebem a voz, dada pelo bojudo medianeiro dos idealismos, cai, como um raio junto aos cônjuges o Primo Basílio que, tendo esgotado em sensações novas toda a borracha do Paraguai, volta a explorar a borracha do Pará esperando igual êxito. Ao ver, porém, Iaiá Garcia casando por conveniência com Motta Coqueiro, homem que apenas se prende às sensações do seu negócio, embeve-se [sic] no tranquilo olhar cor de rosa onde se refletem os azulados raios da argêntea lua; e suspenso em êxtases das áureas e vastas madeixas cor de cenoura da poética Iaiá, atira para trás das costas a borracha do Pará e diz:

Estava transviado! Estou confundido. – Esta Iaiá é quem me vai dar sensações novas! Olaré!26 26 O Besouro, 27 abr. 1878, p. 32.

Do ponto de vista da estruturação do campo literário, a celebração do casamento entre os protagonistas dos dois romances brasileiros pode simbolizar a partilha do sucesso alcançado pelos escritores junto aos dois periódicos de maior circulação do país. Cumpre lembrar, nesse sentido, que não somente O Cruzeiro, mas também a Gazeta de Notícias estava estreando o seu primeiro romance nacional. Até então, este importante órgão da imprensa só havia publicado traduções de romances-folhetins de procedência estrangeira. Desse modo, Machado de Assis e José do Patrocínio dividiam serenamente o palco das atenções do grande público, encenando romances convencionais, dotados de uma gravidade formal à altura da seriedade das questões sociais debatidas em suas obras. Sob o amparo da ética cristã, personificada na caricatura do padre, ensejavam uma perspectiva edificante e civilizatória, alinhada aos ideais românticos e aos preceitos da moral tradicional, propondo alternativas anódinas para mitigar os antagonismos inerentes à formação estrutural da sociedade brasileira, especialmente ao que se refere à condição dos agregados – ponto comum do círculo de preocupações dos dois romances.

No entanto, em meio a essa coexistência serena, cai como um raio o Primo Basílio, o que impõe uma reestruturação do campo literário brasileiro, exigindo uma revisão dos conceitos criativos e das posições estabelecidas na dinâmica do sistema literário. Assim, nas palavras de Paulo Franchetti, adentrava a "arena literária brasileira, fulminante, o tema do adultério e da sensualidade obscena" – componente moderna que passaria a colorir a temática amorosa "com a exibição e atração das novas sensações adulterinas".27 27 FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. p. 177. Para Machado de Assis, em especial, a repercussão estrondosa de O primo Basílio no meio literário brasileiro constituiria uma verdadeira pedra em suas botas apertadas. Na glosa drummondiana de João Cezar de Castro Rocha, "no meio do caminho havia um autor" – "elemento catalizador que evidenciou a insatisfação de Machado com seus próprios procedimentos".28 28 ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis – por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 94.

Nessa reordenação das posições do campo literário, impulsionada pelo jogo de oposições que se estabelece entre românticos e realistas, a obra de Machado de Assis seria categoricamente relegada a um plano secundário, em função de sua identificação não só com o Romantismo retrógrado, mas também com os padrões de austeridade moral legitimados pelo Apóstolo do cristianismo desde a publicação de suas primeiras obras.29 29 O Apóstolo sempre noticiava as publicações do jovem Machado de Assis, destacando especialmente o puritanismo das composições, como se observa exemplarmente neste fragmento da apreciação crítica das Americanas: "Eu, que estou um tanto prevenido contra essa nova invasão de bárbaros que assaltaram o Parnaso e o converteram numa corte de milagres, de onde sai cada aleijado e zarolho que mete medo, bastou-me ler no frontispício do livro o nome de Machado de Assis para dar-me pressa em manuseá-lo, saboreando esses favos fabricados por uma abelha industriosa, contra a qual nada podem os zangões. Nas Americanas há poesias lindíssimas, já pelo assunto que as inspirou, já pela vida e colorido da forma, e já finalmente pelo casto perfume que em todas elas se respira" ( O Apóstolo, 5 jan. 1876, p. 1, col. 3). Esse descrédito transparece nitidamente na apropriação paródica da linguagem romântica que a legenda da charge promove ao descrever o olhar da "poética Iaiá", identificando esse estilo empolado com a performance literária do autor. Além disso, vincula-se essa disposição estilística ao conservadorismo da ética cristã, representada pelo padre, "o bojudo medianeiro dos idealismos", que olha com desprezo para o despudorado Basílio, esse vil corruptor do decoro familiar e da ordem social estabelecida.

A resposta machadiana a esse impasse criativo se desdobraria em duas investidas diferenciadas: a primeira consistiria em uma reação intempestiva, excêntrica ao temperamento comedido do autor, que resultou no ataque violento desferido aos romances de Eça de Queirós nos dois ensaios críticos publicados em abril de 1878 nas páginas de O Cruzeiro; a segunda constituiria um denso trabalho de redefinição de seus princípios estéticos e de experimentação de técnicas e procedimentos criativos, com o intuito de descortinar uma nova dicção para a sua produção literária, conforme demonstrarão as obras que se sucederiam ao ano fatídico de 1878.

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Periódicos:

Recebido: 14.09.2013

Aprovado: 18.11.2013

Jaison Luís Crestani é mestre e doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista e pós-doutorando do Centro de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde desenvolve pesquisa com bolsa da FAPESP. É autor do livro Machado de Assis no Jornal das Famílias (São Paulo: Edusp, 2009) e de diversos artigos e capítulos de livros sobre a obra de Machado de Assis, tais como "A Bastilha de Itaguaí: a estruturação do humor em 'O alienista', de Machado de Assis". In: CHAVES, Vania Pinheiro. Literatura Brasileira sem fronteiras. Lisboa: Clepul, 2011. p. 122-137. E-mail: <jaisoncrestani@hotmail.com>.

  • ARISTÓTELES. Arte retórica e Arte poética Introdução e notas de Jean Voilquin e Jean Capelle. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Clássicos Garnier. São Paulo: Difel, 1959.
  • ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia Edições críticas de obras de Machado de Assis. v. 3. Rio de Janeiro; Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1975.
  • BÍBLIA SAGRADA 34. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1982.
  • CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. 2. reimp. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.
  • FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira e portuguesa Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007.
  • MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Prefácio. In: ASSIS, Machado de. Iaiá Garcia Edições críticas de obras de Machado de Assis. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. p. 11-17.
  • MATTOSO, Ernesto. Cousas do meu tempo (reminiscências). Paris: Bordeaux, 1916.
  • MEGID, Daniele Maria. Representações femininas em Machado de Assis: uma análise de Iaiá Garcia no jornal O Cruzeiro. Anais do I Encontro de Pesquisa de Graduação em História Campinas, SP: IFCH UNICAMP, 2008. p. 1-13 Disponível em: <http://www.ifch.unicamp.br/graduacao/anais/daniele_megid.pdf>. Acesso em: 13 de março de 2013.
  • PATROCÍNIO, José do. Motta Coqueiro ou a pena de morte Rio de Janeiro: Francisco Alves; SEEC, 1977.
  • ROCHA, João Cezar de Castro. Machado de Assis por uma poética da emulação Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
  • SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977.
  • ARCHIVO CONTEMPORÂNEO Rio de Janeiro. 1873.
  • GAZETA DE NOTÍCIAS Rio de Janeiro. 1877-1883.
  • O APÓSTOLO Rio de Janeiro. 1875-1878.
  • O BESOURO Rio de Janeiro. 1878-1879.
  • O CRUZEIRO Rio de Janeiro. 1878-1883.
  • O ZIGUE-ZIGUE Rio de Janeiro. 1878.
  • REVISTA ILLUSTRADA Rio de Janeiro. 1877-1883.
  • REVISTA DA SOCIEDADE FÊNIX LITERÁRIA Rio de Janeiro. 1878.
  • 1
    MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Prefácio. In: ASSIS, Machado de.
    Iaiá Garcia. Edições críticas de obras de Machado de Assis. v. 3. Rio de Janeiro; Brasília: Civilização Brasileira; INL, 1975. p.12.
  • 2
    A página do jornal era dividida em seis colunas e, exclusivamente no espaço do folhetim dedicado à publicação de
    Iaiá Garcia, adotou-se a divisão em quatro colunas.
  • 3
    De acordo com Raimundo Magalhães Júnior no "Prefácio" à edição crítica do romance, a data estampada ao término do último folhetim indica que o romance estava "inteiramente escrito, três meses antes do inicio da sua publicação em
    O Cruzeiro".
  • 4
    O Cruzeiro, 17 fev. 1878, p. 1, col. 1.
  • 5
    CHARTIER, Roger.
    A aventura do livro: do leitor ao navegador. 2. reimp. São Paulo: Editora da Unesp, 1999. p. 88.
  • 6
    O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.
  • 7
    O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1, col. 6.
  • 8
    O Cruzeiro, 31 maio 1878, p. 1.
  • 9
    O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.
  • 10
    "[...] é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o primeiro escrever em prosa e o segundo em verso [...]. Diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido" (ARISTÓTELES.
    Arte retórica e Arte poética. Introdução e notas de Jean Voilquin e Jean Capelle. Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Clássicos Garnier. São Paulo: Difel, 1959. p. 286).
  • 11
    O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.
  • 12
    Cf. SCHWARZ, Roberto.
    Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1977. p. 113-161.
  • 13
    O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.
  • 14
    De acordo com a narrativa bíblica, Putifar comprou José, filho de Jacó, que fora vendido como escravo pelos próprios irmãos. Atraída pelo escravo, a esposa de Putifar tentou seduzi-lo diversas vezes. Como não obteve êxito, acusou José de tentar tomá-la à força, despertando, assim, a ira de Putifar, que mandou o escravo para a prisão (
    Gênesis 39, 1-23).
  • 15
    O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.
  • 16
    MEGID, Daniele Maria. Representações femininas em Machado de Assis: uma análise de
    Iaiá Garcia no jornal
    O Cruzeiro. Anais do I Encontro de Pesquisa de Graduação em História. Campinas, SP: IFCH – UNICAMP, 2008. p. 1-13 Disponível em: <
    http://www.ifch.unicamp.br/graduacao/anais/daniele_megid.pdf>. Acesso em: 13 de março de 2013. p. 8, nota 12.
  • 17
    O Cruzeiro, 26 fev. 1878, p. 6.
  • 18
    Cf. SCHWARZ, Roberto.
    Ao vencedor as batatas, cit., p. 160.
  • 19
    O Cruzeiro, 11 abr. 1878, p. 1.
  • 20
    Revista da Sociedade Fênix Literária, n. 3, mar. 1878, p. 69.
  • 21
    Revista da Sociedade Fênix Literária, n. 3, mar. 1878, p. 69.
  • 22
    O Cruzeiro iniciou a sua circulação com a avultada tiragem de 12 mil exemplares diários. Cf. MATTOSO, Ernesto.
    Cousas do meu tempo (reminiscências). Paris: Bordeaux, 1916. p. 132, nota de rodapé. Em 13 de janeiro de 1878, o periódico justificou as dificuldades enfrentadas na regularização da distribuição pelo fato de que a sua tiragem fosse
    talvez a maior de todo o império – afirmação severamente contestada pela
    Gazeta de Notícias, que, com seus 18 mil exemplares diários, reivindicou para si a posição de jornal de maior circulação do país.
  • 23
    O Zigue-Zigue, 12 jan. 1878, p. 3.
  • 24
    Revista Illustrada, 19 fev. 1878, p. 8, col. 3.
  • 25
    "Se se pode traçar paralelo a semelhante sofrimento, era como o do Cristo diante do cálix de amargura na tremenda noite do Horto. / Ambos, porém, acabaram pela resignação, e tiveram a serenidade heroica de encarar, caminhar e subir ao patíbulo, dando de esmola à atroz perseguição o perdão sincero dos seus espíritos calmos" (PATROCÍNIO, José do.
    Motta Coqueiro ou a pena de morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves; SEEC, 1977. p. 251).
  • 26
    O Besouro, 27 abr. 1878, p. 32.
  • 27
    FRANCHETTI, Paulo.
    Estudos de literatura brasileira. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. p. 177.
  • 28
    ROCHA, João Cezar de Castro.
    Machado de Assis – por uma poética da emulação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 94.
  • 29
    O Apóstolo sempre noticiava as publicações do jovem Machado de Assis, destacando especialmente o puritanismo das composições, como se observa exemplarmente neste fragmento da apreciação crítica das
    Americanas: "Eu, que estou um tanto prevenido contra essa nova invasão de bárbaros que assaltaram o Parnaso e o converteram numa
    corte de milagres, de onde sai cada aleijado e zarolho que mete medo, bastou-me ler no frontispício do livro o nome de Machado de Assis para dar-me pressa em manuseá-lo, saboreando esses favos fabricados por uma abelha industriosa, contra a qual nada podem os zangões. Nas
    Americanas há poesias lindíssimas, já pelo assunto que as inspirou, já pela vida e colorido da forma, e já finalmente pelo casto perfume que em todas elas se respira" (
    O Apóstolo, 5 jan. 1876, p. 1, col. 3).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      14 Set 2013
    • Aceito
      18 Nov 2013
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