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O subsistema é nosso: mobilizações indígenas e a coletivização do cuidado no Brasil

The healthcare subsystem is ours: indigenous mobilizations and the collectivization of care in Brazil

El subsistema es nuestro: movilizaciones indígenas y la colectivización del cuidado en Brasil

Resumo

O artigo visa esboçar um panorama histórico e político sobre a relação entre indígenas e Estado no Brasil à luz do processo da Reforma Sanitária ocorrida a partir da década de 1970. Recupera e problematiza, com base em pesquisa e literatura em torno do tema, as concepções políticas subjacentes à diretriz participação, conforme prevista pela Constituição de 1988 e pela Lei Arouca de 1999, que implementa o subsistema de saúde indígena (SASI-SUS), assim como, em contrapartida, as operacionalidades efetivas da participação. À diferença do SUS, o SASI-SUS priorizou o aspecto federativo da gestão e a incorporação sistemática do debate sobre práticas e estratégias de cuidado indígenas no âmbito do atendimento cotidiano do subsistema, ambos apropriados pelo movimento indígena. Argumenta-se que a incorporação desses princípios constitui um elemento importante das relações entre movimento indígena e Estado.

Palavras chave:
Movimento indígena; Políticas de saúde; Estado; Participação; Técnicas de cuidado

Abstract

The article sketches a historical and political overview of the relationship between Indigenous people and the state in Brazil in light of the process of healthcare reform that took place in the 1970s. Based on research and a literature review of this issue, it resumes and problematizes political concepts that underlie the guidelines for participation, as enshrined in the Constitution of 1988 and the Arouca Law of 1999, which established the Indigenous Healthcare Subsystem (SASI-SUS), as well as its counterpart, the effective operational forms of participation. Unlike the national Unified Healthcare System, the Indigenous Healthcare Subsystem gave priority to the federative aspect of administration and the systematic incorporation of the debate on Indigenous healthcare practices and strategies in the realm of daily care within the subsystem, both appropriated by the Indigenous movement. The article affirms that the incorporation of these principles is an important element in relations between the Indigenous movement and the state.

Keywords:
Indigenous movement; healthcare policies; state, participation, healthcare techniques

Resumen

El artículo traza un panorama histórico y político sobre la relación entre indígenas y Estado en Brasil, a la luz del proceso de la Reforma Sanitaria ocurrida a partir de la década de 1970. Recupera y problematiza, en base a investigaciones y literatura en torno al tema, las concepciones políticas subyacentes en la directriz de participación, prevista en la Constitución de 1988 y en la Ley de Arouca de 1999, que implementa tanto el subsistema de salud indígena (SASI-SUS) así como, en contrapartida, las operatividades efectivas de la participación. A diferencia del SUS, el SASI-SUS priorizó la dimensión federativa de la gestión y la incorporación sistemática del debate sobre prácticas y estrategias de cuidado indígenas en el atendimiento cotidiano del subsistema, ambas apropiadas por el movimiento indígena. Se argumenta que la incorporación de esos principios constituye un elemento importante de las relaciones entre movimiento indígena y Estado.

Palabras claves:
movimiento indígena; políticas de salud; Estado; participación; técnicas de cuidado

Introdução

As políticas de saúde governamentais destinadas às populações indígenas recebem distintos tratamentos e delineamentos institucionais em países ao redor do mundo. Países onde estão ausentes sistemas de saúde subsidiados pelo Estado, situação lesiva aos setores mais marginalizados da sociedade, os que possuem condições de vida mais precárias, dentre os quais as populações indígenas, como é o caso dos Estados Unidos;1 1 Considera-se que a ausência de uma política pública de saúde é, em si mesma, uma política de saúde, seja na forma de uma necropolítica (Mbembe 2018), seja na forma de uma valorização ideológica privatista em torno da vitalidade (Rose 2013) - quando deixar morrer é diferente de fazer morrer -, seja uma mistura ou variação de ambas. países onde as populações indígenas são atendidas em sistemas de saúde públicos relativamente estruturados, porém homogeneizado e padronizado nacionalmente, portanto, sem discussões pormenorizadas ou adoção de estratégias específicas de atendimento, como é o caso da Rússia em relação aos povos indígenas de zonas circumpolares do nordeste do país; a implementação esparsa e sem estrutura continuada de programas específicos em saúde voltados às populações indígenas, articulados a serviços e sistemas de saúde nacionais, geralmente financiados por meio de editais de agências multilaterais, como é o caso de México, Chile e Argentina; por fim, a adoção e a implementação de uma política governamental continuada, ou seja, regulamentada em lei e contínua, de atendimento em saúde formulado e voltado para as populações indígenas englobadas em territórios nacionais. Compõem este último caso Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Venezuela, Bolívia e Brasil (Kozlov et al. 2007KOZLOV, Andrew; VERSHUBSKY, Galina & KOZLOVA, Maria. 2007. “Indigenous Peoples of Northern Russia: Anthropology and Health”. International Journal of Circumpolar Health, 66:sup1, 1-184.; Langdon & Cardoso 2015LANGDON, Esther Jean & CARDOSO, Marina (orgs.). 2015. Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: Edufsc.; Allard-Côté et al. 2016ALLARD-CÔTÉ, Emilie-Jane; BRADFORD, Stephanie & DUROCHER, Laurence. 2016. Indigenous Health Policy in Australia, New Zealand, and Canada: A Comparative Overview. Ottawa: University of Ottawa.).2 2 Para efeitos de análise comparativa, à parte das minúcias conceituais legislativas de cada país, toma-se aqui por “populações indígenas”, de modo similar à Convenção 169, as populações cujas ocupações territoriais são identificadas e reconhecidas como anteriores às respectivas formações históricas dos Estados nacionais e suas fronteiras, que possuem tradições de conhecimento, em muitos casos idiomas, e modos de vida destacados dos territórios nacionais nos quais habitam. No caso russo, as populações indígenas no norte do país diferem das chamadas minorias étnicas eslavas, presentes mais ao sul da Rússia e em outros países da Europa oriental e ocidental.

Neste último grupo de países adotam-se políticas de gestão distintas, embora algumas diretrizes, discutidas e compiladas em fóruns internacionais nas últimas décadas, sejam horizontes comuns valorizados, como a participação indígena na formulação e na execução da política, a adoção de estratégias que contemplem aspectos específicos à realidade indígena, seus modos de vida, dentre os quais a valorização e a incorporação da medicina indígena e dos trabalhadores indígenas de saúde - que recebem diferentes denominações de acordo com os países. Os mecanismos da participação indígena também operam desigualmente entre os respectivos países no que se refere ao poder efetivo de deliberação e orientação das atividades de saúde por parte de representantes indígenas, por conseguinte, no que se refere à incorporação de suas demandas na política de saúde.

No caso do Brasil, a política de saúde não é meramente um espaço de atuação setorizada de lideranças e indígenas vinculados especificamente à saúde, mas constitui foco privilegiado das ações coletivas indígenas no país desde seu início, assim como modula as relações tecidas com diferentes governos ao longo do tempo. A construção do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no Brasil (doravante também referido por meio da sigla SASI), subordinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), que serve de “retaguarda” e “referência” ao primeiro (Lei Arouca 1999),3 3 Sobre a Lei nº 11.794 de 1999, também chamada de Lei Arouca, bem como sobre o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena a partir de uma territorialidade por distritos sanitários que essa lei institui, ver Santos et al. (2008), Garnelo (2004, 2014) e Langdon e Cardoso (2015). caminhou, nesse sentido, lado a lado com a formação política do movimento indígena brasileiro. Ao contrário de ter sido objetificada no decorrer de duas décadas de existência do SASI, contudo, a pauta da “saúde” continua, até os dias atuais, inextricavelmente condicionada à dimensão do território nos discursos indígenas, de modo bastante similar às primeiras reuniões ampliadas que aglomeravam diversos povos a partir da década de 1970 (Magalhães 2021MAGALHÃES, Aline Moreira. 2021. “O direito à terra, o direito de ir e vir: saúde e movimento indígena a partir da década de 1970”. In: R.V. Santos ; A.L.M. Pontes & F. Machado (orgs.), Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz .).

O objetivo deste texto é esboçar um panorama histórico e político sobre a relação entre indígenas - suas organizações, lideranças, povos e comunidades - e Estado no Brasil a partir de 1990, à luz do processo da Reforma Sanitária iniciada em meados da década de 1970, movimento que impulsionou as bases teóricas e políticas para a normatização do SUS e do SASI. Argumento que a interlocução do setor da saúde com o movimento indígena nesse período histórico teve um lugar crucial na construção de uma relação contemporânea específica entre 1. populações indígenas e a política de saúde, por conseguinte, 2. entre indígenas e o Estado - em suas múltiplas instâncias, estruturas e arcabouços ideológicos; e, em segundo lugar, que as relações estabelecidas entre indígenas e Estado não circunscrevem o repertório de ações políticas indígenas na sua totalidade.

A implementação de uma reforma sanitária moldada à realidade indígena não se restringiu apenas aos serviços e atendimentos de saúde a partir de então oferecidos de modo capilar às comunidades, mas também ao modo pelo qual o subsistema foi construído, e seu contraste com a conjuntura anterior, na qual manifestações e atuações políticas encontravam-se interditadas pelo governo empresarial-militar. Eu me refiro à centralidade atribuída, por aqueles que estavam conduzindo a construção do SUS, à participação enquanto diretriz central desse sistema de saúde, condizente, por sua vez, com as posições ideológicas fundantes do principal partido de esquerda no Brasil à frente do processo da Reforma Sanitária, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Sua linha ideológica priorizava, em traços gerais, a apropriação do Estado enquanto aparato primordial para avançar, no interior das massas populares, uma consciência de classe, ou transformá-las, por meio de um processo político-pedagógico cultivado em (e a partir de) instâncias estatais, em classe para si - formulado em termos de uma “revolução passiva” e da “democratização”. Regulamentar a pluralidade e o poder de participação de diversos setores populares no âmbito do Estado consistia, assim, em um passo programático bastante estratégico na persecução deste objetivo.4 4 “Esta tarefa mais que fundamental torna-se imprescindível para nós que buscamos, nas lutas pela Reforma Sanitária, construir as bases do socialismo democrático que almejamos para o Brasil” (Arouca 1989 citado em Paim, 2008).

Esse processo produziu um caminho de percepção que se delineava nas discussões e atuações indígenas, a exemplo do tema das nações indígenas: se entre meados da década de 1970 e início da década de 1980 a afirmação ora difusa, ora categórica dessa expressão em reuniões e documentos indígenas procurava levantar a reflexão sobre o estatuto da existência indígena no território nacional brasileiro, esse debate evanesceu, porém, após a aprovação da Constituição de 1988. O deslocamento político ocorreu, em grande medida, no bojo da construção do SASI e se deve aos múltiplos meandros de execução da política, dentre os quais a atmosfera criada em torno do tipo de participação política que emergia e era forjada.

Este texto foi elaborado durante um estágio pós-doutoral, realizado no âmbito do projeto “Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Perspectivas Históricas, Socioculturais e Políticas”, desenvolvido na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), que teve por objetivo investigar a participação indígena na construção e na implementação do SASI-SUS.5 5 Coordenado por Ricardo Ventura Santos (ENSP/MN), o projeto “Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Perspectivas Históricas, Socioculturais e Políticas” contou com financiamento da Wellcome Trust (Inglaterra). O estágio pós-doutoral contou com bolsas de pesquisa inicialmente propiciadas pela Wellcome Trust, e posteriormente pelo Programa Inova, da Fiocruz, no âmbito do Programa de Epidemiologia em Saúde Pública da ENSP. Uma parte importante dos resultados das pesquisas realizadas no projeto foi publicada na coletânea Políticas Antes da Política de Saúde Indígena (Editora Fiocruz 2021). Os materiais aqui recuperados consistem em documentos disponíveis em sites de organizações indígenas, indigenistas, de instituições governamentais e da imprensa. Incorporou-se também um conjunto de entrevistas realizadas ao longo dos anos de 2018 e 2019 no âmbito do projeto citado, com lideranças indígenas e atores envolvidos no processo de criação e implementação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI), conforme listado na bibliografia. Este artigo também está ancorado no acompanhamento de eventos transmitidos on-line em perfis e sites de organizações indígenas ao longo do ano de 2020, em debates com pesquisadoras e pesquisadores vinculados ao projeto mencionado, e em experiência etnográfica anterior, que resultou em tese de doutorado (Magalhães 2014MAGALHÃES, Aline Moreira. 2014. Esquecer-se de si: morte, emoções e autoridades em uma comunidade ticuna. Tese de Doutorado em Antropologia Social, PPGAS-MN-UFRJ.), parcialmente embasada no acompanhamento do cotidiano de um polo base da Sesai localizado em uma comunidade Ticuna, no estado do Amazonas, Brasil.

O artigo está organizado 1. em uma breve recuperação das caracterizações e dos aspectos históricos da articulação etnopolítica no Brasil; 2. nas conexões entre a implementação do SUS e do SASI, tendo como norte algumas discussões teóricas sobre políticas públicas; 3. na abordagem das mobilizações indígenas em torno da saúde no contexto governamental autoritário mais recente.

Das assembleias às organizações

A aglutinação de distintos vizinhos povos indígenas com fins de reunião e associação política no Brasil, com vistas a uma articulação capaz de fazer frente às políticas de abrangência nacional, ocorreu em meados da década de 1970 por iniciativa do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), cujos missionários também auxiliavam e participavam na condução de alguns debates, no registro e no encaminhamento de respostas e ações quanto às condições e situações pelas quais atravessavam os indígenas. A organização etnopolítica ganhou impulso próprio a partir desses primeiros encontros ampliados e do compartilhamento coletivo de problemas comuns enfrentados pelas populações indígenas. Uma primeira organização nacional foi criada em 1980, a União das Nações Indígenas (UNI), e posteriormente começaram a surgir as primeiras organizações de base local e étnica, antes mesmo da permissão legal quanto à representação política indígena, porém exponencialmente aumentadas desde 1988, após sancionada a nova Constituição. Em um processo iniciado naquele período, hoje os indígenas se organizam em suas comunidades, com a realização de reuniões periódicas; por meio de associações específicas, como as associações de mulheres e de artesãos; etnicamente, mediante encontros de capitães, caciques, dentre outros tipos de liderança indígena; regionalmente, por estado ou região; nacionalmente, com uma organização composta por distintas organizações de base local, étnica e regional.

As implicações da construção de um movimento indígena no Brasil de tal escala e robustez, em termos de organização etnopolítica local e regional e de possibilidade de representação parlamentar indígena, foram inúmeras, algumas ressaltadas pela literatura (Matos 1997MATOS, Maria Helena Ortolan. 1997. O processo de criação e consolidação do movimento pan-indígena no Brasil. Dissertação de Mestrado em Antropologia, UnB, Brasília.; Albert 2000ALBERT, Bruce. 2000. “Associações indígenas e desenvolvimento sustentável na Amazônia Brasileira”. In: C.A. Ricardo (org.), Povos Indígenas no Brasil, 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental.; Oliveira 2006PACHECO DE OLIVEIRA, João. (org.) 2006. Hacia una antropología del indigenismo. Rio de Janeiro: Contracapa., 2016PACHECO DE OLIVEIRA, João. 2016. O Nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa.; Barroso-Hoffmann 2005BARROSO-HOFFMANN, Maria. 2005. “Do ‘Brasil sem índios’ aos ‘índios sem Brasil’: Algumas questões em torno da cooperação internacional junto aos povos indígenas no Brasil”. Revista Anthropológicas, n. 9, v. 16 (2):153-186.; Souza Lima 2015SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. 2015. “Estado e povos indígenas no Brasil contemporâneo: da tutela à ação do movimento indígena”. In: C.G. Valle (org.), Etnicidade e mediação. São Paulo: AnnaBlume Editora.; Ferreira 2017FERREIRA, Andrey Cordeiro. 2017. “Etnopolítica e Estado: Centralização e descentralização no movimento indígena brasileiro”. Anuário Antropológico, 42 (1):195-226.): um crescimento exponencial em um curto período de tempo de organizações locais e regionais, ancoradas em formas de associação étnicas; a articulação ágil em torno de pautas, problemas e enfrentamentos comuns, quer de ordem estrutural ou conjuntural, desencadeando múltiplas mobilizações e ações de enfrentamento desde então; os atravessamentos semânticos que passavam a se estabelecer entre comunidades e organizações indígenas e as agendas e linguagens associadas a organismos internacionais multilaterais, majoritariamente voltados à promoção de direitos humanos e desenvolvimento sustentável comunitário; uma determinada especialização dos papéis políticos desse movimento indígena dedicado a atuar “fora” da comunidade, em grande parte ocupado por indígenas que buscam formação educacional em instituições estatais de ensino, oscilando convergências, divergências e aprendizados mútuos entre lideranças tradicionais e os atores indígenas vinculados à educação - estudantes universitários, professores e pesquisadores indígenas - a respeito de determinadas ações e pautas; decorrente desses movimentos e dinâmica de relações, se borraram fronteiras entre conflitos intraétnicos, referentes a relações sociais locais e cotidianas ou de parentela, e conflitos referentes ao envolvimento com as atuações de representação governamental local; identifica-se também o desenvolvimento de uma disposição de defesa das instâncias e mecanismos de participação do Estado, relativamente independente e à parte das relações tecidas com seus dirigentes conjunturais, perspectiva adensada pela construção de um subsistema de saúde montado a partir da participação gestionária dos indígenas.

Através de concepções e estratégias políticas e étnicas distintas, os indígenas, por meio de suas organizações, desde a década de 1970 vêm construindo um estado coletivo de permanente vigília e mobilização, à luz de suas realidades e do alcance a que sabem que podem chegar suas intervenções em deliberações e rumos governamentais, que passa pela publicização cotidiana de contradições estruturais e históricas da sociedade brasileira, pela denúncia de violências e por colocar na ordem do dia suas demandas.

O movimento da Reforma Sanitária e a construção do Subsistema de Saúde Indígena: horizontes e diretrizes da participação

As aspirações dos atores e dos grupos envolvidos no movimento da Reforma Sanitária entre as décadas de 1970 e 1980 transcendiam largamente a implementação de um sistema público de saúde (o SUS), seu fruto mais palpável (Escorel 2009ESCOREL, Sarah. 2009. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitárioRio de Janeiro: Editora Fiocruz .; Gerschman 2011GERSCHMAN, Silvia. 2011. A democracia inconclusa: um estudo sobre a Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .; Paim 2008PAIM, Jairnilson Silva. 2008. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .). Particularmente aqueles envolvidos com a transposição de suas demandas para o texto constitucional de 1988 compunham uma geração vinculada a instituições e departamentos de medicina preventiva ou instituições dedicadas à área de saúde, proveniente de estratos médios, que se encontrava na segunda década de cerramento da permissão estatal de organização política voltada às construções de quaisquer disputas, questionamentos e modificações relacionadas às formas de imposição e controle de uma determinada realidade social, assim como a dominação econômica que a engendrava (Entrevistas Acervo Ensp/Wellcome).

O movimento da Reforma Sanitária foi impulsionado pelo Movimento Popular em Saúde (MOPS), movimentos de médicos e departamentos de medicina preventiva (Gerschman 2011GERSCHMAN, Silvia. 2011. A democracia inconclusa: um estudo sobre a Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .), e consistia em organizações coletivas nacionalmente articuladas voltadas à crítica ao caráter elitista e autoritário da prática médica, por um lado, e o funcionamento privatista de sua indústria, por outro (Gerschman 2011GERSCHMAN, Silvia. 2011. A democracia inconclusa: um estudo sobre a Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .; Escorel 2009ESCOREL, Sarah. 2009. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitárioRio de Janeiro: Editora Fiocruz .). A densidade e o alcance de mobilização desse movimento ancoravam-se sobretudo nas discussões e nas implementações de projetos de medicina comunitária em bairros e comunidades urbanos e rurais, cujas discussões e ações norteavam “o atendimento médico, os remédios caseiros, as parteiras, a formação de agentes de saúde”, temas que foram “abandonados pela discussão da política nacional” (Gerschman 2011:101GERSCHMAN, Silvia. 2011. A democracia inconclusa: um estudo sobre a Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .). O campo político que ficou à frente dessa política nacional, ainda que heterogêneo, além de majoritariamente vinculado a instituições, era, por sua vez, hegemonizado pela militância do Partido Comunista Brasileiro (PCB), orbitando ao redor de sua estrutura (Marini 2013MARINI, Ruy Mauro. 2013 [1969]. Revolução e subdesenvolvimento. Florianópolis: Editora Insular.).6 6 Sérgio Arouca, médico sanitarista e autor da lei que cria o subsistema de saúde indígena (apelidada de Lei Arouca), era também do quadro orgânico do PCB, tendo sido depois deputado pelo partido (Escorel 2009; Entrevista Antonio Ivo 2019). Durante o regime empresarial-militar - que coincidia com o contexto da Guerra Fria e com a eclosão de diversos tipos de resistências e insurgências globais - muitos atores envolvidos com a Reforma Sanitária e com o que viria a se transformar em política governamental em saúde eram organicamente atravessados tanto pelas suas inserções profissionais como pelas atuações políticas, procurando articular ambas.

Para a discussão sobre a questão de saúde especificamente, houve uma articulação com o Partido Comunista Italiano e com o Instituto Gramsci, em diálogos com o médico, professor e deputado pelo PCI Giovanni Berlinguer (Escorel 2009ESCOREL, Sarah. 2009. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitárioRio de Janeiro: Editora Fiocruz .:84), que sob os auspícios do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) promoveu conferências e lançou livros no Brasil a partir de 1978. Essa colaboração não se deu casualmente; ao contrário, refletia um alinhamento ideológico em torno da avaliação de que a práxis política deveria ser orientada pela ideia de que não havia dicotomia entre sociedade civil, sociedade política e Estado. O revisionismo marxista desembocou no postulado de que o Estado é uma composição da sociedade política e da sociedade civil, reflete suas contradições; nesse sentido, ações de Estado e de governo não se fiariam exclusivamente nas necessidades de acumulação capitalista. O Estado e seus aparelhos de hegemonia constituiriam a arena de disputa entre as classes e suas respectivas influências exercidas sobre o mundo social. Hegemonia não se confunde com coerção nessa literatura: pode se apresentar como coerção, mas envolve sobretudo o consenso ativo entre os governados (Paim 2008PAIM, Jairnilson Silva. 2008. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .). Na expressão de Gramsci, “hegemonia couraçada de coerção” (Gramsci citado em Paim, 2008:40PAIM, Jairnilson Silva. 2008. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .). A tarefa dos setores progressistas consistiria em orientar seus esforços em torno de “disputas pela hegemonia”. A subversão do consenso dos dominados passaria, então, por atuações focadas nas ordens ética, política e cultural da sociedade.

Nesse horizonte de expectativas, os setores vinculados ao movimento da Reforma Sanitária, amparados na concepção de saúde como completo bem-estar e não meramente como ausência de enfermidade (WHO 1946WHO (World Health Organization) 1946. Preamble to the Constitution of the World Health Organization.), vislumbravam uma elevação da consciência sanitária. A Reforma visava qualificar o conceito e o debate sobre saúde no Brasil, assim como depurar institucionalmente as estratégias para sua universalidade e ampla participação; consequentemente, alargar o conceito de cidadania: na medida em que se postulava saúde de modo amplo, responsabilizar constitucionalmente o Estado por garanti-la a todos os cidadãos se desdobraria em pressões populares rumo ao avanço da democratização que se almejava para a sociedade brasileira.7 7 Ver Proposta Reforma Sanitária, 1987 (citada em Paim 2008:157). Figurava dentre suas diretrizes centrais a participação da sociedade civil, por meio de uma organização federativa do setor da saúde, cujas discussões e deliberações transpassariam desde conselhos municipais à Conferência Nacional de Saúde.

O viés contratualista dessa tradição política, que percebe a participação em instâncias estatais como suficiente para a transformação de sistemas político-econômicos, no limite pende à submissão consentida dos dominados, esvaziando a coerção violenta - modalidade amplamente registrada e divulgada, sobretudo em territórios colonizados convertidos em economias periféricas dependentes (Marini 2000MARINI, Ruy Mauro. 2000 [1973]. Dialética da dependência. Petrópolis: Editora Vozes.; Galeano 1986GALEANO, Eduardo. 1986 [1971]. As veias abertas da América Latina. São Paulo: Paz e Terra.; Taussig 1993TAUSSIG, Michael. 1993. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. São Paulo: Paz e Terra .; Oliveira 2000PACHECO DE OLIVEIRA, João. 2000. “Sobre macacos, índios e peixes: narrativas e memórias de intolerância na Amazônia contemporânea”. Revista Etnográfica, v. IV (2):285-310.). A sobrevalorização da participação evidencia-se, por exemplo, nas narrativas sobre a 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, marco histórico para o movimento da Reforma Sanitária e para a aprovação constitucional do SUS, que aparecia aos olhos de seus participantes e organizadores como sinalizadora de transformações significativas no país (EntrevistasEntrevistas: Christina Tavares (2019), Alba Figueroa (2018), Diana Marinho (2018), Jacir de Souza (2019), Clóvis Wapichana (2018), Antonio Ivo (2019), Chico Apurinã (2019), Zezinho Kaxarari (2019), Ivani Gomes (2018), Carmem Pankararu (2018, 2020). Acervo Ensp/Wellcome; Vídeo 2016Vídeo. 2016. Oitava: a conferência que auscultou o Brasil. Canal ENSP-Fiocruz Youtube.). Em virtude da ampla diversidade e efervescência popular no decorrer do evento, as potencialidades do que viria a ser uma reforma parcial e setorizada (Paim 2008PAIM, Jairnilson Silva. 2008. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .) foram lidas através de uma lupa por atores mais ativamente envolvidos nesse processo.

Ao condicionar o avanço das pautas do movimento da Reforma Sanitária, bem como o processo emancipatório da sociedade, à operacionalidade da participação popular nessas instâncias estatais, colocando-a como central, essa tradição política tendeu a colocar de lado as experiências populares cotidianas de saúde que forjaram o movimento, sustentavam sua força política sob o acúmulo dos projetos de medicina comunitária (Gerschman 2011GERSCHMAN, Silvia. 2011. A democracia inconclusa: um estudo sobre a Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .).8 8 A divergência quanto ao lugar dado a esse tipo de participação provocaria uma cisão no interior do Movimento Popular em Saúde (MOPS) e, consequentemente, sua desarticulação gradual, dividido entre uma “facção mais crítica e radical na sua visão do Estado, concebendo-o como espaço exclusivo das classes dominantes, e outra facção que, ainda que postulasse o domínio da burguesia no Estado, não acreditava que ele fosse monolítico, sem fraturas internas, através das quais seria possível pressionar, negociar e construir alianças que possibilitassem as conquistas sociais na saúde” (Gerschman 2011:114).

Distintamente, no caso da saúde indígena e da estrutura do SASI, tanto o modelo da participação quanto a discussão sobre as técnicas de cuidado locais adquiriram relevâncias centrais, e suas operacionalizações dentro do subsistema passaram a ser moldadas conforme as apropriações étnicas dessas diretrizes. Criado em 1999, à estrutura do SASI foram previstos e construídos Conselhos Locais e Distritais de Saúde, assiduamente reunidos. Os presidentes distritais, por sua vez, reúnem-se no Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais Indígenas (FPCONDISI), cujos conselheiros/conselheiras têm, por sua vez, assento na Comissão Interinstitucional de Saúde Indígena (CISI), que agrega gestores de diferentes órgãos governamentais (Funai, Sesai), representantes de categorias laborais diversas e de organizações regionais indígenas. Nesses diferentes planos de discussões e deliberações, que se iniciam nos Conselhos Locais, são produzidos relatórios e diagnósticos acerca da operacionalidade dos serviços e encaminhadas as demandas e propostas à Conferência Nacional de Saúde Indígena (CNSI), cuja periodicidade é irregular.

No que tange ao seu aspecto de organização federativa, o campo da saúde indígena asseguraria uma ampla margem de atuação indígena. Entretanto, conforme argumentam algumas autoras que realizaram pesquisa etnográfica nesses espaços (Langdon & Diehl 2007LANGDON, Esther Jean & DIEHL, Eliana. 2007. “Participação e autonomia nos espaços interculturais de saúde Indígena: Reflexões a partir do sul do Brasil”. Saúde e Sociedade, 16 (2):19-36.; Teixeira et al. 2013TEIXEIRA, Carla Costa; SIMAS, Diego & COSTA, Nilton. 2013. “Controle Social na Saúde Indígena: limites e possibilidades da democracia direta”. Tempus - Actas de Saúde Coletiva, 7 (4):97-115.; Teixeira 2017TEIXEIRA, Carla Costa. 2017. “Participação social na saúde indígena: a aposta contra a assimetria no Brasil?”. Amazônia, Revista de Antropologia, 9 (2):716-733.; Diehl & Langdon 2018DIEHL, Eliana & LANGDON, Esther Jean. 2018. “Indigenous participation in primary care services in Brazil - Autonomy or bureaucratization?”. Regions & Cohesion, 8 (1):54-76.; Diehl 2021DIEHL, Eliana. 2021. “Participação no contexto pré-subsistema de atenção à Saúde Indígena: a perspectiva das vozes indígenas”. In: R.V. Santos ; A.L.M. Pontes & F. Machado (orgs.), Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz .), a organização federativa do subsistema sempre esteve aquém de garantir a implementação das demandas elaboradas de modo descentralizado. As dinâmicas de deliberação e encaminhamento efetivos do que é discutido de modo descentralizado nos Conselhos Locais, pelas instâncias nacionais, como a CISI, seguem uma perspectiva de democracia que enfatiza mais os procedimentos, ou a ritualística burocrática objetificada em torno do cumprimento da diretriz participação, e menos os resultados (Teixeira et al. 2013TEIXEIRA, Carla Costa; SIMAS, Diego & COSTA, Nilton. 2013. “Controle Social na Saúde Indígena: limites e possibilidades da democracia direta”. Tempus - Actas de Saúde Coletiva, 7 (4):97-115.), em virtude das ambiguidades e assimetrias de poder que permeiam esses espaços (Diehl & Langdon 2007; Montejo, s/dMONTEJO, Paulino. s/d. “Políticas Públicas e Povos Indígenas. Espaços de participação e controle social”. Acervo CIMI. Mimeo.).

Em meio à crítica às raízes neoliberais da “participação” ou da “cogestão”,9 9 Ver Barroso-Hoffmann et al. (2004); Souza Lima (2015); Hoffmann (2009). identificam-se duas vertentes gerais de abordagem das políticas públicas, que são concomitantemente expectativas teórico-políticas em torno das potencialidades da democratização inerentes à participação. A primeira, a exemplo da Reforma Sanitária moderna no Brasil, na presunção de que as políticas de Estado seriam capazes de promover uma transformação da sociedade por meio de uma ou várias reformas parciais e, logo, de uma inversão de forças, seja da supressão do abismo interclasses, seja da supressão das classes. Baseada nessa avaliação, a prática política é majoritária ou completamente direcionada à dimensão das latências e das insuficiências inerentes às contradições entre reivindicações sociais e resposta estatal (e das classes dominantes) em provê-las. Um segundo registro, semelhante ao primeiro porém menos otimista, é inspirado em Foucault e propõe uma análise das camadas do poder e da governamentabilidade intrínsecos ao funcionamento das políticas públicas e suas formas de criar realidades, tanto na direção da mudança quanto na continuidade e na reafirmação das relações de poder (Shore & Wright 2011SHORE, Cris & WRIGHT, Susan. 2011. “Conceptualising Policy: technologies of governance and the politics of visibility”. In: C. Shore; S. Wright & D. Peró (eds.), Policy Worlds: Anthropology and the Analysis of Contemporary Power. Nova York: Berghahn Books.). As políticas públicas são dimensionadas enquanto fenômenos sociais de análise suficientemente independentes e específicos por conformarem âmbitos de sociabilidade, dinâmicas e replicações variadas de discussões, linguagens e pautas ao redor do mundo.

Com efeito, o funcionamento de políticas governamentais configura pontos de tensão de reivindicações, como aponta o primeiro modelo, além de muito frequentemente serem reificadas pautas, configurações e searas de atuações políticas, como aponta o segundo modelo. A própria experiência histórica, entretanto, contradiz a expectativa de que as políticas governamentais possam alargar os sentidos de cidadania nos termos estatais até sua ruptura, como propõe o primeiro modelo, além de consistir numa operação analítica relativamente parnasiana procurar construí-lo enquanto objeto per se, deslocada da discussão sobre Estado (Souza Lima & Castro 2008SOUZA LIMA, Antônio Carlos de . & CASTRO, João Paulo Macedo. 2008. “Política(s) Pública(s)”. In: L. Sansone & O. Pinho, Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: Ed. UFBA.), no limite tomando como premissa de que se trata quase de um jogo de soma zero entre avanços, recuos e reafirmações do status quo.

Antes de serem cristalizados e domesticados em narrativas estatais, contudo, os serviços públicos governamentais mais centrais se construíram historicamente por meio de ações coletivas, no horizonte e sob os auspícios do Estado de Bem-Estar (economia welfare), inscritas na construção de um senso de responsabilidade do cuidado, bem como de responsabilização e delegação do cuidado entre classes, enquanto parte do processo contínuo de formação/afirmação do Estado-nação (Swaan 1988SWAAN, Abram de. 1988. In care of the state: health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. Nova York: Oxford University Press.). Concomitantemente, as ações contra dissoluções de políticas governamentais ocorrem com frequência mediante pressões populares, de modo que em muitos casos é somente em virtude dessa dimensão que o Estado não pode prescindir de políticas sociais enquanto exercício de regulação do poder.

As conquistas de direitos, ao invés de consistirem meramente em narrativas apropriadas no processo de construção de sujeitos coletivos/sujeitos de direitos, refletem estratégias voltadas a amenizar desafios e sofrimentos cotidianos. Em países periféricos, o direito à saúde engendra tanto concessões diante de demandas sociais quanto estratégias de controle de populações e da transmissibilidade de doenças entre classes (Swaan 1988SWAAN, Abram de. 1988. In care of the state: health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. Nova York: Oxford University Press.). Em virtude desses sentidos inerentes, a execução de sistemas de cuidados gerenciados pelo Estado é intrinsecamente insuficiente para provocar quaisquer tipos de rupturas. Não obstante, por atenderem a demandas gestadas em processos coletivos, as políticas de saúde são por vezes apropriadas como patrimônios, conquistas, na medida em que a execução de determinados serviços é vista como vital por parcelas significativas de populações nacionais. As políticas de saúde constituem, assim, locus de disputas, pois, de modo consideravelmente distinto de boa parte dos países privilegiados - “desenvolvidos”, segundo o arcabouço ideológico emanado e anualmente atualizado desde Davos -, a execução de nenhuma política social está garantida em si, mesmo que prevista em lei. Sobretudo em países periféricos dependentes onde se avançam as políticas ultraliberais, como é o caso do Brasil, os direitos sociais são o lugar da tensão permanente e inacabada das relações desiguais e coloniais do mundo contemporâneo, tensão esta permeada por avaliações e experiências de grupos, localidades, municípios, categorias profissionais.

É sob esse plano da história conflitiva dos direitos sociais, que engendrou um processo de coletivização e delegação do cuidado a partir de percepções de uma determinada interdependência entre grupos e classes sob o corolário da saúde, que este texto aborda as mobilizações indígenas em torno da saúde no Brasil. Retiradas as expectativas de rompimentos e transições desenvolvidas de cima para baixo, o foco recai a) sobre a dimensão instável da política governamental, ou seja, nas reivindicações, tensões e ações coletivas indígenas em um contexto de permanente contradição entre o direito à saúde, por um lado, e o serviço efetivamente prestado, do outro, nesse sentido, sobre os avanços e os refluxos inerentes à dialética entre reformas e insurgências (Ferreira 2016FERREIRA, Andrey Cordeiro (org.). 2016. Pensamento e práticas insurgentes: anarquismo e autonomias nos levantes e resistências do capitalismo no século XXI. Porto Alegre: Editora Alternativa.); b) sobre os reflexos e os desdobramentos das estratégias e das práticas de cuidado indígenas (Ferreira 2013FERREIRA, Luciana Ouriques. 2013. Medicinas indígenas e as políticas da tradição: entre discursos oficiais e vozes indígenas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .; Magalhães 2014MAGALHÃES, Aline Moreira. 2014. Esquecer-se de si: morte, emoções e autoridades em uma comunidade ticuna. Tese de Doutorado em Antropologia Social, PPGAS-MN-UFRJ.; Pontes et al. 2015PONTES, Ana Lucia; GARNELO, Luiza & REGO, Sergio. 2015. “O modelo de atenção diferenciada nos distritos sanitários especiais indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil”. Revista Ciência & Saúde Coletiva , 20 (10):3199-3210.; Dias-Scopel 2018DIAS-SCOPEL, Raquel Paiva. 2018. A cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: autoatenção e medicalização entre os índios Munduruku. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.) nessa instabilidade.

Entre apoios e críticas: o contexto de criação e implementação do SASI

Na contramão da proposta formulada pelos sanitaristas modernos de delegar constitucionalmente ao Estado a responsabilidade de prover serviços de saúde de modo integral e universal a todos os cidadãos, a conjuntura nacional a partir da década de 1990, nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso, foi regida pela ótica neoliberal do que se chamou de “diminuição do papel do Estado na regulamentação econômica”. Investimentos em políticas sociais, instâncias e instituições foram reduzidos, mediante uma política de inversão fiscal (sob os rótulos “ajuste” e “austeridade”), consequentemente minorando seus respectivos alcances de atuação e provisão de serviços à população. Setores produtivos estratégicos de grande monta, até então geridos e controlados pelo Estado, foram vendidos ao empresariado, como mineração, hidrelétrica, telefonia e o início da abertura de capital da produção de petróleo. Como desdobramento da diminuição de arrecadação, bem como dos caminhos a longo prazo que seu partido (PSDB) logrou pavimentar no Brasil, o então Sistema Único de Saúde recém-criado padeceu de investimentos suficientes para a concretização de seu programa desde o início (Paim 2008PAIM, Jairnilson Silva. 2008. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz ., 2013PAIM, Jairnilson Silva. 2013. “A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Cad. Saúde Pública , Rio de Janeiro, 29 (10):1927-1953, out., 2018PAIM, Jairnilson Silva. 2018. “Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos”. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 23 (6):1723-1728.).

No que tange à política indigenista, se, por um lado, a política de demarcação territorial foi significativa durante os governos de Fernando Collor e FHC, comparada a períodos históricos anteriores e posteriores, a implementação do SASI foi construída por meio da terceirização - ideia força neoliberal utilizada para eufemizar a venda nacional de recursos e gestões de setores econômicos estratégicos, onipresente nos anúncios governamentais sobre o estabelecimento das chamadas “parcerias público-privadas”, que beneficiaram amplamente o capital estrangeiro/multinacionais. O expressivo investimento governamental ao SASI, dentro do conjunto da política indigenista, desde a Constituição de 1988 (Barroso-Hoffmann et al. 2004DIAS-SCOPEL, Raquel Paiva. 2018. A cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: autoatenção e medicalização entre os índios Munduruku. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.), alinhou-se à estratégia de focalização do SUS como um sistema voltado para os setores mais desfavorecidos, esvaziando o caráter qualitativo e universal preconizado pela sua proposta (Garnelo 2014GARNELO, Luiza. 2014. “O SUS e a saúde indígena: matrizes políticas e institucionais do Subsistema de Saúde Indígena”. In: C.C. Teixeira & L. Garnelo (orgs.), Saúde Indígena em Perspectiva: Explorando suas Matrizes Históricas e Ideológicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .).

Na ausência de uma perspectiva de dotar o subsistema de capacidade operacional, os governos federais a partir de então oscilaram entre delegar a execução da política a seções do Ministério da Saúde - como a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (Fundação Sesp) e a Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) -, firmar contratos de terceirização com organizações da sociedade civil, e estabelecer convênios com organizações indígenas. Quanto aos últimos, embora tenha conferido poder de gestão e autonomia aos indígenas durante a vigência dos convênios, custou às organizações indígenas o desgaste político de gerir vultosas quantias de recursos públicos, sem que fosse garantida também uma estrutura suficiente para tal (Garnelo 2004GARNELO, Luiza. 2004. “Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Análise Situacional do Período de 1990 a 2004”. Documento de Trabalho nº 9, Porto Velho, Rondônia., 2005GARNELO, Luiza. 2005. “Organizações indígenas e distritalização sanitária: os riscos de ‘fazer ver’ e ‘fazer crer’ nas políticas de saúde”.Cad. Saúde Pública[on-line], v. 21, n. 4., 2014GARNELO, Luiza. 2014. “O SUS e a saúde indígena: matrizes políticas e institucionais do Subsistema de Saúde Indígena”. In: C.C. Teixeira & L. Garnelo (orgs.), Saúde Indígena em Perspectiva: Explorando suas Matrizes Históricas e Ideológicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .; Entrevista Chico Apurinã 2019Entrevistas: Christina Tavares (2019), Alba Figueroa (2018), Diana Marinho (2018), Jacir de Souza (2019), Clóvis Wapichana (2018), Antonio Ivo (2019), Chico Apurinã (2019), Zezinho Kaxarari (2019), Ivani Gomes (2018), Carmem Pankararu (2018, 2020).). As organizações indígenas subitamente se viram às voltas com a obrigação político-moral de tomar para si uma pesada carga burocrática, operar com volumes orçamentários nunca antes conhecidos, lidar com formas de pagamentos inviáveis de serem executados em suas realidades regionais, o que ocasionou “acúmulo de dívidas trabalhistas geradas pelo atraso no repasse de parcelas dos convênios e a limitações técnicas e administrativas de entidades” (Garnelo 2005GARNELO, Luiza. 2005. “Organizações indígenas e distritalização sanitária: os riscos de ‘fazer ver’ e ‘fazer crer’ nas políticas de saúde”.Cad. Saúde Pública[on-line], v. 21, n. 4.).10 10 Na Amazônia, entre 1999 e 2004, um total de 26 associações indígenas havia firmado convênio com a Funasa para executar ações de saúde nos DSEIs. Em outras regiões predominaram os convênios com prefeituras, que foram objeto de frequentes críticas por parte das organizações (Garnelo 2005). Assim, as diretrizes da participação e da descentralização - ou coparticipação e cogestão - no caso das políticas indigenistas e particularmente no caso da saúde indígena, foram em alguns sentidos dragadas pelo arcabouço ideológico da redução de funções governamentais em prover serviços públicos, paulatinamente levada a cabo pelo Estado neoliberal em sua forma brasileira (Barroso 2021BARROSO, Maria Macedo. 2021. “Dos organismos às organizações: a estruturação do DSEI Leste Roraima e as mobilizações em torno da saúde indígena”. In: R.V. Santos; A.L.M. Pontes & F. Machado (orgs.), Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz .).

A ascensão de Lula - liderança sindical advindo das greves de metalúrgicos na década de 1980 - em 2003 à presidência da República pelo Partido dos Trabalhadores (PT), representou para o movimento indígena um horizonte de expectativas em diversas frentes (Souza Lima 2015SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. 2015. “Estado e povos indígenas no Brasil contemporâneo: da tutela à ação do movimento indígena”. In: C.G. Valle (org.), Etnicidade e mediação. São Paulo: AnnaBlume Editora.), sobretudo quanto às políticas fundiária e de mitigação de desigualdades sociais. Uma sinalização imediata quanto à prioridade que seria dada aos setores historicamente marginalizados no Brasil foi a sanção, em seu nono dia de mandato presidencial (09/01/2003), da Lei no 10.639, que prescreve a inserção no currículo educacional nacional, em todos os níveis de ensino, de “História e Cultura Afro-Brasileiras”. Somente cinco anos depois, em seu segundo mandato, o governo alterou a mesma lei incluindo o ensino da “História e Cultura Indígenas”.

Das “promessas” negociadas com os setores sociais que apoiaram a eleição de Lula, foram priorizadas basicamente as políticas de educação e saúde pelas seguidas gestões capitaneadas pelo Partido dos Trabalhadores. Considerada a reivindicação prioritária para o movimento indígena, a demarcação territorial de inúmeras etnias pleiteantes emperrou-se na estreita colaboração política e econômica entre esses governos e setores ruralistas voltados à produção agrícola para exportação, o chamado agronegócio - o que indicava a opção deliberada, mesmo que não diretamente explicitada, pela continuidade do modelo agroexportador primário dependente - assim como no aumento numérico de representantes e pautas de outros setores ultraconservadores no Parlamento brasileiro, como é o caso da chamada “bancada evangélica”. Emperrou-se, portanto, nas mútuas concessões que se costuravam nesse amálgama de forças políticas.

Ao mesmo tempo em que ao longo da primeira década do novo milênio se injetavam recursos em políticas de mitigação das desigualdades por meio de transferência de renda aos mais pobres; ampliava-se o acesso ao ensino superior, majoritariamente mediante financiamento de mensalidades em estabelecimentos de ensino superior privados; estabeleciam-se políticas de cotas raciais; e fortalecia-se o subsistema de saúde indígena recém-criado, a demanda central dos indígenas por território demarcado, e sobretudo protegido, não logrou ser contemplada nos três mandatos e meio do governo PT (Machado 2015MACHADO, Marjori. 2015. Terras indígenas no Brasil: estudo sobre os processos demarcatórios nos governos Lula e Dilma. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Serviço Social, Universidade Federal de Santa Catarina.) - cujas gestões recobriram o período de quatorze anos - consideravelmente apoiado pelos indígenas nas eleições em níveis federal, estadual e municipal. Eram frequentemente apontadas, pelo próprio movimento indígena em seus eventos, as comparações com governos anteriores, de Collor e FHC respectivamente, em relação à disparidade na extensão e no número de territórios demarcados.

Contando com o apoio do CIMI, o movimento indígena iniciou em 2004, segundo ano do governo Lula, o que se transformaria em um evento anual de mobilização, reunindo milhares de indígenas em Brasília, com o objetivo de pressionar a favor das demarcações territoriais. Tendo a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) como mote conjuntural da mobilização, o principal eixo de articulação dos indígenas naquela ocasião foi a questão fundiária, formuladas como desintrusão, proteção do território, demarcação e homologação, assim como as ameaças a seus direitos constitucionais “por uma frente anti-indígena formada por parlamentares de todos os partidos” (CIMI, 2004).11 11 Fonte: Acampamento Terra Livre | Cimi <https://cimi.org.br/2004/06/21626/>

Em vários momentos no decorrer dos governos apoiados pelo movimento indígena houve manifestações indígenas ao redor do Brasil. Entre críticas, pareamentos táticos e embates frontais, o diálogo com aqueles vistos como potencialmente “aliados” seguia; os conflitos com as forças (explicitamente) antagônicas aos interesses indígenas eram colocados como resultantes ou expressões das contradições intrínsecas da sociedade brasileira que “também” compunham o Estado. Negociações entre governo e indígenas transcorriam como se a correlação de forças se inscrevesse em uma estrutura inexorável de representação política: de um lado, estavam o governo federal, alguns estaduais e municipais; de outro, os setores conhecidamente contrários aos indígenas, isto é, o governo federal se colocava e era colocado como aliado das pautas indígenas, potencialmente ou ao menos em teoria, e ao mesmo tempo as contradições de suas políticas efetivas por vezes acirravam as mobilizações indígenas. Conforme relato sobre o 1º ATL em 2004:

A todo momento, as lideranças, em rodas maiores ou menores, se reuniam para planejar ações e debater a política indigenista oficial. “Lula prometeu mas não cumpriu”, era a frase mais repetida. “Nada de novo em termos de política indigenista do governo”, avaliavam. Para constatar isto não era preciso muito esforço, basta levantar os dados de 2003. Ao contrário do que se esperava, as violências aumentaram (31 assassinatos somente no ano passado) e os direitos indígenas estão cada dia mais ameaçados e mutilados. “Terra Livre” foi fruto dessa realidade, serviu para alimentar a pouca esperança que resta e juntar as forças para pressionar o governo de forma insurgente (Relato Egon Heck e Cristiano Navarro sobre 1º ATL, site CIMI, 20/06/2004).

Em novembro do mesmo ano, representantes indígenas divulgaram um posicionamento em relação à política indigenista em curso por meio do Manifesto dos Povos Indígenas na Conferência Nacional Terra e Água:

Nós, representantes de 35 Povos Indígenas presentes na Conferência Nacional da Terra e Água, manifestamos nossa insatisfação com a política indigenista do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, uma vez que esta tem se pautado pela omissão diante das violências praticadas contra nossos povos, pela negligência aos nossos direitos constitucionais e a falta de interesse em estabelecer um processo de diálogo para a estruturação de uma nova política indigenista. Pelo contrário, o governo promove e incentiva a criação de comissões para discutir e pensar políticas para os povos indígenas, compostas por pessoas e autoridades que se manifestam contrários aos nossos direitos constitucionais. Brasília, 25 de novembro de 2004 (CIMI, 2004).

Comparadas a outros setores populares e a partidos autodeclarados de esquerda, as organizações e as vozes indígenas foram as que se adiantaram em identificar e apontar de modo contundente o deslocamento programático do discurso trabalhista e os que mantiveram uma distância crítica (ou desconfiança) no decorrer de quase uma década e meia em que o PT esteve à frente do poder. Os vetores das iniciativas entre organizações indígenas e governo nesse período compunham, no entanto, um conjunto heteróclito de práticas, que perfilavam na tênue fronteira que separa a domesticação tutelar, a latência da revolta contra “promessas que não se cumpriam” e a realização de ações coletivas isoladas ou articuladas, locais/nacionais. Apesar dessas contradições e ambiguidades, a ação política do movimento indígena era majoritariamente ofensiva, voltada ao alargamento e aprofundamento de direitos previstos na Constituição. De certo modo, pode-se dizer que durante os anos 2000 as práticas de governamentalidade - situadas entre a socialdemocracia conciliativa e o liberalismo aliados à violência e ao autoritarismo de Estado - se ocupavam de soldar constantemente as fissuras abertas pela participação popular nesses sistemas e instâncias, normatizadas pela Constituição de 1988 e potencializadas pela chegada ao poder de um representante simbolicamente identificado com as causas populares.

As fissuras representavam os diversos problemas e questões inerentes à realidade indígena, cujas discussões eram trazidas e/ou incitadas pelos indígenas, em um primeiro momento acolhidas nessas searas políticas. Por sua vez, as tentativas de “soldagem” consistiam em movimentos repetitivos, com retóricas, conduções e dinâmicas circulares, de abrir as fissuras, fechá-las ou dá-las por bem resolvidas, o que significava o controle e a canalização desse tipo de “participação”, realizada nessas instâncias. Porém, sobretudo no caso do movimento indígena, as soldagens das fissuras eram irremediável e expostamente inacabadas, novas fissuras eram permanentemente abertas, em grande medida pela própria ação política indígena, a exemplo do processo de consolidação do Acampamento Terra Livre, transformado em evento anual regular, e cuja primeira edição se deu no raiar do segundo ano do primeiro governo trabalhista pós-redemocratização.

Os governos de verniz popular dos anos 2000 representavam também expectativas em torno das realizações das diretrizes do SUS, do avanço e alargamento da política de saúde desenhada como pública, gratuita e de qualidade, na medida em que partilhavam de um universo e histórico político relativamente comum com os setores que formularam a política e os que se encontravam então à frente do governo federal. Se essa expectativa não fora contemplada no que concerne ao SUS, tornando-se objeto de críticas que retomavam as contradições desse processo (Paim 2013PAIM, Jairnilson Silva. 2013. “A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Cad. Saúde Pública , Rio de Janeiro, 29 (10):1927-1953, out., 2018PAIM, Jairnilson Silva. 2018. “Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos”. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 23 (6):1723-1728.), tampouco o SASI adquiriu maiores atenções das diferentes gestões, permanecendo sempre aquém da lei, a meio caminho entre o caráter público das instituições que coordenavam as ações (Funasa e Sesai) e a terceirização quase integral da gestão de seus recursos - via convênios com organizações indígenas, prefeituras e organizações filantrópicas, muitas das quais de cunho religioso (Garnelo 2004GARNELO, Luiza. 2004. “Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Análise Situacional do Período de 1990 a 2004”. Documento de Trabalho nº 9, Porto Velho, Rondônia., 2005GARNELO, Luiza. 2005. “Organizações indígenas e distritalização sanitária: os riscos de ‘fazer ver’ e ‘fazer crer’ nas políticas de saúde”.Cad. Saúde Pública[on-line], v. 21, n. 4., 2012GARNELO, Luiza. 2012. “Política de Saúde Indígena no Brasil: notas sobre as tendências atuais do processo de implantação do subsistema de atenção à saúde”. In: L. Garnelo & A.L. Pontes (orgs.), Saúde Indígena: uma introdução ao tema. Brasília: MEC-Secadi., 2014GARNELO, Luiza. 2014. “O SUS e a saúde indígena: matrizes políticas e institucionais do Subsistema de Saúde Indígena”. In: C.C. Teixeira & L. Garnelo (orgs.), Saúde Indígena em Perspectiva: Explorando suas Matrizes Históricas e Ideológicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .).

A interrupção do diálogo

Na esteira desse conjunto de conciliações estatais de interesses antagônicos em gestões de cunho populista, a história recente do Brasil caminhou para o recrudescimento de um neoconservadorismo e reacionarismo no Brasil (Chaloub 2020CHALOUB, Jorge. 2020. “A América Latina como outro: um discurso da direita brasileira”. Revista Agenda Política, v. 8, n. 1.), repetindo sequências históricas de regimes e estratégias de governo (Safatle 2020SAFATLE, Vladimir. 2020. Bem vindo ao Estado suicidário. São Paulo: N1 edições .), processo que culminou com a ascensão à Presidência da República, no ano de 2019, de Jair Bolsonaro, egresso de facções ditatoriais das Forças Armadas - delas entusiasta e propagandista -, alinhado a pautas totalitárias e ultraliberais. Anunciando desde a campanha eleitoral que “não demarcaria um centímetro de terra indígena”, bem como sua intenção em abrir os territórios demarcados para exploração mineral e agropecuária, em seu primeiro dia de governo (01/01/2019) o presidente eleito transferiu, via Medida Provisória (MP no 870), a atribuição das demarcações de terras indígenas, até então sob responsabilidade da Funai, ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), já a cargo de uma líder ruralista, grande proprietária rural do Mato Grosso do Sul, estado com conflito armado acentuadamente deflagrado no campo, com frequentes assassinatos e violências contra indígenas (Relatório da Violência, CIMI 2018). Em resposta, a Articulação de Povos Indígenas do Brasil convocou uma mobilização em 22 cidades e embaixadas brasileiras no exterior (Londres e Portugal) para o dia 31 de janeiro. No Brasil, a mobilização mais numerosa ocorreu na Avenida Paulista, em São Paulo, com a participação de aproximadamente 4 mil pessoas, dentre indígenas, apoiadores e um crescente campo amorfo de oposição ao governo recém-eleito.

Mas foi apenas algumas semanas depois, concomitante às reafirmações sobre como seria a vindoura política indigenista do governo recém-eleito, que se iniciaram as mobilizações mais densas e incisivas. Em sua posse, no segundo dia de governo (2/1/2019Gravação da cerimônia de posse do ministro da Saúde, em 02/01/2020.), o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta sinalizou que “reestruturaria a saúde indígena”, qualificando o subsistema como um “sistema de saúde paralelo, improvisado, sem os devidos controles por parte do Estado” e desfiando insinuações sobre um serviço insuficiente e incompatível com o montante de dinheiro público gasto no subsistema. Paulatinamente começavam a ventilar informações de que, além de suspender as demarcações e as devidas proteções às terras indígenas, o próximo alvo do governo seria desmantelar o subsistema de saúde indígena e incorporá-lo ao Sistema Único de Saúde: o atendimento aos indígenas ficaria a cargo dos municípios.

Sem que ocorresse propriamente um anúncio oficial de municipalização por parte do governo, porém baseando-se nos possíveis desdobramentos dos argumentos e dos atos iniciais do governo, o movimento indígena rapidamente se articulou em torno desse tema, primeiro, por meio de notas de repúdio escritas de organizações indígenas e de apoio, como CIMI, o Instituto Socioambiental (ISA) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). A justificativa para “reestruturar a saúde indígena” de Mandetta operava sob uma retórica humanitária (“precisamos fazer mais e melhor porque já erramos muito em 500 anos de história”), que encobria os efeitos de uma possível “reestruturação”: o esvaziamento ou a extinção do funcionamento dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs). Conforme os dias de governo se passavam, a iminência da municipalização dos serviços de saúde voltados às populações indígenas mobilizou em escala nacional as organizações, as comunidades e as etnias indígenas.

No ápice do conflito entre governo e movimento indígena a respeito desse tema, em finais de março, dezenas de indígenas rumaram para Brasília, enquanto outras centenas se manifestavam em 32 localidades de norte a sul do país, erguendo barricadas em pontos de estradas, dentre outras manifestações em órgãos públicos, como Assembleias Legislativas, Prefeituras, sedes dos DSEIs.12 12 Registro de todas as manifestações no link: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1X7XMknjIueqf2NKEW7q2R2WUb3kofmRl&shorturl=1≪=-8.134653985511921%2C-62.07720188075814&z=3 Acesso em 17/01/2022. Lideranças da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) convocaram uma reunião com o ministro da Saúde, que teve a participação de cerca de 20 lideranças de diversas organizações e etnias, e se desenrolou asperamente. MandettaGravação da reunião entre lideranças indígenas e o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, em 27/04/2019., durante a reunião, alongava sua explicação acerca do problema da “fiscalização dos gastos” públicos geridos pelas ONGs responsáveis pela contratação e aquisição de materiais, em termos de uma otimização do subsistema que contemplasse a diferença entre indígenas “antropizados”, “semiantropizados” e “não antropizados”, sua linguagem para justificar a distinção dos serviços conforme os respectivos “níveis de integração” à sociedade nacional, condicionando as necessidades indígenas à forma por meio da qual o campo da Biologia se refere a relações ecossistêmicas.

Sonia Guajajara, da APIB, por sua vez, alertava-o de que seu discurso padecia de ignorância porque prenhe de uma ideologia assimilacionista pretérita e teoricamente superada. Todas as lideranças presentes afirmavam repetida e contundentemente que não aceitariam nenhum recuo e desmonte da política de saúde indígena. Que o SASI e a Sesai, tal como se encontravam estruturados, eram conquistas e demandas históricas dos povos indígenas, pelos quais a política de saúde foi construída por duas décadas; que se tratava de uma política de Estado, portanto, não poderiam estar suscetíveis aos desmandos transitórios de um governo. Caso o governo prosseguisse com sua intenção de transferir em qualquer localidade os serviços de saúde para os municípios ou esboçasse em qualquer ação legal a desarticulação da política tal como prevista em leis e normativas, de cujas elaborações participaram e endossaram as populações indígenas, que “Brasília não ficaria de pé”. Na fala de uma liderança presente na reunião:

De fato, ela [a palavra diálogo] não ocorre, sabe por quê? Porque a gente sai da atenção específica ali aonde a gente só nós mesmos estamos dentro e vamos disputar com todo mundo. Aí na hora de disputar com todo mundo eu concordo com o senhor: o prefeito vai dar prioridade aos dele, porque é chegado deles, os vereadores também, a gente não vai ter [atendimento médico], aí talvez o subsistema deva talvez se alongar, não parar na atenção primária somente. Quando a gente entra no sistema geral é como o senhor falou, a gente fica na fila como todo mundo, única coisa especial que a gente tem é só a atenção da gente, tem um médico ali que vai receitar, a gente vai ter um atendimento de urgência e emergência, é a única coisa. Então, Ministro, acho que essa compreensão tem que ser feita de fato, concordo. Agora assim, ó, acabar com a Sesai não resolve. Aí o senhor fala assim “olha, não vamos acabar com a Sesai”, mas, Ministro, transformar a Sesai em outra secretaria, agrupando outras funções também de outros é acabar com a Sesai porque ela é a Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena, [se] ela perde essa característica ela vai ter que se englobar com todo mundo. Olhe, a Sesai, eu garanto para o senhor, ela não está dando conta da questão indígena, não está sendo suficiente. Imagine pegar ainda mais, porque o senhor tá querendo que ela seja a atenção básica. (...) então assim, ó, a compreensão de que não vai acabar com a Sesai, vai acabar sim, né? A gente tem um direito e a gente quer o direito de dizer “não”, a gente não quer só ser escutado, Ministro, (...), é esse direito que a gente quer, é as nossas vidas, (...) olha, quem sofre lá na base, quem tem parente morrendo lá somos nós, é a gente que está perdendo. Eu tenho criança lá morrendo por causa de escorpião. A gente também tem casos de que não temos carro para poder fazer um atendimento, mas é por causa de falta de gestão. É gestão e aí é competência do Estado e não somente do governo, a gente só está olhando aqui e discutindo até então governo, eu quero discutir o Estado. Então a gente precisa de fato que a saúde ocorra, aconteça lá na base e aí eu peço desculpa para o senhor, mas aqui não tem ONG nenhuma fazendo mobilização. O meu povo está na Bahia, fechando as BRs, nós estamos fechando as cidades, nós estamos fazendo ocupação e estamos aqui embaixo ocupando ali embaixo, esse prédio aqui porque a gente tem uma saúde que não está funcionando, a gente veio para cá para que ela funcione. Então a gente espera sair daqui, Ministro, não com a palavra de que “olhe, a saúde vocês não tão compreendendo, deixa eu desenhar”. Olhe, se desenha para criança e não para liderança. Existe uma falta de respeito à compreensão do senhor muito grande com a questão indígena, acho que o senhor tem que compreender um pouco, acho que o senhor tem que pegar uma assessoria melhor para poder orientá-lo, colocar no entendimento do senhor que nós somos povos indígenas, somos nações e, como nações, nós precisamos ser respeitados como tal, a gente só quer isso. O que o senhor tem falado aí é somente o senhor tentando justificar o que o senhor quer fazer. Por último, eu vou só pedir ao senhor é que a gente resolva essa situação da saúde o quanto antes, porque nós estamos mobilizados, nós estamos fazendo toda movimentação possível. Como nossa irmã colocou aqui, Sônia [Guajajara], a gente está usando nossas armas, e como diz o meu povo no seu hino, as nossas armas já estão seguras e no momento mande me chamar, é isso que a gente fez agora, a gente está chamando nosso povo. Nosso povo está ali embaixo e eu não posso descer agora para eles e não dar uma boa resposta, porque se eu não der, você pode ter certeza, essa Brasília não fica em pé e eu não estou ameaçando, eu só estou dizendo um fato que pode ocorrer. Essa situação é complicada. (...) então a gente precisa sair com resposta daqui, eu não quero sair com promessa, muito menos dizendo que não vai aceitar o nosso “não” (Acervo Ensp-Wellcome. Grifos meus).

Essa liderança indígena utilizava seu tempo de fala em pé, dirigindo-se a pouco mais de um metro de distância do ministro sentado, junto a mais de 20 pessoas presentes - em sua maioria lideranças indígenas, além de alguns funcionários do governo - sentados em torno de uma mesa oval. Posicionamentos correlatos foram colocados ao longo dessa reunião, que durou pouco mais de duas horas, de diferentes formas e com outros detalhes de acordo com a realidade étnica e geográfica de onde provinha a liderança que falava. Na sala onde ocorria a reunião chegavam os ruídos da agitação dos “parentes que estavam lá embaixo”, de indígenas que aguardavam o resultado das negociações, conforme apontado por essa liderança. Aos poucos, à medida que as falas se acumulavam reiterando a mesma posição, Mandetta sinalizou então que atenderia a demanda ali colocada, “apesar dos problemas que percebia”, que “respeitaria a reivindicação dos indígenas”.

As tentativas de “reestruturar” (verbo governamental) o subsistema, ou “acabar com a Sesai” (expressão utilizada pelos indígenas), não cessaram, de modo que dois meses depois alguns decretos extinguiriam setores centrais de gestão da Sesai, assim como os Conselhos que garantiam a participação e uma margem de intervenção indígena nos rumos da política de saúde.13 13 Fontes: https://www.inesc.org.br/por-decreto-bolsonaro-forca-a-municipalizacao-da-saude-indigena https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/entenda-decreto-que-poe-fim-a-conselhos-federais-com-atuacao-da-sociedade.shtml https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/30/politica/1559238132_162541.html Movimentos dessa vez realizados silenciosamente, sem os alardes performáticos corriqueiros de um presidente afeito à linguagem midiática de redes sociais virtuais, nem anúncios à imprensa. Tampouco o movimento indígena interrompeu suas ações após a promessa verbal do ministro de que não “reestruturaria” a Sesai: durante todo o ano de 2019, além da realização regular do Acampamento Terra Livre em abril, outras mobilizações indígenas foram realizadas visando impedir as ameaças e as iniciativas governamentais na política de saúde indígena: as caravanas a Brasília de grupos indígenas seguiram ocorrendo de maneira fragmentada, a Sesai foi ocupada (em julho), a I Marcha de Mulheres Indígenas, cogitada desde meados dos anos 2000, foi finalmente realizada em Brasília, sob o mote Território: nosso corpo, nosso espírito, em explícita alusão e com abordagem sistemática do tema da política de saúde em sua programação,14 14 Fonte: https://cimi.org.br/2019/08/mulheres-em-luta-as-principais-pautas-da-1a-marcha-das-mulheres-indigenas/ além de uma campanha internacional realizada pela APIB - “Jornada Sangue Indígena: Nenhuma Gota Mais” - cujos coordenadores percorreram 12 países europeus denunciando as intenções e as ações em curso do governo brasileiro, além de promover debates sobre as pautas indígenas no Brasil nos meses finais de 2019.15 15 Ver http://apib.info/2019/12/30/nota-sobre-a-jornada-sangue-indigena-nenhuma-gota-mais/

Não foi a primeira vez que as populações indígenas, através de suas organizações e lideranças, se mobilizaram nacionalmente em torno da saúde e também das tentativas governamentais de deturpar o subsistema contra os interesses indígenas. Mas é possível localizar essa mobilização na trajetória histórica do movimento indígena no Brasil como singularmente emblemática, em virtude da sua ágil articulação em escala nacional, seu aspecto insurgente e, sobretudo, seus desdobramentos. Como analisar o lugar altamente sensível atribuído à política de saúde no conjunto de políticas públicas destinadas às populações indígenas, as quais se encontravam igualmente em franca ameaça - como a sumária retirada da política de proteção territorial pelo governo, por exemplo? Quais são as camadas desse processo de delegação do cuidado, e quais potencialidades políticas engendram? À luz da discussão desenvolvida anteriormente acerca do movimento da Reforma Sanitária, podem ser apontados alguns elementos que permearam esse processo.

Chegando ao seu vigésimo ano de funcionamento em 2020, a incorporação das especificidades indígenas ou locais no SASI constituiu norte central de suas diretrizes e normativas, algo que esteve presente nas discussões indígenas, indigenistas e governamentais desde a formulação em lei do que viria a ser o subsistema. O horizonte consensual, nos espaços governamentais de discussão, de incorporar estratégias de saúde locais ocorreu de modo sistemático, se compararmos à incorporação de práticas populares de cuidado no âmbito do SUS, conforme recuperado anteriormente (Gerschman 2011:101GERSCHMAN, Silvia. 2011. A democracia inconclusa: um estudo sobre a Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .). Assim, a Política Nacional de Atenção em Saúde às Populações Indígenas (PNASPIBRASIL. 2002. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Saúde.Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. Brasília: Ministério da Saúde, Fundação Nacional de Saúde.), em vigor desde 2002, coloca o problema do atendimento em contextos indígenas em termos de uma oposição entre as práticas de cuidado indígenas, de um lado, e os olhares e práticas biomédicas, de outro.

Com o intuito de incorporar as estratégias locais ao cotidiano de atendimento em espaços do sistema de saúde nacional, portanto por parte dos trabalhadores não indígenas, foram realizados diversos programas e oficinas de práticas de cuidado indígenas, classificadas como emanadas dessas populações. Foram eventos voltados à troca de conhecimentos relativos ao parto (Ferreira 2013FERREIRA, Luciana Ouriques. 2013. Medicinas indígenas e as políticas da tradição: entre discursos oficiais e vozes indígenas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .; Dias-Scopel 2018DIAS-SCOPEL, Raquel Paiva. 2018. A cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: autoatenção e medicalização entre os índios Munduruku. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.), além de esforços de levantamento e catalogação de conhecimentos fármacos indígenas, como a utilização de ervas para prevenção e cura de múltiplas enfermidades, desde os Encontros de Saúde do CIMI iniciados na década de 1980 (Welper 2021WELPER, Elena. 2021. “Cinco Encontros e a Oitava: as ações de saúde do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) no contexto pré-constituinte”. In: R.V. SANTOS; A.L.M. PONTES & F. MACHADO (orgs.), Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz .). Esses programas e eventos buscavam envolver trabalhadores da saúde não indígenas e indígenas, rezadores ou indígenas reconhecidos/as pela habilidade de acesso ao mundo espiritual - dimensão fundamental do que se relaciona à categoria saúde nesses contextos - tanto para colocar esses atores e os métodos descritos em interlocução quanto para registrá-los.

A valorização das práticas e dos conhecimentos de cura indígenas esteve prevista organicamente na política de saúde voltada às populações indígenas. Portanto, um primeiro elemento crucial da defesa do subsistema de saúde como patrimônio das populações indígenas reside nesse reflexo de suas práticas de cuidado no cotidiano de atendimento de polos-base e hospitais, prescrito pela PNASPI (Brasil, 2002). Decorre desse reconhecimento normativo um paralelismo de práticas de cuidado não excludentes entre si, nas quais, por exemplo, partos majoritariamente realizados no âmbito doméstico, dentre muitos grupos e comunidades, não excluam a possibilidade de acesso ao hospital (Dias-Scopel 2018DIAS-SCOPEL, Raquel Paiva. 2018. A cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: autoatenção e medicalização entre os índios Munduruku. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.); que a manipulação de ervas e chás seja aliada aos antibióticos e anti-inflamatórios receitados pelo médico do polo-base (Pontes et al. 2015PONTES, Ana Lucia; GARNELO, Luiza & REGO, Sergio. 2015. “O modelo de atenção diferenciada nos distritos sanitários especiais indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil”. Revista Ciência & Saúde Coletiva , 20 (10):3199-3210.); que a autoridade do médico não subsuma a autoridade de rezadores, inclusive em polos-base e hospitais, cujas presenças são por vezes colocadas como imprescindíveis e inegociáveis pelo enfermo e sua família; que as doenças sejam explicadas articuladamente pela linguagem biomédica e por causalidades de ordem espiritual, atreladas, por sua vez, a conflitos cotidianos locais (Magalhães 2014MAGALHÃES, Aline Moreira. 2014. Esquecer-se de si: morte, emoções e autoridades em uma comunidade ticuna. Tese de Doutorado em Antropologia Social, PPGAS-MN-UFRJ.).

Mas a coexistência dessas técnicas de cuidado em contextos indígenas não significa a ausência de ruídos em suas dinâmicas cotidianas. A despeito do discurso e das normativas estatais propagarem a fusão das técnicas medicinais indígenas à política de saúde, a) a incorporação de autoridades indígenas de cura em espaços como o polo-base e o hospital é frequentemente questionada ou mesmo inviabilizada pelos seus funcionários e diretores, por vezes objeto de árdua negociação por parte dos indígenas e de trabalhadores da saúde indígena; b) embora perfaçam mais da metade da força de trabalho do SASI-SUS e suas funções sejam colocadas como centrais pela PNASPI e pelas resoluções das CNSIs, os Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e os Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN) não são reconhecidos como categoria laboral pelo Estado brasileiro, recebem uma remuneração irrisória abaixo do salário mínimo, além de suas atividades serem, com alguma regularidade, colocadas como residuais em meio a discursos fundados na hierarquia biomédica (Pontes et al. 2015PONTES, Ana Lucia; GARNELO, Luiza & REGO, Sergio. 2015. “O modelo de atenção diferenciada nos distritos sanitários especiais indígenas: reflexões a partir do Alto Rio Negro/AM, Brasil”. Revista Ciência & Saúde Coletiva , 20 (10):3199-3210.; Entrevistas Ivani Gomes 2019; Carmem Pankararu 2020); c) o acesso a remédios através do polo-base geralmente implica um processo de medicalização pouco gerenciado (Diehl 2001DIEHL, Eliana. 2001. Entendimentos, Práticas e Contextos Sociopolíticos do Uso de Medicamentos entre os Kaingáng (Terra Indígena Xapecó), Santa Catarina, Brasil. Tese de Doutorado, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.), desprovido de maiores atenções quanto aos seus riscos; d) a demanda pela atenção “diferenciada”, traduzida principalmente como “respeitosa” (Entrevistas Carmem Pankararu 2018; Zezinho Kaxarari 2019), é pouco observada nas interações que pacientes indígenas travam em unidades de saúde; e) por conseguinte, as técnicas de cuidado entendidas como tradicionalmente indígenas, dentre partos e a utilização de remédios elaborados com matérias-primas disponíveis em território indígena, bem como suas respectivas linguagens e rituais relativos a adoecimentos e curas são, com alguma frequência, sutil ou jocosamente deslegitimadas em situações de atendimentos.

Desse modo, as tentativas de articulação de técnicas de cuidado, ou de incorporação das técnicas de cuidado indígenas ao SASI engendram contradições e situações conflituosas que retornam ciclicamente para as negociações políticas entre o movimento indígena e o Estado.

Paralelo ao aspecto programático da política, a implementação do SASI ao longo de duas décadas foi marcada, conforme anteriormente apontado, pela construção de um aparato institucional no qual as participações indígenas constavam em todas as instâncias e execuções da gestão: na elaboração de propostas e demandas por meio de uma estrutura federativa dos Conselhos e Conferência (Conselhos Locais, Distritais e nacionais - CISI e CNSI), pela composição majoritária da força de trabalho do SASI, cujas contratações são realizadas mediante controle étnico e comunitário; pela gestão direta e integral dos recursos em um determinado período (2000 a 2006). Caracterizada como invariavelmente ambígua (Garnelo 2004GARNELO, Luiza. 2004. “Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Análise Situacional do Período de 1990 a 2004”. Documento de Trabalho nº 9, Porto Velho, Rondônia., 2005), a inclusão das organizações indígenas nesses espaços e sobretudo na gestão do SASI contribuiu para o entrelaçamento das estratégias de cuidado enquanto direitos sociais e formas de governo e, portanto, para a construção dos posicionamentos mobilizados em torno desse tema.

As avaliações das lideranças quanto a esses espaços variam de uma expectativa de que os debates e deliberações realizados nas instâncias de participação corresponda à política tal como implementada (Entrevista Carmem Pankararu 2020), à percepção de que “existem dois movimentos indígenas: um que dialoga muito de pertinho, que não bate de frente, e outro movimento indígena que é aquele que vai pra rua, que manifesta, que grita - esse sim é um movimento que luta pela saúde” (Rildo Kaingang, coordenador da Arpinsul, citado em Teixeira 2017:724TEIXEIRA, Carla Costa. 2017. “Participação social na saúde indígena: a aposta contra a assimetria no Brasil?”. Amazônia, Revista de Antropologia, 9 (2):716-733.). Contudo, mesmo que hierarquizadas segundo suas eficácias, as estratégias não são contrapostas ou percebidas como excludentes entre si, mas inseridas no plano imperativo do diálogo - gancho que iniciou a fala da liderança na reunião com o ministro da Saúde - a ser estabelecido, independente da forma que tome, na medida em que se trata de negociações acerca de uma política governamental.

Um último elemento assíduo nas defesas indígenas quanto à existência e à melhoria do subsistema refere-se ao impacto de eventos epidêmicos entre essas populações, particularmente aqueles recuperados por atores indígenas vinculados historicamente ao SASI para cotejar a diferença do número de enterros de adultos e crianças, acometidos fatalmente por doenças evitáveis e curáveis, entre o período histórico antes da criação do SASI e depois, com o SASI (Entrevistas Carmem Pankararu 2018; Jacir de Souza 2019; Clóvis Wapichana 2018). Alguns deles se tornaram objeto da produção de uma memória narrativa e imagética, internacionalmente divulgada, desdobrando-se na implementação de projetos-piloto de distritos sanitários (Athila 2021ATHILA, Adriana. 2021. “A emergência do distrito sanitário yanomami: uma análise sociopolítica”. In: R.V. Santos; A.L.M. Pontes & F. Machado (orgs.), Políticas Antes da Política de Saúde Indígena. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz.); outros conectam sofrimentos locais a processos históricos que remontam à ocupação colonial, a exemplo de notas, discussões e anúncios da APIB e das inúmeras manifestações de seus coordenadores/lideranças a respeito da atual pandemia mundial.

As populações indígenas são globalmente mais vulneráveis a infecções produzidas pela urbanização, sobretudo as respiratórias (Fiocruz 2020FIOCRUZ. Relatório, 18 abril 2020. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância em Epidemiologia do PROCC/Fiocruz e EMAp/FGV; Grupo de Trabalho sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à Pandemia de COVID-19 e colaboradores: Aline Diniz Rodrigues Caldas, Ana Lúcia Pontes, Andrey M. Cardoso, Bárbara Cunha, Ricardo Ventura Santos.), seja a tuberculose, cuja letalidade e agravamento seguem elevados em pleno século XXI, haja vista as frequentes campanhas de vacinação e prevenção que a Sesai realiza em comunidades, seja a recente pandemia de coronavírus que vem assolando diversos povos indígenas. Por também estarem expostas a condições sanitárias significativamente mais precárias, se comparadas às condições da população não indígena no Brasil, as populações indígenas são mais suscetíveis ao agravamento de contaminações e doenças (Fiocruz 2020FIOCRUZ. Relatório, 18 abril 2020. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e sociodemográfica. Núcleo de Métodos Analíticos para Vigilância em Epidemiologia do PROCC/Fiocruz e EMAp/FGV; Grupo de Trabalho sobre Vulnerabilidade Sociodemográfica e Epidemiológica dos Povos Indígenas no Brasil à Pandemia de COVID-19 e colaboradores: Aline Diniz Rodrigues Caldas, Ana Lúcia Pontes, Andrey M. Cardoso, Bárbara Cunha, Ricardo Ventura Santos.). O aprendizado acumulado nos trânsitos pelas instâncias e atividades do SASI sobre a utilidade vital da gestão desses números e condições sanitárias estruturais dos mais de 300 povos indígenas de norte a sul do país - de modo que contar números e histórias dos indígenas falecidos passou a fazer parte da estratégia de controle do avanço do genocídio pandêmico/governamental por parte do movimento indígena16 16 Ver https://emergenciaindigena.apiboficial.org/ - se soma ao valor atribuído pelos indígenas à existência de uma estrutura de saúde nacional e governamental com a qual podem contar, portanto, no nível em que o movimento indígena pode se sublevar em sua defesa.

Considerações finais

As lutas pela saúde, por um lado, ensejam o paradoxo da delegação de responsabilidade do cuidado aos desígnios e interesses do Estado e dos estratos e classe que o controlam, por outro, a saúde também representa uma dimensão fundamental do conjunto das reivindicações por melhores condições de vida da população de um país. No primeiro caso, o efeito aponta para uma tendência de apagamento da legitimidade, da necessidade e das potencialidades de construção de estratégias e técnicas locais (populares e indígenas) mutualistas de cuidado ou autoatenção, conforme se refere parte da literatura. No segundo caso, a arena das reivindicações em torno do entendimento de que o Estado que confina, usurpa e explora é o mesmo que deve ser moral e politicamente responsável por manter seus cidadãos vivos e saudáveis constitui um vasto campo aberto à politização no interior da ação coletiva de grupos, desta forma, prenhe de potenciais desdobramentos e construções políticas. Pelas contradições que ensejam, constituem ao mesmo tempo oportunidades de domesticação dos diálogos e das negociações.

A intensa mobilização em torno da ameaça de desmonte da política de saúde desde o início de um governo abertamente autoritário sinaliza que essa arena - a da saúde indígena em seus múltiplos meandros de formulação, execução e gestão -, encontra-se de tal modo apropriada pelos indígenas no Brasil que qualquer previsão ou interpretação mais fechada acerca dessa relação e dos seus possíveis efeitos seria inadequadamente apressada. Procurei ao longo deste texto tão somente apontar algumas variáveis importantes desse processo a partir da dimensão da delegação do cuidado e dos aspectos insurgentes inerentes à reforma sanitária indígena. O processo de resistência que emergiu a partir da pauta da saúde desde o início do governo Bolsonaro segue em curso, com evoluções ainda imprevisíveis, tanto no que diz respeito aos próximos passos estatais quanto às suas contracorrentes. Se as organizações e as lideranças indígenas percebem que o SASI pertence às populações indígenas, conforme vêm manifestando em distintos canais e ocasiões, isto indica que o subsistema, além de construído por mãos e criatividades indígenas, proporciona também uma margem de autonomia quanto às suas percepções do que sejam cuidado e cura. Do contrário, não se veriam refletidos em seu cotidiano tal como expressam. Segue em aberto, portanto, a possibilidade de fortalecimento dessas práticas mutualistas de cuidado para além dos limites das políticas governamentais.

Agradeço aos comentários e sugestões de Ricardo Ventura Santos (ENSP/MN), Laura Belén Navallo (Conicet, Argentina) e Maria Barroso (UFRJ).

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Acervo Fiocruz/Wellcome

  • Entrevistas: Christina Tavares (2019), Alba Figueroa (2018), Diana Marinho (2018), Jacir de Souza (2019), Clóvis Wapichana (2018), Antonio Ivo (2019), Chico Apurinã (2019), Zezinho Kaxarari (2019), Ivani Gomes (2018), Carmem Pankararu (2018, 2020).
  • Gravação da cerimônia de posse do ministro da Saúde, em 02/01/2020.
  • Gravação da reunião entre lideranças indígenas e o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, em 27/04/2019.

Notas

  • 1
    Considera-se que a ausência de uma política pública de saúde é, em si mesma, uma política de saúde, seja na forma de uma necropolítica (Mbembe 2018MBEMBE, Achille. 2018. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N1 edições.), seja na forma de uma valorização ideológica privatista em torno da vitalidade (Rose 2013ROSE, Nikolas. 2013. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Ed. Paulus.) - quando deixar morrer é diferente de fazer morrer -, seja uma mistura ou variação de ambas.
  • 2
    Para efeitos de análise comparativa, à parte das minúcias conceituais legislativas de cada país, toma-se aqui por “populações indígenas”, de modo similar à Convenção 169, as populações cujas ocupações territoriais são identificadas e reconhecidas como anteriores às respectivas formações históricas dos Estados nacionais e suas fronteiras, que possuem tradições de conhecimento, em muitos casos idiomas, e modos de vida destacados dos territórios nacionais nos quais habitam. No caso russo, as populações indígenas no norte do país diferem das chamadas minorias étnicas eslavas, presentes mais ao sul da Rússia e em outros países da Europa oriental e ocidental.
  • 3
    Sobre a Lei nº 11.794 de 1999, também chamada de Lei Arouca, bem como sobre o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena a partir de uma territorialidade por distritos sanitários que essa lei institui, ver Santos et al. (2008SANTOS, Ricardo Ventura; CARDOSO, Andrey Moreira; GARNELO, Luiza; COIMBRA Jr. Carlos & CHAVES, Maria de Betania. 2008. “Políticas públicas de saúde para os povos indígenas”. In: L. Giovanella; S. Escorel; L. Lobato; J. Noronha & A.L. Carvalho (orgs.), Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .), Garnelo (2004, 2014) e Langdon e Cardoso (2015).
  • 4
    “Esta tarefa mais que fundamental torna-se imprescindível para nós que buscamos, nas lutas pela Reforma Sanitária, construir as bases do socialismo democrático que almejamos para o Brasil” (Arouca 1989 citado em Paim, 2008PAIM, Jairnilson Silva. 2008. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .).
  • 5
    Coordenado por Ricardo Ventura Santos (ENSP/MN), o projeto “Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Perspectivas Históricas, Socioculturais e Políticas” contou com financiamento da Wellcome Trust (Inglaterra). O estágio pós-doutoral contou com bolsas de pesquisa inicialmente propiciadas pela Wellcome Trust, e posteriormente pelo Programa Inova, da Fiocruz, no âmbito do Programa de Epidemiologia em Saúde Pública da ENSP. Uma parte importante dos resultados das pesquisas realizadas no projeto foi publicada na coletânea Políticas Antes da Política de Saúde Indígena (Editora Fiocruz 2021).
  • 6
    Sérgio Arouca, médico sanitarista e autor da lei que cria o subsistema de saúde indígena (apelidada de Lei Arouca), era também do quadro orgânico do PCB, tendo sido depois deputado pelo partido (Escorel 2009; Entrevista Antonio Ivo 2019).
  • 7
    Ver Proposta Reforma Sanitária, 1987 (citada em Paim 2008:157PAIM, Jairnilson Silva. 2008. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .).
  • 8
    A divergência quanto ao lugar dado a esse tipo de participação provocaria uma cisão no interior do Movimento Popular em Saúde (MOPS) e, consequentemente, sua desarticulação gradual, dividido entre uma “facção mais crítica e radical na sua visão do Estado, concebendo-o como espaço exclusivo das classes dominantes, e outra facção que, ainda que postulasse o domínio da burguesia no Estado, não acreditava que ele fosse monolítico, sem fraturas internas, através das quais seria possível pressionar, negociar e construir alianças que possibilitassem as conquistas sociais na saúde” (Gerschman 2011:114GERSCHMAN, Silvia. 2011. A democracia inconclusa: um estudo sobre a Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz .).
  • 9
    Ver Barroso-Hoffmann et al. (2004BARROSO-HOFFMANN, Maria; IGLESIAS, Marcelo Piedrafita; GARNELO, Luiza; SOUZA LIMA, Antônio Carlos de & PACHECO DE OLIVEIRA, João. 2004. “A administração pública e os povos indígenas”. In: A era FHC e o governo Lula: transição? Brasília: Inesc.); Souza Lima (2015SOUZA LIMA, Antônio Carlos de. 2015. “Estado e povos indígenas no Brasil contemporâneo: da tutela à ação do movimento indígena”. In: C.G. Valle (org.), Etnicidade e mediação. São Paulo: AnnaBlume Editora.); Hoffmann (2009).
  • 10
    Na Amazônia, entre 1999 e 2004, um total de 26 associações indígenas havia firmado convênio com a Funasa para executar ações de saúde nos DSEIs. Em outras regiões predominaram os convênios com prefeituras, que foram objeto de frequentes críticas por parte das organizações (Garnelo 2005GARNELO, Luiza. 2005. “Organizações indígenas e distritalização sanitária: os riscos de ‘fazer ver’ e ‘fazer crer’ nas políticas de saúde”.Cad. Saúde Pública[on-line], v. 21, n. 4.).
  • 11
    Fonte: Acampamento Terra Livre | Cimi <https://cimi.org.br/2004/06/21626/>
  • 12
    Registro de todas as manifestações no link: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=1X7XMknjIueqf2NKEW7q2R2WUb3kofmRl&shorturl=1≪=-8.134653985511921%2C-62.07720188075814&z=3 Acesso em 17/01/2022.
  • 13
    Fontes: https://www.inesc.org.br/por-decreto-bolsonaro-forca-a-municipalizacao-da-saude-indigena https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/entenda-decreto-que-poe-fim-a-conselhos-federais-com-atuacao-da-sociedade.shtml https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/30/politica/1559238132_162541.html
  • 14
    Fonte: https://cimi.org.br/2019/08/mulheres-em-luta-as-principais-pautas-da-1a-marcha-das-mulheres-indigenas/
  • 15
    Ver http://apib.info/2019/12/30/nota-sobre-a-jornada-sangue-indigena-nenhuma-gota-mais/
  • 16
    Ver https://emergenciaindigena.apiboficial.org/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2020
  • Aceito
    16 Jan 2022
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