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MULHERES MAGISTRADAS e A CONSTRUÇÃO DE GÊNERO NA CARREIRA JUDICIAL

Women Judges and Gender Construction in the Judicial Career

RESUMO

O artigo baseia-se nos dados do perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2018, e na nota técnica sobre a Justiça Federal, produzida pela Comissão Mulheres da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) em 2019, para dialogar com estudos sobre a participação feminina na magistratura. O argumento é que o contraste de gênero no mundo profissional é construído por meio da distribuição desigual de privilégios e desvantagens a partir de um viés implícito. Este favorece o percurso dos homens em um ambiente receptivo e cria dificuldades para as mulheres, que precisam se ajustar ao espaço.

PALAVRAS-CHAVE:
magistratura; mulheres; profissão; gênero

ABSTRACT

The article is based on data from the Brazilian Judges’ sociodemographic profile, conducted by CNJ in 2018, and the Federal Justice Commission Survey conducted by the Ajufe Women Commission in 2019, to dialogue with studies on women’s participation in the Judiciary. The argument is that gender contrast in the professional world is built through the unequal distribution of privileges and disadvantages from an implicit bias. This favors the path of men in a receptive environment and creates difficulties for women who need to adjust to that space.

KEYWORDS:
judiciary; women; profession; gender

INTRODUÇÃO

A expansão do contingente de mulheres nas carreiras jurídicas tem caminhado no sentido da equidade de gênero no mundo profissional do direito? A busca pelas carreiras públicas tem promovido tais oportunidades ou essas profissionais seguem enfrentando obstáculos na profissão? Já há tempo para uma avaliação dessa participação? Este artigo entende que há dados suficientes para uma reflexão sobre a problemática e detém-se na análise das formas como a magistratura atribui significados baseados no masculino e no feminino ao longo do percurso na judicatura, produzindo práticas profissionais que vão ganhando conteúdos estratificados.

Em comparação com a prática privada da advocacia, que demanda dedicação total e hostiliza a necessidade de compatibilizar trabalho e cuidados, as carreiras públicas são percebidas como mais viáveis a essa articulação, atraindo as profissionais do direito. Apesar dessa característica muito realçada pelas mulheres, a ponto de tornar menos perceptível como o gênero marca a trajetória no Poder Judiciário, argumenta-se neste artigo que há uma construção generificada da carreira. A presença de mulheres e da diferença no grupo profissional é relevante para uma composição heterogênea da Justiça, mas isso por si só não altera a visão dominante do profissionalismo, que ao enfocar a excelência como neutra invisibiliza a distribuição desigual de privilégios e desvantagens quanto a gênero e cor/raça no ingresso e na ascensão. Mesmo com uma trajetória bastante estruturada, com etapas de progressão padronizadas, os resultados chamam a atenção para o predomínio de magistrados brancos do gênero masculino nas posições de maior poder profissional, como também nos tribunais com mais autonomia e recursos, o que varia regionalmente e por segmento da Justiça.

É nas interações sociais que os profissionais experientes e os ingressantes na instituição convivem e vão produzindo o fazer masculino e feminino. Em contraste com a naturalização dessa divisão que toma o sexo biológico binário (homem-mulher) e o transforma numa essência que dá gênero aos papéis profissionais, o foco é identificar os processos de sua construção na carreira. Em vez de presumir que modelos masculino e feminino da vida privada se reproduzem na atividade profissional, investigam-se as especificidades de como se fazem e desfazem os papéis de gênero no Judiciário.

Ulrike Schultz e Gisela Shaw destacam as diferenças nas tradições e culturas jurídicas dos países de direito civil e de direito consuetudinário marcando também a magistratura. De acordo com as autoras, após a lenta entrada das mulheres como magistradas nos países de direito civil, elas tomaram de assalto o Judiciário por meio dos concursos de ingresso, reconhecendo nesse espaço condições de trabalho que permitem acumular a vida profissional e familiar. Segundo o projeto comparado que elas coordenaram, os processos de seleção dos países de Common Law, que envolvem redes profissionais e políticas para indicação ao posto, contrastam com o que ocorre nos países de Civil Law, em que o acesso se dá sobretudo por concursos, mantendo a capacidade de reprodução dos homens na magistratura (Schultz; Shaw, 2003Schultz, Ulrike; Shaw, Gisela (orgs.). Women in the World’s Legal Professions. Oxford: Hart Publishing , 2003., pp. XLVI-II).

O foco no caso brasileiro dialoga com esses dados, buscando compreender as especificidades do ingresso e da progressão na carreira, que combinam formas capazes de articular aspectos meritocráticos e discricionários, que detêm a “tomada de assalto” e produzem a distribuição desigual de privilégios e desvantagens para ascensão.

O caso da participação das mulheres na magistratura francesa, analisado por Boigeol (2003Boigeol, Anne. “Male Strategies in the Face of the Feminization of a Profession: The Case of the French Judiciary”. In: Schultz, U.; Shaw, G. (orgs.). Women in the World’s Legal Professions. Oxford: Hart Publishing, 2003, pp. 401-18.), foi tomado como paradigma a ser evitado no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), por se temer a perda de prestígio com a “feminização” enxergada no modelo francês. Desembargadores relacionavam o aumento no número de juízas ao risco de enfraquecimento da instituição e de queda na remuneração (Bonelli, 2013Bonelli, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013.).1 1 “Há uma experiência estrangeira, a França, que quer sempre orientar nossas escolas de magistratura. A França fala ‘tome cuidado que a magistratura vai se tornar uma carreira feminina e a carreira feminina não tem capacidade de exigir aperfeiçoa­mento ou melhoria salarial, porque sempre o segundo salário é para auxiliar a economia doméstica’. Então a mulher se satisfaz com qualquer salário, e isso põe em risco as conquistas da magistratura brasileira. ‘Não ponha muita mulher, porque a mulher não reivindica salário’.” Trecho de entrevista com desembargador do TJSP (Bonelli, 2013, p. 28). A presença feminina no Judiciário francês tornou-se majoritária no início dos anos 2000. Como a carreira judicial vinha perdendo prestígio entre os homens de origem social de elite já em meados do século XX, o ingresso masculino cresceu entre aqueles profissionais provenientes de estratos médios. A entrada de mulheres socialmente mais bem posicionadas conteve um pouco essa perda de status, ao mesmo tempo que produziu a diferenciação vertical segundo o gênero, com elas se apresentando menos para exercer as posições de direção institucional, que seguiram mais preen­chidas pelos magistrados (Boigeol, 2003Boigeol, Anne. “Male Strategies in the Face of the Feminization of a Profession: The Case of the French Judiciary”. In: Schultz, U.; Shaw, G. (orgs.). Women in the World’s Legal Professions. Oxford: Hart Publishing, 2003, pp. 401-18.).

Segundo Joaquim Falcão (1988Falcão, Joaquim. “Lawyers in Brazil”. In: Abel, Richard L.; Lewis, Philip S. C. Lawyers in Society: The Civil World. Berkeley: University of California Press, 1988.), o Censo de 1980 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou a participação de 24,6% de mulheres bacharéis em direito e 8,2% de magistradas. Em trinta anos, a expansão é expressiva. Os dados do Censo de 2010 apontam que o montante feminino chega quase à metade, com 46,4% dos mais de 1,2 milhão de bacharéis em direito no Brasil. E dados de 2012 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) mostravam que elas respondiam por 51,5% do número total de matrículas nos cursos de direito.

Neste momento, quando as mulheres superaram os homens numericamente nos cursos de direito, forjou-se uma expectativa de que em pouco tempo estariam em maior proporção também na magistratura. Na advocacia, mais mulheres do que homens vinham regularmente ingressando nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) (Bertolin, 2017Bertolin, Patrícia T. M. Mulheres na advocacia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.). Nas carreiras públicas de Justiça, embora o ingresso fosse menor, havia otimismo sobre essa ampliação. E mais, imaginava-se que a ascensão aos postos mais altos no interior dessas carreiras, como os postos na segunda e terceira instâncias, seria também uma questão de tempo. Notícia publicada no site de notícias jurídicas Conjur em 2012 era alvissareira: “Em pouco tempo, mulheres estarão na cúpula da Justiça” (Ito; Scriboni, 2012Ito, Marina; Scriboni, Marília. “Em pouco tempo, mulheres estarão na cúpula da Justiça”. Conjur, Brasília, 08/03/2012. Disponível em: <Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-mar-08/aumenta-numero-mulheres-direito-sao-chegam-cupula >. Acesso em: 08/08/2019.
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).

Cinco anos depois, dados do Conselho Nacional de Justiça - CNJ (2017CNJ - Conselho Nacional de Justiça. “Mulheres representam 37,3% dos magistrados em atividade em todo o país”. Brasília: CNJ, 2017. Disponível em: <Disponível em: https://www.cnj.jus.br/percentual-de-mulheres-em-atividade-na-magistratura-brasileira-e-de-37-3/ >. Acesso em: 03/09/2019.
https://www.cnj.jus.br/percentual-de-mul...
) mostraram que a presença das mulheres na magistratura correspondia a 37,3% dos cargos providos. Em seis Unidades da Federação foram observados valores acima dessa proporção, com 40% ou mais das vagas providas ocupadas por mulheres: Rio de Janeiro: 48,6%; Rio Grande do Sul: 45,4%; Sergipe: 45,2%; Bahia: 44,8%; Pará: 41,9%; e Rio Grande do Norte: 41,2%.

Em outras sete Unidades da Federação, esse percentual estava abaixo da média, com menos de 30% de vagas ocupadas por mulheres: Roraima: 27,1%; Mato Grosso do Sul: 26,9%; Tocantins: 26,6%; Piauí: 25,3%; Minas Gerais: 24,9%; Alagoas: 24,3%; e Amapá: 9,8%.

As especificidades dos contextos locais permitem compreender essa variação. Em estudo sobre o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA), Tharuell Kahwage (2017Kahwage, Tharuell. Mulheres na magistratura paraense: uma análise das percepções das desembargadoras do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) sobre trajetória profissional e atuação jurisdicional voltada à efetivação dos direitos humanos das mulheres. Dissertação (mestrado em direito). Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2017.) dá visibilidade às singularidades desse processo de profissionalização. É possível identificar como o baixo controle dos pares, a limitada autonomia e os poucos recursos caracterizaram o TJPA. Tendo sido organizado em 1947, esse tribunal chega ao final do século XX como uma instituição pouco atraente ao profissional do direito, por não compensar o trabalho com proventos satisfatórios.

Em 1995, a remuneração total de um juiz estadual de primeira instância no Pará correspondia a 38% da remuneração de um juiz no mesmo patamar em São Paulo. Assim, já em 1978 o TJPA teve uma mulher como presidente. Em 2016 tinha 64% de desembargadoras, sendo frequente a presença delas na direção da instituição. Embora essa diferença de ganhos entre os tribunais tenha sido reduzida e a padronização da Reforma do Judiciário, em 2004, tenha aproximado os vencimentos na Justiça, atraindo o ingresso masculino na magistratura no país, o predomínio feminino persiste na segunda instância no Pará, devido à entrada anterior e ao ritmo da progressão.

O fato de haver uma maioria de mulheres no topo da carreira nesse estado não modificou o ideário do profissionalismo e a visão sobre a imparcialidade na magistratura. Nem sequer o predomínio de mulheres em uma instituição que foi considerada pouco atrativa aos homens devido aos baixos rendimentos tornou tal modelo um problema. Tendo como referencial dominante aquele que orienta o cânone jurídico, várias das magistradas não identificam o gênero como fator de discriminação na carreira, já que não há impedimentos legais que causem barreiras. Há uma percepção jurídica de haver as mesmas oportunidades, associada a uma construção do “ser magistrado” a partir de um éthos masculino, ressignificado como neutro.2 2 Alguns aspectos dessa visão estão expressos na nota 1, na qual um desembargador do TJSP relata os sentidos dados ao masculino na valorização da instituição, com os juízes sendo capazes de exigir maiores salários, deter a posição provedora na família e a capacidade de obter conquistas para a magistratura. O julgamento imparcial é entendido formalmente, sem situar de modo substantivo as partes e o acesso desigual à Justiça (Kahwage, 2017Kahwage, Tharuell. Mulheres na magistratura paraense: uma análise das percepções das desembargadoras do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) sobre trajetória profissional e atuação jurisdicional voltada à efetivação dos direitos humanos das mulheres. Dissertação (mestrado em direito). Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2017.).

Sobre os tribunais superiores, os dados do CNJ apontam que a situação da participação feminina não teve grande mudança com o passar do tempo, quando se comparam os levantamentos de 2012 e 2017, conforme ilustrado na Tabela 1.

TABELA 1
Percentual de mulheres na composição dos Tribunais Superiores

Atualmente, observa-se que o otimismo em torno da inclusão feminina deu lugar à cautela na forma de interpretar, na magistratura, tal fenômeno, que segue se revelando desigual. Embora se constate a heterogeneidade, busca-se manter um padrão de percepção da magistratura como uma unidade a compartilhar valores homogêneos construídos na carreira no momento da maciça composição masculina. Esse modelo, consolidado ao longo do século XX, imbuiu-se do ideário do profissionalismo cívico no mundo do direito (Bonelli, 2002________. Profissionalismo e política no mundo do direito. São Carlos: EDUFSCar, 2002.; Bonelli; Oliveira, 2003________; Oliveira, Fabiana Luci de. “A política das profissões jurídicas: autonomia em relação ao mercado, ao Estado e ao cliente”. Revista de Ciências Sociais, v. 34, n.1, pp. 99-114, 2003. Disponível em: <http://www.periodicos.ufc.br/revcienso/article/view/3385>. Acesso em: 03/09/2019.
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). Essa forma de pensar e representar a profissão converte a autoridade moral em expertise, ao procurar exercer poder com legitimidade social por meio da distinção com o fazer político convencional. A política da profissão se diferencia da política propriamente dita pela afirmação de seu apoliticismo, construindo a expertise como neutra e autônoma em relação aos interesses políticos, de mercado e dos clientes, dando destaque ao que há de comum entre os pares para reforçar sua coesão. Apoia-se nos valores do formalismo legal, do procedimentalismo e da excelência técnico-jurídica (Halliday, 1999Halliday, Terence. “Politics and Civic Professionalism: Legal Elites and Cause Lawyers”. Law & Social Inquiry, n. 24, pp.1.013-60, 1999.).

Esse ideário da neutralidade tomou como referencial os profissionais que dominaram a atividade durante sua constituição e consolidação, no caso, os homens brancos socialmente favorecidos. A postura da autoridade, o modelo da vestimenta, as representações do ser profissional foram elaboradas como universais, mas se apoiaram em modelos particulares que expressavam gênero, raça e classe específicos. Dessa forma, alimenta-se a força da figura da autoridade na profissão como resultado legítimo e justamente merecido de seus privilégios sistemáticos, com a inclusão subalternizada das diferenças. Outros corpos que não refletem as imagens esperadas pelos pares e jurisdicionados precisam lidar com a ausência que essa representação produz, por vezes tentando mimetizar o modelo valorizado.

Tal inclusão, portanto, é acompanhada de um viés implícito em relação ao trabalho das mulheres, colocando obstáculos a seu percurso na carreira ao mesmo tempo que gera mais oportunidades para eles. Se há quarenta anos elas eram 10% do corpo profissional, hoje, embora tenha aumentado a inserção delas no grupo, não foi suficiente para que chegassem à cúpula do Judiciário. Isso, por si só, revela a existência de vantagens para uns e desvantagens para outras como resultado da forma como o gênero se manifesta na magistratura.

A preocupação com essa agenda levou à criação da Comissão Ajufe Mulheres, que produziu notas técnicas sobre o tema com debate público sobre a questão. As implicações do que os dados revelam foram expressas em artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, escrito pelas juízas Clara Mota Pimenta Alves e Gabriela Azevedo C. Sales: o teto de vidro continuaria realidade na Justiça Federal, uma vez que a proporção de mulheres na segunda instância seria muito baixa, variando de 0%, na 5-ª região, a 26%, nas 3-ª e 4-ª regiões (Alves; Sales, 2019Alves, Clara Mota Pimenta; Sales, Gabriela A. C. “Togadas e estagnadas”. Folha de S.Paulo, 08/03/2019. Disponível em: <Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/03/togadas-e-estagnadas.shtml >. Acesso em: 08/08/2019.
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). Contudo, sobressaem, também, desse levantamento de dados a falta de precisão e a dificuldade de produzir informações sobre gênero na magistratura, o que diz muito sobre a visão predominante acerca do assunto: é considerado “coisa de mulher”, não sendo relevante para o padrão dominante.

TABELA 2
Presença de mulheres na Justiça Federal

Várias são as formas como esse viés implícito é praticado na carreira, em especial na distribuição desigual entre os gêneros das atividades que geram prestígio, poder e reconhecimento profissional. Neuza Alves, que ingressou como juíza federal em Salvador em 1988, tendo se tornado desembargadora, no TRF1, em Brasília, deu um depoimento a respeito, do qual extraímos um trecho:

Eu não era lembrada para as comissões tidas como importantes. Eu não posso atribuir isso, peremptoriamente, ao fato de ser mulher ou ao fato de ser mulher negra. Mas certo é que, tendo ingressado no tribunal em 17 de dezembro de 2004, até quando me despedi, por aposentadoria, fui convidada apenas para compor uma comissão que ninguém queria, no Acervo Documental, que todo mundo chamava de “comissão de descarte”, sem atribuir relevância ao trabalho. […] Apenas quando eleita vice-presidente, e por prerrogativa expressamente estabelecida no regimento interno, eu participei da comissão do último concurso público para o cargo de juiz federal substituto, na condição de presidente. Não posso garantir, mas me arrisco a apontar isso como uma das dificuldades enfrentadas pelo fato de ser mulher. (Ajufe Mulheres, 2019aAjufe Mulheres. Conhecendo as Juízas Federais, v. 1. Brasília: Ajufe, 2019a., p. 19)

O gênero é produzido nas formas como as atividades vão ganhando sentidos valorizados e desvalorizados, sendo as primeiras acumuladas por homens e as segundas, por mulheres. Observa-se que posições que tiveram mais poder, recursos e autonomia, quando perdem esses diferenciais na carreira, passam também a ser exercidas por mulheres. Assim, o que significa a expressão “cúpula do Judiciário” é sujeita a interpretações, relacionando-se com as mudanças nos atributos desses postos, em especial após a reforma de 2004. Cargos de direção de tribunais, como presidência, vice-presidência e corregedoria, estão incorporados regimentalmente à carreira via antiguidade, o que tornaria o acesso das mulheres a esses postos uma questão de tempo para aquelas que seguirem ativas, já que as juízas têm direito à aposentadoria cinco anos mais cedo. Ocorre que outros fatores têm influenciado a perda de interesse pelas posições de gestão nessas instituições, uma vez que o diferencial de poder e de autonomia desses cargos foram reduzidos após a reforma. A direção dos tribunais ganhou o sentido de operacionalizar as demandas provenientes do CNJ para atingir metas de produção, guiadas por métricas estabelecidas por instâncias superiores. Outras posições de valor vieram a ser cobiçadas, como a visibilidade prestigiada, a composição de bancas, a representação, o espaço no CNJ, os tribunais superiores.

Fragale Filho, Moreira e Sciammarella analisam, em estudo de 2015, o aumento da participação feminina nos cargos de direção do Poder Judiciário. A pesquisa permite relacionar como tal crescimento ocorre simultâneo ao período que a gestão dos tribunais se tornou mais regulada. Segundo a desembargadora Luzia Nadja Guimarães Nascimento, então presidenta do TJPA, quando se tem de “lidar com orçamento e com cumprimento de metas do CNJ, face às dificuldades financeiras e de pessoal - dependência do Executivo na questão financeira/orçamentária -, fica difícil cumprir todo o planejamento estratégico” (Fragale Filho et al., 2015Fragale Filho, Roberto; Moreira, Rafaela Selem; Sciammarella, Ana Paula de O. “Magistratura e gênero: um olhar sobre as mulheres nas cúpulas do Judiciário brasileiro”. E-Cadernos CES, n. 24, Coimbra, pp. 57-77, 2015., p. 73).

As informações mais recentes e extensivas sobre o perfil da magistratura brasileira são as do levantamento do CNJ de 2018, que mostrou que as mulheres correspondem a 38% dos magistrados ativos. Esses dados possibilitam um olhar mais detalhado sobre a dinâmica de gênero na magistratura. Neles, se destacam alguns aspectos influenciados por essa diferença, o que permite verificar, dada a realidade de que há muito mais homens do que mulheres na magistratura, quais são os espaços que as mulheres ocupam e qual é o movimento de sua carreira. Apoiamos nossa análise na constatação da maior presença masculina na magistratura e buscamos olhar o processo interno das carreiras para magistrados e magistradas uma vez na profissão.

Antes de avançar convém fazer uma ressalva quanto à qualidade da amostra desse levantamento. Embora a pesquisa do CNJ tenha sido desenhada para ser censitária, houve adesão de pouco mais da metade dos magistrados em atividade; portanto é preciso ter cautela com a leitura desses dados. Em termos da variável de interesse (sexo), a qualidade é alta. Quando, porém, observam-se os dados da Justiça Federal, por exemplo, para 48,1% dos magistrados não há informações.

DINÂMICA DE GÊNERO NA MAGISTRATURA

1. Perfil social

Em termos de origem social, tomando a escolaridade dos pais como proxy, é possível afirmar que há mais mulheres que proporcionalmente vêm de segmentos elevados, de maior escolaridade. Tal como visto no caso da França, o gênero se articula à classe, caracterizando, em vez do temor dos desembargadores em relação à queda no status da magistratura, uma origem social um pouco mais elevada que a masculina. O entrecruzamento do gênero com a raça e a classe social resulta em obstáculos para a maioria dos profissionais do direito quando vêm dos segmentos subalternizados, sendo mais intransponíveis para as mulheres negras. Como é maior a porcentagem de mulheres que entram na carreira vindas de famílias de maior escolaridade, isso confirma as dificuldades para o ingresso de mulheres negras bacharéis em direito, que chegam a esse patamar de instrução partindo de grupos sociais desfavorecidos.

TABELA 3
Percentual de participação no levantamento, por segmento da Justiça

A maioria das juízas que consegue superar tais barreiras está mais posicionada nos grupos detentores de capital social, cultural e no tocante ao fenótipo. Nesse sentido, o mérito, construído como neutro e objetivo por meio de uma “mágica social”, efetivamente reflete as relações sociais dominantes, que atribui à excelência profissional os padrões masculinos e ao mérito as práticas informais racializadas (Sommerlad, 2015Sommerlad, Hilary. “The ‘Social Magic’ of Merit: Diversity, Equity, and Inclusion in the English and Welsh Legal Profession”. Fordham Law Rev, n. 83, pp. 2.325-47, 2015.).

2. Segmento da Justiça e período de ingresso na carreira

De acordo com o relatório do CNJ (2018_______. “Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros”. Brasília: CNJ, 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/files/publicacoes/arquivo/a18da313c6fdcb6f364789672b64fcef_c948e694435a52768cbc00bda11979a3.pdf>. Acesso em: 03/09/2019.
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), na Justiça Federal a proporção de mulheres é de 32% no total de magistrados em atividade. A Justiça do Trabalho conta com a maior proporção de mulheres: 47%. E a Justiça Estadual vem na sequência, com 36% de mulheres.

Mas qual é a influência específica do gênero na alocação dos magistrados por Justiça? Como as mulheres se distribuem entre os diferentes segmentos? Quando consideramos o total de mulheres e observamos sua distribuição entre os segmentos da Justiça, notamos um impacto maior do gênero na Justiça do Trabalho, que tem 18% do total de magistrados, sendo que 23% do total de magistradas estão nessa Justiça, comparado a 16% do total de homens.

TABELA 4
Escolaridade dos pais, por sexo dos magistrados (em %)
TABELA 5
Segmento da Justiça, de acordo com o sexo (em %)

A Justiça Estadual conta com 71% dos magistrados, sendo que 68% das mulheres estão nesse segmento, comparado a 73% dos homens. Na Justiça Federal encontram-se 9% dos magistrados, sendo que 8% das mulheres atuam nessa justiça, comparado a 10% dos homens. Ou seja, embora a Justiça Federal tenha proporcionalmente menos mulheres (36% do total de juízes federais são mulheres), analisando essa informação pelo efeito do gênero, ela é a que sofre o menor impacto.

O processo de profissionalização de cada um desses segmentos da Justiça ocorreu em momentos distintos, com formas de recrutamento, seleção e progressão que tinham variação na autonomia interna e na ingerência de outros poderes nas nomeações. Houve maior padronização a partir da Constituição Federal de 1988, por negociações conduzidas pelos representantes das magistraturas junto aos constituintes, em busca de profissionalismo como expressão de independência no controle das carreiras. Isso pode explicar a maior resistência dos tribunais estaduais - nos quais a magistratura já estava com sua organização consolidada - à redução das distâncias entre homens e mulheres na composição do Judiciário.

Sciammarella (2019Sciammarella, Ana Paula de O. Magistratura das magistradas: Uma análise da condição profissional feminina no Judiciário fluminense. Tese (doutorado em sociologia e direito). Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2019.) detalha as especificidades da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho no Rio de Janeiro. A autora mostra como a Justiça do Trabalho vinculada ao Poder Executivo passa a ser órgão do Poder Judiciário na Constituição de 1988, transformando os Conselhos Regionais do Trabalho em Tribunais Regionais do Trabalho. Diferentemente de São Paulo, que consolidou sua organização em um contexto de maciça presença masculina em meados do século XX (Bonelli, 2002________. Profissionalismo e política no mundo do direito. São Carlos: EDUFSCar, 2002.), a Justiça Estadual no Rio de Janeiro teve de lidar com a mudança da capital federal para Brasília, na década de 1960, e a unificação da Justiça Estadual do Rio de Janeiro e da Guanabara, em 1975, sendo hoje um dos estados com maior presença feminina na magistratura estadual.

A Justiça Federal esteve sujeita às decisões do presidente da República tanto nas nomeações quanto na sua criação e extinção, mudando esse estatuto também na Constituição de 1988, com a autonomia profissional.

A “juventude” e a “senioridade” da independência dos tribunais na consolidação do profissionalismo é um aspecto relevante na maior resistência ao ingresso e à progressão das mulheres na magistratura. Aqueles que se “fecharam” no controle da carreira antes da entrada das mulheres no mundo do direito caminham mais lentamente nessa direção.

O relatório do CNJ mostrou a distribuição por sexo de acordo com o período de ingresso na carreira, indicando que, entre os magistrados ativos que ingressaram até 1990, a proporção de mulheres é de apenas um quarto. Entre os que ingressaram de 1991 a 2000, a proporção de mulheres atinge 40%; entre os que ingressaram entre 2001 e 2010, 41%; e entre os que entraram na carreira a partir de 2011, 37% são mulheres.

Analisando essa informação a partir da dinâmica de gênero, observamos que, se dos magistrados em atividade hoje 8% ingressaram até 1988, entre as mulheres a proporção é de 4% contra 10% dos homens. No período entre 1989 e 1999 não há diferença na proporção de homens e mulheres ingressantes. Os que entraram na carreira entre 2000 e 2010 correspondem a 35% dos magistrados, sendo que 39% das mulheres em atividade ingressaram nesse período e 33% dos homens. E o ingresso mais recente é responsável por 23% do total de magistrados em atividade, sendo 22% das mulheres e 23% dos homens. Portanto, o período mais favorável ao ingresso de mulheres se deu entre 2000 e 2010. Pode-se afirmar que a partir de 2011 há uma redução no ritmo de feminização do Judiciário, contido pelos tribunais, ao mesmo tempo que se observa a adoção da política de reserva de vagas para negros e deficientes.

TABELA 6
Período de ingresso, de acordo com o sexo (em %)

3. Trajetória de carreira

Um aspecto na dinâmica de gênero perceptível na carreira é a experiência em outros cargos públicos antes do ingresso na magistratura. Essa experiência tende a ser mais incidente entre os homens: 70% deles exerceram algum cargo público previamente, em comparação a 62% das mulheres, sendo que, quanto mais recente o ingresso, maior é a proporção de homens e mulheres com esse tipo de experiência pregressa. Embora essa diferença tenha diminuído, ela sugere que é um pouco mais comum a magistratura ser o primeiro emprego público entre as mulheres do que entre os homens.

Isso pode também ser lido como um indício de que as mulheres tendem a permanecer no primeiro emprego público em que ingressam, enquanto a autoconfiança masculina e o ambiente profissional receptivo aos homens os impulsionam a buscar melhores oportunidades. Mecanismos sutis de viés e estereótipos em relação às mulheres são mencionados pelas candidatas nas etapas orais dos concursos de ingresso, com perguntas sobre a condição de gênero, que não são formuladas aos homens, tornando o processo mais hostil a elas3 3 “A preocupação deles em passar mulher era a postura que elas teriam, eles demonstravam um pouco de preocupação com histeria, aquela coisa de mulher grita, tanto que eles chegaram a perguntar na entrevista se algum advogado, alguém desse em cima de mim, se eu chamaria a polícia ou conseguiria resolver, então são coisas ridículas, porque essa coisa você resolve no seu dia a dia.” Trecho de entrevista com uma juíza do TJSP (Bonelli, 2013, p. 31). (Ajufe Mulheres, 2019aAjufe Mulheres. Conhecendo as Juízas Federais, v. 1. Brasília: Ajufe, 2019a.; Bonelli, 2013Bonelli, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013.; Campos, 2018Campos, Veridiana P. Parahyba. O processo de feminização da magistratura no Brasil: mecanismos e possibilidades de uma mudança social. Recife: UFPE, 2018.; Sciammarella, 2019Sciammarella, Ana Paula de O. Magistratura das magistradas: Uma análise da condição profissional feminina no Judiciário fluminense. Tese (doutorado em sociologia e direito). Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2019.; Kahwage e Severi, 2019_______; Severi, Fabiana. “Para além de números: uma análise dos estudos sobre a feminização da magistratura”. RIL, Brasília, v. 56, n. 222, pp. 51-73, 2019.).

Outra dimensão em que observamos a dinâmica de gênero é a formação dos magistrados no que se refere à pós-graduação. A importância da pós-graduação foi crescendo ao longo do tempo. No geral, a proporção de homens e mulheres com pós-graduação é praticamente a mesma. Mas olhando apenas aqueles que ingressaram mais recentemente na carreira, a proporção de mulheres com pós-graduação é maior - sendo maior também entre as mulheres que ingressaram até 1988. Já no que se refere a ter uma segunda graduação, essa opção parece perder importância ao longo do tempo, e não há diferença no comportamento entre homens e mulheres. O período recente, que foi identificado como o menos favorável ao ingresso feminino (a partir de 2011), é também aquele que apresenta proporção maior de mulheres com pós-graduação, apontando para um acúmulo de titulação delas, apesar do retraimento no percentual de ingresso na magistratura.

TABELA 7
Ocupou cargo público antes do ingresso na magistratura, por sexo e período de ingresso (em %)

No que se refere à posição na carreira, o Relatório do CNJ (2018_______. “Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros”. Brasília: CNJ, 2018. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/files/publicacoes/arquivo/a18da313c6fdcb6f364789672b64fcef_c948e694435a52768cbc00bda11979a3.pdf>. Acesso em: 03/09/2019.
https://www.cnj.jus.br/files/publicacoes...
) mostra que as mulheres representam 44% dos juízes substitutos, 39% dos juízes titulares e 23% dos desembargadores. Olhando a posição na carreira de acordo com o sexo e o período de ingresso, notamos que dos magistrados ativos que ingressaram até 1988, 73% são hoje desembargadores (75% dos homens e 64% das mulheres); dos que ingressaram entre 1989 e 1999, 11% são desembargadores (sendo 8% das mulheres e 13% dos homens); dos que ingressaram entre 2000 e 2010, 3% são desembargadores (2% das mulheres e 4% dos homens) e 4% dos que ingressaram a partir de 2011 (2% das mulheres e 5% dos homens) são desembargadores. De 11.348 magistrados que responderam à pesquisa, 11% são desembargadores, sendo que 7% do total de mulheres na magistratura naquele momento eram desembargadoras, em comparação a 14% dos homens. Ou seja, pelo menos o dobro de homens chegou à posição de desembargador.

Na literatura nacional e internacional sobre a participação das mulheres nos tribunais, várias autoras têm combatido a ideia de que o gap de gênero se reduziria com o tempo e a progressão na carreira, já que elas teriam entrado mais tarde e essa distância se aproximaria ao longo dos anos (Boigeol, 2005_______. “Las mujeres y las cortes: la difícil implementación de la igualdad de sexos em el acceso a la magistratura”. Academia. Revista sobre Ensenãnza del derecho, ano 3, n. 6, pp. 3-25, 2005.; Schultz e Shaw, 2013_______. Gender and Judging. Oxford: Hart Publishing, 2013.; Fragale Filho et al., 2015Fragale Filho, Roberto; Moreira, Rafaela Selem; Sciammarella, Ana Paula de O. “Magistratura e gênero: um olhar sobre as mulheres nas cúpulas do Judiciário brasileiro”. E-Cadernos CES, n. 24, Coimbra, pp. 57-77, 2015.). Os dados disponíveis confirmam esse argumento crítico, mostrando que juízas e juízes que iniciaram o percurso no mesmo período tiveram oportunidades de progressão distintas, alimentando a visão de que essa desvantagem é um teto de vidro persistente no Judiciário brasileiro, assim como em outros países.

TABELA 8
Percentual de magistrados com curso de pós-graduação, por sexo

A dinâmica de gênero entre os segmentos da Justiça é ainda mais incidente na Justiça Estadual: 11% de seus magistrados são desembargadores, sendo dentre os homens 15% e dentre as mulheres apenas 5%. A Justiça Estadual mostrou-se menos inclusiva tanto na primeira quanto na segunda instâncias. A estratificação da carreira aguça a barreira para a segunda instância, constituindo-se no teto de vidro que contém a participação delas em posições de poder da cúpula dos tribunais. Boigeol (2003Boigeol, Anne. “Male Strategies in the Face of the Feminization of a Profession: The Case of the French Judiciary”. In: Schultz, U.; Shaw, G. (orgs.). Women in the World’s Legal Professions. Oxford: Hart Publishing, 2003, pp. 401-18.) elaborou essa constatação a partir de outro prisma, aquele no qual as mulheres não se candidatam a ocupar - ou concorrer a - esses postos, alimentando a segregação vertical. Assim haveria uma confluência entra a existência de um obstáculo e uma ausência de disposição em lidar com tal hostilidade.

TABELA 9
Desembargadores(as), de acordo com sexo e período de ingresso na carreira (em %)
TABELA 10
Desembargadores(as), de acordo com sexo e segmento da Justiça (em %)

4. Vida familiar

Uma vez no topo da carreira, é possível perceber os impactos da dinâmica de gênero na vida familiar: 58% das desembargadoras são casadas, em comparação a 89% dos desembargadores. Entre os juízes substitutos a diferença é menor: 73% das juízas e 79% dos juízes são casados.

A maternidade é também menos frequente no topo da carreira em comparação à paternidade: têm filhos 84% das desembargadoras e 96% dos desembargadores. Entre os juízes titulares, têm filhos 78% das mulheres e 83% dos homens. E entre os juízes substitutos a diferença é quase nula: 58% das mulheres e 60% dos homens.

Embora a fronteira entre a vida privada e o trabalho4 4 Teorizando sobre a nova configuração da divisão sexual do trabalho, Hirata e Kergoat (2007) apontam para além do “modelo tradicional” de delegar o doméstico às mulheres e o profissional aos homens. Nas novas formas de se organizar essa relação, ganha destaque a inserção das mulheres em carreiras profissionais apoiada no “modelo da delegação” dos cuidados a outras mulheres, com a divisão do trabalho doméstico produzindo novas tensões entre elas. As autoras também apontaram os limites do “modelo da conciliação”, cabendo exclusivamente às mulheres combinar o profissional e o familiar, encontrando-se muito pouco do paradigma da parceria nas práticas sociais. O predomínio da delegação realizada por esses grupos profissionais no Brasil reproduziria a desigualdade e a opressão. seja um mantra no mundo profissional, isso ganha conteúdo de gênero na magistratura, tendo significados distintos para mulheres e homens (Bonelli, 2016________. “Carreiras jurídicas e vida privada: intersecções entre trabalho e família”. Cadernos Pagu, 46, pp. 245-77, 2016.). Entre os desembargadores, ter cônjuge favorece a progressão, atuando como um privilégio de gênero. Já entre as desembargadoras, o acesso à segunda instância associa-se menos ao fato de serem casadas, relacionando-se a ascensão com a realização de trabalho das emoções (Hochschild, 2003Hochschild, Arlie R. The Commercialization of Intimate Life: Notes From Home and Work. Berkeley: University of California Press , 2003.). O sucesso na carreira não reduz os custos emocionais, demandando expressiva administração dos sentimentos. O trabalho emocional realizado é o de produzir em si mesmo aquilo que não se está sentindo, e que é socialmente esperado, suturando no sujeito a separação que essas fronteiras geram. A administração das emoções representa uma terceira jornada, que combina os códigos de gênero, encaixando na subjetividade essas regras de sentimentos.

TABELA 11
Magistrados casados, por sexo e posição na carreira (em %)
TABELA 12
Magistrados com filhos, por sexo e posição na carreira (em %)
TABELA 13
Magistrados com familiares na magistratura, de acordo com sexo e período de ingresso na carreira (em %)

A persistência de um viés implícito (Deo, 2019Deo, Meera E. Unequal Profession: Race and Gender in Legal Academia. Califórnia: Stanford University Press, 2019.) leva as magistradas a administrar seus sentimentos, seja para lidar com as situações de invisibilidade, de não serem ouvidas, seja quando se autocensuram, silenciam e produzem em si emoções esperadas no ambiente profissional, entre estas a que nega a existência de desigualdades. Quanto mais discriminação se enfrenta, mais se faz trabalho das emoções, sendo uma jornada bem pesada para as mulheres negras.

Outro aspecto observável da dinâmica de gênero na vida familiar é a endogenia. No geral, 19% das mulheres, em comparação a 21% dos homens, têm familiares na magistratura. Uma diferença pequena no total, mas notamos que ao longo do tempo essa característica foi se modificando: entre os magistrados que ingressaram até 1988 era muito mais frequente para os homens terem familiares na magistratura (31% do total) do que para as mulheres (24% do total). A endogenia foi perdendo espaço, sendo característica de 25% dos magistrados que ingressaram entre 1989 e 1999; 18% dos que ingressaram entre 2000 e 2010; e 13% dos que ingressaram de 2011 em diante, num sinal de maior abertura da carreira.

5. Carreira × gênero × raça

Políticas públicas de inclusão no ensino superior e de ações afirmativas étnico-raciais no Brasil a partir de 2002 se somaram à reserva de vagas na magistratura, implementada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2014 para vigorar até 2024. O reflexo disso na composição de cor/raça no Judiciário, embora recente, começa a ser visível em 2015. Com base nesses dados, analisamos como gênero, cor/raça e posição na carreira se articulam na carreira judicial no Brasil, observando a proporção de magistrados pretos, pardos e indígenas5 5 Usaremos “negro” para nos referirmos a “pretos e pardos”. A quantidade de indígenas é reduzida (4 mulheres, todas na posição de juízas titulares, e 7 homens, sendo 1 desembargador e 6 juízes titulares), representando 0,1% do total de entrevistados. A quantidade de magistrados que se declararam amarelos é maior, com 167 respondentes (sendo 58 mulheres, entre as quais 5 são desembargadoras, e 109 homens, entre os quais 13 são desembargadores), representando 1,5% do total de magistrados. em cada nível, em comparação aos brancos e amarelos: a diferença de posição entre homens e mulheres negros e indígenas no topo da carreira é menor que essa diferença na base: enquanto 24% dos juízes substitutos são negros, apenas 16% das juízas substitutas são negras, e 12% das desembargadoras são negras, em comparação a 13% dos desembargadores. Assim, a cor/raça tende a ser um obstáculo maior para as mulheres no ingresso da carreira; e, uma vez dentro da instituição, homens e mulheres negros e indígenas parecem progredir no mesmo ritmo.

TABELA 14
Distribuição dos magistrados em termos de cor/raça, de acordo com sexo e posição na carreira (em %)

A forma como gênero e cor/raça se entrecruzam tem sido um fator de discriminação nas profissões jurídicas. Ao analisar a docência nas faculdades de direito nos Estados Unidos, Meera E. Deo (2019Deo, Meera E. Unequal Profession: Race and Gender in Legal Academia. Califórnia: Stanford University Press, 2019.) encontrou uma potencialização da discriminação de gênero pela raça, que crescia com a ascensão na carreira. A desigualdade não se restringia a ser uma soma de gênero + cor/raça, mas a multiplicação de gênero × cor/raça, produzindo o dobro de privilégios para homens brancos em relação à discriminação interseccional6 6 Segundo Meera E. Deo (2019, p. 19), discriminação interseccional “refere-se às maneiras pelas quais práticas e políticas institucionais, como também líderes e até colegas e consumidores (estudantes) exercitam não só os privilégios brancos contra negros e de homens contra mulheres, mas também uma combinação de seus múltiplos privilégios de status para discriminar mulheres negras” [tradução livre]. para mulheres negras. No caso da docência do direito no Brasil, observa-se o mesmo fenômeno. Os docentes brancos/amarelos são o dobro dos discentes nas faculdades de direito, e as professoras negras/indígenas são a metade das alunas dessa cor/raça. Entre os docentes negros/indígenas a sub-representação em comparação ao alunado é menor.

Na magistratura vê-se que formas como gênero e cor/raça marcam as vantagens e desvantagens e têm especificidades, com a sub-representação dos negros/indígenas sobrepujando a desigualdade de gênero no que diz respeito ao acesso à cúpula dos tribunais. Assim, é no momento de ingresso no Poder Judiciário que a discriminação interseccional se revela mais potente para a juíza substituta negra/indígena, encontrando mais hostilidade que o juiz negro/indígena para tornar-se membro do corpo judicial.

GRÁFICO 1
Distribuição dos docentes e discentes de graduação em direito, por sexo e cor/raça (em %)

A reserva de vagas para juízas e juízes negros/indígenas tem sido mais efetiva para eles, chegando a atingir 24% de juízes substitutos negros, enquanto essa porcentagem fica em 16% para as juízas substitutas negras. Elas parecem ter mais dificuldades de ingresso na carreira que eles, embora, após a entrada, a progressão mantenha uma “igualdade perversa” de baixa participação, já que há 18% de juízas titulares e 12% de desembargadoras, valores próximos da porcentagem de juízes titulares negros/indígenas (19%) e de desembargadores negros/indígenas (13%). A questão que se coloca é se a reserva de vagas vem ocupando o mesmo espaço preenchido pelo ingresso das mulheres no Poder Judiciário, reduzindo essa entrada que teve seu apogeu entre 2000 e 2010, mas mantendo a mesma presença de juízes brancos. Assim, mesmo havendo concurso para seleção, o modelo brasileiro de ingresso no Judiciário conseguiria manter a reprodução dos homens brancos na magistratura, contendo a participação das “minorias” na faixa de 35% a 40%.

CONCLUSÕES

O artigo partiu de dados recentes sobre o Judiciário brasileiro para refletir sobre as formas como a carreira constrói gênero pela distribuição desigual de privilégios para os magistrados e desvantagens paras as magistradas - o que é reforçado por um ambiente institucional mais receptivo a eles do que a elas. O passar do tempo, por si só, não tem sido um fator a gerar equidade na carreira.

Dialogando com a bibliografia sobre a participação feminina no Poder Judiciário no Brasil e em outros países, a análise destacou as formas como o viés implícito entende o ingresso feminino como um risco de desvalorização da magistratura, como ilustrado nas notas 1 e 2, apesar de a presença feminina ser proveniente de um estrato social mais favorecido que o dos homens. Para além do controle de mercado por meio de regulamentações oficiais, como ocorre no profissionalismo (Freidson, 1998Freidson, Eliot. Renascimento do profissionalismo. São Paulo: Edusp, 1998.), essas são práticas informais masculinistas.

O aumento da atuação das mulheres nos cargos de direção dos tribunais no Brasil vem sendo constatado nas pesquisas, mas também se observa como essas posições perderam poder, recursos e autonomia para decidir as formas de gestão, estando mais reguladas pelas métricas e pelas metas exigidas pelo CNJ, além de contarem com menos recursos. Assim, as posições cobiçadas se deslocaram para outras instâncias e outras atividades, que obtêm reconhecimento público e dos pares com menores custos objetivos e subjetivos.

A recente política de reserva de vagas para negros/indígenas parece se expandir, nestes anos iniciais, no espaço ocupado pelo ingresso de mulheres no Judiciário na primeira década deste século. Cabe observar se haverá redução da proporção de homens brancos/amarelos na magistratura com a continuidade da política até 2024.

A vida familiar é outro aspecto marcado pelo gênero, atuando com sinais opostos para juízes e juízas. Para eles, ser casado e ter filhos conta positivamente para a progressão na carreira; já entre elas, essa ascensão se dissocia da vida conjugal, havendo significativa redução na porcentagem de desembargadoras casadas.

Em síntese, a percepção7 7 Sobre essas percepções, ver Bonelli (2013); Campos (2018); Kahwage (2017); Sciammarella (2019). de várias magistradas sobre as condições de acesso e progressão na carreira não considera as oportunidades como desiguais ou decorrentes de um problema de gênero. Entretanto, outras juízas, mesmo tendo partilhado o éthos profissional masculino, que transforma a excelência em expertise neutra e a prática judicial em imparcialidade formal, hoje reconhecem quanto disso é carregado de generificação, invisibilizando o que destoa do masculino, branco, heterossexual na vida institucional.

Ver para além das nuances que encobrem o ideário do profissionalismo que se quer acreditar como neutro e capaz de gerar coesão em torno de “ser magistrado” é uma via que se abre para desfazer papéis de gênero, na forma como estes têm sido produzidos na carreira judicial.

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  • 1
    “Há uma experiência estrangeira, a França, que quer sempre orientar nossas escolas de magistratura. A França fala ‘tome cuidado que a magistratura vai se tornar uma carreira feminina e a carreira feminina não tem capacidade de exigir aperfeiçoa­mento ou melhoria salarial, porque sempre o segundo salário é para auxiliar a economia doméstica’. Então a mulher se satisfaz com qualquer salário, e isso põe em risco as conquistas da magistratura brasileira. ‘Não ponha muita mulher, porque a mulher não reivindica salário’.” Trecho de entrevista com desembargador do TJSP (Bonelli, 2013Bonelli, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013., p. 28).
  • 2
    Alguns aspectos dessa visão estão expressos na nota 1, na qual um desembargador do TJSP relata os sentidos dados ao masculino na valorização da instituição, com os juízes sendo capazes de exigir maiores salários, deter a posição provedora na família e a capacidade de obter conquistas para a magistratura.
  • 3
    “A preocupação deles em passar mulher era a postura que elas teriam, eles demonstravam um pouco de preocupação com histeria, aquela coisa de mulher grita, tanto que eles chegaram a perguntar na entrevista se algum advogado, alguém desse em cima de mim, se eu chamaria a polícia ou conseguiria resolver, então são coisas ridículas, porque essa coisa você resolve no seu dia a dia.” Trecho de entrevista com uma juíza do TJSP (Bonelli, 2013Bonelli, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013., p. 31).
  • 4
    Teorizando sobre a nova configuração da divisão sexual do trabalho, Hirata e Kergoat (2007Hirata, Helena; Kergoat, Danielle. “Novas configurações da divisão sexual do trabalho”. Cadernos de Pesquisa, n. 132, pp. 595-609, 2007.) apontam para além do “modelo tradicional” de delegar o doméstico às mulheres e o profissional aos homens. Nas novas formas de se organizar essa relação, ganha destaque a inserção das mulheres em carreiras profissionais apoiada no “modelo da delegação” dos cuidados a outras mulheres, com a divisão do trabalho doméstico produzindo novas tensões entre elas. As autoras também apontaram os limites do “modelo da conciliação”, cabendo exclusivamente às mulheres combinar o profissional e o familiar, encontrando-se muito pouco do paradigma da parceria nas práticas sociais. O predomínio da delegação realizada por esses grupos profissionais no Brasil reproduziria a desigualdade e a opressão.
  • 5
    Usaremos “negro” para nos referirmos a “pretos e pardos”. A quantidade de indígenas é reduzida (4 mulheres, todas na posição de juízas titulares, e 7 homens, sendo 1 desembargador e 6 juízes titulares), representando 0,1% do total de entrevistados. A quantidade de magistrados que se declararam amarelos é maior, com 167 respondentes (sendo 58 mulheres, entre as quais 5 são desembargadoras, e 109 homens, entre os quais 13 são desembargadores), representando 1,5% do total de magistrados.
  • 6
    Segundo Meera E. Deo (2019Deo, Meera E. Unequal Profession: Race and Gender in Legal Academia. Califórnia: Stanford University Press, 2019., p. 19), discriminação interseccional “refere-se às maneiras pelas quais práticas e políticas institucionais, como também líderes e até colegas e consumidores (estudantes) exercitam não só os privilégios brancos contra negros e de homens contra mulheres, mas também uma combinação de seus múltiplos privilégios de status para discriminar mulheres negras” [tradução livre].
  • 7
    Sobre essas percepções, ver Bonelli (2013Bonelli, Maria da Gloria. Profissionalismo, gênero e diferença nas carreiras jurídicas. São Carlos: EDUFSCar, 2013.); Campos (2018Campos, Veridiana P. Parahyba. O processo de feminização da magistratura no Brasil: mecanismos e possibilidades de uma mudança social. Recife: UFPE, 2018.); Kahwage (2017Kahwage, Tharuell. Mulheres na magistratura paraense: uma análise das percepções das desembargadoras do Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) sobre trajetória profissional e atuação jurisdicional voltada à efetivação dos direitos humanos das mulheres. Dissertação (mestrado em direito). Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2017.); Sciammarella (2019Sciammarella, Ana Paula de O. Magistratura das magistradas: Uma análise da condição profissional feminina no Judiciário fluminense. Tese (doutorado em sociologia e direito). Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2019.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2019
  • Aceito
    28 Jan 2020
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