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O cotidiano e as relações familiares em duas gerações

Everyday life and family relationships: two generations

Resumos

A sociedade ocidental, durante o século XX, encontra-se em um constante processo de mudança e as transformações são percebidas em muitos aspectos, incluindo a vida familiar e a rotina diária das crianças. Deste modo, este estudo foi elaborado objetivando descrever aspectos da vida familiar e da infância durante as últimas três décadas. Para alcançar este objetivo, famílias de camada média urbana de uma cidade de porte médio foram entrevistadas a respeito da infância dos pais e dos filhos e das suas relações com os adultos. Discute-se a influência de algumas macro-variáveis, como a industrialização, a urbanização, a sociedade de consumo, na vida familiar e na determinação da rotina diária das crianças e questiona-se seus efeitos no desenvolvimento na infância.

família; atividades cotidianas; relações pais-filho


The western society, during the XX century, is in a constant change process, and the transformations can be seen in many aspects, that include family life and children day-to-day routine. So, this study was planned to bring data about some aspects of Brazilian family life and infancy during the last decades. To accomplish this objective, urban families from middle class were interwied according to a guide whith questions about the parents and kids' infancy, as well as their adult relationships. These results allow us to discuss the influence of some macro variables - like industrialization, urbanization, consumption society - in brazilian family life and in the determination of day-to-day children routine. What can be discussed is their influence on childhood development.

family; activities of daily living; parent-child relations


O cotidiano e as relações familiares em duas gerações

Everyday life and family relationships: two generations

Stella Maria Poletti Simionato-Tozo; Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves

USP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves Depto Psicologia e Educação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo. Avenida Bandeirantes, 3900 Cep 14040-901, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Fone/Fax (016) 602 3793 e-mail zmbiasoli@highnet.com.br

RESUMO

A sociedade ocidental, durante o século XX, encontra-se em um constante processo de mudança e as transformações são percebidas em muitos aspectos, incluindo a vida familiar e a rotina diária das crianças. Deste modo, este estudo foi elaborado objetivando descrever aspectos da vida familiar e da infância durante as últimas três décadas. Para alcançar este objetivo, famílias de camada média urbana de uma cidade de porte médio foram entrevistadas a respeito da infância dos pais e dos filhos e das suas relações com os adultos. Discute-se a influência de algumas macro-variáveis, como a industrialização, a urbanização, a sociedade de consumo, na vida familiar e na determinação da rotina diária das crianças e questiona-se seus efeitos no desenvolvimento na infância.

Palavras chave: família, atividades cotidianas, relações pais-filho.

ABSTRACT

The western society, during the XX century, is in a constant change process, and the transformations can be seen in many aspects, that include family life and children day-to-day routine. So, this study was planned to bring data about some aspects of Brazilian family life and infancy during the last decades. To accomplish this objective, urban families from middle class were interwied according to a guide whith questions about the parents and kids' infancy, as well as their adult relationships. These results allow us to discuss the influence of some macro variables - like industrialization, urbanization, consumption society - in brazilian family life and in the determination of day-to-day children routine. What can be discussed is their influence on childhood development.

Key words: family, activities of daily living, parent-child relations.

A família, na grande maioria das sociedades ocidentais, tem como tarefa determinar como vão se dimensionar as práticas de educação utilizadas com a criança, compondo todo o ambiente em que ela vive, estabelecendo formas e limites para as relações e interações entre as gerações mais velhas e mais novas.

"Ela realiza então, na sua esfera, a socialização primária, processo através do qual padrões, valores, normas de conduta são transmitidos à geração mais nova e assimilados por ela, ou seja, nele se defrontam e se compõem as forças da subjetividade e do social, construindo um indivíduo inserido no grupo, participante de sua cultura, afinado com o momento em que vive". (Biasoli-Alves, 1995, p. 1)

Entretanto, ao mesmo tempo em que a criança é socializada, socializa também as gerações mais velhas (Rheingold, 1969). Os pesquisadores, desde Bell (1964), têm enfatizado que o modelo de interação entre genitores-criança é bilateral, existindo um sistema de influências múltiplas. No entanto, é importante ressaltar que a família, seja enquanto grupo de convivência de indivíduos, seja enquanto conceito, apresenta alterações de cultura para cultura e de um momento histórico para outro, sob a força de macro-variáves que determinam seu existir, bem como o papel a ser desempenhado pelos elementos que a compõem. Isto equivale a dizer que a família vem sendo transformada por variáveis amplas do social, pelo momento histórico e pela cultura em que está inserida; mas também, ao assimilar o que "vem de fora", ela modifica e devolve ao social um produto novo, que por sua vez o altera.

Apesar das transformações descritas, a família é considerada como célula inicial e principal da sociedade na maior parte do mundo ocidental (Tremblay, 1988).

Na atualidade, ainda que tenha um papel delimitado, a família deve ser vista como multiforme (Kaslow, 1996), sofrendo ainda alterações que atingem não somente a sua conceituação (Petzold, 1996) como também os papéis que cada um dos seus membros devem desempenhar (L.Fukui comunicação pessoal, 1989, 41" Reunião Anual da SBPC, Fortaleza). O conceito de ideal de criança, de adulto, o valor e a função da infância, a 'crença' na adequação e eficiência de certas práticas educativas para o controle do comportamento, tudo vem sendo constantemente questionado, discutido e, muitas vezes, até desvalorizado (Biasoli-Alves, 1995). Fica evidente, portanto, que as alterações continuam se processando, trazendo a cada momento uma "feição nova" para a família.

Na década passada, os pesquisadores como Karpowitz (1980) e Bronfenbrenner (1985,1995), entre outros, vêm identificando fatores que têm afetado a família contemporânea norte-americana, levando a muitas alterações no relacionamento entre pais e filhos. Eles salientam, principalmente, que está havendo maior distanciamento nos laços pessoais da família, que esta vem diminuindo de tamanho, com redução, inclusive, do período dedicado à procriação na vida da mulher, tendo ela se voltado mais e mais para a atividade fora de casa. Acontece ainda a erosão e segregação do contato com vizinhos, a restrição no espaço físico disponível para a família e, consequentemente, a busca por escolas, com a finalidade de preencher as necessidades das crianças de uma família em mudança.

Estes fatores produzem alterações no cotidiano das famílias e nos relacionamentos entre pais e filhos, com a parentela e com a sociedade como um todo. Mas, em que sentido isso se processa ?

Este estudo foi elaborado objetivando descrever aspectos da vida familiar e da infância durante as últimas três décadas.

Método

As famílias

Foram entrevistados 15 casais de camadas médias, de uma cidade de porte médio do interior paulista, que possuíam uma prole de 2 ou 3 filhos, sendo o primogênito uma criança entre 6 a 10 anos de idade. As mães possuíam idades variando dos 25 aos 43 anos; 60% tinham nível universitário e 33% secundário e 60% exerciam atividades fora do lar. Os pais possuíam idades variando dos 32 aos 45 anos; 87% tinham nível universitário e as profissões eram variadas. As crianças ao todo eram 34, sendo 65% do sexo masculino e 35% do feminino e, quanto à idade, 65% possuíam de 6 aos 10 anos e 35% de 1 a 5 anos.

Procedimento

No primeiro contato com os informantes, que foram identificados através de conhecimento da pesquisadora, era exposto o objetivo geral da pesquisa, e a forma de obtenção dos dados (entrevista). Após o consentimento dos genitores, as entrevistas foram realizadas no local de sua preferencia, em geral a residência do casal. Todas as entrevistas foram gravadas e duraram, em média, uma hora e meia. Para este trabalho1 1 Este estudo é parte da dissertação de mestrado de SIMIONATO-TOZO (1996), intitulada "A infância em gerações diferentes: o cotidiano e o lúdico". Esta pesquisa traz dados sobre aspectos da vida familiar e da infância brasileira, incluindo o lúdico, durante as últimas décadas. Os participantes foram entrevistados segundo um roteiro semi-estruturado, elaborado especialmente para este estudo, abrangendo 3 áreas: 1) a infância dos pais; 2) a infância dos filhos (ambas com tópicos sobre brincadeiras, brinquedos, escola e vida em família); 3) avaliações e comparações sobre a infância das duas gerações. , selecionou-se para análise questões que investigavam o dia-a-dia familiar, as atividades dos membros da família e o que ocorria nos finais de semana e nas férias. Foram investigados também o relacionamento pais e filhos e os papéis familiares; no passado, para a infância dos pais e, no presente, enfocando a vida deles com seus filhos.

O uso de um roteiro semi-estruturado, com entrevistas gravadas e transcritas na íntegra, que dava ênfase à fala dos sujeitos e aprofundava em investigações sobre os temas de interesse, tornou possível a análise qualitativa dos dados, utilizando-se para tal a proposta de Biasoli-Alves e Dias-da-Silva (1992).

Resultados

Os resultados estão divididos em 3 partes: o dia-a-dia familiar, os relacionamentos e os papéis familiares e a percepção das transformações ocorridas; destacando-se as diferentes décadas estudadas, quanto a infância dos pais e a de seus filhos.

1) O dia-a-dia familiar

Décadas de 50-60 - A rotina na infância dos Pais e das Mães

"Então a gente de manhã levantava, às vezes ajudava a minha mãe a fazer alguma coisinha, aquelas coisinhas, cuidar de galinha, dar comida pra galinha, ... que tem que ter essas coisas de casa, né? Dar comida pra criação, aí brincava. Depois tomava banho, almoçava e ia pra escola. Chegava da escola, vai brincar. Vinha, jantava, tornava a sair pra brincar ou ficava assistindo televisão, né?"

A infância dos pais e mães é relatada tendo como foco principal o tempo de brincadeiras e o período escolar, que se iniciava aos 7 anos de idade, já na 1ª série do 1º grau, na época, "o primário". Para o sexo feminino, a rotina incluía ainda o auxílio nas tarefas domésticas. Algumas meninas freqüentaram cursos extra-curriculares de balé ou de instrumentos musicais, como piano, e para os meninos isto era bem menos freqüente.

O trabalho fora de casa dos pais, cujas profissões eram variadas, incluindo desde operários, bancários e lavradores até diretores de escolas, limitava a proximidade com os filhos ao período noturno e/ou aos finais de semana. As mães permaneciam em casa no dia-a-dia, cuidando da casa e dos filhos, inclusive auxiliando ou supervisionando as tarefas escolares, quando o seu grau de instrução o permitia.

A família reunia-se depois do jantar e, para aquelas que possuíam televisão, esta era a principal atividade, enquanto outros ouviam rádio ou conversavam com vizinhos, levando as cadeiras para as calçadas, ao mesmo tempo em que as crianças brincavam na rua. No entanto, devido ao cansaço das atividades diárias, as crianças dormiam cedo. Esta rotina repetia-se nos finais de semana, incluindo o contato com a família extensa, pois o tempo disponível possibilitava visitas à casa dos avós e outros parentes. Alguns pais freqüentaram clubes e foram, esporadicamente, a restaurantes. "De vez em quando meu pai levava a gente pra comer pizza no centro de São Paulo. Eu lembro que teve vez dele ir de gravata, apesar de ser operário na época ..."

Embora as férias, para a maioria, fosse uma continuidade do dia-a-dia, com a diferença de não existir a escola, também aconteciam viagens para a casa de parentes, geralmente dos avós, e ocasionalmente para o litoral.

Década de 90 - A rotina na infância dos Filhos

"É uma correria danada (risos). Levanto, tomo café, faço café, arrumo a mesa, os meninos levantando, já tomam o leite, tomam café, já vai cada um fazer sua lição, né ? Cê fica lembrando 'vai fazer lição', 'menino, faz lição' e grita, e briga, 'já escovou os dentes ?', aquelas coisas todas. Ai terminando a lição, eles sempre vão brincar um pouquinho. Anda de bicicleta, às vezes vai jogar bola, ou vai ali na ... na casa do amigo, ali ... Aí já tem que vir correndo, tomar banho, porque tem que almoçar que aí eu saio pra trabalhar." ... "Aí eu saio pra trabalhar e eles vão pra escola, depois eles chegam da escola, ficam um pouquinho, em seguida eu chego, aí já é só a conta de fazer a janta, né ? Aí eles assistem a televisão, né, a benditinha da televisão. Não dormem tarde porque eu não deixo."

O dia-a-dia das famílias atualmente mostra uma vida atribulada. Os pais trabalham fora, em diversas atividades profissionais, estando em casa para almoçar, quando possível. No entanto, por exigência do trabalho, alguns pais só retornam para casa à noite. Boa parte das mães trabalha fora e se ausenta por várias horas do dia, mas estão em casa nas refeições e à noite; freqüentemente recorrem a empregadas domésticas para auxiliá-las.

Se por um lado o trabalho da mulher fora de casa é considerado como benéfico pelas mães, porque é fonte de contato com outras pessoas, de realização pessoal e profissional e, ainda, de auxílio financeiro no orçamento familiar; acontece o inverso com o trabalho doméstico, que perde seu status e e percebido como desgastante.

"Eu já trabalhava, acho que atualmente toda mulher precisa trabalhar fora, tanto pra ajudar financeiramente como eu acho que faz bem pra pessoa ter uma atividade fora do lar. Eu acho que o lar é muito desgastante, é uma coisa que você faz diariamente, e todos os dias tem que fazer a mesma coisa e todo dia tá sem fazer, tá por fazer... Então desgasta demais ..."

No entanto, conciliar a casa, o trabalho e os filhos não é tarefa fácil para as mães que, além disso, ainda se preocupam com o bem estar das crianças e com os problemas que sua ausência pode causar. Mesmo sendo sua atividade profissional valorizada pelos maridos, a responsabilidade no cuidado dos filhos recai, em sua maior parte, sobre elas.

"Porque é fundamental uma pessoa trabalhar, é fundamental ... uma mulher que estudou tanto tempo na vida, né, tem uma pretensão na vida de ter uma profissão e não exercer porque casou, né, que ridículo! Ela trabalha por isso, trabalha pra ... porque ela tem objetivos, expectativas profissionais, pessoais, né, é, por isso que ela trabalha."

As crianças, por sua vez, têm seu dia centralizado no tempo para brincar, para ver televisão, para atividades relacionadas à escola e a cursos extracurriculares, como natação, instrumentos musicais, judô ou balé. O ingresso dos filhos na escola, ou em algum tipo de ambiente coletivo, ocorreu entre os 3 e 6 anos de idade, embora acontecesse também para crianças abaixo dos 2 anos. Os motivos atribuídos pelas mães para o início precoce da escola são dois: a oportunidade de as crianças interagirem com outras de sua faixa etária e o trabalho delas fora de casa, que implicaria em deixá-los com empregadas domésticas, e assim "pra escolinha eles iam e ficavam o dia inteiro".

Os cursos extra-curriculares mostram-se como uma tendência bastante forte nestas famílias; várias crianças praticam esportes na atualidade e os pais têm a intenção de colocar os filhos em cursos de línguas estrangeiras (basicamente inglês) em um futuro próximo. Quando questionados sobre o porque disto, eles alegam a importância dessas atividades para o desenvolvimento das crianças, tanto para o momento atual quanto para a vida profissional futura.

Um fato importante nos relatos é a ênfase nos dias cheios de tarefas a serem realizadas e o tempo disponível como insuficiente para levá-las a cabo, resultando em correria. Os momentos de maior tranqüilidade seriam as noites, preenchidas com o ver televisão, fazer tarefas escolares, muitas vezes com o auxílio dos pais, ou alguma outra atividade esporádica dos adultos, como ler e ouvir música.

A televisão, geralmente mais de uma por residência, ocupa boa parte do tempo diário das famílias, principalmente das crianças, que têm seu uso liberado, ficando as restrições ocasionais vinculadas ao tipo de programação (filmes, noticiários e novelas) e ao horário (noturno). Os pais a vêem como um instrumento que influencia e modifica a vida familiar, trazendo para dentro do lar elementos externos a este: "... fica livre pra eles, eu nunca proibi também, nunca falei 'isso você não deve assistir', não sei se eu tô certo ou tô errado, mas... não tem como controlar também. Se fosse controlar eu teria que trancar dentro do quarto. É!"

A família acaba passando pouco tempo reunida, e quando isso acontece, principalmente nos finais de semana, costumam passear todos juntos, indo a clubes, shopping, lanchonetes, parques, sorveterias, restaurantes, visitas a familiares, etc. É comum que as crianças saiam para se divertir sem a presença dos pais, indo a aniversários infantis, passando noites na casa de colegas ou participando de atividades sob a responsabilidade das escolas. Em contrapartida, poucos são os programas que só os adultos participam, como bailes, casamentos, idas a bares, teatro ou cinema, pois nem sempre encontram pessoas que possam cuidar das crianças nessas ocasiões, ou se sentem constrangidos em solicitar aos avós que fiquem com os netos.

Além dos finais de semana, as famílias costumam tirar férias, pelo menos uma vez por ano, e viajar reunida, seja para casa de parentes ou, muito freqüentemente, para o litoral. As frases ilustram este cotidiano: "... então sinônimo de férias é praia. Hum ... mordomia, mordomia assim, hotel mesmo, não quer nem chegar perto de cozinha..."

2) Os relacionamentos e os papéis familiares

Década de 50-60 - Na infância dos Pais e Mães

"... ela sempre foi muito forte. Ela conseguia conciliar trabalho doméstico, criação dos filhos e igreja. "

"porque a gente tinha algumas regras que precisavam ser obedecidas. Hoje isto está totalmente esculhambado..."

O pai era o homem trabalhador, que sustentava a casa, nada deixando faltar à família. Era ainda quem detinha a autoridade, sendo a fonte de apoio que, em caso de necessidade, era solicitada. A mãe era rigorosa no cuidado da casa, sempre bem arrumada e limpa, possuía atividades religiosas e não descuidava da educação dos filhos. Pelos relatos, percebeu-se uma educação rígida, com pouca proximidade e expressão de afetividade dos pais para com os filhos.

À criança cabia um papel de obediência, de respeito ao mais velho, de comportamentos adequados, de cumprimento de suas obrigações escolares, sendo que, para as meninas, havia maior exigência de um comportamento que correspondesse ao papel ligado ao sexo feminino. Havia uma acentuada divisão do mundo das crianças e dos adultos, onde o comportamento esperado delas sinalizava o êxito da educação.

"... o comportamento nosso seria mais um espelho assim da criação também. Então minha mãe sempre foi muito rígida, então a gente foi criada dentro de um sistema. Isso era proibido, isso não era, isso você não pode fazer e ela ficou em cima, enquanto ela pôde, ela ficou em cima."

Década de 90 - Na infância das crianças

"Ah, a gente passa tão pouco tempo com eles que não ... não tem sobrecarga."

"... é minha obrigação, quando eu tive filhos eu assumi os encargos todos. E sem fazer disso uma batalha não. Meus filhos nunca me pesaram. Pra nada, pra nada mesmo, como te falei, em casa foi tudo programado, a gente programou ter filhos"

Tanto os pais como as mães consideram-se próximos aos filhos, principalmente por dialogarem e por possuírem um contato afetivo forte com as crianças, dividindo com elas seu dia-a-dia e suas expectativas. A formação da família aparece também como algo que foi estudado e planejado, e por isso não é visto como desgastante, nem a educação dos filhos uma sobrecarga para os pais.

3) A percepção das transformações ocoridas

A dedicação das mães alterou-se com o passar do tempo. Antes, ela aparecia no fato de elas permanecerem em casa durante todo o dia, tendo a criança sob sua vigilância, ainda que estivessem muito voltadas para os cuidados com o lar, pois o dia-a-dia era mais difícil e não existiam certos confortos e comodidades, possíveis hoje graças ao progresso tecnológico. Na atualidade, as mães passam menos tempo com os filhos, devido ao trabalho fora de casa, existindo o cuidado de pessoas estranhas à família, mas o que surge como fundamental não é o número de horas de proximidade, e sim a qualidade destes momentos e da relação estabelecida entre mães e filhos.

"Eu acho o seguinte, independente do que vale, não é as horas que você passa com a criança, o número de horas, mas a qualidade dessas horas. Você pode ter grandes horas e ser um tormento pros seus filhos, como você pode ter pouquíssimas horas na semana e ser uma maravilha para eles"

Questionados sobre a independência das crianças nas diferentes épocas, os pais consideram que hoje as crianças são mais independentes no sentido de discussão e argumentação com eles, mesmo porque a educação transmitida permite e até incentiva este comportamento nas crianças.

"E eu acho que essa liberdade entre pai e filho não significa falta de respeito, nem por isso elas deixam de me respeitar, de jeito nenhum ... e eu acho muito bom, sei lá, mudou demais, eu acho que mudou pra melhor... "

Na comparação entre a infância dos pais/mães e a dos filhos, as alterações percebidas estão relacionadas aos perigos da vida moderna, como assaltos, seqüestros, uso de drogas, a influência dos meios de comunicação incentivando o consumo e, ainda, a perda da liberdade e da criatividade nas brincadeiras e a diminuição do próprio espaço para brincar. Todos estes fatores dão aos pais a impressão de que o tempo de infância está se reduzindo cada vez mais.

Discussão e Conclusões

O cotidiano na infância dos pais e das mães mostra-se muito próximo, com o dia-a-dia tendo a mesma cadência: o pai trabalhando, a mãe em casa, o brincar e a escola como atividades principais. É interessante notar que as mães auxiliavam em atividades domésticas como uma forma de aprender seus futuros afazeres. Nesta época, ainda é comum a proximidade com os vizinhos. À noite, eles colocavam cadeiras na calçada e conversavam, ou se reuniam nas casas que possuíam televisão para assistir em conjunto, pois é discretamente que a TV. passa a ocupar um espaço na vida das famílias. Este tipo de relato vai de encontro aos de outras pesquisas, como as de Dias-da-Silva (1986) e Silva, Garcia & Ferrari (1989). Este último analisa a vida familiar na cidade de São Paulo, no início do século XX e nas décadas de 50 a 60, obtendo descrições muito próximas destas.

Quando se analisa a atualidade, as transformações ocorreram principalmente na rotina das famílias devido ao trabalho das mulheres fora do lar, tendência observada em outros países, como a França e os Estados Unidos (Body-Gendrot, 1992). Suas consequências aparecem de diferentes maneiras. Na primeira, o pai torna-se mais próximo e participativo na educação dos filhos. No entanto, fica claro que permanece o fato de a mãe ser a principal responsável pela criação dos filhos, ficando a seu cargo a definição deste processo. Isto transparece nos dados, quando os pais (homens), indagados a respeito do ingresso das crianças na escola, quais os brinquedos que possuem, quais os programas de televisão que assistem, entre outras, mostraram ignorar as respostas, recorrendo às mulheres para auxiliá-los.

Na segunda, a ausência da mãe no lar, que cuidava tanto dos filhos como da casa, leva à busca de quem realize estas tarefas, surgindo a necessidade da utilização de empregadas domésticas para tal. No entanto, esta acaba sendo uma mão de obra pouco qualificada com as mulheres se queixando da dificuldade em encontrar pessoas em que confiem, sejam responsáveis e assíduas. A solução encontrada pela maioria das famílias é a utilização de creches e escolas, inclusive em período integral, pois deixar as crianças com parentes é possível para poucas mães. Este tipo de dado está presente no trabalho de Dias-da-Silva (1986), para as mães que tinham os filhos pequenos nas décadas de 70-80.

Altera-se, deste modo, a rotina das crianças, que ingressam em ambientes coletivos mais novas. As atividades escolares e extra-curriculares são revestidas de muita importância e tomam grande parte do dia da criança, pois os pais e as mães, na atualidade, buscam acelerar o desenvolvimento delas. Ressalta-se também o uso quase ilimitado da televisão por parte das crianças, que a utilizam como forma de distração no ambiente restrito da casa. Bastos (1988), analisando o comportamento infantil frente à televisão, percebeu como fundamental a relação entre o grau de maturidade da criança e o programa assistido, e ressalta que a presença dos pais é necessária para tornar os filhos telespectadores críticos.

No contexto mais amplo de relações da família, mantém-se o contato freqüente com parentes, principalmente os avós e tios das crianças; no entanto, diminui a proximidade com os vizinhos. É interessante observar como os programas pais/ filhos de finais de semana aumentam sua freqüência e são variados, pois existe um grande leque de opções, possível graças à urbanização. Biasoli-Alves e Simionato-Tozo (1992) descrevem, num estudo referente ao início da década de 80, com famílias de camadas médias urbanas, um contato intenso entre pais e filhos tanto em atividades rotineiras (como supermercado, compras) como de lazer, numa forma de manter a família reunida e "compensar" o tempo passado longe dos filhos, devido ao trabalho.

Quanto aos relacionamentos e papéis familiares, as alterações foram muito intensas nas relações entre pais e filhos e na prática de educação existente. Os pais autoritários e distantes e as mães rígidas na higiene e no cuidado da casa e dos filhos, dão lugar a pais e mães que priorizam a proximidade com os filhos, mas preservando e valorizando sua individualidade enquanto pessoas e profissionais. Deste modo, a quantidade de tempo passado com os filhos reduziu-se, ao mesmo tempo que a ênfase recai sobre a qualidade do tempo compartilhado. Isto significa ficar com a criança sentindo prazer e proporcionando-lhe prazer, com menores exigências e maior contato afetivo.

A visão de criança e seu papel modificam-se e aquela que devia ser obediente, respeitar os mais velhos, não discutindo com eles, hoje argumenta e luta por suas idéias, vontades e desejos. Esta situação é possível devido à prática de educação utilizada, que permite e até incentiva questionamentos, os quais não são percebidos como "falta de respeito", mas como uma expressão de direito da criança. Através do diálogo, a distância que havia entre o mundo dos adultos e das crianças torna-se tênue.

Esta transformação nos relacionamentos e papéis familiares aproxima-se do apontado por Figueira (1987), que traça uma mudança social no tipo "ideal" de família, ou seja, no modelo que tende a ser perseguido. Segundo este autor, prevalecia nos setores médios da sociedade brasileira, na década de 50, um tipo de família que pode ser definido como "hierárquico", onde homem e mulher percebiam-se como intrinsecamente diferentes, seja nos comportamentos e sentimentos considerados próprios a cada sexo, seja no poder e superioridade delegado ao homem, fundado na sua relação privilegiada com o trabalho fora de casa. A relação dos pais com os filhos é também marcada por diferenças, pois o adulto distancia-se da criança, estando na posição de quem sabe "mais e melhor" e pode mostrar seu poder através do exercício da disciplina. Nas últimas três décadas, a família parece ter mudado muito através de um processo de modernização guiado por um ideal "igualitário", onde homem e mulher percebem-se como diferentes pessoal e idiossincraticamente, mas como semelhantes enquanto indivíduos. Os sinais estereotipados homem/mulher tendem a desaparecer, confundir ou multiplicar, enquanto as expressões de gosto pessoal marcam as diferenças. No entanto, este processo de modernização mostra uma família ainda hesitante e ambígua.

Também os resultados de Romanelli (1988) são muito próximos aos obtidos nesta pesquisa. Este autor descreve famílias, cujas características coincidem com as deste estudo, fundadas em valores modernizantes e pautadas por relações igualitárias entre os cônjuges. A semelhança aparece em vários fatores: as mulheres serem trabalhadoras, antes e após o casamento, possuindo um papel relevante enquanto elemento produtivo e com rendimentos aproximados dos dos cônjuges; o estabelecimento de certo equilíbrio nas relações entre os sexos, seja na redefinição da divisão sexual do trabalho, seja quanto ao exercício de poder na família. No entanto, o nascimento dos filhos amplia as tarefas femininas e as mulheres buscam conciliar as atribuições extradomésticas e os encargos com a prole optando por uma jornada de trabalho reduzida, quando possível. Também, o papel masculino acaba alterando-se; os pais passam a dividir com as mães o cuidado com os filhos, o que cria proximidade com eles.

No que diz respeito à criança e sua educação, Zagury (1992) aponta que a disseminação em larga escala de uma série de informações sobre a educação de crianças, relacionadas à Pedagogia e à Psicologia, tem levado os pais a questionarem sua forma de agir e pensar, alterando deste modo a relação pais-filhos. No entanto, as formas de educação consideradas ultrapassadas nem sempre foram substituídas claramente por outras, o que pode levar os pais a inseguranças quanto à criação de seus filhos.

Biasoli-Alves, Caldana e Dias-da-Silva (1997), analisando aspectos das práticas de educação, verificam alterações em diferentes dimensões: a autoridade, que passou de extremamente valorizada a criticada e abandonada; a afetividade, caracterizada anteriormente por sentimentos fortes, porém contidos por normas rígidas, desloca-se para a expressão livre; a exigência, que visava levar o indivíduo a desempenhar um papel programado e determinado externamente, com obrigações (morais) para com a família e a sociedade, deixa aos poucos de existir, dando lugar de destaque ao indivíduo e suas idiossincrasias; a consistência quase absoluta de regras e normas vai gradativamente caminhando para a ausência de constância no que é permitido e no que é interdito tanto no interior da família quanto da sociedade; e a comunicação, inexistente antes, não permitindo o questionamento do comportamento dos socializadores, abre-se integralmente e acentua o valor do "dizer", do "expressar tudo sempre".

Vale ressaltar que a criação de filhos hoje é vista como mais difícil que na geração anterior, porém devido a fatores que vieram com a urbanização e o progresso tecnológico, como assaltos, seqüestros, a influência da sociedade de consumo, a disseminação de drogas, e outros, sendo que os pais não sabem como educar a criança em uma sociedade tão distinta daquela em que cresceram.

No que diz respeito à vida cotidiana das crianças nas diferentes épocas, o trabalho da mulher fora de casa aparece como o desencadeante de várias mudanças na rotina da casa, no relacionamento com o marido, e, principalmente, na vida das crianças, que ficam sob o cuidados de outros adultos que não seus parentes e vão para a escola muito mais cedo. Os efeitos de tais alterações ainda precisam ser estudados, mesmo porque essas fazem parte das primeiras gerações de pais que dispõem de vários tipos de cuidados alternativos para seus filhos (creche, hotel de bebê, escolas maternais, etc).

O relacionamento entre pais e filhos é outro aspecto que chama a atenção, pois a criança hoje é considerada um indivíduo, com o direito de se expressar e de argumentar, e os adultos acabam tendo com elas praticamente uma relação de igualdade, embora, ao mesmo tempo, sejam eles os responsáveis pela educação dos filhos, cabendo-lhes portanto a autoridade (questionada muitas vezes). E tanto os pais quanto as mães consideram que este tipo de relação mostra que as crianças hoje são mais independentes do que estes foram em sua infância.

Todos estes aspectos descritos no trabalho deixam evidente que hoje se fala de uma outra infância, diferente da vivenciada pela geração anterior, distanciada no tempo e nas inúmeras alterações do contexto sócio-históricocultural. A infância é outra, necessariamente adaptada às condições que ela tem para ocorrer e ao ideário subjacente aos cuidados que devem ser dispensados a ela.

  • Bastos, L. (1988). A criança diante da TV - um desafio para os pais. Petrópolis: Vozes.
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  • Endereço para correspondência:
    Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves
    Depto Psicologia e Educação
    Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
    Universidade de São Paulo.
    Avenida Bandeirantes, 3900
    Cep 14040-901, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
    Fone/Fax (016) 602 3793
    e-mail
  • 1
    Este estudo é parte da dissertação de mestrado de SIMIONATO-TOZO (1996), intitulada
    "A infância em gerações diferentes: o cotidiano e o lúdico". Esta pesquisa traz dados sobre aspectos da vida familiar e da infância brasileira, incluindo o lúdico, durante as últimas décadas. Os participantes foram entrevistados segundo um roteiro semi-estruturado, elaborado especialmente para este estudo, abrangendo 3 áreas: 1) a infância dos pais; 2) a infância dos filhos (ambas com tópicos sobre brincadeiras, brinquedos, escola e vida em família); 3) avaliações e comparações sobre a infância das duas gerações.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 1998
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