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Conjugalidade Cis-Trans: Reinventando Laços, Desestabilizando Certezas

Cis-Trans Conjugality: Reinventing Bonds, Destabilizing Certainties

Conyugalidad Cis-Trans: Reinventar Vínculos, Desestabilizar las Certezas

Resumo

Na era contemporânea, a conjugalidade pode ser experimentada sob múltiplas e variadas formas, em meio a diversos tipos de contratos de vínculos afetivos possíveis, todavia, as produções acadêmicas que se dedicam a compreender a dinâmica das relações amorosas em pessoas trans ainda são escassas. Considerando essa lacuna, este estudo tem por objetivo investigar a dinâmica de relacionamento conjugal em um casal constituído por um homem trans e uma mulher cisgênero. Tendo como delineamento metodológico o estudo de caso, os dados foram recolhidos por meio de entrevista narrativa episódica. O material foi audiogravado e transcrito na íntegra, e a análise foi pautada pela perspectiva queer. Dada a falta de amparo institucional e a omissão de políticas públicas desenhadas especificamente para apoiar casais e famílias trans, os cônjuges reportaram um processo contínuo e dinâmico de renegociar corpos e desejos. Nos casos analisados, o apoio familiar e o suporte oferecido por amigos e parentes emergiram como elementos decisivos para a consolidação da subsistência material do casal.

Palavras-chave:
Transexualidade; Conjugalidade; Relações Conjugais; Casamento; Teoria Queer

Abstract

In the contemporary era, conjugality can be experienced in multiple and varied forms, in the midst of various possible affective bonds. However, academic productions dedicated to understanding the dynamics of romantic relationships among transgender persons are scarce. Considering this gap, this study aims to investigate the dynamics of marital relationships in a couple made up by a transgender man and a cisgender woman. Data consisted of transcripts of audio recordings obtained from episodic narrative interview, and the analysis was guided by the queer theory. The participants reported a continuous and dynamic process of renegotiating bodies and desires. Before the lack of institutional support and the omission of public policies aimed to support trans couples and families, family support and the help from friends and relatives emerged as decisive elements for the consolidation of the couple’s material subsistence.

Keywords:
Transsexuality; Conjugality; Marital Relations; Marriage; Queer Theory

Resumen

Considerando que, en la época contemporánea, la conyugalidad puede experimentarse de múltiples y variadas formas en medio de diversos tipos de contrato de posibles lazos afectivos, todavía son escasos los estudios que pretenden comprender la dinámica de las relaciones amorosas entre personas trans. Teniendo esto en cuenta, este estudio tiene como objetivo investigar la dinámica de las relaciones maritales en una pareja formada por un hombre trans y una mujer cisgénero. El método utilizado fue el estudio de caso, y los datos se recogieron mediante una entrevista narrativa episódica. El material fue grabado en audio para después transcribirse en totalidad, y el análisis fue guiado por la perspectiva queer . Dada la falta de apoyo institucional y la omisión de políticas públicas, específicamente diseñadas para apoyar a las parejas y familias trans, la pareja informó que hay un proceso continuo y dinámico de renegociar cuerpos y deseos. En este caso, el apoyo de la familia y el respaldo de amigos y parientes se revelaron como elementos decisivos para la consolidación de la subsistencia material de la pareja.

Palabras clave:
Transexualidad; Conyugalidad; Relaciones Conyugales; Matrimonio; Teoría Queer

Introdução

As conjugalidades e relações amorosas têm sido inseridas no centro do debate contemporâneo no campo das Ciências Humanas e Sociais, especialmente na perspectiva da Psicologia (Scorsolini-Comin & Santos, 2011Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2011). Relações entre bem-estar subjetivo e satisfação conjugal na abordagem da Psicologia Positiva. Psicologia: Reflexão e Crítica , 24(4), 658-665. https://doi.org/10.1590/S0102-79722011000400005
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). Por outro lado, nos últimos anos, com o recrudescimento do pensamento autoritário e a ascensão de regimes de extrema-direita em vários países, o debate público em torno da diversidade de expressões das relações afetivas nas diferentes configurações familiares muitas vezes tem sido pautado em torno de preceitos morais e religiosos, sendo essa uma estratégia que privilegia grupos que tentam impor, de forma autoritária, sua agenda política ao conjunto da sociedade (Tombolato, Maia, & Santos, 2019Tombolato, M. A., Maia, A. C. B., & Santos, M. A. (2019). A trajetória de adoção de uma criança por um casal de lésbicas. Psicologia: Teoria e Pesquisa , 35, e3546. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3546
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). As discussões têm fervilhado nos espaços sociais, especialmente nas redes digitais, tornando o debate cada vez mais acirrado e polarizado. Esse contexto sociopolítico torna imperativo que se tenha clareza sobre as formações discursivas que estão por trás das narrativas em disputa na luta obstinada pela hegemonia. É preciso restituir essa discussão a seu eixo ético-político, que é o lugar de onde o debate não pode ser dissociado (Santos, Oliveira, & Oliveira-Cardoso, 2020aSantos, M. A., Oliveira, W. A., & Oliveira-Cardoso, É. A. (2020a). Inconfidências de abril: Impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade, 32. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240339
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).

Independentemente do vértice de análise adotado para olhar para as conjugalidades, nota-se uma tendência crescente nas últimas décadas de valorizar o sentimento como componente fundamental da experiência amorosa (Da Mata, Santos, & Scorsolini-Comin, 2020Da Mata, J. J., Santos, M. A., & Scorsolini-Comin, F. (2020). Conjugalidade e parentalidade em casais homossexuais e heterossexuais: Revisão integrativa da literatura. Pensando Famílias, 24(2), 32-45. ). Foucault (1998Foucault, M. (1999). História da sexualidade: A vontade de saber. Graal.) argumenta que, na antiguidade grega, já existia a possibilidade de vivência integrada entre as dimensões do afeto e da sexualidade, todavia, esses contornos ficaram mais nítidos a partir do século XII, quando o amor passa a ter uma identidade que lhe dá certa autonomia em relação às interações sociais (Oltramani, 2009Oltramani, L. C. (2009). Amor e conjugalidade na contemporaneidade: Uma revisão de literatura. Psicologia em Estudo, 14(4), 669-677.). É a partir desse período que o sentimento amoroso passa a ser entendido e vivido com mais liberdade, de modo a não depender mais de outras injunções, uma vez que basta a si próprio. As relações conjugais passam, pouco a pouco, a representar o lugar privilegiado que abriga o amor e legitima a dimensão carnal-sexual do vínculo amoroso na perspectiva religiosa (Giddens, 1993Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade: Sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Editora Unesp.).

Os relacionamentos afetivos e o casamento como instituição ganharam centralidade na organização social, tendo seus significados redescritos e continuamente transformados ao longo dos tempos (Scorsolini-Comin & Santos, 2012Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2012). Correlations between subjective well-being, dyadic adjustment and marital satisfaction in Brazilian married people. The Spanish Journal of Psychology, 15(1), 166-176. http://doi.org/10.5209/rev_SJOP.2012.v15.n1.37304
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). A busca pela felicidade pela via do vínculo amoroso constitui um ideal da pós-modernidade valorizado e buscado pelos jovens, que, de modo crescente, têm buscado estreitar os laços afetivos e da conjugalidade (Jablonski, 2007Jablonski, B. (2007). O cotidiano do casamento contemporâneo: A difícil e conflitiva divisão de tarefas e responsabilidades entre homens e mulheres. In T. Féres-Carneiro (Org.), Família e casal: Saúde, trabalho e modo de vinculação (pp. 203-228). Casa do Psicólogo.), embora em bases mais igualitárias do que das gerações anteriores e menos submetidos a convenções sociais e ditames moralizantes. No contemporâneo, a união entre pessoas que nutrem sentimentos entre si, cimentada pelo laço afetivo e por um projeto de vida em comum, não anula as individualidades e contornos identitários dos membros do casal (Scorsolini-Comin, Alves-Silva, & Santos, 2018Scorsolini-Comin, F., Alves-Silva, J. D., & Santos, M. A. (2018). Permanências e descontinuidades nas concepções contemporâneas de casamento na perspectiva de casais longevos. Psicologia: Teoria e Pesquisa , 34. http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e34423
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; Silva, Scorsolini-Comin, & Santos, 2017Silva, L. A., Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2017). Casamentos de longa duração: Recursos pessoais como estratégias de manutenção do laço conjugal. Psico-USF, 22(2), 323-335. https://doi.org/10.1590/1413-82712017220211
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). Simultaneamente, esse desejo de embarcar no projeto de viver uma vida a dois faz emergir uma “terceira margem” na experiência de si mesmo: a conjugalidade (Féres-Carneiro, 1998Féres-Carneiro, T. (1998). Casamento contemporâneo: O difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Psicologia: Reflexão e Crítica, 11(2), 379-394. https://doi.org/10.1590/S0102-79721998000200014
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).

Em tempos de amores líquidos e relacionamentos voláteis, instituições basilares como casamento e família experimentaram profundas transmutações nas últimas décadas, que transformaram suas configurações, funções e papeis, repercutindo nos sistemas de crenças e costumes sociais (Bauman, 2004Bauman, Z. (2004). Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Jorge Zahar.; Giddens, 1991Giddens, A. (1991). As consequências da modernidade (2a ed.). Editora Unesp.). Apesar disso, permanece o desejo dos indivíduos em manter relacionamentos íntimos, inspirados na experiência amorosa. Nota-se que persiste o interesse das pessoas no estreitamento dos vínculos afetivos e, eventualmente, de se envolverem em diferentes arranjos conjugais, independentemente das motivações individuais (Silva Neto, Strey, & Magalhães, 2011Silva Neto, J. A., Strey, M. N., & Magalhães, A. S. (2011). Sobre as motivações para a conjugalidade. In A. Wagner (Org.), Desafios psicossociais da família contemporânea: Pesquisas e reflexões (pp. 39-57). Artmed.). Nota-se, inclusive, movimentos sazonais de revalorização da fidelidade e há uma notável persistência da instituição do casamento, como se pode constatar no aumento significativo do número de uniões oficializadas no Brasil, ainda que, paralelamente, tenha recrudescido também o índice de divórcios (Mosmann, Lomando, & Wagner, 2010Mosmann, C. P., Lomando, E., & Wagner, A. (2010). Coesão e adaptabilidade conjugal em homens e mulheres hétero e homossexuais. Barbarói, 33(1), 135-152.; Nascimento, Scorsolini-Comin, Fontaine, & Santos, 2015Nascimento, G. C. M., Scorsolini-Comin, F., Fontaine, A. M. G. V., & Santos, M. A. (2015). Relacionamentos amorosos e homossexualidade: Revisão integrativa da literatura. Temas em Psicologia, 23(3), 547-563. http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-03
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; Scorsolini-Comin & Santos, 2012Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2012). Correlations between subjective well-being, dyadic adjustment and marital satisfaction in Brazilian married people. The Spanish Journal of Psychology, 15(1), 166-176. http://doi.org/10.5209/rev_SJOP.2012.v15.n1.37304
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; Silva, Scorsolini-Comin, & Santos, 2017Silva, L. A., Scorsolini-Comin, F., & Santos, M. A. (2017). Casamentos de longa duração: Recursos pessoais como estratégias de manutenção do laço conjugal. Psico-USF, 22(2), 323-335. https://doi.org/10.1590/1413-82712017220211
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).

Na era contemporânea, a conjugalidade pode ser experimentada sob múltiplas e variadas formas, em meio a diversos tipos de contratos de relacionamentos amorosos possíveis. A gama de possibilidades varia desde o modelo tradicional ao contrato de união estável, do “ficar” ao permanecer casado - porém, vivendo em casas separadas, passando pela coabitação do casal na casa dos pais de um dos parceiros íntimos. Há uma visibilidade crescente das uniões homoafetivas, o “poliamor” já aparece como opção viável de relacionamento e os casamentos abertos evidenciam que há muitas maneiras de estar engajado com o outro em um vínculo afetivo baseado na livre escolha dos(as) parceiros(as) (Gaspodini & Falcke, 2018Gaspodini, I. B., & Falcke, D. (2018). Sexual and gender diversity in clinical practice in Psychology. Paidéia (Ribeirão Preto), 28, e2827. https://doi.org/10.1590/1982-4327e2827
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; Marques & Sousa, 2016Marques, F. D., & Sousa, L. (2016). Portuguese older gay men: Pathways to family integrity. Paidéia (Ribeirão Preto), 26(64), 149-159. https://doi.org/10.1590/1982-43272664201602
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; Martínez-Guzmán & Íñiguez-Rueda, 2017Martínez-Guzmán, A., & Íñiguez-Rueda, L. (2017). Discursive practices and symbolic violence against the LGBT community within the university setting. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(Suppl. 1), 367-375. https://doi.org/10.1590/1982-432727s1201701
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; Rosa, Melo, Boris, & Santos, 2016Rosa, J. M., Melo, A. K., Boris, G. D. J. B., & Santos, M. A. (2016). A construção dos papéis parentais em casais homoafetivos adotantes. Psicologia: Ciência e Profissão , 36(1), 210-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703001132014
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; Santos, Scorsolini-Comin, & Santos, 2013Santos, Y. G. S., Scorsolini-Comin. F., & Santos, M. A. (2013). Homoparentalidade masculina: Revisando a produção científica. Psicologia: Reflexão e Crítica , 26(3), 572-582. https://doi.org/10.1590/S0102-79722013000300017
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).

A diversidade nos modos de vivenciar a conjugalidade impõe desafios especiais à agenda de pesquisa. Os casais homoafetivos têm ganhado crescente atenção (Da Mata et al., 2020Da Mata, J. J., Santos, M. A., & Scorsolini-Comin, F. (2020). Conjugalidade e parentalidade em casais homossexuais e heterossexuais: Revisão integrativa da literatura. Pensando Famílias, 24(2), 32-45. ; Lira & Morais, 2020Lira, A. N., & Morais, N. A. (2020). Psychosocial adjustment profiles of gay and lesbian individuals involved in marital relations: A cluster-based analysis. Paidéia (Ribeirão Preto), 30, e3013. https://doi.org/10.1590/1982-4327e3013
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; Mosmann et al., 2010Mosmann, C. P., Lomando, E., & Wagner, A. (2010). Coesão e adaptabilidade conjugal em homens e mulheres hétero e homossexuais. Barbarói, 33(1), 135-152.; Risk & Santos, 2021Risk, E. N., & Santos, M. A. (2021). Formações discursivas sobre homossexualidade e família homoparental em telenovelas brasileiras. Psicologia: Ciência e Profissão , 41(n.spe 3), 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003189811
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; Rosa et al., 2016Rosa, J. M., Melo, A. K., Boris, G. D. J. B., & Santos, M. A. (2016). A construção dos papéis parentais em casais homoafetivos adotantes. Psicologia: Ciência e Profissão , 36(1), 210-223. https://doi.org/10.1590/1982-3703001132014
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; Santos et al., 2013Santos, Y. G. S., Scorsolini-Comin. F., & Santos, M. A. (2013). Homoparentalidade masculina: Revisando a produção científica. Psicologia: Reflexão e Crítica , 26(3), 572-582. https://doi.org/10.1590/S0102-79722013000300017
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; Tombolato, Maia, Uziel, & Santos, 2018Tombolato, M. A., Maia, A. C. B., Uziel, A. P., & Santos, M. A. (2018). Prejudice and discrimination in the everyday life of same-sex couples raising children. Estudos de Psicologia (Campinas), 35(1), 111-122. https://doi.org/10.1590/1982-02752018000100011
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), porém, a conjugalidade em outros segmentos do movimento LGBTQIA+ tem permanecido na invisibilidade (Baptista-Silva, Hamann, & Pizzinato, 2017Baptista-Silva, G., Hamann, C., & Pizzinato, A. (2017). Marriage in prison: Identity and marital agencies in a LGBT wing. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(Supl. 1), 376-385. https://doi.org/10.1590/1982-432727s1201702
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). A literatura sobre o relacionamento conjugal no campo das transgeneridades ainda é incipiente, de modo que pouco se conhece sobre casais dissidentes da cisgeneridade (Alexandre & Santos, 2019Alexandre, V., & Santos, M. A. (2019). Experiência conjugal de casal cis-trans: Contribuições ao estudo da transconjugalidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(n.spe 3), e228629, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228629
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).

As produções acadêmicas que se dedicaram a compreender a dinâmica relacional em casais cis-trans são particularmente escassas no contexto brasileiro (Galli, 2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].; Lomando & Nardi, 2013Lomando, E., & Nardi, H. C. (2013). Conjugalidades múltiplas nas travestilidades e transexualidades: Uma revisão a partir da abordagem sistêmica e da psicologia social. Saúde em Debate, 37(98), 493-503.). A lacuna do conhecimento sobre os relacionamentos íntimos das pessoas trans é um fator limitador para a identificação de necessidades de saúde e inibe o planejamento de políticas públicas voltadas ao empoderamento e à redução das vulnerabilidades desse segmento. A maior parte dos estudos dedicados a essa temática não tem se ocupado em investigar como as relações familiares repercutem no bem-estar das pessoas trans (Erich, Tittsworth, Dykes, & Cabuses, 2008Erich, S., Tittsworth, J., Dykes, J., & Cabuses, C. (2008). Family relationships and their correlations with transsexual well-being. Journal of GLBT Family Studies, 4(4), 419-432. https://doi.org/10.1080/15504280802126141
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). É razoável supor que essa negligência dos pesquisadores do campo das conjugalidades plurais possa ser um reflexo ou desdobramento dos preconceitos e discriminação social a que as pessoas trans são submetidas no cotidiano (Alegría, 2012Alegría, C. A. (2012). Relational and sexual fluidity in females partnered with male-to-female transsexual persons. Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing, 20(2), 142-149. https://doi.org/10.1111/j.1365-2850.2011.01863.x
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; Brown, 2010Brown, N. R. (2010). The sexual relationships of sexual-minority women partnered with trans-men: A qualitative study. Archives of Sexual Behavior, 39(2), 561-572. https://doi.org/10.1007/s10508-009-9511-9
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; Galli, 2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].).

Podemos compreender a relevância de se empreender estudos dedicados às conjugalidades de pessoas trans ao analisarmos a teoria da Pirâmide Erótica-Sexual, proposta por Gayle Rubin (1984/2017Rubin, G. (2017). Políticas do sexo. Ubu. (Obra original publicada em 1984).). A autora argumenta que, nas sociedades ocidentais, existe um sistema hierárquico estabelecido para avaliar os atos sexuais. Nessa hierarquia de prestígio, um sexo classificado como “bom” é aquele considerado “saudável”, com fins reprodutivos e heterossexual, em contraposição a um sexo “mau”, que seria aquele praticado com vistas à obtenção de prazer, podendo ser de natureza homossexual ou bissexual, o que lhe confere o status de anormal.Já no que diz respeito aos indivíduos e seus relacionamentos, podemos, segundo a autora, imaginar uma pirâmide de três estágios, na qual, no topo, se encontram aqueles mais aceitos e valorizados socialmente e, na base, os mais desprezados. Reinando acima de todos os estágios, temos os casais heterossexuais, monogâmicos e que fazem sexo com fins reprodutivos. No estágio intermediário, situam-se pessoas heterossexuais não casadas, as “lésbicas de bar”, os casais gays com relacionamentos de longa duração, casais que não oficializaram sua relação e a prática da masturbação. Por fim, na base da pirâmide, estão as pessoas trans, os sadomasoquistas, as prostitutas e os fetichistas (Rubin, 1984/2017Rubin, G. (2017). Políticas do sexo. Ubu. (Obra original publicada em 1984).).

Os estudos realizados com a população trans e com travestis tendem a escamotear a experiência subjetiva dessas pessoas no campo dos relacionamentos amorosos (Kulick, 2008Kulick, D. (2008). Travesti: Prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Fiocruz.). Pesquisas no campo da prostituição, por exemplo, dão atenção ao relacionamento das travestis com sua clientela, como se essa relação fosse a mais significativa de suas vidas, sendo que seus(as) namorados(as), parceiros(as) íntimos(as) ou cônjuges são de fato os elementos que ocupam uma posição de centralidade em suas vidas. Lomando e Nardi (2013Lomando, E., & Nardi, H. C. (2013). Conjugalidades múltiplas nas travestilidades e transexualidades: Uma revisão a partir da abordagem sistêmica e da psicologia social. Saúde em Debate, 37(98), 493-503.) também endossam essa percepção de viés nos estudos da área. Assim, ao desconsiderar a importância da vida afetiva de mulheres e homens trans, a pesquisa acadêmica contribui para sedimentar preconceitos e reforçar estereótipos e preconceitos em relação a uma população que já é socialmente tão estigmatizada, como a crença infundada de que transexuais e travestis dificilmente se engajam em relacionamentos estáveis e duradouros.

Transexuais e travestis passam por frustrações em suas relações, da mesma forma que pessoas hétero ou homossexuais (Adelman, Ajaime, Lopes, & Savrasoff, 2003Adelman, M., Ajaime, E., Lopes, S. B., & Savrasoff, T. (2003). Travestis e transexuais e os outros: Identidade e experiências de vida. Gênero, 4(1), 65-100. https://doi.org/10.22409/rg.v4i1.238
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). Algumas das mulheres trans e das travestis que participaram da pesquisa de Galli (2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].) relataram ter experimentado frustrações e traições no decorrer do relacionamento com parceiros íntimos, porém, o elemento que emergiu como maior fonte de sofrimento nos relatos foi a constatação (vivenciada como “certeza”) de que os namorados cis não iriam assumi-las perante a sociedade. Para a maioria das entrevistadas, um relacionamento que possa ser assumido publicamente pelo companheiro não é apenas um componente relevante para o bom desenvolvimento da relação, como também é entendido como prova inequívoca de amor por parte do parceiro.

Essa dimensão da experiência amorosa é de especial importância porque evidencia o quanto a assunção pública do relacionamento por parte do(a) outro(a) - que, no caso de relacionamentos cis-trans, é uma pessoa cis - outorga um lugar de pertencimento e legitimação à pessoa trans. Tal reconhecimento reafirma a conquista de uma posição de dignidade no laço social. Uma das participantes do estudo de Galli (2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].) mencionou que homens cis querem amar mulheres trans, porém, o medo do julgamento social os impede. Outro aspecto importante que emergiu, especificamente entre as trans e travestis profissionais do sexo, foi a aceitação da natureza de seu trabalho pelo parceiro, o que aponta mais uma vez para a questão da validação social.

O conceito de amor é polissêmico e marcado historicamente. A definição de amor é redescrita de acordo com as sociedades e as épocas. Para Soares (2012Soares, M. (2012). Homens parceiros de transexuais: Diálogo fenomenológico de vivências afetivo-sexuais [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].), o amor diz respeito à experiência pela qual os apaixonados se relacionam com o mundo. O “amor romântico” se constituiu historicamente como um sentimento que nunca é plenamente correspondido pelo ser amado, o que faz o amador prosseguir em uma busca contínua por uma completude imaginária, alternando momentos de júbilo e descontentamento, felicidade e sofrimento. Assim, o amor não é tanto um sentimento, mas um código simbólico, uma construção social (Oltramani, 2009Oltramani, L. C. (2009). Amor e conjugalidade na contemporaneidade: Uma revisão de literatura. Psicologia em Estudo, 14(4), 669-677.). Contudo, as mulheres trans que colaboraram com a pesquisa de Galli (2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].) percebem o amor como um sentimento e, por essa razão, não podemos deixar de considerá-lo como tal, evidentemente sem escamotear sua natureza de produção social. De fato, a herança do amor romântico ainda persiste no imaginário como uma narrativa potente que contorna os relacionamentos contemporâneos, sejam cis ou transgênero.

As discussões que se fundamentam na teoria queer como enquadramento teórico trazem uma perspectiva que se propõe crítica, situada, pós-identitária e analítica dos discursos produzidos nas relações de poder. Neste estudo entendemos o amor como uma perspectiva de interação social por vezes nomeada/vivenciada como sentimento amoroso. Definimos as relações conjugais cis-trans como circunstância na qual um homem ou mulher cisgênero se relaciona com um homem ou mulher trans.De forma complementar, temos os casais transcentrados, quando um homem ou mulher trans se engaja em um vínculo com um homem ou mulher igualmente trans. Independentemente de o(a) cônjuge identificar-se como cisgênero ou não, relatos de pesquisa sugerem que pessoas trans buscam viver experiências de reciprocidade em suas relações afetivas (Adelman et al., 2003Adelman, M., Ajaime, E., Lopes, S. B., & Savrasoff, T. (2003). Travestis e transexuais e os outros: Identidade e experiências de vida. Gênero, 4(1), 65-100. https://doi.org/10.22409/rg.v4i1.238
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; Galli, 2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].; Galli, Vieira, Giami, & Santos, 2013Galli, R. A., Vieira, E. M., Giami, A., & Santos, M. A. (2013). Corpos mutantes, mulheres intrigantes: Transexualidade e cirurgia de redesignação sexual. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 29(4), 447-457. http://doi.org/10.1590/S0102-37722013000400011
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).

Segundo Giddens (1993Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade: Sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Editora Unesp.), o amor romântico está associado à ideia de liberdade, uma vez que alimenta a sensação ilusória de completude. Assim, sob influência do mito do amor romântico, somos levados a acreditar que, depois de encontrado esse sentimento em nossas vidas, nossa liberdade se torna completa e podemos manipulá-la da forma como desejarmos, ganhando maior densidade reflexiva. As mulheres trans entrevistadas por Galli (2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].) não corroboram essa suposição, pois descrevem em suas narrativas uma restrição de possibilidades que o amor lhes deu, impedindo-as de prosseguir com seus planos de vida. Elas relataram que tiveram que fazer escolhas entre permanecerem fiéis a si mesmas ou acatarem o desejo do outro.No momento de se decidirem, o sentimento falou mais alto e “sempre saíram perdendo” [sic].

Ao investigar 20 casais formados por mulheres cis e homens trans, Brown (2010Brown, N. R. (2010). The sexual relationships of sexual-minority women partnered with trans-men: A qualitative study. Archives of Sexual Behavior, 39(2), 561-572. https://doi.org/10.1007/s10508-009-9511-9
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) constatou que, quando a transição de gênero começa, a vida sexual do casal é afetada tanto de forma negativa como positiva, sendo que aumenta a dependência de roteiros sexuais heteronormativos de gênero. A heteronormatividade impõe a noção de que um casal cisgênero heterossexual é a única configuração conjugal válida e ideal (Galli, 2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].; Lomando & Nardi, 2013Lomando, E., & Nardi, H. C. (2013). Conjugalidades múltiplas nas travestilidades e transexualidades: Uma revisão a partir da abordagem sistêmica e da psicologia social. Saúde em Debate, 37(98), 493-503.; Seffner & Müller, 2012Seffner, F., & Müller, M. (2012). Quem ama sofre, quem sofre luta, quem luta vence: Da conjugalidade entre travestis e seus maridos. Sociedade e Cultura, 15(2), 285-295. https://doi.org/10.5216/sec.v15i2.22397
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). Buscar compreender as experiências conjugais da população trans é de extrema importância porque esse tipo de investigação permite explorar o custo a ser pago quando se vive em situação de franco conflito com as normas cis-heteronormativas. Considerando o exposto, este estudo tem por objetivo compreender os sentidos atribuídos à experiência conjugal por um casal cis-trans.

Método

Trata-se de uma pesquisa exploratória de abordagem qualitativa, amparada no referencial teórico dos estudos queer. O estudo de caso singular foi escolhido com o propósito de compreender em profundidade aspectos relacionados à experiência da conjugalidade narradas por um casal cis-trans (Peres & Santos, 2005Peres, R. S., & Santos, M. A. (2005). Considerações gerais e orientações práticas acerca do emprego de estudos de caso na pesquisa científica em Psicologia. Interações, 10(20), 109-126.). Para Stake (2005Stake, R. E. (2005). Qualitative case studies. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.), The Sage handbook of qualitative research (pp. 443-466) (3rd ed.). Sage Publications. ), o estudo de caso se distingue de outras estratégias metodológicas pelo foco particularizado. O pesquisador se concentra apenas em um exemplar do fenômeno, e pode levar tempo até que se obtenham todos os dados necessários. Por outro lado, durante esse percurso, há um comprometimento único e significativo com o caso em questão.

Os participantes foram nomeados Marcelo, um homem trans, 29 anos, mecânico, católico não praticante, autodeclarado pardo, e Joice, uma mulher cisgênero, 25 anos, professora de ensino infantil, evangélica, autodeclarada branca,. O casal reside em uma cidade do interior de São Paulo e vive em uma casa alugada de propriedade de um tio de Marcelo.

O primeiro convite para a participação no estudo foi endereçado a Marcelo por meio de mensagem eletrônica. O participante foi indicado por um colaborador do grupo de pesquisa, também homem trans, militante e líder de uma organização de apoio e defesa dos direitos LGBTQIA+. Após conversar com sua companheira e obter sua aquiescência com o convite, Marcelo se dispôs a receber o pesquisador em sua casa, onde o casal foi entrevistado.

Para a coleta de dados, foi utilizada a modalidade de entrevista narrativa episódica (Muylaert, Sarubbi Júnior, Gallo, Neto, & Reis, 2014Muylaert, C. J., Sarubbi Júnior, V., Gallo, P. R., Neto, M. L. R., & Reis, A. O. A. (2014). Entrevistas narrativas: Um importante recurso em pesquisa qualitativa. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 48(2), 193-199.), complementada por anotações registradas durante a coleta de dados na residência dos participantes. A entrevista foi audiogravada e conduzida com o casal, tendo em vista o interesse do pesquisador em encorajar relatos sobre as particularidades da relação conjugal, associados à observação atenta da dinâmica comportamental estabelecida pelos cônjuges ao desenvolverem suas narrativas.

A entrevista foi realizada em um encontro único, com duração de 95 minutos. O conteúdo foi transcrito na íntegra e literalmente. Os resultados foram organizados de maneira narrativa, seguindo-se as recomendações de Serrano (2004Serrano, G. (2004). Investigación cualitativa: Retos e interrogantes. La Muralla.), tendo em vista a preocupação com descrever, ilustrar e analisar as situações estudadas.

Os estudos queer, no campo do gênero e sexualidade, forneceram a base teórica para fundamentar as análises e contribuir para a construção de proposições teóricas (Butler, 2015Butler, J. (2015). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.; Rubin, 1984/2017Rubin, G. (2017). Políticas do sexo. Ubu. (Obra original publicada em 1984).), completados pelos estudos sobre as conjugalidades nas travestilidades e transexualidades (Alexandre & Santos, 2019Alexandre, V., & Santos, M. A. (2019). Experiência conjugal de casal cis-trans: Contribuições ao estudo da transconjugalidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(n.spe 3), e228629, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228629
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; Lomando & Nardi, 2013Lomando, E., & Nardi, H. C. (2013). Conjugalidades múltiplas nas travestilidades e transexualidades: Uma revisão a partir da abordagem sistêmica e da psicologia social. Saúde em Debate, 37(98), 493-503.). A perspectiva queer possibilita desconstruir os coercitivos padrões corporais, comportamentais, de sentir, pensar e existir que marcam a experiência sexual e de gênero na sociedade contemporânea. Analisar os dados buscando manter uma distância crítica em relação aos padrões estereotipados vigentes e aos vieses moralistas é uma forma não só de garantir uma análise mais íntegra do material de pesquisa, como também responde ao compromisso ético da ciência psicológica de não compactuar com a reprodução de preconceitos e dispositivos coercitivos, que geram sofrimento nos grupos vulneráveis, como é o caso da população trans.

Este estudo seguiu os princípios éticos estabelecidos pela legislação vigente (Resolução 466/2012) para pesquisas que envolvem seres humanos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, protocolo CAEE CEP/FFCLRRP-USP nº 85418318.3.0000.5407.

Resultados e discussão

Para investigar a relação conjugal do casal cis-trans, incorporamos duas dimensões de análise: a trajetória pregressa de cada cônjuge, antes de se conhecerem, e a história do casal. Buscamos destacar, em nossa análise, que fatores culturais, psicológicos e sociais influenciam a vivência da conjugalidade por um casal que se insurge contra os limites coercitivos das normas de gênero, atentando para seus impactos sobre a forma singular como o relacionamento é vivido sob um dado horizonte histórico e social.

A história pregressa: Marcelo antes de conhecer Joice

Ao contrário do que o senso comum poderia esperar da trajetória de vida de um homem trans, Marcelo não se percebe como alguém submetido a uma vida marcada por violência física e verbal, ainda que essas vivências emerjam na experiência de inúmeros transexuais em decorrência da não conformidade de sua forma particular de performar o gênero. Não que Marcelo não tenha vivenciado conflitos associados a sua identidade de gênero, especialmente durante a infância e início da adolescência, entretanto, ele declara que enfrentou situações desafiadoras em decorrência do desencontro entre seu desejo/necessidade de se expressar, de acordo com a leitura que tinha de si mesmo e de seu corpo, e o meio familiar no qual vivia.

Na família sempre me chamavam de homenzinho, mas era mais pra provocar, ninguém imaginava que eu era trans. Ninguém nem sabia o que era isso. Eu ficava me sentindo estranho, porque eu não fazia nada pra ninguém e vinha alguém falar de mim. Parece que eu não deveria estar ali (Marcelo).

Os contextos familiar e escolar podem ser considerados os principais produtores dos conflitos, preconceitos e discriminações vividas na infância (Santos et al., 2019Santos, M. A., Souza, R. S., Lara, L. A., Risk, E. N., Oliveira, W., Alexandre, V., & Oliveira-Cardoso, É. A. (2019). Transexualidade, ordem médica e política de saúde: Controle normativo do processo transexualizador no Brasil. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 10(1), 3-19. http://doi.org/10.5433/2236-6407.2019v10n1p03
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).

Eu odiava usar vestido. Eu não lembro de tudo, mas minha mãe conta que, no aniversário de dois anos, eu chorava, me debatia e gritava que não queria usar. Ela acabava colocando um macacãozinho que é meio que unissex. Aí eu cresci um pouco e queria usar calça jeans. Isso aí não tinha muito problema, mas eu vestia e não queria mais tirar, então minha mãe preferia me deixar mais de calcinha pra não se aborrecer com roupa (Marcelo).

Evocando a reflexão de Butler (2019Butler, J. (2019). Corpos que importam: Os limites discursivos do “sexo”. N-1.) sobre as identidades intencionalmente alocadas em uma zona de marginalidade, por meio da ação de dispositivos de poder, podemos pensar que o contexto é o agente máximo da abjeção. A abjeção “relaciona-se a todos os tipos de corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante” (Butler, 2015Butler, J. (2015). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira., p. 32). Aquilo que é designado como abjeto deve ser sumariamente execrado e descartado para que não “contamine” os demais. Esse temor de “contaminação” é peça fundamental no processo de exclusão social, pois mobiliza o afastamento em relação às identidades interpretadas como não abjetas, a título de protegê-las, e valida essa ação discriminatória perante estas.

Na vida de pessoas trans, atos corriqueiros, como se vestir, falar, andar e desejar, estão sujeitos à intensa vigilância, uma vez que as dinâmicas estabelecidas socialmente obedecem a rígidos protocolos de pensar e agir. No que tange às identidades de gênero, esses padrões apontam para a existência de dispositivos de poder que atravessam os indivíduos sem que eles possam se aperceber de sua existência. Para compreender como se processa esse atravessamento, precisamos evocar o dispositivo da heteronormatividade, que impõe que o desejo afetivo-sexual heterossexual é o único caminho legítimo/possível para qualquer indivíduo em sua trajetória de vida (Warner, 1993Warner, M. (1993). Fear of a queer planet: Queer politics and social theory. University of Minnesota Press.). Dessa forma, há uma prescrição no sentido de que o corpo biológico, o desejo sexual e a identidade de gênero devem estar alinhados de acordo com essas concepções normativas da cultura, naturalizando, com isso, toda experiência identitária reconhecida como cisgênera (Petry & Meyer, 2011Petry, A. R., & Meyer, D. E. E. (2011). Transexualidade e heteronormatividade: Algumas questões para a pesquisa. Textos & Contextos, 10(1), 193-198.).

Por conseguinte, a heteronormatividade produz o corpo, o demarca no espaço relacional e o diferencia dos outros corpos. Essa distinção reduz os corpos às categorias binárias “homem” e “mulher”, o que é designado como “binarismo de gênero” (Butler, 2015Butler, J. (2015). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.).A desnaturalização da identidade de gênero de Marcelo e sua consequente submissão às forças coercitivas do meio podem ser deduzidas no seguinte relato:

Eu acho que o maior problema era com os outros mesmos. Dentro de casa, meu pai olhava meio torto pra mim, mas não falava nada. Mas, quando era na frente dos outros, era diferente. Em festa de família, churrasco, e o c* a quatro, eu tinha que ser menininha. Pra mim mesmo, eles não falavam nada. Eu sei que eles conversavam entre eles. O f* era que eu não entendi direito se tinha uma coisa errada comigo. Ninguém chegava e falava: “Você não pode agir como um menino, você tem que ser uma menina”. Isso era uma coisa que eu pegava no ar das brincadeiras que os meus primos faziam e das coisas que aconteciam. Isso eu acho que era o pior. Eu ficava me sentindo mal e nem sabia direito o porquê (Marcelo).

Dotado de maturidade, hoje Marcelo é capaz de perceber que a cobrança para que ele agisse “como uma menininha” constituía uma violência que não apenas lhe era imposta, como também imputada a seus pais, a quem supostamente caberia a função de docilizar e disciplinar seu corpo e sufocar seus arroubos dissidentes, afastando-o do perigo do desvio. Caso a insubordinação persista, a partir da adolescência, esse corpo dissidente torna-se alvo recorrente de violações de direitos.

Ao ser identificado como abjeto, o indivíduo não carrega o rótulo sozinho: aqueles que a ele estão associados também carregam o estigma em menor ou maior grau, o que podemos denominar, com base nos estudos de Goffman (1988Goffman, E. (1988). Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). LTC.) sobre o estigma, de abjeção por procuração. Assim, o abjeto sofre e sofrem os que estão a sua volta, como mostra o excerto de fala a seguir, que envolve os pais de Marcelo.

Em lembro que teve uma vez, eu já com uns 8 anos, que teve um quebra-pau porque era casamento de uma prima minha. Minha mãe me levava pra escolher roupa e eu emburrava porque não queria comprar vestido. Eu ficava pedindo pra usar terno. Meu pai não tinha muita paciência, então com ele não tinha muita conversa. Minha mãe chegou a chorar e me pediu pra eu ir de vestido. Eu fiquei mal com ela chorando e fui de vestido mesmo (Marcelo).

Marcelo sofria uma pressão especial para “agir” e se “parecer” com uma menina. Em suas narrativas, isso parece estar vinculado à ideia de ser um indivíduo identificado ao nascimento como sendo do gênero feminino. A preocupação com o “agir” e “parecer-se” com esse ou aquele gênero emerge nos estudos de Butler (2015Butler, J. (2015). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.) a partir do momento em que ela questiona não apenas a obrigatoriedade do binarismo de gênero, como também a própria noção de gênero como constructo genético/biológico estável e imutável, que acompanha o indivíduo ao longo de sua vida sem sofrer variações. Nesse contexto, Butler propõe a compreensão de que o gênero se localiza no ato, não no constructo.

Consoante com esse pressuposto, a autora elabora o conceito de performatividade, inspirado na interpretação que Jacques Derrida elabora acerca da obra de Austin (Porchat, 2014Porchat, P. (2014). Psicanálise e transexualismo. Juruá.). Butler (2015Butler, J. (2015). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.) estabelece o gênero como um ato/performance no qual o indivíduo reproduz efusivamente as significações culturais atribuídas a seu “gênero de nascimento”, de forma a garantir a manutenção do binarismo. Um dos problemas aqui é que, justamente pelo fato de que o gênero não admite qualquer tipo de significação a priori - por exemplo, conferida geneticamente - os corpos não se docilizam frente à performance do sujeito, de forma que ele deve estar sempre performando a fim de garantir a unidade do gênero.

Avançando para a pré-puberdade, Marcelo relembra a primeira aproximação de alguém do gênero oposto com uma intenção de afeição como um momento pouco significativo para ele, mas que foi motivo de preocupação para seus pais:

Aí, quando eu tinha mais ou menos uns 10 anos, um menino que jogava futebol comigo começou a gostar de mim. Ele me levou uma flor na escola. Eu não dei muita bola. Eu falei pra minha mãe e ela e meu pai ficaram meio preocupados. Não sei direito se pelo menino ou por mim. Eu acho que, para eles, eu devia ser lésbica, então o menino não teria chance comigo. Aí acabou que os pais dele e os meus se encontram numa festa lá e foi tudo tranquilo. Os pais dele falaram que era coisa de criança e tals. Passou o tempo e ele deixou pra lá (Marcelo).

Nota-se que, na interpretação dos pais de Marcelo, assim como na da sociedade de maneira geral, a identidade de gênero e a orientação sexual se entrelaçam e se confundem, o que mostra os limites das categorias classificatórias (Pelúcio, 2011Pelúcio, L. (2011). É o que tem pra hoje: Os limites das categorias classificatórias e as possíveis novas subjetividades travestis. In L. Colling (Org.), Stonewall 40 + o que no Brasil? (pp. 79-110). Edufba.). Identidade de gênero e orientação sexual estão engendradas no que Butler (2015Butler, J. (2015). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.) conceitua como matriz sexual compulsória. Corpo, gênero e desejo devem coexistir de maneira sinérgica, sendo que qualquer discrepância, por mínima que seja, resulta em perturbação total da matriz. Acontece que esse perfeito alinhamento pretendido - que na história de Marcelo se traduz no “não agir como uma menina” - foi automaticamente identificado como uma perturbação de seu próprio desejo, tendo ele sido precocemente lido e considerado como uma mulher lésbica.

Apesar dos equívocos em relação a sua orientação sexual, produzidos pelo pressuposto da heterossexualidade compulsória (Rich, 1980Rich, A. (1980). Compulsory heterosexuality and lesbian existence. In Blood, bread, and poetry: Selected prose 1979-1985 (pp. 65-87). Norton Paperback.), ao contrário do que seus pais poderiam esperar, Marcelo não estava particularmente preocupado com namoros. Mesmo aos 14 anos, quando passou a sentir atração por uma menina, seu próprio corpo era o conteúdo que mais lhe ocupava os pensamentos.

A primeira menina de que eu gostei foi com uns 14 anos. Até aí eu nem dava bola pra namoro. Foi no mesmo ano que eu menstruei. Isso eu não lembro direito, só lembro que eu pensei se aquilo iria atrapalhar o futebol. O problema mesmo é que os seios começaram a crescer. Sorte minha que não cresceram muito. Parece que meu corpo sempre soube que era pra eu ser homem mesmo (Marcelo).

Eu até hoje eu me sinto incomodado. Eu levanto os braços e, na hora que volta, eu sinto o peito apertar. Se tem uma coisa que eu quero fazer é tirar os peitos. Hormônio eu ainda não tenho certeza. Não sei se precisa. Eu tenho medo também de dar problema (Marcelo).

O incômodo que Marcelo relata ter sentido com seu corpo, especialmente a partir da puberdade, admite diversas leituras, entre elas a racionalidade biomédica que reconhece nesse desconforto uma marcada disforia em relação a suas características fenotípicas. Essa chave de leitura, contudo, pode não ser potente para nos aproximar do sentimento aflitivo que domina as vivências corporais de Marcelo. É preciso nomear o sentimento de profunda desconexão e estranhamento consigo mesmo, porém, abdicando de usar uma interpretação superficial, quase um clichê, ao sustentar que a causa do desconforto está ligada a um descompasso entre corpo e subjetividade. Isso porque, ainda que o corpo seja constantemente interpretado em sua condição material, é preciso compreender que essa materialidade emerge a partir de um discurso regido por dispositivos de poder que lhe dão características e limites específicos (Butler, 2019Butler, J. (2019). Corpos que importam: Os limites discursivos do “sexo”. N-1.).

No interior do saber médico, no qual corpos são interpretados essencialmente de acordo com suas características biológicas, essa interpretação está entremeada por um discurso pautado no dismorfismo corporal, em que está estabelecido que feminino e masculino surgem a partir das diferenças biológicas entre os “pares” (Bento, 2017Bento, B. (2017). A reinvenção do corpo: Sexualidade e gênero na experiência transexual. Devires.; Bento & Pelúcio, 2012Bento, B., & Pelúcio, L. (2012). Despatologização do gênero: A politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas, 20(2), 569-581. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200017
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). Dessa maneira, qualquer possibilidade de se conservar um significado flutuante para os corpos desaparece e cede lugar às concepções fixas e cristalizadas de que homens e mulheres são diametralmente opostos, o que acaba por transformar a subjetividade em algo corporal e, por que não dizer, genital. Considerando essas premissas, o desconforto experienciado por Marcelo não deve ser visto apenas como um erro de leitura corporal, fruto de uma distorção perceptiva que resultaria na necessidade de correção, pela via da transformação do corpo por meio da engenharia biotecnológica de cirurgias e hormonioterapia. Assim, seus processos de subjetivação e afirmação de gênero ocorrem de maneira concomitante à escultura de um novo corpo, também subjetivado.

Se o corpo é subjetivado e nossa subjetividade está intrinsicamente relacionada à construção da subjetividade do outro, o contato com a alteridade impacta diretamente os processos de subjetivação aos quais os seres humanos se submetem, ao mesmo tempo em que os transformam. A depender da maneira como esse contato ocorre, os resultados podem ser sentidos, tanto na esfera mental quanto corporal, como positivos ou negativos (Pelúcio, 2006Pelúcio, L. (2006). Três casamentos e algumas reflexões: Notas sobre conjugalidade envolvendo travestis que se prostituem. Revista Estudos Feministas , 14(2), 522-534. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2006000200012
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, 2009). No que concerne a essa dimensão, a vida e o corpo de Marcelo começaram a ganhar outros contornos quando ele encontrou um ambiente tolerante e até mesmo acolhedor.

Eu comecei a me sentir melhor comigo mesmo no decorrer do curso técnico. O pessoal lá era mais pra frentex e tal. Eu fiz uma amigona lá, minha amiga até hoje, que é a Jéssica. Ela é lésbica e toda descolada. Eu falava sobre várias coisas com ela. Inclusive sobre minha sexualidade, meu corpo. . . . Quando ela me explicou que eu era trans, eu não acreditei. Eu achei aquilo muito esquisito, mas aí o tempo foi passando, eu fui me olhando no espelho, me sentindo mal e comecei a pesquisar. Cheguei pra ela e falei: “Não é que você tava certa?” (Marcelo).

Transicionar exige tenacidade, capacidade de se reinventar (Bento & Pelúcio, 2012Bento, B., & Pelúcio, L. (2012). Despatologização do gênero: A politização das identidades abjetas. Revista Estudos Feministas, 20(2), 569-581. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2012000200017
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), criar possiblidades até que se possa encontrar sua própria voz. O desafio é seguir em frente sem se avassalar, sem renunciar a sua dignidade e sem ficar aprisionado ao lugar de abjeção atribuído às subjetividades trans (Pelúcio, 2009Pelúcio, L. (2009). Abjeção e desejo: Uma etnografia travesti sobre o modelo preventivo de aids. Annablume; Fapesp.).

Eu lembro que eu vi o depoimento de um youtuber, que chama. . . acho que é Ariel Modara. Ele é homem trans também. Não sei se ele tem canal ainda. Ele falava dele com tanta tranquilidade e tal, que minha ficha foi caindo na hora. Eu lembro que me assustei, mas não me senti mal. Na minha cabeça, eu acho que tudo já estava formatado, mas aí eu consegui dar um nome (Marcelo).

O contexto menos indutor de abjeção, somado à identificação com outra experiência de vida semelhante a sua, parecem ter oferecido a Marcelo um caminho exequível para experimentar maior fluidez identitária. Interessante notar que a leitura de si mesmo emergiu de uma circunstância de afirmação, ao invés de circunstâncias exclusivas de negação, que haviam predominado em sua vida até então. Felizmente, esse processo de afirmação veio acompanhado de uma manifestação de apoio de seu círculo familiar, levando-o a perceber que doravante seria capaz de encontrar apoio sempre que necessitasse.

Não teve um momento em que eu assumi pra minha família. Eu sempre corri meio que por fora com essas coisas. Mas depois disso, teve um dia que minha mãe perguntou por que é que eu estava me vestindo cada vez mais de homem. Eu falei: “Por que eu sou homem, mãe”. Ela achou que era brincadeira na hora, mas depois pediu pra falar mais sério. Depois eu falei com ela, ela falou com meu pai. Os dois fizeram umas pesquisas por conta própria, me perguntaram umas coisas e tal, mas não teve muito problema. Eu acho que, pra eles, também já era uma coisa que meio que eles sabiam. Eles só ficaram preocupados que eu fosse tomar um monte de remédio e tal, mas aí eu tranquilizei eles dizendo que não ia. Eu não sei se vou mesmo (Marcelo).

A história pregressa: Joice antes de conhecer Marcelo

Joice teve um início de vida semelhante ao de Marcelo: nasceu com uma vagina, uma vulva e um corpo “destinado” a secretar estrogênio em grandes quantidades. Desde o ultrassom, o médico e seus pais sentenciaram que se tratava de uma menina. Os primeiros anos de sua vida seguiram o fluxo heteronormativo tradicional, no qual as meninas são ornamentadas com vestido cor-de-rosa, têm suas orelhas perfuradas ainda bebês para a colocação de brincos e são carinhosamente apelidadas de “princesas”. Joice passou por todas essas etapas de reiteração performática do gênero sem qualquer sensação interior de estranheza ou desconforto em relação ao próprio corpo. A princípio, não haveria por que sentir algo dessa natureza, já que ela sempre se identificou como uma mulher cis.

Joice começou a se interessar por meninos na puberdade, o que era interpretado pelo meio social no qual ela vivia, em especial pela família, como algo natural e esperado. Essa naturalização, no entanto, se viu abalada quando ela, em meio a suas “experiências afetivas”, começou a perceber que sentia atração por outras meninas, como se constata em seus relatos.

Minha vida sempre foi tranquila, até... a adolescência. Eu tinha namorado um menininho com uns 12 anos. Naquela época era “moda” as meninas se beijarem na boca. Todas as minhas amigas beijavam na brincadeira. Eu acho que era por causa de uma novela na época. Acho que era mexicana. Eu beijava também sem compromisso, mas eu sentia uma coisa diferente. Eu gostei. Eu não achei errado. Eu também nunca parei pra pensar se eu era bi ou não. No começo eu beijava umas meninas na balada, meio que fingindo brincadeira, mas com 16 anos eu comecei a namorar uma menina lá da minha cidade. Aí deu problema. . . . Eu não contei nada, mas sempre tem algum fofoqueiro que vai causar intriga e isso chegou nos ouvidos dos meus pais. Minha mãe fez um escândalo. Disse que eu estava andando em más companhias e não sei o quê, não sei o que lá. Meu pai não falou nada, ele sempre foi mais passivo. Ele não se mete muito nos assuntos dos outros. Isso é bom e ruim. mas acabou sendo bom (Joice).

Como podemos perceber, o ambiente no qual ela se desenvolveu, face a seu comportamento considerado anti-natural, logo tratou de mobilizar dispositivos coercitivos para regular a expressão de seu afeto dissidente, a começar pela censura materna e paterna. É importante compreender que a repressão da manifestação afetiva em relação a meninas se configura, em termos mais amplos, como uma repressão de gênero. Isso ocorre porque o “ser feminino”, dentro das concepções heteronormativas, manifesta-se essencialmente por meio de uma suposta coerência entre o “gênero feminino” e o desejo heterossexual, de forma que a subversão deste por um desejo lésbico ou bissexual incorre, por extensão, na subversão do próprio “gênero feminino” (Butler, 2015Butler, J. (2015). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Civilização Brasileira.). Em outras palavras, aos olhos dos pais, Joice não era mais “a menina que ela deveria ser”.

Destituída da benção (ainda que duvidosa) que a cultura heteronormativa oferece àqueles que são lidos como sujeitos de uma “maioria” ou portadores de “identidades naturais” e essencializadas, o contato com o fenômeno da abjeção gerou uma distância significativa entre Joice e sua família. Ainda que essa distância tenha sido amenizada com o passar do tempo, a relação entre ela e os pais passaria a ser intermediada por algum constrangimento e vários não ditos relacionados a sua sexualidade. Já mais velha, ela foi capaz de realizar uma escolha ainda menos “naturalizada” do que aquela esperada para uma mulher cisgênera: ela conheceu e se apaixonou por Marcelo, um indivíduo não reconhecido pela cultura heteronormativa como homem, mas como mulher.

Histórias que se entrecruzam: resistência e liberdade de criação no casal cis-trans

As trajetórias de vida de Joice e Marcelo se entrelaçaram na escola, mais exatamente no ensino médio, quando foram colegas de classe. Como tantas outras histórias de amor, começou com um flerte. Coube à Joice a iniciativa de iniciar o relacionamento.

A gente se conheceu quando eu fazia o mesmo curso que ele. No primeiro ano eu tinha uma turminha que era diferente da dele. Eu já tinha reparado nele. No último ano, porque eram dois anos de curso, eu me aproximei mais dele num trabalho que a gente fez junto. Eu sempre achei ele muito bonito. Meio tomboy. Eu nunca tive isso de gostar mais de homem ou de mulher. Eu sempre olhei além disso. Quando a gente se aproximou mesmo, ele estava se descobrindo, mas eu não ligava e quis ajudar ele. Ele não sabia o que era ainda, mas eu sabia que ele me achava uma gatinha [risos] (Joice).

Joice admite que nunca esteve particularmente preocupada com o gênero ou o corpo de seus parceiros(as) íntimos(as). Em seu processo de subjetivação como mulher cis, seu desejo se sobressai sobre os imperativos materiais do corpo e do gênero, que são subjetivados dentro da fluidez desse desejo. Ser capaz de existir e transitar livremente na zona de marginalidade imposta pelo processo de abjeção permitiu que Joice mantivesse suas opções de relacionamento abertas para outros indivíduos que transitam nessa zona limítrofe. Marcelo, por sua vez, tinha um temperamento mais reservado, ainda mais acentuado porque estava em processo de desconstrução e autodescoberta. Por isso teve algumas dúvidas em relação a iniciar um relacionamento afetivo com Joice, temendo a pressão do meio externo.

Nossos amigos ficavam fazendo pressão pra gente ficar junto, mas eu estava com medo de me relacionar, não sei se por mim, mas por outra pessoa estranhar o que eu era. Eu não estava com muita paciência pra explicar de mim. Eu mesmo não sabia me explicar direito. Mas ela era muito descolada, já veio conversando e eu fui me sentindo à vontade. E aí deu certo (Marcelo).

Eu não liguei por ele ser trans. Eu não sabia o que era direito, mas depois que eu pesquisei eu fiquei mais curiosa pra ficar com ele. Eu não senti tanta diferença de ficar com homem, mas eu senti um negócio diferente que eu gostei. Eu nem sei por quê. Eu sempre gostei de gente diferente (Joice).

Conforme o relacionamento evoluiu, Marcelo e Joice se descobriram capazes de traçar um caminho em comum. O casal conta com naturalidade a decisão de abraçar um projeto de vida em comum. Quando resolveram morar juntos, buscaram o estreitamento de laços com suas famílias de origem - mais a de Marcelo do que a de Joice. Ainda hoje eles buscam conquistar plena autonomia financeira, ainda que, por vezes, necessitem recorrer ao apoio da família.

Já quando eu comecei a cursar pedagogia, eu me mudei e arrumei um estágio. Então, eu fui ficando mais independente e tendo de dar menos satisfação. Eu não me preocupei em contar, mas eles [pais] sabem. A gente já foi na casa deles e tudo. Ninguém questiona, então eu não sei se eles gostam ou não, mas hoje eu acho que não é o mais importante (Joice).

E depois, a gente mora junto, paga nossas contas. De vez em quando meus pais dão uma ajuda, o meu tio também dá uma aliviada no aluguel de vez em quando. Então, com a minha família é mais tranquilo. Também não dão muito palpite, mas eles gostam dela sim (Marcelo).

Quando refletem sobre a dinâmica do relacionamento conjugal, ao serem questionados se observam alguma diferença com a vida dos casais cis heterossexuais, Joice e Marcelo parecem se sentir provocados e são categóricos em proclamar sua “normalidade”.

Não tem muito o que falar, porque nós somos um casal normal. Eu conheço muito casal que na frente dos outros é uma lindeza, mas que dentro de casa um não fala com o outro. Acho que o pessoal se preocupa muito com o que os outros vão achar. Aí tem casal que fica junto 30 anos só por causa disso. A gente está junto e feliz sendo do nosso jeito. (Joice)

A percepção dos cônjuges de que vivenciam uma normalidade conjugal pode ser entendida como uma subversão da atribuição de anormalidade que a cultura heteronormativa lhes outorga. Reivindicar-se o status de casal normal é convocar para si um lugar de dignidade junto aos pares que escolheram se unir com base em um laço de amor. Escolher compartilhar um projeto de vida a dois é assumir o risco de inventar uma conjugalidade sem ter referências de outros casais trans (Alegría, 2012Alegría, C. A. (2012). Relational and sexual fluidity in females partnered with male-to-female transsexual persons. Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing, 20(2), 142-149. https://doi.org/10.1111/j.1365-2850.2011.01863.x
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; Alexandre & Santos, 2019Alexandre, V., & Santos, M. A. (2019). Experiência conjugal de casal cis-trans: Contribuições ao estudo da transconjugalidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(n.spe 3), e228629, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228629
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). Por outro lado, a reiteração de uma certa “normalidade”, anseio que comparece mais enfaticamente na fala de Joice, também pode ser compreendida como uma circunstância que reifica a divisão binária que regula o sistema sexo/gênero.

Impor-se contra a hegemonia de um modelo identitário e de relacionamento afetivo-sexual vigente dentro de um contexto social opressor é uma tarefa que exige esforço subjetivo no que tange à autodefinição do indivíduo, bem como um empenho reiterado que envolve impor-se diante do outro que teme e rejeita sua existência. Alcançar um estágio individual de realização frente a essas condições é especialmente difícil, mas quanto isso é feito em conjunto, dentro de um relacionamento afetivo sólido, o enfrentamento das condições desafiadoras pode ser menos penoso e resultar em uma conquista compartilhada e vivenciada como um exercício de liberdade interna (Seffner & Müller, 2012Seffner, F., & Müller, M. (2012). Quem ama sofre, quem sofre luta, quem luta vence: Da conjugalidade entre travestis e seus maridos. Sociedade e Cultura, 15(2), 285-295. https://doi.org/10.5216/sec.v15i2.22397
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).

Tal sentimento de liberdade, vivenciado no interior de uma conjugalidade cis-trans, aflora quando as duas identidades distintas deixam de ser individuais e produzem uma terceira identidade, que difere das duas individuais, mas ao mesmo tempo carrega os legados que cada cônjuge traz, em um amálgama das duas histórias que se interceptaram em um dado ponto de sua existência, deflagrando uma nova história (Féres-Carneiro, 1998Féres-Carneiro, T. (1998). Casamento contemporâneo: O difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Psicologia: Reflexão e Crítica, 11(2), 379-394. https://doi.org/10.1590/S0102-79721998000200014
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; Scorsolini-Comin et al., 2018Scorsolini-Comin, F., Alves-Silva, J. D., & Santos, M. A. (2018). Permanências e descontinuidades nas concepções contemporâneas de casamento na perspectiva de casais longevos. Psicologia: Teoria e Pesquisa , 34. http://dx.doi.org/10.1590/0102.3772e34423
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).

Nota-se que a boa passabilidade obtida por Marcelo funciona como um elemento protetivo eficaz para que seu corpo não se torne alvo fácil de tentativas de eliminação. Infelizmente, isso é exceção. Por passabilidade entendemos “. . . o desenvolvimento de contornos e traços corporais que, no limite, garantem a possibilidade de uma pessoa ser reconhecida como cisgênera” (Pontes & Silva, 2017Pontes, J. C., & Silva, C. G. (2017). Cisnormatividade e passabilidade: Deslocamentos e diferenças nas narrativas de pessoas trans. Periódicus, 1(8), 396-417., p. 403). “A passabilidade, implicada em uma performatividade de gênero, dispõe um conjunto de atos regulados e repetidos que asseguram uma imagem substancial de gênero no registro de uma matriz heterossexual e cisgênera” (Pontes & Silva, 2017Pontes, J. C., & Silva, C. G. (2017). Cisnormatividade e passabilidade: Deslocamentos e diferenças nas narrativas de pessoas trans. Periódicus, 1(8), 396-417., p. 407).

Em relação ao desenho do futuro, Marcelo e Joice contam que pretendem juntar dinheiro para comprar uma casa própria e deixar de morar de aluguel. Não pretendem ter filhos porque não veem “necessidade disso” [sic]. Joice e Marcelo relatam que, por vezes, sentem “olhares diferentes” ao caminharem pela rua, e que isso gera algum incômodo, mas que se sentem privilegiados por nunca terem enfrentado uma situação de maior constrangimento ou de franca violência transfóbica, como às quais alguns de seus amigos foram expostos. Marcelo relata que, além de terem grande afinidade como casal e de se verem com coragem para enfrentar juntos esse tipo de situação, contam com o apoio de sua família e de seus amigos da escola, o que contrasta com os relatos de abusos e bullying transfóbico reportados por inúmeros estudos (Adelman et al., 2003Adelman, M., Ajaime, E., Lopes, S. B., & Savrasoff, T. (2003). Travestis e transexuais e os outros: Identidade e experiências de vida. Gênero, 4(1), 65-100. https://doi.org/10.22409/rg.v4i1.238
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; Galli, 2013Galli, R. A. (2013). Roteiros sexuais de transexuais e travestis e seus modos de envolvimento sexual-afetivo [Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo].; Lomando & Nardi, 2013Lomando, E., & Nardi, H. C. (2013). Conjugalidades múltiplas nas travestilidades e transexualidades: Uma revisão a partir da abordagem sistêmica e da psicologia social. Saúde em Debate, 37(98), 493-503.; Souza & Bernardo, 2014Souza, H. A., & Bernardo, M. H. (2014). Transexualidade: As consequências do preconceito escolar para a vida profissional. Bagoas: Estudos Gays: Gênero e Sexualidade, 8(11), 157-175.).

Ter passabilidade pode ser um potente recurso protetivo contra diversas expressões de transfobia. A transfobia é um fenômeno que abarca as inúmeras circunstâncias que materializam a discriminação contra a população trans. Pessoas trans são alvo preferencial de preconceitos e atos discriminatórios no cotidiano, que reforçam a exclusão sistêmica e estrutural a que são submetidas historicamente (Alexandre, Oliveira-Cardoso, & Santos, 2020Alexandre, V., Oliveira-Cardoso, E. A., & Santos, M. A. (2020). A banalidade transfóbica e o estado brasileiro conservador. In S. R. Pasian, A. P. S. Silva, C. M. Corradi-Webster, M. G. Sticca, D. S. Zanini & S. Grubits (Orgs.), Identidade e vulnerabilidade humana em diferentes contextos: Contribuições da Psicologia (pp. 79-94). CRV. ). O ciclo de exclusões geralmente se inicia na família e se prolonga na escola, no ambiente de trabalho, no sistema de saúde, nas ruas e em outros espaços públicos, como se observa nas restrições e interdições no uso de banheiro público. A opressão se cristaliza na dificuldade de acesso à educação e ao mercado de trabalho, especialmente em postos e empregos qualificados. Em muitos lugares não lhes é permitido ou se desrespeita o direito ao uso do nome social, e muitas não conseguem adequar seus documentos de registro civil. Além de sofrerem sucessivos apagamentos nos circuitos sociais e de não serem atendidas em seus direitos fundamentais de cidadania, são vítimas contumazes de diversas outras formas de violência e iniquidades, como ameaças, insultos, chacotas, humilhações, intimidações, agressões físicas e assassinatos (Jesus, 2014Jesus, J. G. (2014). Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio. História Agora, 16, 101-123.). Em vez de angariarem manifestações de solidariedade e compaixão por serem expostas a tantas situações degradantes, pessoas trans estão sujeitas à avaliação negativa por parte da sociedade, sendo-lhes imputada uma representação social estereotipada. Não por acaso os índices de homicídio e suicídio são elevados na população trans.

Na tentativa de se defenderem das múltiplas formas de exclusão e estigmatização a que estão submetidas no cotidiano, especialmente as dificuldades vivenciadas nas relações sociais e, principalmente, nos vínculos familiares, nota-se uma forte valorização do suporte recebido da rede de apoio psicossocial. A rede de apoio pode oferecer diferentes tipos de suporte, mas a efetividade de seus efeitos benéficos depende da necessidade e da expectativa dos indivíduos (Soares, Feijó, Valério, Siquieri, & Pinto, 2011Soares, M., Feijó, M. R., Valério, N. I., Siquieri, C. L. S. M., & Pinto, M. J. C. (2011). O apoio da rede social a transexuais femininas. Paidéia (Ribeirão Preto), 21(48), 83-92. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2011000100010
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). Joice e Marcelo reconhecem os amigos como parte de sua família: “A nossa maior família hoje são nossos amigos. São as pessoas que eu conheci no meu curso e que me ajudaram a me descobrir e nunca me julgaram por isso” (Marcelo).

A percepção positiva da rede de apoio social é um elemento favorável, especialmente no cenário sociopolítico atual de preocupante retrocesso institucional, progressiva desumanização e falta de empatia e compaixão pelo sofrimento do outro, com ataques sistematicamente desferidos aos grupos mais vulneráveis da sociedade e supressão de direitos anteriormente conquistados pela população LGBTQIA+ (Santos et al., 2020aSantos, M. A., Oliveira, W. A., & Oliveira-Cardoso, É. A. (2020a). Inconfidências de abril: Impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de COVID-19. Psicologia & Sociedade, 32. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240339
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). Com o avanço das políticas neoliberais, o esgarçamento do tecido social pode ampliar o sentimento de desproteção e desamparo social dos grupos minoritários, agravando os impasses e as vulnerabilidades interseccionadas (Santos, Okamoto, Emidio, & Maia, 2020bSantos, M. A., Okamoto, M. Y., Emidio, T. S., & Maia, B. B. (2020b). As tramas do trabalho vincular: contribuições psicanalíticas para pensar aos impasses e ideais contemporâneos. Revista Brasileira de Psicanálise, 54(4), 117-132.). Isso remete à necessidade de fortalecer o investimento na formação e capacitação dos profissionais de saúde para atuação no campo da diversidade sexual e de gênero (Braga, Silva, Santos, Santos, & Silva, 2017Braga, I. F., Silva, J. L., Santos, Y. G. S., Santos, M. A., & Silva, M. A. I. (2017). Rede e apoio social para adolescentes e jovens homossexuais no enfrentamento à violência. Psicologia Clínica, 29(2), 297-318. ; Dullius & Martins, 2020Dullius, W. R., & Martins, L. B. (2020). Training needs measure for health care of the LGBT+ public. Paidéia (Ribeirão Preto), 30, e3034. https://doi.org/10.1590/1982-4327e3034
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; Gaspodini & Falcke, 2018Gaspodini, I. B., & Falcke, D. (2018). Sexual and gender diversity in clinical practice in Psychology. Paidéia (Ribeirão Preto), 28, e2827. https://doi.org/10.1590/1982-4327e2827
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; Santos et al., 2019Santos, M. A., Souza, R. S., Lara, L. A., Risk, E. N., Oliveira, W., Alexandre, V., & Oliveira-Cardoso, É. A. (2019). Transexualidade, ordem médica e política de saúde: Controle normativo do processo transexualizador no Brasil. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 10(1), 3-19. http://doi.org/10.5433/2236-6407.2019v10n1p03
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).

Considerações finais

Este estudo examinou narrativas sobre a experiência conjugal de um homem trans engajado em um relacionamento afetivo com uma mulher cisgênero. Temos a convicção de que o estudo alcançou o objetivo proposto de investigar a dinâmica de relacionamento conjugal no casal cis-trans. Compreender as experiências conjugais da população trans é relevante porque ainda persiste uma aura de silêncio e invisibilidade pairando sobre esse fenômeno. Buscamos explorar os efeitos produzidos pela situação de conflito com a norma cis-heteronormativa sobre os relacionamentos amorosos. A cis-heternormatividade fixa e naturaliza a norma de que um casal cisgênero e heterossexual é a única configuração conjugal válida. Isso torna a experiência conjugal do casal cis-trans uma aventura temerária e permeada por riscos e barreiras.

Quando se caminha na estreita margem dos códigos socialmente sancionados, em particular quando o projeto de existência diverge dos preceitos impostos pela cultura cis-heteronormativa, há desafios substanciais a serem superados. Por outro lado, foi especialmente marcante constatar, no casal analisado, o quanto a conjugalidade, enquanto oportunidade para instauração de uma nova história, que emerge da intersecção das trajetórias individuais do casal, pôde fornecer um espaço propício para ampliar a margem de segurança para a invenção do laço conjugal, a despeito do contexto conservador no qual Joice e Marcelo se inserem.

A análise das narrativas nos permitiu delinear especificidades do funcionamento das relações estabelecidas pelo casal cis-trans em seus primeiros anos de relacionamento. O apoio familiar e o suporte oferecido por amigos e parentes emergiram como elementos decisivos para a consolidação da subsistência material do casal, especialmente na falta de amparo institucional e na omissão de políticas públicas desenhadas especificamente para apoiar casais e famílias trans.

Para construir a relação conjugal, o casal cis-trans não conta com referências diretas para se inspirar, como ocorre nas relações cis-heternormativas, com seus modelos aceitos e consagrados pela tradição. Além disso, não ter um padrão relacional a ser seguido para a construção de sua conjugalidade, como aquele que um casal cisgênero heterossexual tem a seu dispor, não é percebido como um problema, um déficit ou desvantagem no casal analisado neste estudo. Pelo contrário, essa circunstância ampliou a margem de liberdade para que os cônjuges criassem seus próprios modos de se relacionar e/ou reelaborassem os modelos convencionais, inclusive negociando formas mais igualitárias de viver sob o mesmo teto.

Como percebemos nas narrativas do casal Joice-Marcelo, a conjugalidade trans desestabiliza certezas e desafia o padrão de normalidade entronizado. Esse padrão normativo precisa ser questionado e desconstruído, pois engendra iniquidades que perpetuam e legitimam privilégios, como a hegemonia masculina sobre a mulher, a opressão de classe e a exclusão das sexualidades e gêneros dissidentes. Sem romper totalmente com os modelos conhecidos - por exemplo, com a estrutura imaginária do binarismo -, o casal cis-trans necessita elaborar um espaço relacional específico e compartilhado, uma terceira margem na qual cônjuges podem subsistir e garantir a proteção de seus próprios desejos e necessidades, dentro de uma sociedade hierarquicamente estruturada para manter privilégios de gênero e reproduzir desigualdades que perenizam vulnerabilidades. Quando o novo espaço criado é reconhecido pela rede pessoal do casal, a continuidade do vínculo sai fortalecida e torna-se mais viável prospectar um futuro sustentável ao lado do(a) parceiro(a).

Este estudo apresenta algumas limitações que precisam ser destacadas. Conforme mencionamos, o relacionamento conjugal entre homens/mulheres trans e seus parceiros cisgênero tem sido pouco investigado, o que restringe as possibilidades de comparação com outras pesquisas. Além disso, considerando o delineamento metodológico deste estudo, não temos a intenção de generalizar os resultados para outras experiências de conjugalidade entre pessoas trans e cisgêneras, mas tão-somente iluminar algumas facetas da experiência singular de um casal cis-trans, no que tange a seus esforços para validar sua existência para além da captura do binarismo de gênero e da matriz cis-heteronormativa.

O convívio conjugal, quando apoiado pelas famílias e amparado pelos amigos que compõem sua rede pessoal de apoio, tende a agregar fatores favoráveis para o enfrentamento de situações adversas e potencialmente de risco, que poderiam resultar na dissolução da união ou em ameaça à integridade física e psíquica em decorrência da transfobia. Espera-se que os resultados deste estudo possam fomentar programas e intervenções pautados em políticas públicas questionadoras, a serem implementadas nos ambientes de trabalho, escola e comunidade, bem como nos equipamentos de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2019
  • Aceito
    13 Nov 2020
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