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FORMA-PERSONAGEM E FETICHISMO: UMA LEITURA COMPLEMENTAR À OBRA DE CIAMPA

FORMA-PERSONAJE Y FETICHISMO: UNA LECTURA COMPLEMENTARIA DE LA OBRA DE CIAMPA

CHARACTER-FORM AND FETISHISM: A CIAMPA’S WORK COMPLEMENTARY READING

Resumo

O trabalho que segue tem por objetivo apresentar uma leitura complementar à canônica obra da Psicologia Social Crítica brasileira A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. Chamamos de leitura complementar a articulação de alguns temas comuns às teorias críticas da sociedade com essa obra. Nosso foco recai sobre a compreensão da transformação da personagem em forma-personagem. Para nós, tal transformação assemelha-se à proposta de Marx em O capital quando analisa a transformação da mercadoria em forma-mercadoria. O conceito de fetichismo aparece como elemento chave em nossa leitura, pois é a partir dele que podemos entender como a personagem se transforma em mercadoria no “mundo administrado”. Assim, a noção de reificação de Lukács, também, é cara a nossa análise complementar. Por fim, buscamos apontar elementos para algumas outras interpretações possíveis do texto e, ao mesmo tempo, homenagear a grandeza dessa obra.

Palavras-chave:
fetichismo; forma-personagem; reificação; identidade

Resumen

El trabajo tiene como objetivo proporcionar una lectura complementaria de la obra canónica de la Psicología Social Crítica brasileira: “A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio de Psicologia Social” de Antonio Ciampa. Llamamos de lectura complementaria la articulación de algunos temas comunes a las teorías críticas de la sociedad en este trabajo. Nuestra atención se centra en la transformación de personaje en forma-personaje. Una transformación tan similar se da en la propuesta de Marx en «El Capital» cuando se analiza la transformación de la mercancía en la forma de la mercancía. El concepto de fetichismo aparece como un elemento llave, pues es de él que podemos entender cómo el personaje se convierte en mercancía en el «mundo administrado». Finalmente tratamos de señalar elementos para algunas otras posibles interpretaciones del texto de Ciampa y al mismo tiempo rendir homenaje a la grandeza de esta obra.

Palabras clave:
fetichismo; forma-personaje; cosificación; identidad

Abstract

The following paper intends to present a complementary reading from the canonical Critical Social Psychology’s work “A estória do Severino e a história da Severina”. By complementary reading, we imply the articulation between some common critical theories of society’s themes and the cited work. We focus on the comprehension of the character’s transformation into character-form. To us, this transformation resembles Marx’s proposal in “O capital”, when he analyses commodity’s transformation into commodity-form. Fetichism’s concept appears as a key element in our reading, because it’s through it that we can understand how the character transforms into commodity in the administered world. Therefore, Lukács’ reification notion is , also, important in our complementary analysis. Finally, we seek to point elements to other text’s interpretations and, at the same time, honour the cited work’s greatness.

Keywords:
fetichism; character-form; reification; identity

Introdução

“Toda psicologia é social”. Essa afirmação de Lane (2004Lane, S. T. M. (2004). A psicologia social e uma nova concepção do homem para a psicologia. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.), Psicologia Social: o homem em movimento (pp. 10-19). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1984), p. 19) coloca a compreensão que se tinha de psicologia, no Brasil, até meados dos anos de 1980, sob uma nova perspectiva. Para a autora, isso não significa reduzir tudo que se compreende por psicologia a uma espécie de sociologia do psicológico, mas assumir, corajosamente, o compromisso de pensar a condição humana a partir de uma dinâmica social maior.

Diante dessa proposição é impossível entender os indivíduos em suas particularidades sem compreender como essas são influenciadas pela sociedade e pela cultura que os cercam. Nessa relação, o complexo conceito de identidade surge como um forte “índice” para a compreensão da dinâmica entre indivíduo e cultura. Lima e Ciampa (2012Lima, A. F. & Ciampa, A. C. (2012). Metamorfose humana em busca de emancipação: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica. In A. F. Lima (Org.), Psicologia Social Crítica: paralaxe do contemporâneo (pp. 11-30). Porto Alegre: Sulina. ) apontam que compreender a identidade e suas veredas é fundamental para compreender a dinâmica entre indivíduo e sociedade.

Não à toa esse conceito, segundo Lane e Codo (2004Lane, S. T. M. & Codo, W. (Orgs.), (2004) Psicologia Social: o homem em movimento . São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1984)), aparece como uma das categorias fundamentais daquilo que entendemos hoje por Psicologia Social Crítica brasileira. Ciampa (1987Ciampa, A. C. (1987/2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)/2005), em sua obra A estória de Severino e a história de Severina, propôs uma importante releitura dessa categoria que influenciou fortemente a compreensão que temos de identidade neste campo do saber.

Partindo fundamentalmente da obra desse autor, queremos apresentar uma leitura complementar sobre um processo importante para a constituição da identidade: a “fetichização da personagem”. Usamos aqui a expressão “leitura complementar”, pois buscaremos alguns autores das teorias críticas para nos ajudar a compreender esse conceito e, com isso, apontarmos contribuições para o entendimento do potencial crítico deste tema nas atuais configurações da sociedade capitalista. Assim a identidade deve ser tomada, enquanto categoria crítica e analítica, em sua dimensão política, ou seja, como elemento constitutivo das formas de sociabilidade contemporâneas.

Quando nos referimos às teorias críticas o fazemos a partir de uma compreensão mais ampla. Historicamente, tal expressão é comumente usada para fazer referência aos autores do movimento conhecido como “Escola de Frankfurt”. Em nosso caso, usamos o termo como é sugerido por Nobre (2013Nobre, M. (2013). Introdução: modelos de Teoria Crítica. In Curso livre de Teoria Crítica (pp. 9-20). São Paulo: Papirus.). Para esse autor, vários são os modos possíveis de entendimento do que seja uma teoria crítica. O que estes “modelos críticos” resguardam é a orientação para a crítica das estruturas sociais em vigência na sociedade capitalista, bem como uma proposta de emancipação de tais amarras sociais.

Com isso, buscaremos no texto de Lima (2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC.), Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da Psicologia Social Crítica, um conceito relevante para a análise das implicações políticas do tema identidade: a noção de reconhecimento perverso. Entendemos que esse autor é um dos principais continuadores e renovadores das ideias de Ciampa (2005), pois em suas articulações entre identidade e reconhecimento conseguiu revitalizar as orientações políticas contidas nesses termos.

Nosso objetivo, a partir da proposição de uma leitura complementar, é articular o conceito de identidade de Ciampa (2005) com a crítica da sociedade capitalista que ajuda a produzir essas identidades. Precisamente nesse ponto nos valeremos de temas fundamentais oriundos das teorias críticas para apresentarmos um panorama geral do que estamos chamando aqui de sociedade capitalista e quais suas repercussões sobre as identidades dos indivíduos.

A sociedade capitalista segundo as teorias críticas: o mundo administrado pela racionalidade instrumental

Segundo Marx e Engels (2007), a organização social do mundo capitalista é, dialeticamente, oriunda dos meios de produção. As ideias e ideais que orientam essa sociedade são intimamente ligados aos interesses particulares daqueles que detêm esses meios. Assim, eles escrevem que:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. (Marx & Engels, 1846Marx, K. & Engels, F. (1846/2007). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo . (Original publicado em 1846)/2007, p. 48)

Para Marx (2010aMarx, K. (2010a). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.), o Estado, que aparece na Idade Moderna como principal órgão de gestão do espaço social, com o advento do capitalismo, passou a legislar orientado para interesses particulares da classe dominante. Dessa maneira, o Estado moderno que aparece na filosofia de Hegel (1997bHegel, G. W. F. (1997b). Princípios da filosofia de direito. São Paulo: Martins Fontes.) como ponto de mediação entre os interesses particulares e coletivos da vida em sociedade converte-se, segundo Marx (2010a), em um tipo de órgão administrativo do Capital.

O Estado não perde com isso sua característica de mediador, mas tal mediação passa a ser orientada segundo interesses específicos: os interesses do Capital. Adorno e Horkheimer (1947/1985) veem na administração desses interesses uma nova forma de regulação comum ao século XX. Esses autores cunharam a expressão “mundo administrado” para referirem-se a esse processo.

No “mundo administrado” o capitalismo passa a interessar-se pela gestão política da vida, ou seja, a produção e regulação das condutas culturais dos indivíduos em sociedade. Para Adorno e Horkheimer (1985Adorno, T. W. & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1947)), isso é possível graças à racionalidade que gesta as formas de sociabilidade do século XX: a racionalidade instrumental. A racionalidade instrumental é, segundo Horkheimer (2002), a subjetivação da Razão moderna.

No pensamento moderno, a “razão” surge como um meio para se chegar a uma vida em sociedade racionalmente organizada onde os ideais iluministas de liberdade, igualdade, fraternidade e justiça seriam os fundamentos da organização social. Se esse era o objetivo da modernidade, o século XX, em sua historicidade, subjetivou essa lógica. Tais ideias não se concretizaram, e a técnica, a serviço do capitalismo, produziu uma complexa forma de dominação e administração da vida política que Adorno e Horkheimer (1985Adorno, T. W. & Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1947)) chamaram de “indústria cultural”.

A compreensão desse tema é fundamental para nosso objetivo. Freitag (1986Freitag, B. (1986). A Teoria Crítica: ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense .) aponta que a indústria cultural é, fundamentalmente, a aplicação das técnicas industriais à produção de bens culturais. Essa definição simples tem repercussões políticas muito importantes, pois devemos entender como bens culturais toda atividade simbólica humana.

No “mundo administrado” a indústria cultural ocupa um importante lugar no quadro administrativo, pois ela tem a função não só de produzir, mas de administrar as supostas idiossincrasias dos indivíduos. Marcuse (2015Marcuse, H. (2015). O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. São Paulo: Edipro.) nos apresenta uma leitura complementar afirmando que as sociedades industriais avançadas, ou o capitalismo tardio, buscam a unidimensionalização da vida através da administração dos ideais de felicidade.

A racionalidade instrumental, para esse autor, ainda é um elemento chave, pois é através da técnica que se produz um estado de bem-estar baseado no consumo. No mundo administrado, segundo Horkheimer (2002Horkheimer, M. (2002). Eclipse da razão. São Paulo: Centauro.), a razão deixa de ser um meio para um fim e torna-se um fim em si.

Nessa sociedade que administra as condutas, as relações mercadológicas descritas por Marx (1867Marx, K. (1867/2013). O Capital: crítica da economia política: livro 1; o processo de reprodução do capital. São Paulo: Boitempo . (Original publicado em 1867)/2013) extrapolam o objeto mercadoria e assumem papel fundamental nas dinâmicas sociais. Para compreender esse excesso, devemos compreender o fetiche da “forma-mercadoria” descrito por Marx (2013) e como esse se torna elemento fundamental da dinâmica do capital nas sociedades administradas.

O conceito de fetiche e o fetiche da forma-mercadoria

Segundo Safatle (2015Safatle, V. (2015). Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.), o fetichismo é enunciado pela primeira vez em 1756 pelo escritor francês Charles de Brosses. Em sua acepção inicial, o termo tinha a função de estabelecer os limites entre as sociedades racionais e as sociedades primitivas. O termo fetichismo deriva da palavra “fetiche”, oriunda do português arcaico, e que significa feitiço. Tal termo designava a prática de determinadas tribos africanas (da Guiné e da África ocidental) de divinizar animais e objetos inanimados.

Outra acepção do termo é apresentada pelo psicólogo francês Alfred Binet, que faz a análise do “fetichismo no amor”. Nessa concepção, o fetichismo passa a ser entendido como uma perversão sexual. Uma hipervalorização, dada pelos sujeitos perversos, de objetos que desviam da finalidade reprodutiva da sexualidade como essa era entendida no século XIX (Safatle, 2015Safatle, V. (2015). Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização brasileira.).

Na virada entre os séculos XIX e XX a noção de fetichismo sofreu algumas significativas alterações, porém ainda resguardando elementos dessas primeiras acepções terminológicas. Freud (1927/1996aFreud, S. (1996a). Fetichismo. In Edição stardard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. XXI, (pp. 151-162). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1927)), por exemplo, propõe que o fetichismo é um tipo de resolução de conflitos psíquicos que atribui um valor arbitrário idealizado a algo que, objetivamente, não possui esse valor. Para o “pai da psicanálise”, isso ocorre no campo da sexualidade. Na busca de resolver o conflito psíquico oriundo da diferença entre os sexos, o fetichista atribui um valor fálico a objetos não fálicos para, assim, rejeitar o mecanismo psíquico da castração. Tal mecanismo seria responsável pelas primeiras formalizações da moral no psiquismo.

Em uma leitura possível, podemos dizer que estão resguardados elementos de uma sexualidade infantil no fetichista. Assim, a noção de uma divisão entre o primitivo e o racional, existente nas primeiras antropologias e sociologias do fetiche, está relativamente resguardada no pensamento freudiano. Nosso interesse maior, porém, recai sobre o uso desse termo na obra de Marx (2013). Ele refere-se ao fetichismo ainda como um elemento de análise pertencente à antropologia das religiões, mas percebe nas relações de mercado fortes traços do culto fetichista das sociedades ditas primitivas. O autor assim define o termo:

Já a forma-mercadoria e a relação de valor dos produtos do trabalho em que ela se apresenta não guardam, ao contrário, absolutamente nenhuma relação com sua natureza física e com as relações materiais [dinglichen] que derivam desta última. É apenas uma relação social determinada entre os próprios homens que aqui assume, para eles, a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Desse modo, para encontrarmos uma analogia, temos de nos refugiar na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens. Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias. (Marx, 2013, pp. 147-148)

É necessário diferenciar mercadoria de forma-mercadoria para que possamos compreender essas ideias expressas no primeiro volume de O Capital. Uma mercadoria é “um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de um tipo qualquer” (Marx, 2013, p. 113). A mercadoria é algo da ordem natural. Ela resguarda intrinsecamente seu valor de uso como algo que serve para comer, beber, vestir ou cortar. Seu valor está ligado a sua utilidade, Marx chamou de ‘valor de uso’.

A forma-mercadoria, porém, é uma mercadoria imbuída de um segundo valor. A esse valor Marx chamou de ‘valor de troca’. O valor de troca é uma grandeza que deve fazer referência a qualquer forma-mercadoria existente. Marx (2013) cita como exemplo a relação entre o trigo e o ferro. Como definir qual a quantidade de trigo é suficiente para trocar por determinada quantidade de ferro?

O valor de troca é aquilo que equilibra essa equação sem se reduzir a nenhuma das incógnitas expressas. Ele é sempre um terceiro elemento. O trabalho tem forte valor nesse processo, uma vez que no valor de troca está embutido o valor do trabalho expresso das mais variadas formas. Principalmente, no tempo gasto na produção de determinada mercadoria.

Um tipo de mercadoria específica é preciso ser excluída do universo das mercadorias para que valha como valor universal e passe a ser a medida de todas as outras. Essa é chamada de mercadoria-dinheiro e determina, a partir de valores socialmente atribuídos, o custo das outras.

Aqui reside o caráter fetichista da mercadoria para Marx (2013). Trata-se do encobrimento dos verdadeiros determinantes do valor das formas-mercadorias. Tal encobrimento transforma em expressões naturais pactos socialmente elaborados. Na análise, o que é subsumido é o tempo do trabalho gasto na produção.

Essas variadas correlações entre forma, tempo e valor são subtraídas do cálculo, produzindo a sensação de naturalidade nas atribuições das formas-mercadorias. O fetiche para o pensamento marxista é, portanto, esse processo abstrato que atribui valores à forma-mercadoria ao mesmo tempo em que exclui do sistema de correlações as causas do valor atribuído. Diante disso, o autor escreve que:

Até hoje nenhum químico descobriu o valor de troca na pérola ou no diamante. Mas os descobridores econômicos dessa substância química, que se jactam de grande profundidade crítica, creem que o valor de uso das coisas existe independentemente de suas propriedades materiais [sachlichen], ao contrário de seu valor, que lhes seria inerente como coisas. Para eles, a confirmação disso está na insólita circunstância de que o valor de uso das coisas se realiza para os homens sem a troca, ou seja, na relação imediata entre a coisa e o homem, ao passo que seu valor, ao contrário, só se realiza na troca, isto é, num processo social. (Marx, 2013 p. 158)

Para Marx (2013), o mercado não é uma vocação natural do homem. Ele é um processo social. A forma que assume a mercadoria, nesse processo social, é uma forma arbitrária que visa a sua autovalorização e à manutenção da lógica do Capital. Mas, se na forma-mercadoria está contido o trabalho, esse, para Marx, é ontologicamente fundador da própria condição humana; logo, as relações de trabalho também estão sujeitas às lógicas arbitrárias do mercado.

Com isso, Marx (2013) aponta que, na sociedade capitalista, a relação entre coisas sobrepõe-se à relação entre os homens a tal ponto que as próprias relações humanas se tornam relações entre coisas. Marx chamou esse processo - cujos elementos básicos para uma teoria do fenômeno já apareciam em obras como o Grundrisse (2011Marx, K. (2011). Grundrisse. São Paulo: Boitempo .) e O Capital (Marx, 2013) - de reificação [Verdinglichung] (Bottomore, 2012Bottomore, T. (2012). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar .), conceito que foi, posteriormente, aprofundado por Lukács (2003Lukács, G. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.).

A formação social da identidade

Segundo Marx e Engels (2007, p. 36), “desde o início, portanto, a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens”. O ser humano não é um átomo isolado na sociedade. Ele é, dialeticamente, produto e produtor das condições históricas, políticas, econômicas, afetivas e sociais nas quais está inserido. Mesmo sua identidade individual, talvez o que há de mais idiossincrático no universo das particularidades humanas, é fortemente influenciada pela forma como a sociedade se configura.

Marx e Engels (2007) não se furtaram a essa ideia. Em sua perspectiva econômica e política, esses pensadores atestam a influência do social na composição da identidade. É fato que, para o pensamento sociológico de Marx, as ideias culturalmente hegemônicas são aquelas que mais fortemente influenciam nossa percepção do mundo. Marx, porém, não propõe uma psicologia de como essas ideias são inseridas na consciência e se tornam parte objetiva da realidade. Do ponto de vista da psicologia, Sigmund Freud e Georg Mead têm contribuições importantes sobre esse processo.

O pai da psicanálise poucas vezes fez uso da expressão identidade. Porém, afirma que, para se constituir, o “Ego” precisa identificar-se com o mundo. Em especial, precisa identificar-se com outro “Ego”. Assim, Freud (1921/1996, p. 115) escreve que “a identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”.

Para Freud (1921/1996), o que está prescrito no processo de identificação é a própria possibilidade de sociabilidade. O “Ego” em formação, ao identificar-se com outros já formados, introjeta as regras sociais do mundo e as leis morais, através das figuras paternas de autoridade e os laços afetivos e sensuais com as figuras maternas. De maneira informal, Freud inaugura, em sua busca pela constituição do “Ego”, uma concepção de identidade. Não como as filosóficas, mas como um processo dinâmico de incorporações das regras racionais, morais e afetivas de sociabilidade.

Para esse autor, tamanha é a influência da sociedade sobre o indivíduo que, como afirma:

O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado, mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. (Freud, 1921/1996, p. 81Freud, S. (1996b). Psicologia do grupo e análise do Ego. InEdição stardard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud . Vol. XVIII, (pp. 79-156). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1927))

Mead (1970Mead, G. H. (1970). Mind, self and society. Chicago: The University Chicago Press. ), e seu behaviorismo social de tom pragmático, buscou nos comportamentos sociais a constituição daquilo que chamamos de “Self”. Para ele, esse núcleo da identidade não é uma representação que temos de nós mesmos e compartilhamos com os outros. É, na verdade, um conjunto de atos de comunicação que permite a interação social.

Mead (1970Mead, G. H. (1970). Mind, self and society. Chicago: The University Chicago Press. ) explica que as interações sociais têm conformações semelhantes às dos jogos lúdicos. É necessário saber as regras para poder jogar. Dessa maneira, as crianças, em tais jogos, precisam desempenhar diferentes papéis. Primeiro os dos “outros significativos”, aqueles mais íntimos das crianças. Depois, a adoção de papéis é generalizada. A criança passa a ser capaz de assumir papéis sociais variados baseados nas regras morais. A essas generalizações possíveis Mead (1970) chamou de “outro generalizado”. Essa generalização é correlativa à comunidade ou grupo social em que o Self em desenvolvimento está inserido. Enquanto um “outro”, ele representa as aspirações, atos e comportamento de toda uma comunidade.

Como consequência desse processo, o “Eu” diferencia-se do “Me”. Sendo o primeiro referente à capacidade que o Self tem de perceber e criticar o mundo ao seu redor, um Self observador, e o segundo, um Self social sujeito às regras morais e éticas de convivência em sociedade, ou seja, é um produto de como as regras sociais organizam as atitudes dos indivíduos.

Honneth (2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramatica moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.) nos oferece uma pertinente explicação sobre as relações entre o “Eu” e o “Me” na perspectiva de Georg Mead. Sobre o “Eu”

Mead distingue do "Me", que conserva minha atividade momentânea tão-somente como algo já passado, uma vez que ele representa a imagem que o outro tem de mim, o "Eu", que é a fonte não regulamentada de todas as minhas ações atuais. O conceito de "Eu" deve ser referido à instância na personalidade humana responsável pela resposta criativa aos problemas práticos, sem poder jamais entrar como tal, porém, no campo de visão; no entanto, em sua atividade espontânea, esse "Eu" não só precede a consciência que o sujeito possui de si mesmo do ângulo de visão de seu parceiro de interação, como também se refere sempre de novo as manifestações práticas mantidas conscientemente no "Me", comentando-as. Portanto, entre o "Eu" e o "Me", existe, na personalidade do indivíduo, uma relação comparável ao relacionamento entre parceiros de um diálogo. (p. 130)

Para Mead (1970Mead, G. H. (1970). Mind, self and society. Chicago: The University Chicago Press. ), parece haver um dialogismo entre o “Eu” e o “Me” de tal maneira que o mundo social parece se reproduzir no interstício dessas duas instâncias. O que poderia se chamar de identidade para Mead (1970) seria essa relação dialógica em que um sistema simbólico puramente idiossincrático, o “Eu”, interage com um sistema de símbolos compartilhados socialmente.

Essas concepções de identidade encontram-se na leitura sociológica proposta por Berger e Luckmann (1985/2005Berger, P. L. & Luckman, T. (2005). A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1985)). Para esses autores, a identidade é um processo culturalmente construído a partir de identificações com as estruturas de sociabilidade preestabelecidas. Segundo eles, as primeiras formas de relação com a sociedade ocorrem através da “socialização primária”. Nela, o “Eu” entra em contato com as primeiras configurações sociais, ou seja, ocorre a introjeção de valores a partir da família.

Já as outras formas de identificação são do tipo “socialização secundária”. Nelas existe a introjeção dos valores gerais da cultura na qual o sujeito está inserido. Berger e Luckmann (1985/2005) enfatizam fortemente os efeitos da socialização primária na consciência, pois essa carrega valores morais que se cristalizam fortemente nas condutas. Entretanto, continuamente, tais valores conflitam com as regras compartilhadas em suas generalidades. Para eles, então, nenhuma socialização é completa. A construção da identidade é um processo contínuo de conflitos, legitimações e mudanças na relativa e frágil simetria entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva. Entre particularidades e coletividades.

É lugar-comum, para todas essas teorias, a influência da sociedade e da cultura na constituição da identidade. Se essa hipótese é verdadeira, não devemos nos furtar à análise de como, especificamente, a sociedade capitalista influencia a constituição identitária e quais as consequências políticas dessa influência.

Por uma leitura complementar da crítica à identidade em “A estória de Severino e a história de Severina”

Ciampa (1987Ciampa, A. C. (1987/2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)/2005) aponta três categorias fundamentais para a Psicologia Social estudar o homem: atividade, consciência e identidade; sendo impossível analisar uma sem que se recorra às outras (embora se possa destacar uma, como ele mesmo fez em sua tese de doutoramento). O autor demonstra nesse trabalho como a manifestação do ser é sempre uma atividade, portanto, “qualquer predicação é predicação de uma atividade anterior, genericamente, de uma presentificação do ser” (p. 138).

Todavia, o autor afirma que falar do ser como atividade é difícil para nossa linguagem cotidiana; por conseguinte, acabamos por usar substantivos - criando a ilusão de que o indivíduo seria dotado de uma substância e que essa se expressaria através dele. Na representação da identidade, Ciampa (2005) demonstra que o uso frequente de proposições substantivas no lugar de proposições verbais -“Severino é lavrador”, ao invés de “Severino lavra a terra” - é uma internalização do que é predicado e coisifica a atividade sob a forma de uma personagem. Assim, a personagem subsiste independentemente da atividade que a tenha engendrado e deveria sustentá-la, ou seja, “Severino é lavrador, mas já não lavra”.

A forma-personagem, portanto, expressa muito bem, em sua generalidade, essas formas de predicações que a identidade vai adotando. À exemplo do que ocorre com a forma-mercadoria, ela vai se modificando, e a personagem passa a se apresentar como objeto misterioso, fantasmagórico, em outros termos, como um fetiche (Ciampa, 2005).

O autor recorre a Iray Carone que, ao analisar a obra de Marx, O Capital, especificamente a forma-mercadoria, ajuda a melhor compreender a exposição marxiana. Segundo ela:

Dizer que a mercadoria é fetiche, ou melhor, dizer que a forma-mercadoria transforma os produtos do trabalho em fetiches significa dizer que a mercadoria é um objeto não-trivial dotado de poder sobre as nossas necessidades materiais e espirituais. Não é, pois, a mercadoria que está a serviço de nossas necessidades e sim, as nossas necessidades é que estão submetidas, controladas e manipuladas pela vontade e inteligência do universo das mercadorias! (Carone, 1984/2004, p. 25Carone, I. (2004). A dialética marxista: uma leitura epistemológica. In S. T. M. Lane & W. Codo (Orgs.), Psicologia Social: o homem em movimento (pp. 20-30). São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1984))

Portanto, o indivíduo que é verbo que se substantiva defronta-se com o que pode ser chamado de fetichismo da personagem, explicando a (quase) impossibilidade de esse sujeito atingir uma condição de ser-para-si - ocultando a natureza da identidade como metamorfose, criando “o que chamamos de identidade-mito, o mundo da mesmice (da não mesmidade) e da má infinidade (a não superação das contradições)” (Ciampa, 1987Ciampa, A. C. (1987/2005). A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense . (Original publicado em 1987)/2005, p. 151).

Esse trabalho de reposição acaba sustentando a mesmice, a identidade pressuposta que é reposta de modo contínuo sob uma aparência de inalterabilidade (Ciampa, 2005; Lima, 2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC.). O fetichismo da personagem, portanto, leva à aparência de não-metamorfose, reduzindo as várias personagens da identidade e impedindo o jogo e a negociação das diferentes personagens que são vividas pelos sujeitos com outros sujeitos (Lima, 2010).

Por se tratar de uma ideia de identidade flexível, situada a partir das teorias de papéis sociais, o fetichismo, para esse autor, faz referência não mais ao objeto de amor ou à mercadoria, mas à personagem. A partir daqui, usaremos o conceito de fetichismo da personagem em uma outra leitura, a fim de demonstrar as transformações do sujeito em mercadoria e, posteriormente, como isso se relaciona com as formas de reconhecimento. Para tanto, faremos uso de autores das já aludidas teorias críticas.

Logo nos primeiros capítulos de Crítica da estética da mercadoria, Haug (1997Haug, W. F. (1997). Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora da UNESP.), ao analisar as condições e mecanismos da relação de troca entre mercadorias, na generalização do dinheiro como uma “terceira mercadoria” e na distinção entre as perspectivas dos atos de compra e venda, assinala importantes elementos que nos auxiliam a compreender essa dinâmica em torno do universo mercadológico. Alguns pontos já foram anteriormente apresentados por intermédio de outros autores, cabendo, aqui, portanto, apresentar as contribuições desse filósofo alemão.

Já vimos como a mercadoria, ao poder satisfazer alguma necessidade humana, tem um valor de uso e, com seu poder de permutabilidade, um valor que se expressa como valor de troca (Bottomore, 2012Bottomore, T. (2012). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar .; Marx, 2013). Todavia, Haug (1997Haug, W. F. (1997). Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora da UNESP.) afirma categoricamente que “a produção de mercadorias não tem como objetivo a produção de determinados valores de uso como tais, mas a produção para a venda” (p. 26).

Embora o autor faça análises riquíssimas sobre diversos pontos, a nós interessa a leitura que ele faz sobre a manifestação sensível e o sentido do valor de uso da mercadoria, ou seja, seu aspecto estético, que, separando-se do objeto, torna-se importante na consumação do ato da compra, enquanto ser, uma vez que:

O que é apenas algo, mas não parece um “ser”, não é vendável. O que parece ser algo é vendável. A aparência estética, o valor de uso prometido pela mercadoria, surge também como função de venda autônoma no sistema de compra e venda. No sentido econômico está-se próximo de, e será finalmente obrigatório, em razão da concorrência, ater-se ao domínio técnico e à produção independente desse aspecto estético. O valor de uso estético prometido pela mercadoria torna-se então instrumento para se obter dinheiro. Desse modo, o seu interesse contrário estimula, na perspectiva do valor de troca, o empenho em se tornar uma aparência de valor de uso, que exatamente por isso assume formas bastante exageradas, uma vez que, da perspectiva do valor de troca, o valor de uso não é essencial. Nesse contexto, o aspecto sensível torna-se portador de uma função econômica: o sujeito e o objeto da fascinação economicamente funcional. Quem domina a manifestação, domina as pessoas fascinadas mediante os sentidos. (Haug, 1997Haug, W. F. (1997). Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora da UNESP., p. 27)

A fascinação, como o leitor deve ter percebido, aproxima a discussão realizada por Haug (1997Haug, W. F. (1997). Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora da UNESP.) das proposições desenvolvidas por Ciampa (2005) que apresentamos aqui, principalmente acerca do conceito de fetichismo de personagem, uma vez que, tal como ocorre com as mercadorias, a personagem fetichizada “é reforçada em seu comparecimento pela forma de valor social” (Lima, 2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC., p. 151). O indivíduo se apresenta como uma réplica de si mesmo, pois busca preservar interesses preestabelecidos por conveniência que, em geral, estão intimamente ligados ao mundo do capital.

Benjamin (1994Benjamin, W. (1994). Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense.), em sua famosa citação, esclarece ainda mais essa questão da mercadoria. Para ele, “se a mercadoria tivesse uma alma - com a qual Marx, ocasionalmente, faz graça -, esta seria a mais plena de empatia já encontrada no reino das almas, pois deveria procurar em cada um o comprador a cuja mão e a cuja morada se ajustar” (p. 52).

Mas, como isso nos ajudará a entender a transformação dos sujeitos em mercadoria? A chave para essa resposta está no conceito de reificação (Verdinglichung). Bottomore (2012Bottomore, T. (2012). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar .) indica o começo real do termo em Marx, embora algumas de suas análises (mas não a palavra e nem o conceito em si) pareçam se aproximar de Hegel, como, por exemplo, a análise da beobachtende Vernunft (razão observadora) - na Fenomenologia do espírito ou nos Princípios da filosofia do direito, na parte da análise da propriedade.

E ainda que a ideia de reificação leve-nos a Marx, desde obras como os Manuscritos econômico-filosóficos (Marx, 2010bMarx, K. (2010b). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo .) até o Grundrisse e O Capital, quando, então, a análise do conceito e seu uso teórico são explicitados (Bottomore, 2012Bottomore, T. (2012). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar .), é em Luckács (2003) que encontraremos a melhor interpretação para o conceito e a importância do mesmo para o que queremos demonstrar aqui.

Para o filósofo e literato húngaro, a reificação está para além das relações existentes no universo das mercadorias. Poderíamos dizer, apoiando-nos em suas ideias, que o universo da reificação invade as esferas das relações sociais produzindo um tipo de consciência ontologicamente reificada. Lukács (2003Lukács, G. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.) aponta que a consciência da classe burguesa é reificada na medida em que é incapaz de perceber a totalidade dos fenômenos sociais em detrimento das particularidades de seus interesses.

Esse universo onde o todo é singularizado limita, para o autor, a consciência a uma mera reificação de si mesma. Os sujeitos são tomados nas particularidades das ações de mercado como se essas fossem a totalidade da vida social. Vida e mercado para a classe burguesa aparecem como sinônimos no pensamento de Lukács.

Desse modo, a atividade humana torna-se estranha ao próprio homem, ganha vida enquanto coisa personificada (Personifizierung) e trilha, a partir disso, um caminho que lhe é próprio e independente do homem, como qualquer outro item de consumo. Enquanto que, por outro lado, as relações de produção são reificadas (Versachlichung) e penetram profunda e definitivamente na consciência do indivíduo, alienando sua condição de existência a uma condição de mercado (Bottomore, 2012Bottomore, T. (2012). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar .; Lukács, 2003Lukács, G. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.; Marx, 2013).

Agora, coisificado, o indivíduo transforma-se, ele mesmo, em mercadoria. Através dos conceitos de forma-personagem e de fetichismo da personagem, podemos entender como a linguagem do cotidiano - no emprego de predicações substantivas e na substantivação do ser-que-é-verbo na identidade - ajuda-nos a perceber com mais clareza algumas das consequências do fetichismo na vida e nas negociações identitárias dos sujeitos e suas consequências políticas.

O reconhecimento perverso no mundo das identidades reificadas

A própria condição de existência dos indivíduos no mundo é inerente à necessidade de que esses sejam reconhecidos enquanto participantes da vida em sociedade. Assim, Hegel (1997Hegel, G. W. F. (1997a). Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes . ) narra a sua melancólica “luta até a morte por reconhecimento”. Um “Eu” nunca será enquanto si, se não for, por outro “Eu”, reconhecido. Honneth (2003Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento: a gramatica moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34.) vê na luta por reconhecimento hegeliana uma condição base da estrutura social. Podemos dizer que não há uma identidade que não seja identidade para outro. Apesar de manter elementos de reflexividade, a identidade não é de toda dirigida a si mesma.

Se voltarmos às teorias psicossociais já descritas, veremos que, em todas elas, a sociedade faz o papel desse outro do reconhecimento. Esse outro que garante ao “Eu” sua própria condição social de existência. Tamanha é essa necessidade que Honneth (2007Honneth, A. (2007). Sofrimento de indeterminação: uma reatualização da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Singular.) aponta como causa psicopatológica o sentimento de indeterminação proposto por Hegel (1997). Para este último, a transição do medievo para a era moderna colocou em xeque os valores sociais, produzindo indivíduos que sofriam por indeterminações, na medida em que os velhos valores morais, gradativamente, perdiam sua validade histórica. Os sujeitos modernos, nessa perspectiva, parecem sofrer diante das novas formas de autonomia da vontade inauguradas pela modernidade.

O reconhecimento da identidade é um elemento estrutural da constituição da sociedade. Mas em uma sociedade em que a própria identidade é objeto do mercado, como então ocorre esse processo de reconhecimento?

Em seus estudos sobre Baudelaire, a modernidade e a Paris do segundo império, Benjamin (1994Benjamin, W. (1994). Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense.), analisando as particularidades do cotidiano das pessoas naquele período, do flâneur, do jogo e da prostituição, possibilita, a partir desta última, uma ilustração precisa do sujeito transformado em mercadoria. A prostituta, diz o autor, se apresenta como vendedora e mercadoria em um único ato. Consequentemente, acaba por ser regida pelas mesmas leis que regem o universo das mercadorias.

A prostituta acaba por ser emblemática para nossa leitura neste trabalho por permitir uma exposição explicitamente clara, tanto desses elementos da identidade quanto da mercadoria, ambos já anteriormente apresentados, e das formas de reconhecimento, que podem ser identificadas, em diferentes graus de ocultamento/revelação, em diversas atividades humanas.

Entramos no campo do que Ciampa (2005) denominou de políticas de identidade. Lima (2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC.) elucida esse conceito propondo que tais formações políticas organizam as representações que temos das identidades a partir da fetichização dessas. Uma política de identidade, portanto, subsume a atividade de uma personagem a uma identidade-mito. Não existe um reconhecimento da personagem fora de determinados parâmetros preestabelecidos. Nas palavras do autor:

Assim, tais políticas identitárias acabam por expressar um tipo de discurso a favor de uma autodeterminação excludente, o que significa que dentro de tais políticas o indivíduo acaba por se colocar diante do outro de forma estigmatizada a partir da representação, consciente ou não, de uma determinada personagem. (Lima, 2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC., p. 170)

Notemos que estamos no movediço solo do mundo administrado. As políticas de identidade podem, portanto, aparecer como políticas estratégicas da administração da vida. Entendemos que essa administração ocorre a partir da lógica do reconhecimento, porém em outro sentido. Lima (2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC.) denominou esse outro sentido de “reconhecimento perverso”. Tal forma de reconhecimento reconhece a identidade já fetichizada.

Vemos nisso uma consonância com o “mundo administrado”, pois o reconhecimento perverso reconhece a partir de um valor atribuído à personagem. Podemos propor, então, que essa modalidade de reconhecimento atua sobre a forma-personagem, reconhecendo um valor abstrato de interesses políticos, econômicos e administrativos.

Aqui a tese de Lukács (2003Lukács, G. (2003). História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes.) assume, para nós, centralidade. Concordamos com a posição desse autor quando afirma que as relações sociais no capitalismo são relações reificadas. Dessa maneira, as identidades parecem estar imbuídas de um valor de troca na figura das formas-personagens. Assim a relação entre personagens, ou seja, a própria dinâmica social, no “mundo administrado” e reificado, assume o caráter de relações de trocas.

Considerações finais

Em nosso percurso buscamos contemplar uma leitura complementar à obra de Ciampa (2005) a partir de elementos das teorias críticas, mas com forte ênfase nas noções de forma-personagem, fetichismo e, também, reificação. Não podíamos nos furtar de considerações sobre a identidade social, bem como um aprofundamento no conceito de fetichismo, pois assumem lugar central em nossa narrativa. A proposta defendida aqui, e que de fato não é uma novidade no campo, é a de que, no capitalismo administrado, as identidades fetichizadas aparecem como elementos de gestão política, e, como mecanismo racional dessa gestão, apostamos no conceito de “reconhecimento perverso” proposto por Lima (2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC.).

Como considerações finais, devemos dois esclarecimentos. Primeiro, entendemos que vários temas centrais nas obras de alguns autores passaram à revelia de nossa discussão. Ao apontar nosso foco para os temas em questão e, de alguma forma, tentar reconstruir os caminhos desse processo, alguns outros temas não foram contemplados. Podemos citar, como exemplo, a anamorfose, tão cara ao pensamento de Lima (2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC.).

Outros temas preciosos ao pensamento de Ciampa (2005) como: má-finitude, mesmice, mesmidade ou mesmo o sintagma identidade-metamorfose-emancipação foram lateralizados, ou seja, apareceram apenas na medida de nossos interesses crítico e analítico. Não queremos passar a ideia de que esses [temas] não são importantes, ou são subalternos aos nossos apontamentos. Mas nosso objetivo neste texto foi apresentar uma leitura à luz de alguns conceitos caros às teorias críticas com ênfase na forma-personagem, no fetichismo e na reificação.

A outra consideração é sobre o caráter pessimista que estes escritos podem ter assumido ao longo do texto. Queremos esclarecer que, como já dito no primeiro apontamento, não foi nosso objetivo tratar do tema da superação das condições aqui apresentadas. Isso não significa dizer que não somos condescendentes com essa superação, uma vez que, situados no campo das teorias críticas, estamos sempre nos orientando para a superação das estruturas de exploração e dominação da sociedade capitalista.

A própria concepção de política de identidade, apresentada nas últimas páginas deste texto, não pode ser desatrelada de seu negativo: as identidades políticas. Lima (2010Lima, A. L. (2010). Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso: a identidade na perspectiva da psicologia social crítica. São Paulo: FAPESP/EDUC.) assinala que as identidades políticas nos permitem perceber o sintagma identidade-metamorfose-emancipação em ato. Entendemo-las como o dado antropológico do sintagma. Se as políticas de identidade são práticas regulatórias, essas outras surgem como resistência democrática a tais práticas.

Por fim, mesmo sem nos dedicarmos a tais apontamentos, queremos deixar claro que eles subsistem nas entrelinhas deste texto. Entretanto, cairemos propositalmente no clichê da diferença mínima que separa o realismo e o pessimismo. Entendemos que a atitude crítica que busca se posicionar contra as mazelas da exploração e dominação da sociedade capitalista está sempre na iminência de ser alcunhada de pessimista, pois no mundo administrado pelo capitalismo somos, todos nós, tal qual a prostituta descrita por Walter Benjamim (1994). Somos formas-personagens, fetichizados, reificados e imbuídos de valor de troca. Somos vendedor e produto de nós mesmos.

Agradecimento

À agência de fomento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES: bolsa de mestrado do segundo autor.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2016
  • Revisado
    22 Dez 2016
  • Aceito
    19 Jun 2017
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